pub-5238575981085443 CONTEXTO POLÍTICO.
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terça-feira, 24 de janeiro de 2017

Guerra às drogas, encarceramento em massa e militarização dos presídios: a fórmula para o caos.

Lúcio Costa
CONSTRUÇÃO DE NOVOS presídios, recrudescimento da legislação penal, fortalecimento do combate às drogas e militarização das penitenciárias. Essas são algumas das estratégias com cheiro de naftalina recentemente anunciadas pelo governo federal – e assistidas de camarote pelo Congresso e pelo Judiciário – para solucionar a grave crise do sistema prisional no Brasil. É o reforço de velhas e superadas práticas, que já se mostraram ineficazes para enfrentar o complexo cenário do encarceramento em massa e do tráfico de drogas.
As propostas garantem manchetes nos jornais, mas não responderão à crise de um sistema prisional que já conta com mais de 600 mil pessoas, a quarta maior população carcerária em todo o mundo. Dada a proporção da crise, o receio é que a ausência de medidas que verdadeiramente apostem em novos caminhos nos faça chegar a cenário semelhante ao vivenciado em 2006 em São Paulo, quando organizações criminosas fizeram transbordar o sangue das prisões para as ruas do estado paulista.
Uma das principais responsáveis pela situação de caos que se instalou nos presídios brasileiros é, sem dúvida, a guerra às drogas. Uma reflexão mais dedicada e profunda sobre os mecanismos de operação do tráfico e dos impactos sociais do extermínio às drogas levaria os três Poderes – Executivo, Judiciário e Legislativo – a estabelecerem medidas que possam fazer frente a um dos mais insustentáveis sistemas carcerários de todo o mundo. Contudo, não é o que estamos presenciando.
Há que se destacar que esse encarceramento tem perfis de cor, idade e renda bastante determinados.
Não é novidade, mas vale repetir: o Brasil prende muito e prende mal. Segundo o Conselho Nacional de Justiça (CNJ), atualmente, chega a quase 642 mil o número de pessoas encarceradas, das quais 244 mil ainda não receberam condenação da Justiça. Segundo o último levantamento realizado pelo Departamento Penitenciário Nacional (DEPEN), pelo menos 27% de toda essa população está atrás das grades em razão do tráfico de drogas. São mais de 170 mil pessoas superlotando um sistema no qual impera a violação de direitos, a má administração e a lei do mais forte – verdadeira receita para o caos.
O impacto do aprisionamento em massa decorrente do tráfico é alarmante não apenas no Brasil. Segundo a London School of Economics, 40% dos 9 milhões de presos em todo o mundo foram para trás das grades em razão do comércio/uso de substâncias consideradas ilícitas.
E o problema não para de crescer. No estado do Rio de Janeiro, por exemplo, o número de aprisionamentos em decorrência da Lei sobre Drogas (11.343/2006) aumentou 465% em cinco anos (de 2010 a 2014), segundo informações da Secretaria de Estado da Administração Penitenciária do Rio de Janeiro (SEAP). Números do Conselho Nacional de Justiça dão conta de que o sistema carcerário brasileiro já possui um déficit de 251.784 vagas, que custariam ao Estado a bagatela de R$ 10 bilhões.
Há que se destacar que esse encarceramento tem perfis de cor, idade e renda bastante determinados. O levantamento do Depen aponta que 67% dos presos no Brasil são negros, 56% têm entre 18 e 29 anos, e 53% não completaram sequer o ensino fundamental. No caso do encarceramento feminino, 63% das mulheres estão presas por tráfico de drogas. O recorte por estado aponta números ainda mais assustadores.
26,6% dos atos infracionais têm vinculação com o tráfico de drogas. Essa também é a segunda maior causa de apreensão de adolescentes.
É o caso do Estabelecimento Penal Feminino Irmã Zorzi, em Mato Grosso do Sul. Relatório do Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura aponta que, das 333 encarceradas na unidade, 277 respondem por crimes relacionados ao tráfico de drogas, o que representa 83% do total.
É importante ressaltar que a maior parte das prisões se dá em rondas ostensivas da Polícia Militar, e não como resultado de investigações que buscam desbaratinar a cadeia produtiva do narcotráfico. Trata-se, portanto, de uma política de aprisionamento em massa destinada à parte mais miúda do negócio do tráfico – são os jovens negros e pobres que entregam suas vidas à sorte da morte ou da prisão.

Superlotação de adolescentes

O itinerário carcerário começa já na adolescência. Segundo o último levantamento publicado pelo Sinase (2013), 26,6% dos atos infracionais têm vinculação com o tráfico de drogas. Essa também é a segunda maior causa de apreensão de adolescentes.
Assim como no sistema prisional, os estabelecimentos socioeducativos também são marcados pela superlotação. Dados de 2015 do Conselho Nacional do Ministério Público Federal (CNMP) revelam a superlotação em unidades socioeducativas de pelo menos 17 unidades da federação – são 18.072 vagas para um total de 21.823 adolescentes. Estados como Paraíba, Ceará e Maranhão chegam a apresentar superlotação nas vergonhosas taxas de 233%, 243% e 886%.
É importante ressaltar que a criminalização de adolescentes por envolvimento no tráfico de drogas é marcada por uma contradição emergencial, que deve ser refletida sobretudo pelo sistema de Justiça. Isso porque a Convenção 182 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) – que versa sobre as piores formas de trabalho infantil e da qual o Brasil é signatário – classifica o tráfico de drogas entre suas modalidades e trata o adolescente como vítima, não como autor.
De maneira arbitrária, no entanto, o tratamento dado pela Justiça brasileira tem desconsiderado esse compromisso internacional. Via de regra, o sistema de Justiça, em detrimento da referida Convenção, classifica o adolescente envolvido com o tráfico como autor, imputando-lhe medidas como a privação de liberdade por meio da internação. Para além de constituir uma aberração jurídica permeada pela política de guerra às drogas, o sistema de Justiça tem causado danos irreparáveis a um segmento da população que deveria, constitucionalmente, ter assegurado seu direito ao pleno desenvolvimento – o que inclui colocá-los a salvo das piores formas de trabalho infantil.
É a perspectiva de guerra às drogas que também tem permitido que alguns estados da federação adotem políticas públicas de saúde que operam sob a lógica da repressão e da criminalização do usuário. O resultado da estigmatização, do abandono e da desumanização dessas políticas se materializa em espaços como a Cracolândia em São Paulo, os viadutos da Avenida Brasil no Rio de Janeiro, ou nas passagens subterrâneas do Setor Comercial Sul, em Brasília.
O grito ecoado nas prisões é de responsabilidade de um Estado inerte e que conta com a cumplicidade de uma sociedade ainda crédula de que o aumento da repressão – seja ao preso, seja na política de drogas – é a solução para o problema.
O desafio está posto aos poderes Executivo, Legislativo e Judiciário. Se o caminho a ser buscado não estiver centrado na ruptura de velhos conceitos e práticas, só nos resta, enquanto sociedade, lamentarmos o caos.
Este artigo reflete opiniões pessoais e não a do órgão que o autor é membro.
(Publicado originalmente no site do Intercept Brasil)

