Pertence a Herbert Marcuse o
título de ter resgatado o pensamento de Friedrich Hegel para a teoria política
contemporânea. Após ser tratado como “cachorro morto” pelos epígonos do
marxismo, Hegel reapareceu na cena contemporânea como um inspirador dos
movimentos de contestação à ordem social instituída. Este mérito está associado
a uma obra de Marcuse intitulada: Razão e Revolução. Argumentando em favor da
Revolução Francesa e da crítica ao Positivismo, como justificação filosófica da
ordem burguesa instaurada pela grande revolução social, o filósofo de Frankfurt
afirmava que a grande contribuição de Hegel teria sido o resgate do momento da
negatividade na dialética histórica, acentuando as contradições e as lutas
sociais no interior da sociedade francesa pós-revolucionária. Onde Augusto
Comte e seus discípulos enxergavam o triunfo do positivo, da ordem, da
estabilidade e do equilíbrio, o velho filósofo via a contradição, a luta dos
opostos e o movimento.
O momento do negativo – da
dialética hegeliana – prosperou no pensamento filosófico dos autores
frankfurtianos – Horkheimer, Adorno e W. Benjamin. A ponto se tornar uma
dialética negativa ou da ambivalência. A sua importância hoje para os estudos
históricos, literários e filosóficos é inegável. A dialética negativa rompe
decididamente com o modelo triádico da dialética hegelo-marxista e nos ajuda a
estudar a realidade de um ponto de vista mais rico e complexo.
É preciso dizer que esta
dialética se inicia com uma profunda desconfiança em relação à totalidade, como
categoria central do pensamento marxista. Daí a famosa frase do Adorno: “o todo
é falso” e a valorização do fragmento, do particular, do indivíduo. É bom
relembrar que o Sartre da “Crítica à Razão Dialética” e Merleau-Ponty “Das Aventuras da Dialética”, tinham mencionados a conversão da totalidade no
totalitarismo, na hermenêutica política estaliniana. A revalorização do
indivíduo tem muito a ver com a chamada “lebenfilosofie” ou a filosofia da
vida, desde Nietzsche, Dilthey e Bérgson. Os pensadores frankfurtianos foram muito
influenciados por estes autores, antes do conhecimento da obra de Marx e Freud.
Um autor alemão influente, embora estranho à escola, Martin Heidegger já tinha
chamado a atenção para uma ontologia do fragmento ou do indivíduo, em
contraposição à totalidade. Lembrar que Nietzsche tinha afirmado certa vez que
a vontade de criar sistemas era uma forma de desonestidade intelectual.Mas o filósofo de Pforta era um nominalista
que desdenhava da filosofia e da ciência, em nome da vida. Repetindo Goethe,
dizia “verde é a árvore da vida, cinzenta é toda teoria”.
A filosofia do negativo
prosperou, partindo de Nietzsche até Horkheimer e Adorno – passando por
Heidegger – até chegar na obra deste último: “A Dialética Negativa”, um tratado
filosófico difícil de ler e entender. A dialética negativa mantém a dificuldade
de tornar o mundo racional e humano (dada a recusa da chamada “razão
instrumental”) e transfere a “promessa de felicidade” para um tipo de arte
hermética, de acesso à compreensão das pessoas comuns (influenciadas pela
“indústria cultural” ou a cultura de massas). A arte mais esotérica é entendida
como o último refúgio da consciência crítica da sociedade, numa época em que a
administração burocrática da sociedade invadiu todos os seus poros.Da mesma forma como seu amigo Horkheimer (que
apelou para a religião no fim da vida), Adorno vai se apegar com alta cultura,
numa versão muito elitista, como garantia do “inteiramente outro”, a utopia de
uma sociedade redimida.
Mas o filósofo alemão, ligado à teoria
crítica, que levaria mais longe a fertilidade desse momento do negativo seria
Walter Benjamin, na sua dialética da ambivalência, uma modalidade de dialética
diática, que não conclui através da síntese, mas mantém uma tensão permanente
entre os polos da contradição. Essa forma de dialética, que ele exercitou
através de sua crítica literária da obra de Proust e Baudelaire, nos deu um
método, um caminho rico e promissor de encarar a história, a arte e a
filosofia, sempre enfatizando as múltiplas possibilidades do real. Para o
historiador e crítico de arte, essa dialética seria um instrumento valioso de
enxergar no mundo estabelecido, ummundo
virtual, prenhe de possibilidades latentes, à espera de um “messias ”-historiador ou hermeneuta que liberte essas virtualidades e instaure
uma nova realidade. A riqueza e o poder de seduçãode tal método descortinou um mundo de
promessas e caminhos para reinventar a vida e atualizar os sonhos de nossos
antepassados.
Michel Zaidan Filho é filósofo, historiador, cientista político, professor titular da Universidade Federal de Pernambuco e coordenador do Núcleo de Estudos Eleitorais, Partidários e da Democracia - NEEPD-UFPE
As redes foram usadas, não para formar uma comunidade humana de
interlocutores de boa vontade, mas de fascistas, neofascistas,
pedófilos, intolerantes e fanáticos, que passaram a fazer uma catequese
pelo avesso. Instaurou-se uma rede demoníaca de leitores (chamada de
“imbecis”, por Umberto Eco) prontos a apoiar ditadores, messias,
salvadores da pátria, aventureiros
No exato momento em que o Senado federal cria uma Comissão
Parlamentar de Inquérito para apurar a ocorrência das ” fake news”
durante o processo eleitoral passado e sua persistência nas redes
sociais, CPI que tem como relator e secretária parlamentares
independentes do bolsonarismo e no filho senador do primeiro mandatário
da nação um dos principais envolvidos, a editora Companhia das Letras
publica uma estimulante biografia intelectual dos principais membros da
chamada “Escola de Frankfurt”(O Grande Hotel Abismo). Os leitores hão de
perguntar o que tem a ver a publicação desse estimulante livro com um
assunto tão pedestre como a apuração do crime de “fake news” pelas redes
sociais. Aparentemente, nada. Mas, ao contrário, tem tudo a ver.
A obra discute de uma maneira ampla a contribuição do filósofo Jürger
Habermas à teoria crítica, chamando a atenção para a correção
democrática e cívica que o pensamento deste teórico terminou por fazer
na visão pessimista e sem perspectiva de seus predecessores e mentores
intelectuais. Entre as inúmeras contribuições à teoria crítica, já na
terceira geração, avulta uma da maior importância para o ideário
democrático: o conceito normativo e republicano de “esfera pública”.
Diria um autor contemporâneo, a formação da vontade política” dos
cidadãos e cidadãs é a moralidade do regime democrático. Não há
democracia, digna desse nome, sem esfera pública.
Esse tema tinha sido o objeto de estudo da tese de doutorado de J.
Habermas: “Mudança estrutural da esfera pública”. Nele, o filósofo tinha
estudado a origem da moderna esfera pública nos cafés, saloons,
encontros da sociedade francesa no século XVIII e constatado seu
declínio com o surgimento da indústria cultural, dos grandes jornais, da
propaganda etc. Mas o conceito ganhou cidadania na Ciência Política
como a essência normativa (e moral) do regime democrático, escorado no
processo de formação discursiva da opinião pública esclarecida e
informada, na linha da argumentação kantiana do “uso público” da razão.
Processo este responsável pela autonomia, a liberdade e o espírito
crítico das pessoas, numa sociedade que marchava para sair do
absolutismo e o monopólio da verdade por uma minoria. Depois, o conceito
de esfera pública veio se corporificar nas chamadas “democracias
deliberativas”, com seus fóruns onde o livre debate de ideias ajudaria a
criar agendas públicas, apoiadas em consensos racionais.
