Gustavo Rossi e Rafael do Nascimento Cesar
Se a posicionalidade, mais conhecida no debate público como lugar de fala, não é narcisismo, por que vemos surgir mais constrangimento do que reflexão por parte de quem não se acostumou a ter sua neutralidade posta em xeque? (Foto: David Kuko/Pexels)
Logo no início de A marca humana, romance de Philip Roth escrito na virada do último século, o professor universitário Coleman Silk é acusado de racismo ao se referir a dois alunos negros com a expressão spooks. O sentido ambíguo do termo, denotando ao mesmo tempo “assombração” e, com conotação pejorativa, “negro”, é recebido de maneira incômoda pela classe. Apesar de se defender com base na primeira acepção da palavra, Silk é forçado a pedir exoneração da universidade, dando sua carreira por encerrada. A trama se desenrola e descobrimos que o docente, cuja aparência e história pessoal outorgavam-lhe uma branquitude insuspeita, era na verdade um afro-americano que na juventude decidiu passar-se por um branco de ascendência judaica de modo a perseguir suas aspirações intelectuais num país ainda legalmente segregado. A revelação dessa identidade secreta, por assim dizer, bem como os seus desdobramentos perante a comunidade acadêmica de Athena, no estado de Nova Jersey, se nos mantêm ligados à narrativa, tornam insustentável a vida do protagonista. O mal entendido, decorrente do uso de uma palavra carregada de significados por alguém igualmente repleto deles, deflagra a impossibilidade da ambivalência, além de exigir uma reparação: a “expiação do sangue pelo sangue”. O que remete à epígrafe do livro, uma passagem da tragédia Édipo Rei, de Sófocles: “Édipo: Qual o rito de purificação? De que modo há de ser feito? / Creonte: Pelo desterro, ou pela expiação do sangue pelo sangue…” (Roth, 2014, p. 5).
Passar-se por branco(a) como estratégia de mobilidade social, transgredindo para isso fronteiras racializadas, está longe de corresponder a um tema episódico. Como outras antes dela, a personagem de Roth encarna muitos dos temores, ansiedades e fantasias raciais que fizeram do chamado passing um tropo significativo do imaginário cultural estadunidense, sobretudo entre meados do século 19 e 20. Em especial, o tema do passing ficou consagrado em dois romances considerados clássicos da literatura afro-americana: The autobiography of a ex-colored man (1912), de James Weldon Johnson, e Passing (1929), de Nella Larsen. O primeiro debruça-se sobre a trajetória de um personagem inominado que fizera do passing uma forma privilegiada de escapar dos estigmas associados à negritude, almejando assim acessar espaços, direitos e vivências que, de outra forma, lhe teriam sido impossíveis. O segundo, por sua vez, narra o reencontro das amigas Irene Redfield e Clare Kendry, elegendo como fio condutor a “ruptura” desta última “com tudo o que havia de familiar e amigável para aventurar-se em outro ambiente, talvez não inteiramente estranho, mas certamente não inteiramente amigável” (Larsen, 1992, pp. 186-7, trad. nossa).
Mais que sensibilizar os leitores acerca dos dramas pessoais de Coleman Silk ou convencê-los de sua astúcia em dissimular marcas corporais, o tema do passing continua a fascinar pela maneira como coloca em suspeição (e em suspensão) muitos dos pressupostos que orientam nosso entendimento sobre raça. Afinal, reafirmar aqui os fundamentos sociais das diferenças raciais não cancelam o fato de que elas continuam a ser cotidianamente percebidas e vivenciadas como realidades biológicas pré-discursivas, como se nas superfícies dos corpos fôssemos capazes de buscar a “verdade” sobre a raça. Crentes de que ali a encontraremos nua e crua, comparamos tons de pele, texturas de cabelos e outras marcas corporais que comprovem ou não a autenticidade do ser racial. Talvez por isso mesmo o passing provoque tanto espanto: ele subverte nossas expectativas quanto a esse “ser” ao evidenciar as falhas dessas verdades que insistem em inscrever no domínio da natureza o que é essencialmente uma produção social e cultural (Gayle Wald, Crossing the line: racial passing in Twentieth-Century U.S literature and culture, 2000).
