pub-5238575981085443 CONTEXTO POLÍTICO.
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quinta-feira, 19 de novembro de 2020

Porque revoltas antirracistas espalham-se pelo mundo?

Por que revoltas antirracistas espalham-se pelo mundo Nem na morte de Luther King protestos foram tão imensos e globais. Agora, há dois caminhos. Entregar movimento a uma “vanguarda”, o que agradaria Trump; ou lançar, na esteira dos Panteras Negras, um programa de reformas estruturais OUTRASPALAVRAS DESCOLONIZAÇÕES por Italo Jardim Publicado 17/06/2020 às 16:37 - Atualizado 17/06/2020 às 16:53 Foram oito minutos e 46 segundos. Um episódio de tortura seguido do assassinato de George Floyd, de 46 anos, que trabalhava como segurança em um restaurante em Minneapolis, no estado de Minnesota, nos EUA. Ele foi abordado por policiais que responderam a uma chamada de suspeita de uso de cédulas de dinheiro falso na noite do último dia 25 de maio. Em seguida, um vídeo de 10 minutos, filmado por uma testemunha, mostra Floyd suplicando e dizendo repetidamente: “não consigo respirar”, para um policial branco. Ao ver as imagens da truculência e de abuso policial, é impossível não se indignar. A tragédia se soma a um rastro de sangue negro, derramado no decorrer da história. O assassinato de Floyd foi o ponto de ebulição para uma série de manifestações civis, marcadas por intensos e violentos confrontos entre revoltosos e a polícia americana, numa cidade que tem os maiores índices de disparidade socioeconômica entre negros e brancos nos EUA. São mais de 18 dias de protestos, mas nada disso começou agora. O histórico recente nos dá uma percepção. No dia 29 abril de 1992, um júri absolveu oficiais do Departamento de Polícia de Los Angeles, três brancos e um hispânico, acusados​​de agressão contra o motorista negro Rodney King, após uma perseguição em alta velocidade. A agressão dos policiais foi filmada. Milhares de pessoas na área de Los Angeles se revoltaram ao longo dos seis dias, após o veredito. Entre agosto e novembro de 2014, houve uma crise decorrente da violência racial. O policial que em agosto matou o jovem afro-americano desarmado Michael Brown, em Ferguson (Missouri), não enfrentou processo judicial. A decisão desencadeou uma nova onda de turbulência na cidade, incêndios, lançamentos de pedras e depredações de veículos. Michael Brown morreu no horário de almoço de um sábado, atingido por, pelo menos, seis disparos de Wilson, quando andava numa rua residencial com um amigo. A polícia afirma que houve uma luta entre os dois para pegar a arma, mas o amigo que acompanhava Brown diz que este ergueu os braços em sinal de rendição. Já em 19 de abril de 2015, o jovem negro Freddie Gray morreu sob custódia policial em Baltimore, Maryland, o que ocasionou um novo clamor contra os preconceitos e abusos da polícia dos Estados Unidos contra a população negra. As manifestações, que haviam começado de maneira pacífica, acabaram se transformando em fortes distúrbios por parte de um grupo de manifestantes, a sua maioria jovens. Nunca houve silêncio sobre os assassinatos e a truculência policial racista, embora essa violência contra negros seja permanente. Mas nunca se viu a propagação desses movimentos por todo o país e ao mesmo temp. Por tantos dias e com tendência a continuar crescendo. Algo mudou completamente, o assassinato de Floyd gerou uma insurreição que parece não ter hora para acabar. Algo que não se via em número, tamanho e expressão há mais de 50 anos. Aliás, muito maior que a manifestação após a morte do ativista político por direitos civis, Martin Luther King em 1969. Movimento ganha força meio à pandemia do novo coronavírus A crise social iniciada a partir do brutal assassinato de George Floyd acontece em meio à pandemia do novo coronavírus, no auge da disseminação do vírus, que já matou milhares de pessoas nos EUA e no mundo. A crise de saúde se soma à crise econômica, de características inéditas, que tende a se aprofundar nos próximos meses, e com toda a tensão política de um ano eleitoral norte-americano. O cenário é extremamente imprevisível do ponto de vista político. As manifestações foram crescendo dia a dia. Na terceira noite de protestos, quinta feira, 28 de maio, eles se concentraram na Terceira Delegacia de Minneapolis, que foi incendiada, espalhando-se por outras áreas da cidade. A revolta liderada pelos negros nas ruas de Minneapolis é alimentada pelo peso histórico de décadas de segregação e desigualdade. Apesar de sua reputação como um refúgio para a política progressista, Minneapolis