Mas o que interessa aqui é discutir as virtualidades cívicas e
democráticas que a rede mundial dos computadores (a internet) poderia
ter criado para a existência de uma verdadeira “esfera pública mundial”.
Este é o ponto. Houve inicialmente muito entusiasmo e esperança que
esta rede pudesse ajudar ao surgimento dessa comunidade internacional de
cibercidadãos, animados de boa-fé, a produzirem consensos racionais em
torno de causas humanitárias, republicanas e democráticas, Naturalmente,
o exemplo era a União europeia. Infelizmente, depois das consequências
do Tratado de Maastrich, a unificação macroeconômica dos países
europeus, a crise econômica e o fundamentalismo casado com a xenofobia,
produziu-se o que Boaventura Santos intitulou de “fascismo social”: toda
a causa da imensa crise social foi jogada nas costas dos imigrantes,
dos pobres, dos muçulmanos etc. Ao invés do cumprimento das promessas
desse novo iluminismo (agora chamado de “razão comunicativa”), tivemos o
inferno de governos de extrema-direita ou socialistas rendidos à agenda
de “guerra ao terror”.
Nesse contexto, a mundialização das redes sociais não podia promover
uma comunicação racional, desprovida de imperativos de poder ou
interesses. A ampliação das redes de comunicação deu lugar à
disseminação da xenofobia, do fundamentalismo, do preconceito racial, de
gênero ou orientação sexual. As redes foram usadas, não para formar uma
comunidade humana de interlocutores de boa vontade, mas de fascistas,
neofascistas, pedófilos, intolerantes e fanáticos, que passaram a fazer
uma catequese pelo avesso. Instaurou-se uma rede demoníaca de leitores
(chamada de “imbecis”, por Umberto Eco) prontos a apoiar ditadores,
messias, salvadores da pátria, aventureiros, que prometiam segurança,
paz e prosperidade para essa extensa massa de “idiotas úteis”.
Essa morte da esfera pública chegou ao Brasil e produziu os seus
malefícios antidemocráticos e antirrepublicanos na eleição presidencial
passada. Escritórios, estipendiados por empresas interessadas na eleição
de um dos candidatos, foram montados por milícias virtuais para
inundarem as redes sociais de “fakenews”, com as piores calúnias,
injúrias e difamações – que aliás, permanecem impunes- com uma
influência direta na formação da vontade política dos eleitores.
Imagine-se o oposto do conceito normativo de “esfera pública”, com o
objetivo de suscitar o aparecimento de uma mentalidade fascista ou
pró-fascista, ajudado pelas igrejas neopentecostais, inspiradas numa
teologia da prosperidade.
Por tudo isso, afirmou o nosso filósofo que não era possível ver
nesse fenômeno uma espécie de neo-iluminismo, até pela fragmentação das
audiências; mas ao contrário, o caldeirão perfeito para a produção da
intolerância, do racismo, da teocracia e da xenofobia.
Vamos dar boas-vindas a esta iniciativa do Senado Federal
brasileiro e esperar que ela apure cabalmente as responsabilidades
daqueles que difamaram, caluniaram e injuriaram os adversários,
utilizando-se das redes sociais. A se continuar a impunidade pelos
crimes de opinião na internet, jamais teremos – não digo, uma comunidade
racional de pessoas – um regime democrático e republicano entre nós.
Michel Zaidan Filho é filósofo, historiador, cientista político, professor titular da Universidade Federal de Pernambuco e coordenador do Núcleo de Estudos Eleitorais, Partidários e da Democracia - NEEPD-UFPE
Censura na Bienal do Rio faz lembrar os maus bocados enfrentados por editores nos tempos da censura ditatorial
10set2019 13h09
A
censura voltou. Felizmente de forma explícita, na iniciativa de um
teocrata oportunista que, de olho nas eleições de 2020, decidiu fazer
festinha em seu rebanho pedindo a apreensão de um gibi na Bienal do
Livro do Rio de Janeiro. O beijo entre dois homens da HQ da Marvel pode
parecer um motivo trivial, mas a pauta moral, tão tola quanto aparenta, é
dos atalhos mais curtos para o cerceamento da liberdade de expressão.
Nenhuma ditadura nasce ditadura, mas se torna ditadura.
É
certo que, ao violentar a Constituição com a cumplicidade de um juiz, o
fundamentalista de chanchada conseguiu o que queria, afagar seus
eleitores. Mas também despertou uma reação inequívoca dos editores de
livros, que com raras e honrosas exceções vinham observando um silêncio
preocupante diante das sistemáticas ameaças aos princípios democráticos
anunciadas na campanha de 2018.
Há
menos de um mês participei de uma conversa na Livraria Leonardo da
Vinci, no Rio, sobre o que acontece com editores numa ditadura. Fui
falar sobre Jorge Zahar, que biografei; o editor e livreiro Marcus
Gasparian deu um depoimento sobre seu pai, Fernando, publisher do Opinião e
da Paz & Terra; Américo Freire, pesquisador da FGV, lembrou a
atuação de Ênio Silveira à frente da Civilização Brasileira. Na década
de 1960 como hoje, continua valendo o princípio: livros são alvo
preferencial do autoritarismo.
Os
três editores foram perseguidos por fazerem circular ideias e valores
contrários à ditadura civil-militar instaurada em 1964. No final daquele
ano, no início da escalada de arbítrio, Jorge teve que tirar os filhos
do Bennett, tradicional colégio carioca: o sobrenome Zahar tinha virado
sinônimo de História da riqueza do homem,e o livro de
Leo Huberman, um sinal exterior de pensamento crítico. Dos três, Jorge
foi o único a não ser preso. Ênio, seu melhor amigo, respondeu a sete
processos, e os pernoites na cadeia viraram rotina na vida de Fernando
Gasparian.
Jorge
e Fernando foram mais estratégicos no enfrentamento. Ênio desconhecia
sutilezas. Pouco antes da quartelada, tinha lançado uma coleção, a
Cadernos do Povo Brasileiro, com livrinhos baratos e didáticos de
títulos sugestivos como Quem dará o golpe no Brasil?, Por que os ricos não fazem greve? e Salário é causa da inflação?. Em 1965 criou a Revista da Civilização Brasileira e
nela publicou duas “Epístolas ao Marechal”, corajosas cartas abertas em
que interpelava o marechal Castello Branco. Sofreu represálias
econômicas, ameaças físicas e até um atentado terrorista, que destruiu a
livraria da Civilização Brasileira no Centro do Rio. Do ataque, ficou
um eloquente documento de barbárie, a foto terrível das portas da loja
retorcidas sob um cartaz com o lema da casa: “Quem não lê, mal fala, mal
ouve, mal vê”.
Na tese de doutorado A lista negra dos livros vermelhos: uma análise etnográfica dos livros apreendidos pela polícia política no Rio de Janeiro,
a pesquisadora Luciana Lombardo Costa Pereira constatou que, na lista
que nenhum editor gostaria de frequentar, os três primeiros lugares
ficaram justamente com a Civilização Brasileira (60 títulos), a Paz e
Terra (51) e a Zahar (30). Num relatório do período mais violento da
ditadura, a Zahar era acusada de “ação ideológica antidemocrática”
– talvez porque estampasse em seus livros o moto “a cultura a serviço do
progresso social”.
Em
1965, Ênio foi preso depois de ter oferecido um almoço a Miguel Arraes.
O famoso IPM da Feijoada, é claro, não deu em nada. Mas no dia 29 de
maio, os principais jornais publicaram o manifesto “Intelectuais e
artistas pela liberdade”. Assinado por mais de mil nomes, o documento
dizia: “Os intelectuais e artistas brasileiros abaixo-assinados pedem a
imediata libertação do editor Ênio Silveira, preso por delito de
opinião. Não entramos no mérito das opiniões políticas de Ênio Silveira,
mas defendemos seu direito de expressá-lo livremente, direito garantido
pelo artigo 141, parágrafo oitavo, da Constituição do país: ‘Por motivo
de convicção religiosa, filosófica ou política, ninguém será privado de
nenhum de seus direitos.’”