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Lucio Costa

Após seis anos de controvérsias, suposto caso de plágio de obra de Borges vai a julgamento

Poeta e novelista argentino que quis ‘engordar’ o conto 'O aleph' pode ser punido com até seis anos de prisão
O escritor argentino Jorge Luis Borges (Foto: Eduardo Di Baia/AP)
O escritor argentino Jorge Luis Borges (Foto: Eduardo Di Baia/AP)
Redação
“Engordar” o livro O aleph (1949), do escritor Jorge Luis Borges, 60 anos depois da sua publicação, foi o objetivo do poeta e novelista argentino Pablo Katchadjian em seu livro El aleph engordado, lançado em 2009. Com o dobro de páginas, o projeto de Katchadjian consistiu em adicionar 5.600 palavras, em sua maioria adjetivos e descrições, ao conto de Borges, originalmente publicado com quatro mil palavras.
O “remix” experimental, no entanto, foi encarado como plágio por María Kodama, viúva do consagrado autor argentino e detentora de seus direitos autorais. Em 2011, ela processou o poeta por fraude de propriedade intelectual argumentando que a história havia sido utilizada sem permissão.
Após seis anos de controvérsias, o caso vai a julgamento no dia 14 de fevereiro, na Argentina. Se declarado culpado, Katchadjian pode ser condenado a até seis anos de prisão. “El aleph engordado não é um plágio, porque nenhum caso de plágio é aberto sobre a sua origem [como o meu livro é]”, ele disse. “Não é nem uma piada que deu errado, ou que deu certo. É apenas um livro que escrevi baseado em um texto já existente.”
Nascido em 1977, em Buenos Aires, Katchadjian já havia realizado experimentos semelhantes. Em El Martín Fierro ordenado alfabeticamente (2007), por exemplo, ele reescreve um clássico poema épico argentino realocando os versos em ordem alfabética. Pelo seu caráter experimental e de pouca tiragem, que segundo o autor não visa lucros financeiros, El Aleph engordado recebeu apoio de escritores como Ricardo Piglia, César Aira, Claudia Piñero, Jorge Panesi e Carlos Gamerro.
A defesa do poeta argentino vem apontando, na própria obra de Borges, características como falsas citações, paráfrases e jogos de ironia com outros escritores para levantar questões sobre a escrita e a autoria. Um exemplo seria o conto Pierre Menard, autor do Quixote, do livro Ficções (1944), em que Borges inventa um autor francês que gostaria de reescrever Dom Quixote sem mudar nenhuma palavra do original.
O advogado de Kodama, no entanto, alega que o nome de Borges praticamente não é mencionado em El aleph engordado, dando a entender que se trata de uma obra original. No clássico conto borgiano, um porão de um casarão argentino, prestes a ser demolido, carrega o ponto que encerra toda a realidade do universo. A história é a última narrativa do livro homônimo.
Esse não é o primeiro processo judicial envolvendo a obra de Borges. Em 2011, a viúva também entrou com uma ação contra o escritor Agustín Fernández-Mallo por uso de material protegido por direitos autorais, obrigando a Editora Alfaguara a tirar de circulação o livro El hacedor (de Borges). Remake (2011). Os biógrafos Juan Juan Gasparini e Alejandro Vaccaro, e o tradutor de sua obra para o inglês, Norman Thomas di Giovanni, também já foram intimados a pedido de Kodama.
(Publicado originalmente no site da revista Cult)