é a área metropolitana mais segregada dos EUA. No domingo, 31 de maio, Trump passou pelo menos uma hora em um bunker subterrâneo durante os confrontos no lado de fora. O Exército patrulha as ruas na Califórnia. São mais de 40 cidades mobilizadas, ao menos 30 delas com toque de recolher e guarda nacional1 acionada (mecanismo utilizado somente durante a 2º guerra mundial). Depois de 11 dias seguidos, manifestantes ainda tomavam as ruas de muitas cidades e a Casa Branca tem sido um local de protestos diários. O clima de tensão diminuiu por alguns motivos, mas as manifestações são cada vez mais numerosas. Em um esforço permanente de combater o vandalismo e também uma mudança de postura das forças policiais no acompanhamento, que passaram a não intervir nas movimentações de forma direta, ao invés disso, policiais à paisana acompanham de longe, inclusive foram filmados episódios de solidariedade entre a polícia e os manifestantes. O impacto dos protestos no governo Trump O comportamento de Trump diante dos acontecimentos acirra ainda mais as relações políticas e causa a indignação de muitos. Em uma de suas declarações no Twitter, repete uma frase da década de 60, sugerindo atirar em manifestantes: “estes BANDIDOS estão desonrando a memória de George Floyd, e eu não deixarei que isso aconteça. Acabei de conversar com o governador Tim Waltz e disse que o Exército está com ele até o fim. Qualquer dificuldade e nós assumiremos o controle, mas quando começam os saques, começam os tiros”. A plataforma Twitter incluiu aviso de exaltação da violência na mensagem. Trump utiliza com rigor a tática da ultradireita em descrever os manifestantes como inimigos da nação. Em episódio inusitado, chegou a solicitar a retirada de manifestantes que estavam no entorno da Casa Branca para tirar uma foto na igreja, com a Bíblia estendida. Embora esse gesto sirva como performance orientada a sua base eleitoral conservadora, não parece estar surtindo efeito. Os manifestantes estão ganhando apoio popular durante os confrontos, aos gritos de “as ruas são nossas”. A tentativa de criminalização dos protestos, a exemplo de outros episódios da luta racial, desta vez teve dura resposta da sociedade americana. Pesquisas mostram que dois terços da população apoiam as manifestações. Algumas vitórias vêm ajudando o movimento a ganhar força e levar mais pessoas as ruas. No dia 4 de junho, o governador da cidade de Nova York suspendeu o toque de recolher. Disse que vai decretar um momento de silêncio em todo o estado, em memória de Floyd. Ele se mostrou preocupado com o avanço da pandemia do novo Coronavírus e pediu para que todas as pessoas que participam dos protestos façam teste para diagnosticar a Covid-19 e, para isso, ele vai aumentar a capacidade de testes em todo o estado. Além de tudo isso, Trump enfrenta dificuldades no próprio governo. Seu secretário de Defesa não concorda com a política de enfrentamento proposta pelo presidente. O chefe do Pentágono, Mark Esper, se distancia e rejeita o envio do Exército para conter protestos, afirmando que “medidas como essa devem ser usadas apenas como último recurso e nas situações mais urgentes e extremas”. É para além das fronteiras dos EUA A pandemia e a crise econômica desoladora que passa os EUA, que perdeu 20,5 milhões de postos de trabalho em abril e registra um índice de desemprego de 14,7%, o mais alto em mais de 70 anos, junto a ausência de respostas do Estado, geram respectivamente conclusões aos negros e os mais pobres, morrer de fome, doente ou pela bala da polícia. A partir da internacionalização dos protestos, como vem acontecendo em Paris e em algumas cidades do Brasil, por exemplo, são sintomas desse mesmo referencial de crise generalizada. Não são manifestações somente antirracistas, mas que também expressam o descontentamento com a maneira que se organiza a economia e a política mundialmente. Houve protesto antirracista, no dia 2, em Paris, na França, com confronto entre manifestantes e a polícia. O ato levou milhares de pessoas às ruas da capital. Outras cidades, como Marselha e Nantes, também tiveram protestos nas ruas. Os manifestantes se reuniram por cerca de duas horas em torno do tribunal de Paris em homenagem a George Floyd e a Adama Traoré, um homem negro francês que morreu sob custódia policial em 2016, segundo relato de seu irmão, suas últimas palavras foram as mesmas de George Floyd: “não consigo respirar”. Os jovens negros que se manifestam em Paris são filhos da imigração e do colonialismo francês, são também os que mais