Mesmo
com uma mobilização cerrada, a ditadura só se intensificaria com mais
prisões, tortura, mortes e exílios. A anistia, marota, foi seletivamente
ampla, relativamente geral e, definitivamente, nada irrestrita.
Intacto, o autoritarismo continuou reproduzindo sua lógica nas sombras e
nas instituições. E, uma vez mais, bota na mira os livros, aqueles que
os publicam, os que os escrevem e os que os leem contra a imposição de
valores nefastos.
(Publicado originalmente no site da Revista dos Livros, Quatro Cinco Um)
Cena de "Os oito odiados", de Quentin Tarantino (Foto: Divulgação)
Ainda antes de entrar no curso de Direito, assisti a um filme estrelado por Al Pacino, chamado …And justice for all,
em que o ator interpreta um advogado idealista que tenta
desesperadamente tirar da cadeia um jovem injustamente acusado de um
delito.
A certa atura, ele recebe a notícia de que seu cliente teria se
rebelado, assassinado alguns outros presos e funcionários, e estava
amotinado, mantendo pessoas como reféns, até ser finalmente abatido pela
polícia. Tudo isso depois de ter sido brutalmente violentado
(sexualmente, frise-se) por outros presos.
Talvez por influência desse filme, durante os anos de faculdade
jamais me vi atuando na área penal. Imaginava que não suportaria a
responsabilidade de ter nas minhas mãos o destino de qualquer pessoa que
estivesse de alguma maneira exposta àquele tipo de violência,
aterradora para um jovem de classe média, branco, e confortavelmente
instalado na casa dos pais, recebendo todo o cuidado e proteção. Havia
em mim, claramente, a ideia de que nenhuma ação humana mereceria aquele
tipo de consequência trágica como resposta punitiva, mesmo em se
tratando de réus culpados.
Ao final da graduação, entretanto, logo após a promulgação da
Constituição de 1988, acabei prestando concurso para o Ministério
Público, órgão extremamente fortalecido e redesenhado para a tutela de
outros importantes direitos coletivos e difusos, e reconfigurado,
inclusive, no que se refere à acusação criminal, a ponto de se dizer
(quantas vezes ouvi isso!) que a instituição já não poderia ser vista
como um órgão de “acusação sistemática”, mas que poderia e deveria velar
pelos interesses da própria pessoa acusada de delito, para que os seus
direitos fossem preservados, para que a sua inocência presumida fosse
levada a sério e para que a eventual punição não ultrapassasse um
milímetro daquilo que a lei estabelecia. Havia até um bordão para isso:
“não somos mais promotores públicos, mas promotores de justiça”.
Ao longo desses quase trinta anos, portanto, alimentei a esperança de
que a função de acusar, vale dizer, de trabalhar para que um ser humano
qualquer fosse submetido aos horrores do cárcere, poderia ser exercida
com dignidade, desde que fossem observadas algumas premissas.
A primeira coisa que sempre esteve clara para mim é que eu jamais
poderia me colocar na condição de censor moral de quem quer que fosse (Não julgueis, porque com o mesmo critério que julgardes também sereis julgados,
diz a escritura). Desde sempre, portanto, vi o crime, por mais
monstruoso que parecesse, como algo humano, que precisava de uma
resposta humana, dentro dos limites do que a Lei e somente ela poderia
estabelecer, como condição necessária à manutenção da vida em sociedade,
mas sem qualquer autoridade de juízo moral sobre quem a tivesse
violado.
A segunda coisa é que, na condição de promotor de justiça, eu era
apenas um servidor público, remunerado para fazer um trabalho técnico,
nem mais nem menos, e sem qualquer preocupação, portanto, em obter
“vitórias”, mas apenas em cumprir com minhas obrigações funcionais da
melhor forma possível.
Por isso, mesmo quando atuava no júri, falando para pessoas do povo,
nunca me senti confortável em agredir ou insultar as pessoas que se
apresentavam como acusadas. Sempre achei isso totalmente desnecessário e
de uma covardia sem tamanho.
Causa-me um imenso desconforto, portanto, ver o que está sendo
exposto às escâncaras para o grande público, mas que já vem sendo
percebido há muito tempo por quem acompanha de perto (de dentro, na
verdade) o caminhar da Instituição na sua atuação criminal ao longo de
todos esses anos. Há muito tempo já escrevi sobre aquilo que me parece
um problema seríssimo na seleção e na formação dos quadros que compõem o
sistema de justiça, submetidos a concursos que muito mal avaliam a
capacidade de decorar irrefletidamente textos de lei ou de informativos
dos tribunais superiores e desprezam qualquer outro tipo de competência,
como, por exemplo, a capacidade de compreender os limites éticos e
políticos de sua atuação.
O triste resultado, como já disse várias vezes, é que temos um grande
número de colegas que realmente alimenta uma certa superioridade moral
que os habilita a vestir a capa de vingadores contra as ações de pessoas
moralmente degeneradas, que merecem a punição não exatamente pelo que
supostamente fizeram ou fazem, mas pelo que são, o que significa,
inclusive, que a Lei é apenas um detalhe, e muitas vezes um embaraço,
uma filigrana (pra usar uma expressão em voga) que pode e precisa ser
ignorada em nome de questões de ordem moral ou política.
Pior que isso, aliás, é ver esse comportamento ser tolerado e até
estimulado em nome de interesses corporativos, que identificam nessa
forma de se apresentar à sociedade uma maneira de assegurar prestígio e
com ele manter determinadas vantagens econômicas para a carreira ou
mesmo na forma de palestras regiamente remuneradas, vazias de conteúdo,
onde tudo que se pretende é entorpecer a plateia desejosa de vingança
com um discurso proselitista e emocional.
Na filmografia de Tarantino há um genial diálogo entre um carrasco e
sua futura executada, uma mulher que está sendo levada para ser
enforcada numa determinada cidade do Oeste estadunidense, desses trechos
que só poderiam estar presentes num clássico como Os oito odiados.
Transcrevo:
“Muito bem, você é procurada por assassinato. Só para minha analogia,
vamos supor que você fez isso. John Ruth quer levar você até Red Rock
para ser julgada por assassinato. E, se for considerada culpada, o povo
de Red Rock vai enforcá-la na praça da cidade, e eu, como carrasco,
farei a execução. E se todas essas coisas acabarem acontecendo, é isso
que uma sociedade civilizada chama de ‘justiça’. Entretanto, se os
parentes ou amigos das pessoas que você matou estivessem lá fora neste
momento, e depois de quebrar essa porta, eles arrastassem pela neve e a
pendurassem pelo pescoço, isso, isso seria um linchamento. Agora, a
parte boa do linchamento é que aplaca a sede de vingança. A parte ruim é
que pode fazer o certo se tornar errado.”
“Qual a diferença?” (alguém pergunta).
“A diferença sou eu. O carrasco. Para mim não importa o que fez.
Quando eu enforcar você, não terei satisfação pela sua morte. É o meu
trabalho. Enforco você em Red Rock, parto para outra cidade e enforco
outro lá. O homem que puxa a alavanca, que quebra o seu pescoço será um
homem imparcial. E essa imparcialidade é a essência da justiça. Justiça
aplicada sem imparcialidade corre sempre o risco de não ser justiça.”
