Ricardo Hirata
De volta a García Márquez, o amor de Florentino Ariza por Fermina Daza, ainda que tenha conseguido aguardar por mais de cinquenta anos até se realizar, não passou um dia sequer fora da sombra iminente da morte (Foto: Paco Junquera/Divulgação)
“(…) [o amor] tanto mais denso fica quanto mais perto da morte.”
Gabriel García Márquez
O amor nos tempos do cólera (1985) aproxima Eros de Tânatos pelas lentes da pandemia. Por sua vez, a Covid-19 nos proporciona o mesmo lugar privilegiado, para observação, análise e experimentação dessa face enigmática do discurso amoroso: o adensar do amor quando próximo da morte. Na trilha aberta pelo romance, intuímos que tal proximidade é da ordem do tempo.
Os termos “tanto” e “quanto”, presentes na epígrafe, apontam para uma tensão existente entre os dois polos da existência. Espécie de diferença de potencial, o que a física chama de “ddp”, da bateria psíquica; voltagem que anima o desejo. Entre o nascer (enlaçar) e o partir (desenlace), “firmar” o laço é a alternativa à frouxidão do embotamento/alheamento (lassear) mental. A arte, assim como a psicanálise, apostam também aí as suas fichas: firmar (selar pacto, assinar) o sujeito desejante. Em tese, algo novo pode advir, individual e/ou coletivamente, como fruto dos atravessamentos do mortífero, característica fundamental de uma pandemia. A crise, imersa em paradoxos (assim como o amor), traz em si uma possibilidade em potencial.
Nos tempos da experiência amorosa – tempo da inocência (linguagem infantil da ternura), tempo da descoberta (educação sentimental), tempo da paixão (linguagem da genitalidade), tempo do casamento (termos da conjugalidade), dentre outros – peculiar é o tempo da morte, da transitoriedade inquietante, tempo de assombro e revelação. “Valor de transitoriedade é valor de raridade no tempo. A limitação da possibilidade da fruição aumenta a sua preciosidade”, defende Freud em A Transitoriedade (1916), texto-manifesto escrito diante dos horrores da Primeira Guerra.
De volta a García Márquez, o amor de Florentino Ariza por Fermina Daza, ainda que tenha conseguido aguardar por mais de cinquenta anos até se realizar, não passou um dia sequer fora da sombra iminente da morte. Precioso porque limitado. O autor colombiano celebra a vida (“mais que a morte, a que não tem limites”) ao demonstrar que a transitoriedade não implica no luto inevitável, por vezes melancólico, e sim num “estado de espírito” diante do risco da perda da capacidade de amar. Nas palavras de Freud, uma “rebelião contra o fato constatado”, em lugar do “doloroso cansaço do mundo”. A questão aqui é: rebelar-se, como?
O que os tempos do cólera, assim como a pandemia atual nos faz perceber, é que a morte traz à tona a face oculta do amor. Conhecidos são os casos em que pessoas próximas do fim, ou com doenças terminais, fazem do leito um local de confidências e declarações. Perto da morte, o amor se “precipita”, condensado como o vapor d’água na forma de granizo, ou os sólidos insolúveis na reação química do iodeto de chumbo (“chuva de ouro”). A morte não sublima o amor, ao avesso, o solidifica na forma de histórias-revelação, histericiza o discurso amoroso.
Por outra via de sentido, em tempos de pandemia, precipitar-se é se antecipar em relação ao tempo ameaçador da rotina. Como Florentino Ariza, continuamente rebelde, ao longo da obra, lança mão da escrita de sua correspondência de amor a um amor não correspondido. Contra o determinismo social de sua condição de filho do acaso, aposta no evidente impossível e, eventualmente, acerta no que não viu – uma “Nova Fidelidade”.
É este o nome de batismo da embarcação que irá abrigar o amor do casal septuagenário. Uma nova aliança sob o disfarce de “navio-fantasma”, a proteção que a bandeira do cólera uma vez hasteada no barco, confere ao ninho daquela re-volta de dois a dois. Salvaguardados, enfim, dos olhos “fofoqueiros” da moral e dos bons costumes, do “espírito do tempo”.
Figura da Errância, em Fragmentos de um discurso amoroso, de Roland Barthes, o Navio-Fantasma representa no ir-e-vir, de amor e amor, a fatalidade inominável do ser amoroso – errar até a morte. Longe do “sim” ao abismo da queda, em tempos pandêmicos, precipitar pode significar a condensação do desejo em forma de escrita criativa. Quiçá?
Encerramos com Barthes: “o fim dessa história, assim como minha própria morte, pertence aos outros; a eles cabe escrever esse romance, narrativa exterior, mítica”.
Ricardo Hirata é psicanalista e escritor. Realiza desde 2015, oficinas e laboratórios de escrita criativa, na interface entre a literatura e a psicanálise, junto ao Centro de Estudos Psicanalíticos (CEP-SP). Atualmente ministra o curso “Escrever o amor nos tempos de pandemia”, no Espaço Cult. Clique aqui para se inscrever.
(Publicado originalmente no site da revista Cult)
Nenhum comentário:
Postar um comentário