Le Monde: Nas coxias do cárcere

O que pode se perceber na coxia do cárcere é que a orientação e os rumos adotados pelo Estado brasileiro tendem a agravar ainda mais a situação lamentável em que vive parte significativa da população do país. Aposta-se cada vez mais na lógica policialesca, de encarceramento em massa, de guerra às drogas, bem como no desmonte de políticas e na fragilização delas
por: Bruna Angotti, Catarina Pedroso, Fernanda Machado Givisiez, José de Ribamar de Araújo e Silva, Lucio Costa e Thais Lemos Duarte
Crédito da Imagem: Marcelo Camargo/Agência Brasil
Legenda: Manaus - Familiares aguardam informações sobre parentes presos na Cadeia Pública Raimundo Vidal Pessoa
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No dia a dia, pouco se fala sobre prisão. Quando este assunto é pautado, em geral, se comenta sobre a violência que aflige os cárceres. Nas últimas semanas, se tornou lugar comum nos meios de comunicação notícias sobre rebeliões em presídios de diversos estados do país devido ao rompimento de relações entre grandes facções criminosas. Entretanto, em que pese o fato de os principais veículos de comunicação quase sempre tratarem como problema central das unidades prisionais a existência dessas facções, os bastidores do sistema prisional apontam para outra direção.
O público alvo central do sistema de justiça criminal abrange um conjunto de características que constitui o perfil socialmente identificável como sendo o do criminoso. Pessoas jovens, com baixa escolaridade, negras ou pardas, moradoras de periferias e de baixa renda que, por não apresentarem as imunidades institucionais da classe média e da classe alta, possuem mais chances de serem detidas, processadas e condenadas. O sistema de justiça criminal reforça um perfil já socialmente estigmatizado.
Conforme dados do Departamento Penitenciário Nacional (DEPEN, 2014)[1], 27% das pessoas presas em junho de 2014 o foram por situações consideradas tráfico de drogas. Destaca-se que a Lei 11.343/2006 não deixa clara a distinção entre traficante e usuário. É o agente policial quem define se a pessoa abordada pode ser identificada como traficante ou como usuária de drogas. De fato, o traficante se tornou nas últimas décadas o inimigo número um das ações de segurança pública, de modo que as medidas relacionadas desde a abordagem policial até a condenação a uma pena privativa de liberdade estão permeadas pela perspectiva de guerra às drogas.
A maioria das prisões por tráfico é oriunda de ronda policial e não de ações de inteligência, seja das polícias civis seja da polícia federal. O alvo dessas ações quase sempre são pequenos vendedores ou usuários, que contempla o perfil descrito acima, não sendo em geral pessoas com funções de comando e gerência nesta atividade. Nesse sentido, a grande logística do tráfico de drogas não é afetada, até mesmo porque é comandada por grupos que apresentam imunidade de classe e, por óbvio, não estão na mira do sistema de justiça.
Entre outros aspectos, formam o cenário de boa parte das prisões brasileiras: dependências mal arquitetadas, construções mal conservadas, áreas sem iluminação e ventilação, sujeira generalizada, celas superlotadas, escassez de atividades de trabalho e estudo, péssima alimentação, ausência de atendimento de saúde, falta de acesso à justiça e parca distribuição de materiais de higiene e limpeza. Todo esse quadro é uma afronta direta à legislação nacional, bem como às normativas internacionais que o Estado brasileiro se comprometeu a seguir.
Há estabelecimentos nos quais os órgãos do Estado não apresentam qualquer gerência sobre o seu funcionamento. Os agentes da administração penitenciária permanecem apenas em uma ou outra área da unidade, quase sempre na seção administrativa, não chegando a manter contato direto com as pessoas presas. Assim, são os presos quem literalmente abrem e fecham as grades da prisão. Eles se autorregulam, criando regras comportamentais extralegais, senão, ilegais, que ocasionam situações de extrema violência. A opinião pública, induzida e reforçada por ações midiáticas, é enfática em responsabilizá-los, como se os presos fossem “seres animalescos” que pautam todas as suas relações pela força. No entanto, torna-se fundamental apontar que os órgãos do Estado são os responsáveis diretos pelo o que ocorre nas prisões, tendo a obrigação de administrar os estabelecimentos e averiguar todas as circunstâncias relacionadas às pessoas sob sua custódia.
Nos locais em que não é diretamente omisso, o Estado é presente, sobretudo, através da truculência. Faz parte do dia a dia das prisões agentes penitenciários e diretores que humilham, agridem e extorquem as pessoas presas, gerando situações de tortura. Mais grave, não são raros os lugares nos quais os próprios agentes da administração carcerária incitam situações de violência entre os presos, como rebeliões, por exemplo. Além disso, cada vez mais se tornam frequentes as inspeções de forças especiais do próprio sistema prisional ou de batalhões especiais da Polícia Militar nas unidades, gerando um clima de forte tensionamento entre as pessoas presas. É inconteste que a conduta adotada, não raramente, por alguns agentes nestes procedimentos gera uma forte subjugação do individuo, ao ponto de serem quebrados e rasgados objetos dos presos dentro das celas, inclusive livros e artigos religiosos. Os resultados dessas ações podem ter como consequências presos feridos, senão, mortos.
Há que se apontar também para as precárias condições de trabalho e para a baixa remuneração dos profissionais que atuam nas prisões, bem como para a sua má qualificação.  Para além de frágeis, pouco aprofundadas e distantes do cotidiano prisional, as formações ministradas aos agentes são voltadas quase que exclusivamente para o uso da força contra as pessoas presas. Adicionalmente, muitas administrações penitenciárias não formulam protocolos de atuação, de forma que os profissionais pautam suas ações em conhecimentos de companheiros de trabalho mais experientes ou com base no que acreditam ser o “certo”. Com isso, são frequentes as situações de violência entre os funcionários e os presos, sendo que a tortura marcam cotidianamente o cárcere.
Para além destes pontos, as famílias dos presos, sobretudo as mulheres, são constantemente violadas durante as visitas às unidades prisionais. A pena estipulada ao preso é basicamente estendida à sua família. Isso fica claro, por exemplo, durante os procedimentos de revistas vexatórias realizadas nas entradas das unidades prisionais. Em geral, as mulheres são obrigadas a se despir e a fazer movimentos corporais humilhantes diante de agentes penitenciários.
O Relator Especial da ONU sobre Tortura, Juan Mendez, condenou as práticas de revistas vexatórias, recomendando a abolição desses procedimentos nas unidades prisionais brasileiras. Apesar de terem sido proibidas recentemente em alguns estados do país, essas revistas ainda são realizadas nos estabelecimentos carcerários, afetando a manutenção de relações familiares e afetivas durante a privação de liberdade de uma pessoa. De fato, segundo a Defensoria Pública de São Paulo, em 2013, de cada 10.000 visitantes em prisões paulistas, apenas uma apreensão foi realizada a partir da revista vexatória, o que demonstra o quanto esses procedimentos são inócuos, além de extremamente violadores[2].
Além disso, ao não fornecer de maneira adequada os itens de higiene, limpeza e alimentação, as famílias – e, novamente, em especial as mulheres – recebem o ônus de garantir que seus parentes presos tenham materiais básicos durante a privação de liberdade.
Ensejam também fortes preocupações outras clivagens de gênero relacionadas ao ambiente prisional, já que as mulheres presas quase sempre apresentam suas necessidades negligenciadas pelo Estado. Os estabelecimentos de privação de liberdade femininos são geralmente meras adaptações de antigas construções carcerárias voltadas aos homens, estando em péssimo estado infraestrutural e pouco adequadas às mulheres. Adicionalmente, não são disponibilizados às presas materiais de higiene suficientes. Inclusive, recentemente foi amplamente divulgada nas redes sociais uma campanha de arrecadação de absorventes íntimos às presas, dada sua parca distribuição no sistema prisional feminino.