Em suma, talvez esteja sobrando decoreba de legislação e faltando bom
cinema na formação dos operadores das diversas instituições jurídicas. Elmir Duclerc é promotor de Justiça em Salvador-BA e professor adjunto de Direito Processual Penal da UFBA
O primeiro suplente de deputado estadual pelo PSOL, o destemido líder
do Sindicato da Polícia Civil de Pernambuco, Áureo Cisneiros foi o
primeiro a se insurgir contra uma espécie de "acordão" costurado pela
oligarquia que nos desgoverna e seus partidos aliados, o PC do B e o PT,
para eleger o príncipe-infante, ora Deputado Federal, João Campos à
Prefeitura da cidade do Recife e assim manter a hegemonia incontrastada
na política pernambucana. Nada disso seria novidade, se o "acordão"
não envolvesse os parlamentares (municipais e estaduais) do PSOL. Porque
aí ficariam os eleitores sem muitas opções para votarem contra a
reprodução do familismo amoral que reina entra nós. Disse o bravo
suplente do PSOL que é desmoralizante ter feito uma oposição aos desmandos da oligarquia
durante todo esse tempo, e agora se compor com ela para inviabilizar a
pré-candidatura de Marília Arraes e eleger o filho de Eduardo Campos.
Afirmou ainda Cisneiros que o vereado Ivan Moraes vem fazendo uma
oposição "light" ao PSB, na Câmara dos vereadores, e o mandato coletivo
"juntas" já teria acenado para uma possível aproximação com a bancada
socialista na Assembléia Legislativa.
A se confirmarem essas notícias, vamos
ter a continuidade da política do amigo e inimigo em Pernambuco, com a
obstaculização de toda e qualquer possibilidade de uma terceira via
democrática, socialista e de massas no estado. Lembro que esse processo
não é novo no cenário política da região. A polarização entre PMDB e
PFL, depois PSB e PFL tornou impossível que partidos como o PPS e o
próprio PT se oferecesse como alternativa a essa polarização. O ensaio
de independência e voo próprio feitos pelos petistas, com a conquista
da Prefeitura do Recife, não só contou com o apoio dos socialistas como
foi, depois, inviabilização pela divisão interna do partido e o
oportunismo de Eduardo Campos, através
do verdadeiro "Cavalo de Tróia" que foi a candidatura do empresário
Maurício Rands.
É de se lamentar profundamente esse
tropismo que a oligarquia dominante exerce sobre esses partidos ditos de
esquerda em Pernambuco. Este tipo de "transformismo político" produzido
pelos maiorais do PSB só contribui para o subdesenvolvimento da
cultura partidária do estado e tira dos eleitores a possibilidade de
escolha de seus candidatos preferidos. O argumento usualmente utilizado
de que é necessário a união para combater o fascismo (correto, em tese)
não deve ser utilizado para justificar políticas de aliança com
adversários que deveriam estar no banco dos réus e não na linha de
frente das negociações políticas. Lamento muito que parlamentares que
militaram a vida toda contra os desmandos do atual grupo governante (e
há pessoas honestas e sinceras) aceitem negar toda a sua trajetória anterior em troca
de cargos e mandatos. Não pensam no futuro: apenas em sua sobrevivência
imediata. Serão tão importantes assim?
PS.: Segundo um bem informado e arguto observador da cena política
pernambucana, a estratégia do PSB é cooptar Geraldo Júlio para
secretaria de Governo, para que ele dispute a sucessão de
Paulo Câmara, assegurando assim o domínio da oligarquia em todos níveis
no estado. Só falta o Palácio das Princesas intervir no PDT, temendo que
o prestígio de Fátima Bernardes acabe por levar Túlio Gadelha a
Prefeitura do Recife. Mas para isso, o diretório estadual do partido.
Precisaria dar o aval a pré-candidatura do jovem deputado. O que não é
provável que aconteça.
Michel Zaidan Filho é filósofo, historiador, cientista político, professor titular da Universidade Federal de Pernambuco e coordenador do Núcleo de Estudos Eleitorais, Partidários e da Democracia
Não
há um acontecimento mais debatido, na imprensa internacional, do que o
ataque as torres gêmeas do World Trade Center, em Nova Iorque. Os EUA tinham sofrido antes as consequências de uma dura guerra civil
que até hoje deixou sequelas raciais no país. 0 ataque ao World Trade Center seria a segunda guerra em solo americano, agravada pela autoria
de agentes externos. Descontados os efeitos da derrota no Vietnã e a
contracultura dos anos 60, o 11 de setembro representou um trauma na
ideia da invulnerabilidade do grande país do Norte.
A maioria dos analistas da política internacional
concordam que o evento e as mortes que ele causou provocaram uma grande
mudança na política externa americana. Após o ocorrido, a política dos
direitos humanos foi servida pelos governos nacionais a lá carte,
no sentido de sua submissão as conveniências estratégicas e econômicas
das grandes nações. Quem o disse foi a alta comissária dos direitos
humanos da ONU. A começar pelos EUA, com a edição do patriotic act,
que no dizer do romancista Gore Vidal, suprimiu na prática as liberdades
civis em solo americano em nome da segurança dos cidadãos. Foi quebrado
o sigilo das comunicações postais e eletrônicas e os estrangeiros foram
(ainda são) vítima de perseguição em razão da cor, da religião ou
da ideologia.
As consequências mais graves, contudo, manifestaram-se na
política externa norte-americana, submetida doravante a agenda "de
guerra ao terror", o que representou uma espécie de carta branca para
invadir, perseguir, matar e destruir os países do Oriente Médio e Ásia
Central, suspeitos aos olhos do Pentágono de colaborar com os militantes
da Al-Qaeda ou Bin Laden. Aventuras militares que arrastaram consigo a
maioria dos países europeus, com exceção da França e da Alemanha. Os
americanos nunca aceitaram o fato de que a União Europeia tivessem uma
política externa independente. A lealdade canina dos ingleses e a
presença militar americana em terras europeias -representada pela OTAN -
mesmo depois do fim da Guerra Fria só tem como explicação a
permanência da influência de Washington no contexto da
política externa da Europa. De nada adiantou o manifesto assinado por
Habermas e Derrida por uma política externa independente. A agenda de
"Guerra ao Terror" triunfou em toda linha arrastando consigo os
principais governos europeus, com a colaboração da Alemanha de Ângela Merkel.
A invasão da Líbia, a guerra civil na Síria e o apoio a
ditadura egípcia que derrubou o governo legítimo da irmandade muçulmana é
a prova inconteste da hegemonia americana na política internacional.
Está agenda tem um pesado custo: a guerra movida pela frente ocidental
contra o estado islâmico tem provocado a morte de muitos civis e forçado
a imigração massiva de velhos, doentes, mulheres e crianças levando os países europeus a fecharam as fronteiras e não
respeitarem as leis humanitária de conceder o direito de refúgio a esses
imigrantes. Numa política de absoluto cinismo e indiferença para com o
sofrimento humano. Aceitam fazer parte da coligação capitaneada pelos
americanos contra governos árabes, mas não aceitam acolher as vítimas
dessa calamidade humanitária. Simultaneamente, os países membros da
"entente" anti-terror tornam-se alvo, por excelência, das ações do
estado islâmico, em represália a esse política anti-terror. Em alguns
casos, o desrespeito cultural alimenta a guerra, como o jornal francês
que publicou charges ofensiva ao islamismo.
O certo é que depois do 11 de setembro o
mundo ficou mais inseguro e inóspito para se viver. Até hoje se debate
as causas verdadeiras do ataque às torres gêmeas, especulando os
motivos internos do governo de George Bush, nos desdobramentos desse
episódio e suas relações com a família de Bin Laden. O fato é que a
política internacional voltou, como nunca, a ser comandada pelos
interesses estratégicos e comerciais dos EUA. e as liberdades
públicas sofreram um enorme golpe, no mundo inteiro.