Em 2015 e 2020, o assunto voltou com força no cenário intelectual norte-americano com os escândalos envolvendo respectivamente a advogada Rachel Dolezal e a historiadora Jessica “La Bombalera” Krug, ambas brancas. Estudiosas e ativistas da questão racial, elas construíram carreiras como intelectuais “negras” vinculadas a instituições de ensino, pesquisa e direitos civis nos Estados Unidos. Carreiras que, assim como a de Silk, tornaram-se insustentáveis após a revelação de seus passados. Krug, ao confessar ter ocultado a experiência de criança judia criada no estado de Kansas, assumiu a inautenticidade de seu passing e a si mesma como impostora (Lauren Michele Jackson, The Layered Deceptions of Jessica Krug, the Black-Studies Professor Who Hid That She Is White, 2020). Dolezal, por sua vez, se recusou a abrir mão da conexão “espiritual” com a negritude, não havendo para ela mal entendido entre sua subjetividade e o ato de passar-se por negra. Não se tratava, concluía ela, de vestir uma “fantasia”, mas assumir uma verdade alternativa sobre si mesma (Allison Samuels, Rachel Dolezal’s true lies, 2015). Ainda assim, a reação irada do público recaiu no fato de Dolezal e Krug terem a um só tempo apropriado e expropriado a identidade negra no intuito de obter benefícios pessoais e ocupar posições autorizadas no âmbito da luta antirracista. Mesmo que enredado por discursos de igualdade racial, o uso indevido da experiência negra e dos símbolos que lhe dão corpo (linguagem, visual, ancestralidade) foi sentido pela comunidade afro-americana como traição e, consequentemente, como racismo.
Implícito a esse roubo identitário subjaz a suposta incongruência entre o engajamento das ativistas e a materialidade de seus corpos brancos, como se a descontinuidade entre a produção do conhecimento sobre raça, de um lado, e a raça do sujeito que o produz, do outro, pudesse invalidar qualquer iniciativa de combate ao racismo. Vale perguntar, no entanto, de que maneira os casos envolvendo Dolezal e Krug iluminam os nexos de sentido entre a atividade intelectual contemporânea e a autenticidade da experiência. Diversas autoras feministas chamaram atenção para essa intrincada relação ao questionarem os limites da objetividade científica e o estatuto problemático da experiência enquanto grau zero do conhecimento e da vida política. Como consequência, a sedimentação dessa crítica nas comunidades acadêmicas estadunidense e brasileira vem fazendo da posicionalidade dos sujeitos e seus saberes um problema incontornável. “Longe de ser uma preocupação narcisista ou trivial”, afirma Patricia Hill Collins, “posicionar o ‘eu’ no centro da análise é fundamental para a compreensão de uma série de outras relações” por meio das quais nos subjetivamos e somos subjetivados como produtores de conhecimento (Pensamento feminista negro, 2019, p. 203). Explicitar tais relações, dando a ver como elas constituem os sujeitos, não implicaria constranger os horizontes da prática científica, mas libertá-la da premissa de um sujeito “neutro” e da impossível missão de nomear realidades transparentes e incontestadas.