Os direitos das gestantes e lactantes privadas de liberdade são também sistematicamente violados, visto que há normas nacionais e internacionais cujas prescrições determinam que essas mulheres poderiam cumprir suas penas em âmbito domiciliar. Ao contrário disso, grávidas e lactantes permanecem privadas de liberdade em condições altamente degradantes. Nessa linha, deve-se registrar o fato de muitas mulheres presas darem à luz algemadas. Ao invés de gerar consternação, situações como essa são tratadas como triviais no Brasil.
Por sua vez, o público LGBT sofre violências constantes durante o encarceramento, pois são poucos os estados nos quais há políticas voltadas a esse grupo de pessoas. Quando existentes, essas ações, em geral, pouco escutam os sujeitos alvo da política e muitas vezes geram mais violações que soluções.
Diante de todo esse cenário apresentado, é muito grave o fato de os casos de tortura ocorridos nas prisões brasileiras não serem devidamente investigados, sendo o Estado o perpetrador central dessas práticas. Em regra, tais situações são banalizadas no ambiente carcerário e em outras circunstâncias, sendo comum escutar que não existe mais tortura no Brasil, como se esta prática tivesse ocorrido apenas nos porões da Ditadura Civil-Militar. Muito distante disso, os aspectos mencionados demonstram que a tortura é praticada diariamente nos cárceres brasileiros, seja por ação, seja por omissão dos agentes públicos, não recebendo, de maneira geral, o tratamento devido.
Ao custodiar uma pessoa, o Estado deveria garantir condições para que a prisão não ocasionasse um sofrimento maior do que o já gerado pela privação de liberdade. Diametralmente contrário a isso, o Estado provoca uma espécie de sanha punitiva em que o foco não é a prevenção ao crime e, sim, a vingança pela conduta cometida por uma pessoa. A pena se torna, então, a inflição consciente da dor (Nils, 2011)[3]. Para além da administração penitenciária, outros órgãos do sistema de justiça criminal, como o Ministério Público e o Poder Judiciário, têm, por lei, um papel fundamental na execução penal, devendo, por exemplo, fiscalizar sistematicamente as unidades prisionais. No entanto, muito aquém desta tarefa, tais órgãos permanecem em boa medida alheios ao que se passa dentro dos cárceres do País e, inclusive, chegam a legitimar tais violações.
De fato, a cultura institucional preponderante nestas esferas do sistema de justiça criminal se pauta pelo recrudescimento penal. Não é novidade que o Brasil é um dos países que mais encarcera no mundo. O DEPEN (2014) apontou que, entre 2008 e 2014, o Brasil aumentou seus índices de encarceramento em 33%. Já os Estados Unidos, país com maior população prisional do mundo, diminuiu neste mesmo período o encarceramento em 8%, seguido da China em 9% e da Rússia em 24%. Ou seja, o Brasil está na contramão da tendência mundial no que se refere ao aprisionamento. Mais grave que isso, há o uso abusivo da prisão provisória, de modo que, conforme esse mesmo estudo do DEPEN, 41% das pessoas presas em todo país não têm condenação. Em outras palavras, o Brasil prende muito e, ainda, prende mal, estabelecendo a privação de liberdade como regra geral, não como exceção.
Simultaneamente ao fato de ser punitivista e seletivo, o sistema de justiça cria uma redoma em torno de si que dificulta qualquer intervenção ou questionamento social. Com isso, mesmo que afrontem diretamente às normas, muitas decisões judiciais e muitas ações do Ministério Público permanecem incontestadas. De acordo com a pesquisa Julgando Tortura (2015)[4], os órgãos do sistema de justiça, sobretudo o Ministério Público e Poder Judiciário, atuam com rigor na apuração de casos de violência doméstica denunciados como tortura, mas não o fazem da mesma forma quando se tratam de ocorrências envolvendo agentes públicos como agressores, evidenciando falta de esforços por parte desses órgãos em apurar, processar e julgar esses casos.
Nesse sentido, longe de pensar em uma profunda reforma institucional, estes órgãos demandam mais privilégios, visando, sobretudo, a manutenção do seu status. Uma das consequências disso seria um distanciamento do Judiciário e do Ministério Público das populações historicamente vulneráveis, prejudicando a reversão do quadro altamente desigual e violador do País. Em suma, todo o cenário desenhado acima se reforça ainda mais a cada dia.
Nos últimos tempos, há uma série de projetos de emendas constitucionais e de leis que propõem o endurecimento das políticas, inclusive no campo dos direitos humanos. Áreas como saúde, educação e assistência social sentirão com severidade as consequências dessas propostas, principalmente com a possível aprovação no Senado Federal do Projeto de Emenda Constitucional (PEC) 241. Se estas áreas, tão sensíveis em nossa sociedade, sofrerão os impactos de tais medidas, o que dizer do campo penal, cujas propostas que se apresentam são igualmente preocupantes e correspondem à ampliação dos riscos de maior incidência de violências institucionais, sobretudo da tortura.
Nessa linha, é importante destacar as seguintes medidas em cena: a redução da maioridade penal; o aumento do tempo de prisão e de internação de adolescentes e jovens em cumprimento de medida socioeducativa; a lei antiterrorismo; a admissão da execução da pena após condenação em segunda instância; o recrudescimento da política de drogas; e a privatização das prisões. Todas essas ações vêm sendo elencadas como essenciais para reverter os problemas de segurança pública que diariamente assolam o País. No entanto, ao contrário disso, como apontam estudiosos da questão prisional, gerariam efeitos drásticos à intensificação do encarceramento no Brasil, assim como o agravamento da criminalização das populações mais vulneráveis.
Dentro desse contexto, há que se ter precaução em relação aos possíveis rumos a serem trilhados pelo Sistema Nacional de Prevenção e Combate à Tortura, criado em 2013. Esse Sistema Nacional é composto, entre outros órgãos, pelo Comitê Nacional de Prevenção e Combate à Tortura e pelo Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura. O Mecanismo Nacional, órgão autônomo, composto por peritos independes, está em funcionamento desde o início de 2015. O Comitê Nacional, por sua vez, é formado por doze instituições da sociedade civil e por onze órgãos do poder público federal. Uma das funções do Comitê é mapear casos de tortura e outros tratamentos ou penas cruéis, desumanos ou degradantes, bem como divulga-los e planejar ações e políticas preventivas. Iniciou suas atividades em meados de 2014 e encerrou o seu primeiro mandato ao final de julho de 2016, já tendo sido realizada a eleição de novos membros. No entanto, até o momento, a nova composição do Comitê Nacional não tomou posse, aguardando a nomeação a ser realizada pela Presidência da República. Em outras palavras, o Comitê Nacional está há mais de três meses sem funcionamento. Inclusive, o Ministério Público Federal já demandou ao Ministério da Justiça e Cidadania à instalação da nova composição do Comitê Nacional.
Outra frente prevista para o fortalecimento do Sistema Nacional é a implementação de Mecanismos e Comitês estaduais, cuja função se orienta para a prevenção à tortura em âmbito estadual. Atualmente, somente dois Mecanismos estaduais foram criados, no Rio de Janeiro e em Pernambuco, ao passo que 17 estados instituíram seus Comitês estaduais. Ou seja, urge que essa política seja reforçada e ampliada em todo o Brasil.
O que pode se perceber na coxia do cárcere é que a orientação e os rumos adotados pelo Estado brasileiro tendem a agravar ainda mais a situação lamentável em que vive parte significativa da população do país. Aposta-se cada vez mais na lógica policialesca, de encarceramento em massa, de guerra às drogas, bem como no desmonte de políticas e na fragilização delas. O caminho a ser seguido deveria ser justamente o oposto, já que o Estado deveria buscar saídas voltadas à redução da desigualdade e na democratização das instituições. Com isso, todo o cenário de violações projetado acima se desvaneceria, poupando a vida e a dignidade de muitas pessoas.