Michel Zaidan Filho é filósofo, historiador, cientista político, professor titular da Universidade Federal de Pernambuco e coordenador do Núcleo de Estudos Eleitorais, Partidários e da Democracia - NEEPD-UFPE
Girolata Triptych, Joan Mitchell, 1964 (Foto: WikiArt/Domínio Público)
Acha-se num dos contos de Grimm uma
narrativa sobre um moço que saiu a aventurar-se pelo mundo para aprender
a angustiar-se. Deixemos esse aventureiro seguir o seu caminho, sem nos
preocuparmos em saber se encontrou ou não o terrível. Ao invés disso,
quero afirmar que essa é uma aventura pela qual todos tem de passar: a
de aprender a angustiar-se, para que não venham a perder, nem por jamais
terem estado angustiados nem por afundarem na angústia; por isso,
aquele que aprender a angustiar-se corretamente, aprendeu o que há de
mais elevado Soren Kierkegaard – O conceito de Angústia
Uma sensação difusa, próxima de uma ansiedade, mas sem objeto,
parecida também com o medo, mas sem causa específica. Uma inquietude
metafísica, mas sem linguagem organizada. Nem bem um pavor, nem bem
horror ou terror, mas um mal estar, uma falta flutuante, uma ameaça
fantasmática e um sobressalto iminente. Eis o quadro de uma experiência
conhecida individualmente e que hoje se torna um sintoma social. Ele diz
respeito a um conceito filosófico fundamental, a angústia.
A angústia é um sentimento disperso e desagradável e, ao mesmo tempo
que carrega uma inquietação metafísica, é algo paralisante. Um filósofo
que pode nos ajudar a compreendê-la é Kierkegaard que viveu no século 19 na Dinamarca. Kierkegaard vai influenciar muitos pensadores com seu tratado sobre O conceito de Angústia
escrito em 1844 sob o pseudônimo de Vigilius Haufniensis. Nesse livro
ele nos apresenta o conceito de angústia como uma posição fundamental,
talvez a mais essencial no desenho do complexo ser humano. E por que a
angústia seria tão fundamental? Porque ela que nos ensina o que é a
“interioridade existencial”. É a angústia que nos dá a medida da
experiência do sujeito enquanto sujeito humano. No lugar de um “penso,
logo existo”, poderíamos definir a experiência da angústia como aquilo
que está no lugar do pensamento. Como se a angústia fosse o nascedouro
da consciência.
Na visão do filósofo dinamarquês, a angústia é constitutiva da
condição humana. Ela faz parte da vida. Inevitável, ela surge no momento
em que somos confrontados justamente com as possibilidades da vida,
sejam elas boas ou não aos olhos acostumados às sombras das verdades
prontas. Surgirá daí a liberdade como uma condenação, como depois nos
explicarão Sartre, Beauvoir e outros pensadores existencialistas.
A angústia é o efeito do nosso contato com as possibilidades da vida
mais ou menos estreitas conforme as circunstâncias vividas por cada um.
Ao falar de angústia, estamos diante daquilo que nos oprime, como um
canal estreito, um obstáculo a ser atravessado. Tal é a sua etimologia.
Mas ela é mais do que um sentimento, ela é a posição que implica a
percepção, um certo tipo primitivo de saber sobre o caráter absurdo da
vida e, no meio dele, a consciência do minúsculo ser humano lançado
entre a potência e a impotência, o brilho e o apagamento, a grandeza e a
miséria de sua própria condição. Heidegger, influenciado por
Kierkegaard, dizia que temos que fazer escolhas, mas não temos certeza
de que haverá resultados favoráveis a nós. “A única certeza é a vida de
culpa e ansiedade”, ele dirá em um livro como Ser e tempo (1927).
Talvez o reconhecimento de que há um destino para além da vontade
humana reposicione o ser humano diante da natureza, da história, do
outro e de si mesmo. Talvez a angústia ceda de sua imobilidade diante da
aceitação da finitude. Mas como aceitar a finitude nesse tempo em que
perdemos a capacidade de meditar sobre a morte e, ao mesmo tempo, tudo parece tão morto? Autopedagogia
A angústia nos coloca, portanto, a questão de nossa presença no
mundo. Não se trata apenas da pergunta pelo que somos, ou o que fazemos,
mas o que estamos experimentando. O que recebemos, damos e “levamos”
dessa vida? O que é realmente importante? O que realmente pode ou deve
ser vivido? Como vivemos diante do fato de que estamos necessariamente
relacionados a nós mesmos, além de estarmos relacionados aos outros e à
alteridade como lugar da diferença?
Bem vivida, a angústia é a chance de estabelecer uma relação
autêntica com a gente mesmo. Com o que somos. Ela envolve uma
autopedagogia pessoal.
Nela é que podemos nos perguntar “como me relaciono comigo mesmo?”, que é
algo bem mais complexo do que a crença em um “autoconhecimento”. É a
angústia que pode nos dar as condições de fazer a pergunta “como me
torno quem eu sou?”.
E me faz saber que não posso responder a ela se não avaliar as
demandas, as imposições, as ordens e os modismos que me afastam de mim. É
a angústia, portanto, que me devolve a mim mesmo. Que evita a alienação
à qual nos convida o nosso tempo sombrio.
A ação de despejo movida pelo
INCRA contra o MST, retomando a posse da fazenda Normandia (Caruaru) cumpre
estritamente o programa de retaliação e criminalização dos movimentos sociais
no Brasil, anunciado antes pelo senhor Jair Bolsonaro.
A exemplo das ações
criminosas contra as terras dos indígenas, quilombolas, contra os negros,
homossexuais, a escola pública e o meio-ambiente, este governo pratica um
verdadeiro crime de lesa-sociedade.
O MST é um movimento social
moderno, exaltado por personalidades do mundo inteiro. Faz parte de um comitê
mundial dos povos da terra, tem sido um participante assíduo do fórum social
mundial e contribuído, também, para o avanço da democratização das estruturas
agrárias brasileiras.
A fazenda Normandia é uma
verdadeira escola da mais alta importância para os trabalhadores rurais. As
universidades públicas têm contribuído frequentemente com seus quadros para o
trabalho de formação de agentes sociais. Tem sido também um laboratório de
novas formas coletivas e solidárias de produção autossustentável. As
cooperativas do MST ajudam a colocar comida boa e barata na mesa do povo
brasileiro e ensina os princípios da agroecologia.
É lamentável sob todos os
aspectos essa espécie de vindita social contra os movimentos sociais.Tal medida só pode partir de uma mente insana
a serviço dos grandes agro negociantes, das empresas de alimentos transgênicos
e do agrotóxico. Poucos movimentos sociais granjearam tanta admiração e apoio
da sociedade como o Movimento dos trabalhadores sem-terra. Foi ele considerado
por Manuel Castels um movimento de “identidade de projeto” não apenas de
“reação”.
Chico Buarque de Holanda,
José Saramargo e Sebastião Salgado reconheceram o seu importante papel na
sociedade. Abundam na universidade os estudos sobre a capacidade do MST
produzir fatos políticos através do poder simbólico. Sua tríade: “terra,
trabalho e vida” se opõe como nenhuma coisa a esse capitalismo rentista que faz
da propriedade rural mera reserva de valor, enquanto milhares de brasileiros
morrem de fome ou não tem um chão para plantar.
