Patrícia Lavelle
Alegoria, aura, experiência, imagem dialética, pura linguagem: entenda conceitos fundamentais na obra de Walter Benjamin (Foto: Reprodução)
Alegoria
A teoria da alegoria remete tanto à filosofia da linguagem quanto à reflexão estética de Benjamin. Na terceira e última parte de Origem do drama barroco alemão (1925), a alegoria é definida como “expressão da convenção”, metamorfose expressiva da ligação convencional entre significado e significante, conceito e imagem. Ruína que opera com materiais previamente sedimentados, surge da erosão do signo, como “facies hippocratica da história”. Se a obra de arte simbólica esconde a fratura da significação numa aparência harmônica, a expressão artística alegórica a exibe. Engendrando uma progressão vertiginosa de imagens que apontam para fora delas mesmas, a forma alegórica apresenta a própria abstração conceitual como imagem. Numa nota crítica incluída no Livro das passagens, Benjamin afirma que Baudelaire teria feito da alegoria a armadura de sua poesia.
Aura
Entre o conceito e a metáfora teórica, a noção de aura pode ser representada na imagem do contorno luminoso de uma montanha vista de longe. Benjamin a define como “a aparição de um longínquo, por mais próximo que esteja”. Numa leitura das Correspondances de Baudelaire, ele compreende a experiência estética da aura como uma transferência, às coisas, da capacidade humana de retribuir o olhar. Esta experiência fundamentalmente onírica diz respeito ao “valor de culto” da obra de arte, que tende a declinar com a sua reprodutibilidade técnica e a consequente intensificação de seu “valor de exposição”. A noção de aura se relaciona, assim, às reflexões de Benjamin sobre fotografia e cinema, em “A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica”, mas também aparece no contexto de suas considerações sobre o declínio da arte de contar histórias.
Crítica
De acordo com a tese de doutorado de Benjamin “Sobre o conceito de crítica estética no romantismo alemão” (1919), a possibilidade da crítica decorre da reflexão colocada em forma numa obra de arte. Neste sentido, a crítica não é um julgamento sobre o valor estético das produções artísticas, mas um método de seu acabamento. Ultrapassando a obra através da destruição de sua unidade expressiva, visa prolongar e desenvolver a reflexão nela contida. Partindo desta hipótese, que pressupõe a “criticabilidade” das verdadeiras obras de arte, o ensaio “Sobre As Afinidades eletivas de Goethe” (1924-1925) funciona como um modelo de crítica que apresenta o seu próprio conceito. Benjamin nele opõe o comentário, que procura reconstruir o “teor concreto” da obra, isto é, seus condicionamentos históricos, à crítica, que visa o seu “teor de verdade”, aquilo que a faz perdurar além do contexto de seu surgimento. Entretanto, a verdade da obra estaria imersa em sua historicidade, o comentário que destrói sua unidade aparece, assim, como parte constitutiva do trabalho crítico. Tal relação é apresentada na famosa imagem da obra como uma fogueira diante da qual o comentador opera como químico, e o crítico, como alquimista. Se para o primeiro apenas madeira e cinzas são objetos de análise, para o segundo, a própria chama constitui um enigma.
Experiência (Erfahrung)
Em “Sobre o programa da filosofia vindoura” (1917-1918), uma espécie de projeto filosófico, Benjamin se propõe a partir de Kant para pensar um conceito superior de experiência capaz de incluir os campos da “religião” e da “história”. Segundo ele, Kant assentou as bases do conhecimento possível sobre um conceito pobre de experiência, o da física newtoniana. Assim, levando em conta a “metacrítica” de Hamann, um dos primeiros leitores da Crítica da razão pura, Benjamin projeta reformular o conceito kantiano de experiência a partir da reflexão sobre a linguagem e sobre a expressão linguística do próprio pensamento filosófico. Embora não tenha escrito o sistema projetado, ele elabora uma filosofia da linguagem que se inscreve nesta perspectiva programática.
Em 1933, “Experiência e pobreza” retoma a noção de experiência e o tema de seu “empobrecimento” sob outro ângulo, num ensaio. Benjamin aí discute a desvalorização moderna da noção tradicional de experiência, aquela que podia ser transmitida de geração a geração. Rejeitando as tentativas de restaurá-la, sugere partir de seu empobrecimento, assumindo uma nova barbárie que se inspira na atitude construtiva das vanguardas artísticas. “O Contador de histórias”, de 1936, retoma alguns elementos deste ensaio, associando a experiência acumulável e compartilhável da tradição à capacidade de contar histórias oralmente, em declínio na modernidade. Coletiva e transmissível, esta noção de experiência (Erfahrung) se distingue da noção de vivência (Erlebnis), que concerne as experiências vividas de cada individuo.
Imagem dialética
Muitos dos textos teóricos de Benjamin não se enquadram numa perspectiva sistemática nem se inscrevem no gênero do ensaio crítico. São prosas curtas que constroem imagens atravessadas (e tensionadas) por elementos conceituais. A noção de imagem dialética, que aparece entre os fragmentos do projeto inacabado das Passagens, diz respeito a esta forma na qual o “pensamento se imobiliza numa constelação saturada de tensões”. Cesura no movimento do pensar, remete à reflexão de Benjamin sobre o conhecimento histórico. Nela, o outrora encontra o agora de sua conhecibilidade, num relâmpago: “a imagem é a dialética parada”.