Bruna Angotti – Antropóloga e Membro do Comitê Nacional de Prevenção e Combate à Tortura, representante do IBCCRIM (Instituto Brasileiro de Ciências Criminais) no biênio 2014-2016
Catarina Pedroso – Psicóloga e Perita do Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura (MNPCT)
Fernanda Machado Givisiez – Bacharel em Direito e Perita do MNPCT
Maria Gorete Marques de Jesus – Socióloga e Membro do Comitê Nacional de Prevenção e Combate à Tortura, representante do IBCCRIM no biênio 2014-2016
José de Ribamar de Araújo e Silva – Filósofo e Perito do MNPCT
Lucio Costa – Psicólogo e Perito do MNPCT
Thais Lemos Duarte – Socióloga e Perita do MNPCT
Esse artigo reflete opiniões pessoais e não as dos órgãos a que estão filiados os autores


[1] DEPARTAMENTO PENITENCIÁRIO NACIONAL. Levantamento Nacional de informações penitenciárias. INFOPEN – Junho de 2014. Brasília: Ministério da Justiça, 2014.
[3] CHRISTIE, Nils. Uma razoável quantidade de crimes. Rio de Janeiro: Revan, 2011.


[4] A pesquisa foi realizada entre maio de 2011 e janeiro de 2015 por um conjunto de organizações, como Conectas Direitos Humanos, Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo, Pastoral Carcerária, IBCCRIM e ACAT Brasil. Teve como objetivos construir um banco de dados de jurisprudência de tortura a partir de acórdãos coletados nos Tribunais de Justiça (TJs) dos estados brasileiros e analisar as decisões e compará-las. O relatório completo foi publicado em janeiro de 2015 e encontra-se disponível em: http://www.cnj.jus.br/files/conteudo/arquivo/2016/06/71c559732e6ec4d229f7e707fdab8700.pdf. Acessado em 27/10/2016.

Charge! Renato Aroeira via Facebook

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segunda-feira, 23 de janeiro de 2017

"Não há dúvida de que "Macunaíma" é importante para entender o Brasil atual"