Michel Zaidan Filho é filósofo, historiador, cientista político, professor titular da Universidade Federal de Pernambuco e coordenador do Núcleo de Estudos Eleitorais, Partidários e da Democracia - NEEPD-UFPE
Silvero Pereira como Lunga em Bacurau, de Kleber Mendonça Filho (Foto: Victor Jucá/Divulgação)
Há algo de profundamente perturbador em Bacurau, de Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles, talvez o mais importante filme contemporâneo sobre o Brasil distópico da era Bolsonaro. Mesmo tendo sido filmado antes das eleições de 2018 e da catástrofe política em andamento, Bacurau
é um filme visionário e violento, uma ficção científica e política que
não tem nada de alegórica. Ao contrário, é explicita e brutal, de uma
lucidez aterradora.
Um filme em que os gêneros faroeste, ficção científica, filme de
terror, filmes de ação hollywoodianos, rambos e exterminadores se
encontram com um rural contemporâneo que explode clichês. Bacurau é um extraordinário remix do imaginário hollywoodiano com a tradição do Cinema Novo brasileiro: a estética da fome, a estética do sonho e a pedagogia da violência de Glauber Rocha com banhos de sangue prêt-à-porter vindos dos filmes de ação e reality shows. Um filme de crítico de cinema, de cinéfilo e de um diretor que chegou ao auge da destreza narrativa. Cinema Transgênero
Com Bacurau Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles fazem uma
espécie de faroeste transgênero, no sentido dos gêneros do cinema, mas
também ao explodir os clichês dos comportamentos. Um cangaço trans em
que cada espectador projeta suas referências e desejos.
Mas o que o aproxima do Glauber de Deus e o diabo na terra do sol, de 1964, ou de O dragão da maldade contra o santo guerreiro, de
1969? Estamos falando de filmes de invenção de um imaginário rural
brasileiro catártico, que inventam uma mística política vinda do povo.
Vinda dos oralistas, dos interioranos, do inconsciente explodido das
periferias rurais do Brasil.
Mas são muitas as referências: o Godard de Weekend à francesa (1967) ou de Alphaville (1965), ficção cientifica godardiana profundamente distópica. Com a diferença que não há mais nenhum romantismo em Bacurau,
apenas um sarcasmo ou riso vingador ou irônico. Como na cena das
execuções públicas no Anhangabaú, exibidas na TV, cenas que ecoam os
linchamentos midiáticos que são as novas formas de execuções públicas. Mad Max sertanejo
O filme trata de questões urgentes: crise da água e do meio ambiente, empresas e políticos com ethos
milicianos, forças paramilitares ou mercenários globais. Atravessada
por essas forças, uma nova Canudos na beira da estrada ou uma cidade Mad Max
sertaneja. Uma Canudos genérica, pronta para explodir. Tudo filmado
como uma espécie de reality show perverso e alucinatório, com jogos
violentos e extremos e com personagens estranhamente familiares e
“normais”.
Mas do que se trata o filme? Antes de mais nada de um rural
contemporâneo. Um Brasil das cidadezinhas do interior completamente
conectadas com o urbano. Atravessadas por redes de celular, tecnologias
de vigilância e controle, telas de LED, drones, carros e motos
possantes, distribuição de psicotrópicos e remédios que controlam o
humor, uma cidade rústica, mas que poderia protagonizar um episódio de
Black Mirror e que querem apagar do Google Mapa. O que fazer diante do capitalismo gore?
A segunda questão é exatamente essa. O que podem (como agir,
resistir, se governar) as comunidades que estão sendo atacadas e
apagadas pelo capitalismo das “tripas e sangue”? E aqui tomo emprestado o
conceito da mexicana Sayak Valencia para descrever a vida nas
fronteiras de Tijuana, em que comunidades inteiras têm que lidar com o
que nomeia de “capitalismo gore”, um capitalismo mafioso, da
narcocultura, milícias, assassinatos.
Esse capitalismo gore, com suas tripas e sangue, é também uma
construção cultural. O termo tem origem no gênero cinematográfico splatter,
com o uso gráfico e extremo da violência, o grotesco e a violência
explícita como linguagem. O assujeitamento e ações predatórias, onde
se pode infligir dor e violência contra os corpos, mas também pensar a
violência como necroempoderamento.
Diante de um neoliberalismo que fracassou na sua utopia de mercado,
diante de uma democracia em agonia, os sujeitos, os cidadãos, a
comunidade também quer partilhar e participar da violência como forma de
resistência e sobrevivência.
As fronteiras, as cidade das bordas e periferias, as periferias, as
comunidades apelam para um autogoverno e ações extrajurídicas. Como em
Canudos amotinada, novos laboratórios do pós-colonialismo, mas também
das insurreições contemporâneas. Enclaves, tribos, comunidades
distópicas e utópicas se inventando. Os insurgentes em uma democracia em agonia
Diante de fantasias de poder ultraconservadoras, diante de figuras
ultraviolentas como Witzels e Bolsonaros, seres “endriagos”,
demolidores, que surgem produzindo a gestão da morte, as comunidades se
apropriam da violência como ferramenta de empoderamento e de
resistência. Uma saída possível do lugar de vítima para a de vingadores. Bacurau traz de volta o imaginário das guerrilhas dos anos
70 sem fazer qualquer menção, sem qualquer discurso político ou
panfletário, simplesmente a narrativa empurra os personagens às armas!
Mas quem são esses novos heróis de uma Canudos revisitada? O Brasil
que emergiu no ciclo democrático dos últimos 13 anos, as minorias que se
tornaram sujeitos do discurso, os ex-quecidos do Brasil rural,
ribeirinho, periférico, as figuras fronteiriças, como a extraordinária
cangaceira trans, encarnada por Silvero Pereira.
Uma Canudos remixada que traz também personagens de uma dor extrema,
como a mãe diante do filho executado no escuro, com o uniforme do
colégio, uma cena arrepiante que vai entrar para a história do cinema
brasileiro. E toda a comoção da cidade diante das mortes seriais.
Os personagens de Bacurau trazem nos corpos, nos cabelos, na
cor da pele, um Brasil que emergiu e ganhou visibilidade. Homens e
mulheres, negros e negras, trans, putas, os caboclos e povos
originários. Magníficas as cenas de um devir índio dos personagens que
andam e vivem nus nas suas casas de barro, falando com as plantas,
vivendo em uma temporalidade estendida, donos de poderes mágicos e de
uma cosmovisão.
Impossível não ver neste faroeste caboclo sideral os banhos de sangue, as Marielles assassinadas, a potência das mulheres, todo um novo cangaço das lutas de maiorias, minorias e transgêneros. Hiper realismo alucinatório
Não há nada de fantasioso em Bacurau, o filme é de uma
clareza e brutalidade alucinantes, uma espécie de documentário sobre o
imaginário em que estamos. O que poderia ser traumático, o jorro de
sangue, a violência gore, todos os corpos dilacerados, cabeças
decepadas, os requintes de crueldade e o gozo e erotismo diante da morte
se tornam elementos catárticos e redentores ao final do filme.
Diante do trauma político em que estamos. Diante da percepção
cotidiana de que “estamos sendo atacados” em nossos valores, em nossos
impulsos vitais, em nossas vidas, em nossas sexualidades, Kleber
Mendonça apresenta uma guerrilha de bolso. Um laboratório na cidadezinha
do interior de Pernambuco. Bacurau é meio Dogville de Lars Von Trier. Bacurau é Dogville, Alphaville, Canudos, um território
separado geográfica e temporalmente do resto do país. O Brasil, São
Paulo, são ficções distantes. Como a República era uma ficção para o
arraial sertanejo. Como em Os sertões de Euclides da Cunha, Kleber Mendonça nos apresenta a Terra, o Homem e a Luta.