Mas se a posicionalidade, mais conhecida no debate público como lugar de fala, não é interdição ou tampouco narcisismo, por que vemos surgir mais constrangimento que reflexão por parte de quem não se acostumou a ter sua neutralidade posta em xeque? Não seriam as acusações de infiltrações de um “mercado epistêmico” no bom fazer científico ou de revoluções travestidas de neoliberalismo reações, elas sim, narcísicas ao problema da situacionalidade? Vistas deste ângulo, tais acusações emergem não como respostas a um debate epistemológico necessário, mas como tentativas emocionadas de contorná-lo, reduzindo a posicionalidade a um jogo identitário no qual pessoas como Dolezal e Krug sairiam perdendo. Daí o medo, não raro partilhado à boca pequena nos corredores de universidades ou em textos incendiários (e anônimos), de que falas estariam sendo “canceladas” pela ação de “patrulhas identitárias”, ou ainda de que certos temas, antes disponíveis a quem quisesse estudá-los, agora haveriam se tornado propriedade exclusiva de sujeitos cuja posicionalidade nunca foi uma escolha, mas a sanção compulsória da estigmatização. A fantasia por trás desse medo é comprovada ao testemunharmos, dia após dia, mais (e não menos) pessoas tomarem a palavra, mesmo que em benefício da discórdia e da contradição.
A angústia quase inerente a esse debate, por vezes traduzida em um sentimento de perda seguido de melancolia, revela um curto-circuito semântico entre a produção do conhecimento nas ciências humanas e a maneira como a experiência é muitas vezes chamada a referendá-lo, assumindo o papel de uma evidência irrefutável sobre algo ou alguém. Poder afirmar vínculos com a comunidade pesquisada que vão além do compromisso ético e da solidariedade, chegando a uma identificação próxima a do parentesco, parece oferecer à(o) pesquisadora(o) a caução perfeita para as suas interpretações, um controle sobre o discurso imune à contestação, uma vez que emanado das entranhas do corpo e da alma. Para quem lida diariamente com as contendas da ciência, a possibilidade de usufruir de tal controle exerce uma atração inegável; para Jessica Krug, uma espécie de Silk às avessas, ela foi tão forte a ponto de a autora dedicar o livro Fugitive Modernities a seus “ancestrais desconhecidos, inominados, que deram a vida por um futuro o qual não tinham razão nenhuma para acreditar que deveria ou poderia existir” (2018, p. v).
Por mais que cheire a novidade, o problema é antigo. Segundo a historiadora feminista Joan Scott, as tentativas de escrever sobre a “diferença” ao longo do século 20 elegeram como ponto de partida de suas narrativas a experiência dos oprimidos, dos subalternos, dos invisíveis, em suma, dos “diferentes”. Embora animados pela melhor das intenções críticas – afirmar que o discurso histórico nunca é neutro e esconde tanto quanto diz relevar –, esses “historiadores da diferença” seguiram os passos daqueles contra os quais se dirigiam. Isso porque, ao verem na experiência desses outros e outras um acesso privilegiado ao real, eles estariam perdendo uma parte importante da questão: a experiência nunca é um dado supostamente dedutível das marcas corporais ou das práticas atribuídas a determinados sujeitos. Ao contrário, ela é algo bem mais difícil de apreender, pois depende daquilo que, em um certo momento histórico e a partir de uma linguagem específica, conta como experiência. Sem essa dimensão processual, as “histórias da diferença” representam tão somente uma mudança de objeto, mas não de método. Assim como o discurso que pretendem atacar, elas estariam naturalizando a experiência em prol da estabilidade do sujeito, reinscrevendo-a na dimensão do óbvio ululante. Afinal, o que poderia ser mais verdadeiro que o relato de quem estava ali?, provoca-nos Scott (The Evidence of Experience, 1991, p. 777).
Dizer que os sujeitos “têm” experiência, comparando-a a uma espécie de espólio ou promessa, pressupõe a ideia de um “eu” pronto a “tê-la” e preexistente a tudo aquilo responsável por torná-lo sujeito. Dessa forma, noções como “raça”, “gênero” e “sexualidade” serviriam apenas para confirmar marcas previamente constituídas nos corpos e nas biografias, como se as diferenças fossem fixas no tempo e existissem a despeito das palavras que usamos para nomeá-las. Dito de outro modo, ao situarmos a experiência na origem do conhecimento, garantindo-lhe de saída o acesso a pontos de vista “autênticos” sobre a realidade, caímos na cilada de tomar por evidência o que seria, na verdade, um efeito do conhecimento e da linguagem. Menos que o acúmulo de vivências individuais, a experiência é uma forma de organizar o vivido ou, nas palavras de Scott, é a “história de um sujeito”.