Nova edição do clássico de Mário de Andrade traz 520 notas explicativas buriladas pela escritora, professora e crítica literária Noemi Jaffe
A escritora, professora e crítica literária Noemi Jaffe (Foto: Alessandro Shinoda)
A escritora, professora e crítica literária Noemi Jaffe (Foto: Alessandro Shinoda)
Paulo Henrique Pompermaier
Da união de diversos mitos, folclores, músicas populares e lendas de todo Brasil nasceu Macunaíma (1928) do fundo do mato-virgem. Sua potência criativa, de explicar o brasileiro a partir dessa colagem cultural, no entanto, é frequentemente minada pela dificuldade do leitor penetrar na obra por sua complexidade lexical e morfológica.
Facilitar a aproximação com o livro, um dos mais importantes representantes do modernismo brasileiro, é o objetivo da nova edição de Macunaíma, que sai pela editora FTD. O livro traz notas e posfácio da professora doutora e escritora Noemi Jaffe, além de ilustrações de Mariana Zanetti.
São 520 notas de Jaffe que cobrem praticamente todos os aspectos do romance: as expressões indígenas e arcaicas, as referências folclóricas regionalistas, os erros propositais e até as repetições que podem ter algum significado para a interpretação final da obra.
“É uma edição que estimula o ensino e a leitura de Macunaíma não de forma mais fácil, mas com mais instrumentos de análise e interpretação”, explica Jaffe. Para a escritora, as notas podem contribuir para uma leitura mais profunda e complexa da obra, que muitas vezes é reduzida a nomes, datas e escolas literárias principalmente quando estudada no Ensino Médio.
Ilustração de Mariana Zanetti para a nova edição de Macunaíma
Ilustração de Mariana Zanetti para a nova edição de Macunaíma
Truques e cifras
A autora paulista, que já havia se debruçado sobre a obra de Mário de Andrade em Folha explica Macunaíma (2001), conta que teve duas principais fontes para o trabalho: o livro Roteiro de Macunaíma (1950), em que o crítico Cavalcanti Proença reúne diversas notas sobre a obra de Andrade; e as próprias indagações e percepções que teve durante o período em que lecionava literatura brasileira no Ensino Médio.
“[Macunaíma] é um livro cheio de truques, cifras que Mário de Andrade colocou ali com a intenção de dizer coisas subliminares. Então é importante o leitor comum ter um guia que possibilite uma leitura mais ativa do livro, não simplesmente passiva”, observa.
Falecido em 1945, novas edições da obra de Mário de Andrade começaram a se multiplicar desde o ano passado, quando seus escritos entraram em domínio público. E mesmo contando 89 anos desde sua publicação, Macunaíma ainda surge como uma figura contemporânea e explicativa. “Há ainda alguma dúvida de que [Macunaíma] é importante para conhecer o Brasil atual? É perfeito, como se nada tivesse mudado, ele está ai e é fundamental”, afirma Jaffe.
No posfácio, ao refletir sobre a importância de um ensino e leitura profunda de Macunaíma e seu significado para a cultura brasileira, ela ainda aponta duas correntes antagônicas de interpretação da obra: a argumentação de Haroldo de Campos, dizendo que a história de Macunaíma é vitoriosa por transmitir, como na tradição oral, uma memória enraizada do país; e a análise crítica de Gilda de Mello e Souza, que mostra como o antropófago do interior, os macunaímas da nação, foram devorados e derrotados pelos grandes capitalistas das emergentes cidades.
Concordando com ambas as leituras, Jaffe acredita que a “antropofagia ainda é uma forma muito eficaz de explicação de vários fenômenos políticos, sociais, econômicos e culturais do Brasil”. Para a professora, apesar de Macunaíma não ser um livro totalmente antropofágico, ele resvala na filosofia de Oswald, sendo um dos elementos que mostra como ela não se esgotou, mas está continuamente se atualizando.
capamacunaima Macunaíma – O herói sem nenhum caráter
 Mário de Andrade Notas e posfácio por Noemi Jaffe
FTD
R$: 52 – 248 págs.


(Publicado originalmente no site da revista Cult)

quinta-feira, 5 de janeiro de 2017

Senhas fáceis para você memorizar e que nem a NAS conseguirá desvendar


Micah Lee
ESTÁ FICANDO CADA vez mais fácil proteger sua privacidade digital. Os iPhones agora criptografam grande parte de suas informações pessoais, seus discos rígidos no Mac e no Windows 8.1 são automaticamente bloqueados; e até mesmo o Facebook, que faturou uma fortuna com o compartilhamento aberto de informações, oferece criptografia de ponta a ponta na ferramenta de bate-papo WhatsApp. Mas nenhuma dessas tecnologias oferece a proteção esperada se você não souber criar uma frase secreta segura.
Uma frase secreta é como uma senha, apenas mais longa e mais segura. Funciona essencialmente como uma chave de criptografia que pode ser memorizada. Ao começar a se importar mais com sua privacidade e a aperfeiçoar seus hábitos de segurança no uso de computador, um dos primeiros desafios a ser enfrentado será a criação de uma frase secreta. Sem ela não é possível se proteger adequadamente.
Por exemplo, quando você criptografa seu disco rígido, um pendrive ou um documento em seu computador, a criptografia será tão segura quanto a sua frase secreta. Se optar por usar um banco de dados de senhas, ou um recurso de salvamento de senhas em seu navegador, crie uma frase secreta principal segura para protegê-los. Ao criptografar seus e-mails com PGP (Pretty Good Privacy – privacidade muito boa), sua chave privada é protegida com uma frase secreta. Em seu primeiro e-mail para Laura Poitras, Edward Snowden disse: “Confirme se ninguém teve acesso a uma cópia de sua chave privada e que ela usa uma frase secreta segura. Presuma que seu adversário é capaz de realizar um trilhão de tentativas por segundo”.
Neste artigo, descrevo uma forma simples de criar frases secretas extremamente seguras e fáceis de lembrar. É a última matéria de uma série em desenvolvimento de artigos que oferecem soluções — parciais e imperfeitas, mas úteis — para os muitos problemas relacionados à vigilância que investigamos agressivamente no The Intercept.
Acontece que criar uma frase secreta segura simplesmente pensando em uma é incrivelmente difícil e, se seu o adversário for realmente capaz de realizar um trilhão de tentativas por segundo, é provável que você não seja tão bem-sucedido. Se você usar uma sequência de caracteres completamente aleatória, a frase secreta pode ser segura, mas será angustiante memorizá-la (e, honestamente, um desperdício de energia cerebral).
Mas, felizmente, a dicotomia entre usabilidade e segurança é falsa. Há um método para gerar frases secretas impossíveis de serem adivinhadas até pelos adversários mais poderosos, mas possíveis de serem memorizadas por humanos. O método é chamado Diceware, e seu nome é baseado em um conceito matemático simples.