E que emoção ver o cinema glauberiano e o imaginário euclidiano
vivos, reinventados em um presente urgente que atualiza personagens como
Antônio das Mortes, Corisco, Lampião, a mística política presente em um
mesmo filme sem fim que estamos fazendo, uma brasiliana contemporânea. Bacurau traz uma linguagem impactante. Um remix de Glauber
com Tarantino e Godard, e ainda revisita o tropicalismo cinematográfico
de filmes como Brasil ano 2000, de Walter Lima Jr .,que proclamava em 1969 que “aqui é o fim do mundo” .
Uma ficção científica apocalíptica que é um retrato do Brasil em 2019. Não identificado, a música de Caetano cantada por Gal Costa, que abre o filme, vem diretamente deste espaço sideral, anos 60/70, nossos “negros verdes anos”, de ditadura militar
e do auge de invenções na cultura, uma explosão criativa de
cinemanovismo, tropicalismo etc. Kleber Mendonça revisita o lado B do
tropicalismo solar: distopia, anarquia, um tropicalismo underground e
sombrio que não chegou na cultura de massas. Efeitos colaterais Bacurau produz efeitos colaterais e sensoriais imediatos.
Seja um estupor melancólico frente ao cenário político que estrebucha na
tela, seja o efeito catártico. Ouvi pessoas que gritam e aplaudem,
urram diante das mortes horríveis, cabeças decepadas e castigos
infligidos aos vilões. Outras despertam eufóricas com as imagens, a
montagem, como se fosse um soco ou um pegar pelos ombros que nos sacode
por inteiro. Ou ainda um choro, uma comoção, não se sabe bem por que,
mas que o filme desata, como esses nós que se desfazem sozinhos depois
que já ferimos os dedos da mão tentando abrí-los.
São muitas as referências ao cangaço, ao sertanejo, aos jagunços, aos
beatos, aos pré-revolucionários de Glauber, os condenados da terra de Frantz Fanon, os resistentes de um Brasil que luta pela terra, pela água, pela comunidade, pela Amazônia, pela vida.
Em Bacurau, o mais importante é a comunidade e o comum. As
lideranças são múltiplas, descentralizadas: a cangaceira trans, a médica
Domingas, o professor, as lideranças espirituais. Muitas cabeças e um
só corpo.
Ao final uma luta, um duelo, um acertar de contas entre essa
diversidade, esse Brasil, esses personagens insurgentes e disruptivos e o
militarismo corporativo, o capitalismo miliciano, o empreendedorismo
gore. Vai faltar caixões?
As comunidades, os enclaves, os indígenas, a juventude periférica, as
esquerdas, os estudantes universitários, os negros e negras, até o
momento desconsideraram o discurso radical, de pegar em armas, usar a
força física, se armar para fazer a disputa política. Mas o que esperar
diante de um Estado que age extra judicialmente e fora da lei?
Quando um governante diz que tem “que mirar bem na cabecinha” e matar
seus “inimigos” como em um filme hollywoodiano ruim, ou chega de
helicóptero sobre um corpo abatido pela polícia e comemora como um gol,
esse imaginário e esse desejo de justiçamento não produzem um imaginário
sem controle e perverso?
Se o Estado pode ter drones fatais que atiram para matar, não veremos
em um futuro imediato um Rio de Janeiro pilotando drones de autodefesa e
ataques? Uma ficção política plausível e aterradora que mostra como se
produz Marighellas, Conselheiros e Zumbis, mas também Mitos, Witzels,
ultra-extremistas de todos os matizes.
Diante de um humanismo que fracassou, Bacurau sintetiza o
Brasil brutal, distópico em que a partilha da violência e a posse de
armas e de justiçamento passa a ser feita não apenas pelo “cidadão de
bem” conservador, mas surge, como na década de 70 – com as guerrilhas
urbanas e ligas camponesas – como uma saída possível, uma reação
coletiva, diante de uma democracia e de um Estado colapsados.
Kleber Mendonça Filho não faz uma leitura piedosa de tudo o que está
ai. Faz um manifesto cinematográfico, com uma linguagem sofisticada, um
apuro estético, uma destreza em conduzir a narrativa. Deixa uma
pergunta. Qual a saída diante da necropolítica? O necroemponderamento? A resistência vital? A violência como uma linguagem e um poder de transformação?
Mas também uma saída mágica, uma mística política. Porque “precisamos
de todos os santos e orixás, amém” para atravessar o deserto e esse
imaginário adoecido. Precisamos acreditar na política e no cinema, na cultura e na arte, na educação, nas resistências cotidianas, nos enclaves e motins.
Afinal o que é um cinema disruptivo? E aqui volto a Glauber e a toda a
radicalidade da arte em tempos de barbárie, “deve ser uma mágica capaz
de enfeitiçar o homem a tal ponto que ele não suporte mais viver nesta
realidade absurda”.
Podemos também invocar outro grito de guerra das lutas
contemporâneas, uma guerrilha rural e urbana que se alastra: “As putas
as bi, as travas e as sapatão tão tudo preparadas pra fazer revolução”.
Nesse sentido, Bacurau também tem um forte protagonismo
feminino. Lia de Itamaracá como a liderança política e mística da
comunidade e Sonia Braga, uma médica de pés no barro. Bacurau
despe Sonia Braga de todo um imaginário de glamour construído nos filmes
brasileiros e estrangeiros ao mostrá-la com todas as marcas da idade,
cabelos brancos, um corpo nu, uma mulher na sua maturidade, quase uma
“médica cubana” na sua abnegação e cola comunitária, uma atriz
excepcional que se reposiciona desde Aquarius e, em Bacurau,
transcende e se reinventa. Fazer “desaparecer” uma atriz como Sonia em
uma comunidade de atores incríveis e pouco conhecidos é um feito. Os invasores
Afinal quem são os invasores de Bacurau? “Estamos sob
ataque”, percebem os moradores. A chave não está apenas no grupo de
gringos predadores da água e assassinos, do prefeito corrupto, mas
também na dupla de brasileiros sulistas (em oposição aos moradores
nordestinos) que se identifica com esses grupos ultra conservadores. São
os primeiros a serem sacrificados. Os que se acham “brancos”,
superiores à comunidade local, os que se identificam com seu próprio
opressor. Esses são os descartáveis. A classe média de extrema-direita é
a primeira a ser sacrificada pelos ultraconservadores. Ousem questionar
e virem os inimigos também. Trágico e sarcástico, mas a cena dessa
revelação no filme vale por todo um tratado sociológico. O cinema faz
ver! IVANA BENTES é ensaísta, professora Titular da UFRJ,
pesquisadora do Programa de Pós Graduação em Comunicação da UFRJ e da
Pro Reitoria de Extensão da UFRJ. Autora de Midia-Multidão: estéticas da comunicação e biopolítica (Sulina), entre outros.
Recebi o honroso convite dos meus amigos, professores do Departamento de Ciências Sociais, da Universidade Federal Rural de
Pernambuco, para abrir a semana de ciências sociais, com uma palestra
sobre "Neoliberalismo e Estado". Logo me vieram à cabeça as longas
discussões dos anos 90 da época de Fernando Henrique Cardoso, do
Consenso de Washington, do social liberalismo, da globalização e,
inevitavelmente,do Estado regulatório ou gerente.Naquela não tão distante época,
recebi de uma organização não-governamental a incumbência de redigir um
texto sobre a "Globalização e o Estado", analisando as implicações da
primeira sobre a soberania nacional dos Estado-nação. O fio condutor da
argumentação era que a globalização dos mercados financeiros destruía a
capacidade regulatória dos governos nacionais em controlar os fluxos de
capital especulativo, reduzindo muito a margem de manobra do Estado em
fazer política monetária, cambial, industrial, de emprego e trabalho
etc. E que a desregulamentação financeira era um pressuposto importante
para a chamada "integração competitiva" nos mercados globais.