Materialismo histórico
Numa leitura heterodoxa do marxismo, Benjamin rejeita a projeção hegeliana de um telos revolucionário e privilegia as descontinuidades messiânicas. Pensa, assim, a escrita da história como um gesto político e utópico através do qual cada presente tem a chance revolucionária de redimir um futuro que espera, oprimido e esquecido, no passado. Visando “escovar a história à contrapelo”, o “historiador materialista” se opõe à empatia na relação com o passado, associada à identificação com o vencedor. Esta atitude é denunciada como um conformismo que faz uma leitura apologética de monumentos e obras do passado, reforçando continuidades culturais opressivas. Tais reflexões se encontram na série de prosas curtas que compõem “Sobre o conceito de história” (1940).
Tempo messiânico
Para Benjamin, o tempo messiânico não se projeta no futuro, como uma finalidade, ele coincide com o instante imobilizado num “agora” pleno: “messiânico é o mundo da atualidade plena e integral”, afirma num manuscrito. No “Fragmento teológico-político”, ele apresenta o tempo messiânico através da imagem de um gráfico que funciona como um elástico. Nele, a direção representada pela intensidade messiânica se opõe à da dinâmica do acontecer profano visando a felicidade. Entretanto, é esta força contrária, exercida pelo desenrolar dos acontecimentos num continuum temporal homogêneo e vazio, que intensifica a descontinuidade messiânica do tempo.
Nome/Juízo
Benjamin apresenta a noção de nome numa releitura ficcional da Gênese bíblica incluída em “Sobre a linguagem geral e sobre a linguagem humana” (1916). Segundo ele, Adão teria conhecido as coisas criadas sem a mediação do conceito, no próprio ato de nomeá-las. Nesta perspectiva, o nome é apresentado como tradução imediata da linguagem material das coisas em linguagem humana. Entretanto, este conhecimento mágico não determina seus objetos: os puros nomes seriam tonalidades expressivas indeterminadas, intensidades evocativas que atuam na linguagem verbal, mas não são propriamente palavras. O verbo humano – e a consequente pluralidade linguística – surgiria apenas com a “queda” desta linguagem paradisíaca no juízo, que comunica exteriormente, fazendo da palavra um meio, signo cindido em significado e significante. Relacionado ao surgimento da abstração na esfera do pensamento ético, é o juízo que interroga sobre o conhecimento abstrato “do Bem e do Mal”, sem conteúdo objetivo ou normativo.
O “Prefácio crítico-epistemológico” do livro sobre o drama barroco faz novamente alusão à narrativa bíblica. Ao distinguir ideia e conceito, identifica a primeira à dimensão simbólica da linguagem, na qual as palavras conservam o poder adâmico de nomear, e o segundo à linguagem judicativa. Mas de acordo com este texto, a apresentação das ideias mobiliza a mediação conceitual em construções discursivas historicamente condicionadas.
Pura linguagem
“Sobre a linguagem geral e sobre a linguagem humana” propõe uma concepção alargada da linguagem como Medium no qual pensamos e percebemos, e não apenas como um meio através do qual podemos comunicar conteúdos de pensamento ou conhecimento. “Razão é linguagem: logos”, afirma Benjamin, citando Hamann. Remetendo a esta compreensão da linguagem, a noção de “pura linguagem” surge em “A Tarefa do tradutor” (1923), prefácio teórico que Benjamin incluiu na edição de suas próprias traduções da poesia de Baudelaire. Quando fazemos da palavra um meio através do qual pensamos ou comunicamos exteriormente, estamos necessariamente numa língua singular, embora possamos também traduzir de uma língua a outra. Assim, a “pura linguagem” deve ser pensada não apenas como a totalidade aberta e sempre em evolução das línguas históricas – concebida como Medium no qual a experiência humana se traduz –, mas também como algo que se opera “entre” elas, permitindo a tradução.
Semelhança não-sensível
Em dois textos de 1933, “Sobre a faculdade mimética” e “Teoria das semelhanças”, a capacidade humana de produzir e de perceber semelhanças é definida como “rudimento da antiga e potente necessidade de se assimilar e de se comportar”. Fundamento da possibilidade de se constituir como sujeito, assimilando o vivido numa experiência individual, a faculdade mimética, representada alegoricamente na figura da “Mummerehlen” de Infância berlinense por volta de 1900, não age apenas na percepção de semelhanças sensíveis na natureza, mas também produz “semelhanças não-sensíveis” que caracterizam a brincadeira infantil, constituíram outrora o vasto domínio da magia e permanecem ativas na linguagem. Ao mesmo tempo identidade e diferença, toda semelhança corresponde à produção do mesmo no outro e do outro no mesmo, numa tensão comparativa. As semelhanças não-sensíveis são aquelas que, produzidas no pensamento, e não na sensação, concernem as relações espirituais que estabelecemos entre as coisas, e não as próprias coisas ou sua aparência sensível. Na esfera da linguagem, a produção de semelhanças não-sensíveis mobiliza o fazer poético, compreendido num sentido amplo, e atua também na tradução, abrindo passagens de uma língua a outra.
Patrícia Lavelle é poeta, tradutora e ensaísta, professora de teoria e crítica literária no Departamento de Letras da PUC-Rio. Fez doutorado em Filosofia na École des Hautes Études en Sciences Sociales de Paris e sua tese foi publicada na França: Religion et histoire. Sur le concept d’expérience chez Walter Benjamin (Editions du Cerf, col. Passages, 2008). Seu novo livro de ensaios desenvolve alguns dos tópicos incluídos neste glossário, e encontra-se atualmente no prelo: Walter Benjamin metacrítico. Sete ensaios para uma poética do pensamento (Relicário/Editora PUC-Rio).
(Publicado originalmente no site da Revista Cult)
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