Seu macete para criar uma senha secreta não é inteligente

Com frequência, as pessoas escolhem frases baseadas na cultura pop — letras de músicas ou uma frase de um filme ou livro — e embaralham as letras ligeiramente, acrescentando maiúsculas, pontuação ou usando a primeira letra de cada palavra dessa frase. Algumas dessas frases secretas podem parecer seguras e completamente impossíveis de serem adivinhadas, mas é fácil subestimar a capacidade de quem se dispõe a adivinhá-las.
Imagine que seu adversário tenha obtido as letras de todas as músicas que já foram escritas, os roteiros de todos os filmes e programas de TV, os textos de todos os livros digitalizados até hoje e todas as páginas da Wikipedia, em todos os idiomas, e tenha usado esse material como base para sua lista de adivinhação de frases secretas. Sua frase resistiria?
Se você criou uma frase secreta tentando pensar em uma frase boa, há grandes chances de que ela não seja suficientemente segura para resistir a uma agência de espionagem. Por exemplo, você pode ter pensado em “Ser ou não ser/ ESSA é a Questão”. Se eu acertei, garanto que você não foi a primeira pessoa a usar essa frase batida de Shakespeare como frase secreta, e seu adversário sabe disso.
Passagens de Shakespeare não são seguras como frases secretas por conta de um fenômeno conhecido como entropia. Pense em entropia como se fosse aleatoriedade: um dos conceitos mais importantes em criptografia. Acontece que humanos são criaturas que seguem padrões e são incapazes de criar algo de forma verdadeiramente aleatória.
Mesmo se você não usar uma passagem de livro, mas criar uma frase em sua cabeça aleatoriamente, a frase estará longe de ser aleatória, porque a língua é previsível. Como explicou uma pesquisa sobre o assunto, “usuários não têm a capacidade de selecionar frases com palavras completamente aleatórias e são influenciados pela probabilidade de uma frase ocorrer na língua naturalmente”, ou seja, as frases secretas escolhidas por usuários não contêm o nível de entropia que você gostaria que tivessem. Seu cérebro tende a continuar a usar expressões e regras gramaticais comuns que reduzem a aleatoriedade da frase. Por exemplo, sua mente tende a colocar um advérbio depois de um verbo e vice-versa de forma desproporcional em relação à máquina, ou, para citar um dos casos da pesquisa mencionada acima, tende a colocar a palavra “maravilhosa” depois de “cidade”.
Frases secretas baseadas em cultura pop, fatos sobre sua vida ou qualquer coisa que venha diretamente de sua mente são muito mais fracas do que frases secretas embutidas de entropia verdadeira, coletada na natureza.
Esse vídeo curto, mas esclarecedor, da aula gratuita de criptografia da Khan Academy explica bem esse ponto.

Crie uma frase secreta segura com o Diceware

Apenas quando admitir que suas frases secretas antigas não são tão seguras quanto você imagina, você estará pronto para usar a técnica Diceware.
Primeiro, abra uma cópia da lista de palavras do sistema Diceware, que contém 7.776 palavras em português — 36 páginas que podem ser impressas em casa. No canto superior direito de cada página existem dois números separados por uma vírgula. Eles representam os dois primeiros resultados que determinarão a página a ser usada para selecionar aleatoriamente a primeira palavra. Os três resultados seguintes do lançamento de dados representarão a palavra a ser usada. Veja um exemplo na imagem abaixo:
Agora, pegue alguns dados de seis lados (isso mesmo, dados de verdade), lance-os diversas vezes e anote os números obtidos. Você precisa de cinco lançamentos de dados para chegar à primeira palavra da sua frase secreta. Dessa forma, você está gerando entropia, isto é, extraindo a mais pura aleatoriedade da natureza e a transformando em números.
Se lançar os dados e tirar 6,5,6,6,5, abra a lista de palavras Diceware na página 6,5, na linha 665 e chegará à palavra “vesgo”. (Ignore o acento para evitar problemas de configuração de teclado.) A palavra “vertice” será a primeira a compor sua frase secreta. Repita o processo acima. Você precisa de um frase secreta com sete palavras se estiver preocupado com a NSA, a Abin ou espiões chineses tentando adivinhar sua senha. (Veja mais detalhes sobre a lógica por trás desse número abaixo.)
Usando o Diceware, você chegará a uma frase secreta parecida com “vertice nutrir pardo paiol volupia”, “faringe caduco bulbo preciso voo afoito” ou “abade chiapas zunir olhado normal gestual arengar”. Se precisar de uma frase secreta mais segura, use mais palavras. Se uma frase secreta menos segura for aceitável para sua finalidade, você pode usar menos palavras.

As frases secretas do Diceware são suficientemente seguras?