A isto, chamava-se "Consenso de Washington". Cabia aos governos, neste então,
abrir a economia, flexibilizar o mercado de trabalho e desregulamentar o
mercado financeiro, sob pena de afastar as empresas e investidores
estrangeiros do país. Esta foi a época também da "crise fiscal" e do
esgotamento das políticas de demandas típicas do keynesianismo e o Estado de bem-estar social, com repercussão direta sobre o nível de
emprego, crescimento econômico, arrecadação etc. O papel dos governos
passou a ser "a criação de um ambiente saudável para os negócios",
através da renúncia fiscal, da privatização das empresas estatais e a
entrega das políticas sociais ao mercado altruístico: ONGs, fundações
empresariais e instituições filantrópicas.Não precisamos dizer quanto o fosso social aumentou, com a
assistencialização privada dos direitos sociais. A par da concentração
de rendas no país. O que produziu uma espécie de ressentimento da
democracia nos mais pobres, como se fosse culpa do regime democrático o
aumento da pobreza e da miséria no Brasil.
Hoje a temática do neoliberalismo voltou
com força em razão da situação internacional e seus reflexos entre nós.
A primeira constatação é que a agente da política norte-americana de
"guerra ao terror" triunfou em toda linha trazendo muita força para a
direita e extrema-direita europeia e norte-americana. Todo esforço
internacional para se livrar da hegemonia política e militar dos E.U.A.
do norte foram baldados, com a derrota de governos socialistas ou
socialdemocratas e o enfraquecimento do multilateralismo nas relações
internacionais e de seus fóruns e órgãos de integração regional: o
Mercosul, os Brics etc. Assistimos, depois da queda do muro, uma segunda
onda de desconstrução de direitos no mundo todo, com sintomas de xenofobia, barreiras contra os imigrantes,
preconceito racial, religioso, de gênero e orientação sexual. Talvez o
melhor exemplo seja o muro que Donald Trump quis levantar na fronteira
com o México, para estancar a imigração dos "chicanos" para os E.U.A..
Na Europa, os partidos de direita ganharam os governos. E na América
Latina, voltou o período dos tratados bilaterais de governos liberais
com o presidente americano. No Brasil, instaurou-se uma contrarrevolução
perigosa, apoiada numa coalizão de militares com a igreja
neopentecostal, a serviço do capital internacional e com a conivência
dos aparelho judiciário.
A volta do neoliberalismo e do
fundamentalismo cristão de mercado passou a ter uma nova
conceitualização na obra de um pensador francês chamado Pierre Dardot e
Cristian Laval, intitulada: A Nova Razão do Mundo. Segundo os autores, o
neoliberalismo não é uma mera continuação do liberalismo clássico de
Adam Smith, John Stuart Mill e Jeremy Bentham. O liberalismo clássico
foi revolucionário na política ( contra o Estado absolutista e a
sociedade de ordens) e na economia (contra as restrições ao livre
movimento dos bens econômicos). Como diria Norberto Bobbio, o
neoliberalismo é uma forma de liberalismo: aberto para a economia, fechado
para a política. Segundo os franceses, o neoliberalismo tem de ser
pensado como uma nova forma de governabilidade
para o capitalismo de nossos tempos. Uma forma de governabilidade que
instaura a competição em todos os níveis da vida social e destrói todas
as motivações para a ação coletiva.
Os sindicatos, os movimentos
sociais, as igrejas todos perdem seus móveis para uma forma de política
coletiva,ao se instalar uma competição de todos contra todos. É uma
espécie de retomada do darwinismo social, a lei do mais forte, ou a
seleção natural. Se cada um for entregue a própria sorte, só restarão os
mais capazes. Lembra Nietzsche, na" Genealogia da Moral", as relações
de força governam a natureza e a sociedade. É lógico que o mais forte
domine o mais fraco. Não se compreende que não o faça. É contra a
natureza do mais forte. Por isto a figura de Cristo é incompreensível.
Quem já se viu um Deus que se deixa escravizar e morrer na cruz. Deus dos
escravos, diz ele, dos resignados e conformados. A lembrança do nome do
Nietzsche não é a toa. É a fonte de inspiração do mais influente
filósofo contemporâneo da crítica à modernidade: Michel Foucault e seu
conceito de bio política. A política do neoliberalismo é uma bio
política. Não se faz pela força, pela persuasão ou mesmo pela
argumentação racional. Faz-se pela escolha de quem deve viver e quem
deve morrer. Política bem exemplificada na saúde, na educação, na
seguridade social. A decisão soberana sobre a vida das pessoas não são
tomadas pelos parlamentos ou legisladores. Não. Ela é fielmente
executada na seleção cotidiana dos que sobreviverão a essa destruição da
rede de proteção social, legada pelo Estado de Bem-estar social. A bio política é
uma espécie de darwinismo social que decide, comanda, escolhe e
determina que vai viver, quem vai morrer.
Naturalmente, os pobres, os velhos, os
deficientes, as etnias residuais, os desempregados não terão mais lugar
no mundo, são populações supérfluas, podem e devem ser eliminadas.
Estamos diante daquilo que o professor Luciano Oliveira, louvando-se na
obra de Hannah Arendt, chamou de "neo-fascismo e neo-miséria". Os novos
miseráveis desse capitalismo selvagem não servem nem para exército de
reserva da mão-de-obra. São repugnantes e amedrontadores. Devem ser
excluídos. Pior é a mentalidade exterminadora que vai se formando entre
"os excluídos sociais". Eles compartilham também desse pensamento
antissocial, agora reforçado pelo credo de algumas igrejas evangélicas
que de cristã não tem nada. Forjou-se uma nova teologia, no lugar da teologia profética da libertação. É a teologia da
prosperidade: quanto mais você dá a Igreja, receberá em dobro. A
prosperidade material do crente é um presente de Deus, como dizem os
irmãos sorridentes da Igreja Universal.
A questão que fica é se é possível
contar o exército cada vez mais crescente desses trabalhadores de
aplicativo, uberizados, precários, autônomos, desempregados para a
organização de um novo movimento social?- Marx nunca alimentou
esperanças que viesse dessa turma alguma resistência. Achava mais fácil
se arregimentado por algum salvador da pátria ou um messias, sem
trocadilho. Mas no século 20, as coisas mudaram. Marcuse e Benjamin
foram os primeiros a dizer que só em nome dos desesperançados, se podiam
ainda alimentar esperanças. E os autores sociais contemporâneos apostam
que a metamorfose desse corpo fabril deve impor uma nova tipologia de
organização. Não é fácil organizar pessoas em condições tão desiguais. O movimento sindical só cresceu e tomou corpo
a partir da generalização da condição fabril (igual) dos
trabalhadores.
A heterogeneidade de base de novo exército se constitui
uma enorme dificuldade para qualquer esforço organizatório. Mais difícil
ainda é o diálogo dos sindicatos dos trabalhadores formais com esses
setores ou com os novos movimentos sociais e suas demandas identitárias
(gênero, etnia, orientação sexual, meio-ambiente etc,) O movimento
sindical é um movimento redistributivo clássico, cego às diferenças. Sua
prioridade é o que é igual. O debate com os novos movimentos é penoso e
cheio de desconfiança. Mas deve ser feito. Se me pedissem um formato
organizativo desses movimentos diria que o Fórum Social Mundial e as
jornadas globalização de Seattle e Davos poderiam servir de aproximação. Mas tem de
reconhecer que o fórum é plural, não tem uma única linha de ação, não
tem um único móvel e bandeira. Nem chefe nem centralização. Sua
estrutura flexível e frouxa é condição de sua existência.
Michel Zaidan Filho é filósofo, historiador, cientista político, professor titular da Universidade Federal de Pernambuco e coordenador do Núcleo de Estudos Eleitorais, Partidários e da Democracia - NEEPD-UFPE