Ao se passarem por mulheres negras, Krug e Dolezal se refugiaram em noções caricatas de uma negritude ativista e traumatizada de forma a legitimar suas vozes com a autenticidade da raça. Nesse sentido, a autovigilância com que tentaram afirmar experiências isentas de ambivalências ou contradições converteu-se, ela mesma, em uma contradição caricatural diante das inúmeras maneiras de se viver a negritude. No caso de Krug, uma historiadora ligada à academia, o conhecimento por ela produzido ficou inevitavelmente manchado após seu desmascaramento, e o livro Fugitive Modernities, concebido como um exemplo acerca da posicionalidade do sujeito, acabou por atestar, no fundo, a indisponibilidade de sua autora em se posicionar como uma mulher branca, tornando-se ilegível fora da chave da suspeição e da impostura. E pior, ao se deixarem guiar pela fantasia de assumir um outro racial, Dolezal e Krug reencenam a ferida narcísica da branquitude: renunciar ao “truque de Deus”, como adverte Donna Haraway, de “ver tudo de lugar nenhum”, ao direito “universal” de falar sobre e por todo(as) (Saberes Localizados: a questão da ciência para o feminismo e o privilégio da perspectiva parcial, 1995, p. 19).
A posicionalidade, por certo, não pode ser equiparada nem reduzida a um discurso identitário. Se hoje vemos isso acontecer na sociedade brasileira é porque a entrada de novos sujeitos, de novos corpos, na vida acadêmica se faz, em grande medida, através de uma luta política para a qual as categorias identitárias são fundamentais para a reivindicação e ampliação do acesso a espaços de produção de conhecimento até então a eles interditados. Enquanto uma postura crítica, politizar a posicionalidade significa requerer não a autenticidade da fala, como imaginaram Krug e Dolezal, mas a necessária reflexividade quanto ao fato de que os sujeitos produzem conhecimentos em contextos determinados, e não a despeito deles. Como bem colocou Eric Fassin ao problematizar sua posicionalidade como homem branco, assim como os autores deste ensaio, a interrogação “De onde falo?” solicita “análise e não uma confissão: ela não convida a se abrir, mas a se pensar” (Sou um homem branco: epistemologia política do paradoxo majoritário, 2021, p. 9). Solicita, assim, não um mero protocolo de confissão de nossas próprias autorrepresentações, mas uma reflexão sobre os modos como nossos corpos e nossas posições implicam, ao mesmo tempo como limite e possibilidade, o conhecimento que produzimos.
Abrir o jogo, desnaturalizar o lugar a partir do qual se fala, significa, enfim, requerer o compartilhamento da responsabilidade científica e política de que não só os “sujeitos minoritários” tem que lidar com a particularidade de suas falas e ideias, mas também – e sobretudo – os “sujeitos majoritários” (notadamente brancos, masculinos e heteronormativos), os quais durante muito tempo e em nome da ciência, invocaram o poder de falar e nomear o ponto de vista dos outros sem que o deles próprios pudessem ser contestado.
Gustavo Rossi é pesquisador PNPD-Capes do Departamento de Antropologia da Unicamp, coordenador do Bitita (Núcleo de Estudos Carolina Maria de Jesus) e membro do Apsa (Ateliê de Produção Simbólica e Antropologia). É autor do livro O intelectual feiticeiro: Edison Carneiro e o campo de estudos das relações raciais no Brasil (2015).
Rafael do Nascimento Cesar é mestre e doutorando em Antropologia pela Unicamp e desde 2016 estuda relações raciais e música popular brasileira. É membro do Apsa (Ateliê de Produção Simbólica e Antropologia) e do Pagu (Núclo de Estudos de Gênero da Unicamp).
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