A segurança de uma frase secreta baseada na técnica Diceware depende de quantas palavras ela contém. Se você selecionar uma palavra (em uma lista de 7.776 palavras), as chances de um invasor adivinhá-la são da ordem de 1 para 7.776. Seu invasor precisará tentar ao menos uma vez, no máximo, 7.776 vezes, e, em média, 3.888 vezes (já que há uma chance de 50% do invasor adivinhar sua palavra quando chegar à metade da lista).
Mas se você escolher duas palavras para sua frase secreta, a extensão da lista de frases possíveis aumenta exponencialmente. A chance de o invasor adivinhar sua primeira palavra corretamente ainda é de 1 em 7.776, mas para cada primeira palavra possível, a chance de a segunda palavra ser adivinhada corretamente também é de 1 em 7.776. Além disso, o invasor não saberá se a primeira palavra está correta até que adivinhe a frase secreta completa.
Portanto, com duas palavras, há 7.776ou 60.466.176 frases secretas possíveis. Em média, uma frase secreta de duas palavras baseada na técnica Diceware pode ser adivinhada após 30 milhões de tentativas. Uma frase secreta com cinco palavras, que teria 7.7765 frases secretas possíveis, pode ser adivinhada após uma média de 14 quintilhões de tentativas. (O número 14 seguido de 18 zeros.)
A dimensão da aleatoriedade de uma frase secreta (ou de uma chave de criptografia, ou de qualquer tipo de informação) é medida através de bits de entropia. Você pode medir a segurança de sua frase secreta de acordo com quanto bits de entropia ela contém. Cada palavra na lista Diceware equivale a aproximadamente 12,92 bits de entropia, já que 212,92 é igual a 7.776, aproximadamente. Portanto, se você escolher sete palavras, chegará a uma frase secreta com aproximadamente 90,5 bits de entropia, já que 12,92 vezes 7 é igual a 90,5, aproximadamente.
Em outras palavras, se um invasor souber que você está usando uma frase secreta de sete palavras com base na técnica Diceware e selecionarem sete palavras aleatórias da lista Diceware, a cada tentativa, o invasor terá a chance de adivinhar sua frase secreta de 1 em 1.719.070.799.748.422.591.028.658.176 por tentativa.
De acordo com o alerta de Edward Snowden em janeiro de 2013, com a possibilidade de um trilhão de tentativas por segundo, essa frase secreta levaria 27 milhões de anos para ser adivinhada.
Nada mau para uma frase secreta como “abade chiapas zunir olhado normal gestual arengar”, que é perfeitamente possível de ser memorizada pela maioria das pessoas. Compare a frase secreta acima a “d07;oj7MgLz’%v”, uma senha aleatória que contém menos entropia do que a frase secreta de sete palavras com base na técnica Diceware, mas que é muito mais difícil de ser memorizada.
Uma frase secreta de cinco palavras, por sua vez, seria adivinhada em pouco menos de seis meses, enquanto uma frase secreta de seis palavras levaria, em média, 3.505 anos para ser adivinhada, com base em um trilhão de tentativas por segundo. Levando em consideração a Lei de Moore, a capacidade dos computadores cresce constantemente — em pouco tempo, um trilhão de tentativas por segundo será considerado um desempenho lento — portanto, é importante manter suas frases secretas um passo à frente dos avanços tecnológicos.
Com um sistema como esse, não importa a lista usada para escolher suas palavras. Nem mesmo as palavras em si importam (palavras com duas letras são tão seguras quanto palavras de seis letras). O importante é a extensão da lista de palavras e que cada palavra na lista seja única. A probabilidade de uma frase secreta composta por essas palavras selecionadas de forma aleatória ser adivinhada diminui exponencialmente a cada palavra acrescentada, logo, é possível criar frases secretas que nunca serão adivinhadas.

Preciso mesmo usar os dados?

Esse é um debate mais extenso, mas a resposta objetiva é: o uso de dados de verdade oferece uma garantia muito maior de que nada deu errado. Mas é uma tarefa demorada e entediante, e o uso de um computador para gerar números aleatórios é quase sempre suficiente.
Mas infelizmente, parece não haver softwares fáceis de usar disponíveis para ajudar na geração de frases secretas com base na técnica Diceware, apenas alguns projetos no GitHub capazes de gerar frases secretas Diceware com base em linhas de comando que podem servir a usuários avançados. Fique atento para um artigo futuro sobre isso.

Como memorizar sua frase secreta maluca (sem ficar maluco)

Após gerar sua frase secreta, o próximo passo é memorizá-la.
Recomendo que você anote sua nova frase secreta em um pedaço de papel e o carregue com você por quanto tempo for necessário. Cada vez que digitar a frase secreta, tente usar a memória primeiro, mas consulte a anotação se precisar. Supondo que você digite a frase secreta duas vezes por dia, não deve levar mais de dois ou três dias para que a anotação não seja mais necessária e, portanto, destruída.
Digitar sua frase secreta regularmente permite que você a memorize por meio de um processo conhecido como “repetição espaçada”, de acordo com uma pesquisa promissora sobre frases secretas de alta entropia.

Agora que você sabe como usar frases secretas, saiba quando evitá-las

As frases secretas do Diceware são ótimas para descriptografar algo localmente em seu computador, como seu disco rígido, sua chave privada PGP ou seu banco de dados de senhas.
Você não precisa tanto delas para entrar em um site na Internet. Para isso, o uso de frases secretas de alta entropia tem um benefício menor. Invasores nunca conseguiram executar um trilhão de tentativas por segundo se a cada tentativa for preciso entrar em contato com um servidor na Internet. Em alguns casos, os invasores controlam ou invadem servidores remotos — de forma que podem obter sua frase secreta assim que você a digitar, independente do nível de criptografia da frase.
Para entrar em sites e outros servidores, use um banco de dados de senhas. Eu gosto do KeePassX porque é gratuito, usa código aberto, funciona em diversas plataformas e nunca armazena nada na nuvem. Basta trancafiar todas as suas senhas com uma frase secreta gerada por meio do Diceware. Use seu gerenciador de senha para criar e armazenar senhas diferentes e aleatórias para cada site que você usa.

Como usamos o Diceware para proteger nossas senhas

The Intercept conta com o servidor SecureDrop, um sistema de envio de informações confidenciais de código aberto que facilita o contato conosco e protege o anonimato de nossas fontes.
Quando uma fonte de informações nova visita nosso site SecureDrop, recebe um codinome composto de sete palavras aleatórias. Após enviar mensagens ou documentos, eles podem usar o codinome para ler as possíveis respostas de nossos jornalistas.
Na verdade, esse codinome age como uma frase secreta de criptografia para a fonte gerada por meio do método Diceware com um gerador de números aleatórios provido de segurança digital criptográfica, em vez de se valer do lançamento de dados. O dicionário do SecureDrop tem apenas 6.800 palavras (algumas palavras foram removidas pelos desenvolvedores por serem potencialmente ofensivas) fazendo com que cada palavra tenha aproximadamente 12,73 bits de entropia. Mas isso é mais do que suficiente para impedir que alguém descubra o codinome de uma fonte, a menos que tenha acesso a recursos computacionais poderosíssimos e alguns milhões de anos em mãos.
Frases secretas simples e aleatórias, em outras palavras, são tão eficientes na proteção de nossas fontes quanto na segurança de seu computador. É uma pena vivermos em um mundo onde cidadãos comuns precisem de tamanha proteção, mas enquanto esse for o caso, o sistema Diceware permite que nos protejamos com uma segurança no nível da CIA, sem ter que passar por um treinamento secreto avançado.
Agradecimento a Garrett Robinson por conferir meus cálculos matemáticos e evitar que eu cometesse erros tolos.

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Micah Leemicah.lee@​theintercept.com@micahflee
(Publicado originalmente no site do Intercept Brasil)