sofrem pela falta de condições e a desigualdade social. Na cidade canadense de Toronto, o protesto contra o racismo também foi em homenagem a Regis Korchinski-Paquet, um homem negro que morreu depois de cair de um prédio durante uma abordagem policial. Em Londres, o protesto pacífico foi no distrito de Peckham, na capital britânica. Os manifestantes gritavam “Justiça por George Floyd” e carregavam faixas e cartazes em sua homenagem. Em Berlim, na Alemanha, milhares de manifestantes se reuniram em frente à embaixada americana e espalharam a frase do movimento Black Lives Matter. No Brasil o efeito foi imediato. Protesto de comunidades e coletivos de favelas no palácio Guanabara no Rio de Janeiro e uma grande manifestação de torcidas organizadas pela democracia no MASP em São Paulo. Manifestações também em Curitiba e outras cidades. A solidariedade internacional ao movimento, a referência identitária do povo negro que se organiza e se manifesta em várias cidades e o descontentamento com a estrutura política e organizativa que mantém as desigualdades, são partes fundamentais da indignação que está em curso e começa a se espalhar pelo mundo. Seus impactos já são visíveis em muitos lugares. O debate sobre o racismo e os questionamentos políticos a procura de respostas aos antigos e novos problemas sociais ganham força nas ruas. A diáspora negra e a omissão de direitos à raça Não há forma responsável de iniciar uma reflexão sobre a importância das vidas negras e a jornada de manifestações que acontecem nos últimos dias nos EUA, sem compreendermos, ainda que brevemente, três elementos fundamentais que contextualizam historicamente a identidade negra em todo o planeta: a diáspora africana, o distintivo racial da negritude e a condição socioeconômica decorrente desse histórico de omissão de direitos. A diáspora africana, ou negra, como também é conhecida, se caracteriza pelo fenômeno de imigração de africanos, durante o tráfico transatlântico de escravizados. Junto com seres humanos, nestes fluxos forçados, embarcavam modos de vida, culturas, práticas religiosas, línguas e formas de organização política que acabaram por influenciar na construção das sociedades às quais os africanos escravizados tiveram como destino. Estima-se que, durante todo período do tráfico negreiro, aproximadamente 11 milhões de africanos foram transportados para as Américas. A condição socioeconômica dos negros nas Américas guarda peculiaridades de acordo com cada país, seu processo de libertação dos escravos e a política posterior aplicada. Nos EUA, por exemplo, como forma de manter a mão de obra e de dar um destino econômico à população negra – liberta, mas não socialmente incluída – foi adotada uma estratégia de criminalização da raça. Isso ocorria tanto por meio da comunicação – exibindo vídeos e propagandas nas quais negros configuravam como animais e estupradores – como no âmbito da justiça, pelo qual eram presos por motivos insignificantes. Uma vez presos, voltavam a servir como trabalhadores sem custo, praticamente voltando a ser escravos. Até hoje, as diferenças são gritantes entre negros e brancos, da condição salarial ao acesso à educação, passando pelos índices de violência. O privilégio branco está diretamente ligado à condição do negro na sociedade capitalista atual. Aquilo que nos identifica racialmente é fundamental para entender como as diferenças sociológicas se manifestam na realidade concreta. Por motivos óbvios, essa distinção pode ser relativizada por uma série de questões e negada por segmentos sociais historicamente privilegiados nessa relação. No entanto, é impossível não considerar que, a cor da pele nos remete imediatamente a alguma conformação identitária. Como disse W.E.B. Du Bois o líder mais importante nos primeiros anos do movimento norte-americano pelos direitos civis, no início do século XX: “mesmo as características físicas incluindo a cor da pele, são resultados diretos, em medida considerável, do ambiente físico e social. Além disso, são indefinidos e fugazes demais”. Baseado nisso, em autobiografia, o autor abandona a definição científica de raça em prol do fato de que ele escreve sobre africanos, e que africanos e afrodescendentes têm o que chama de ancestralidade racial em comum, porque: — é importante notá-lo — “têm uma história em comum, sofreram um mesmo desastre e têm uma única e longa memória de desastre”. Porque a cor, embora pouco significativa em si, é importante — Du Bois afirma — “como distintivo da herança social da escravidão, da disseminação e do insulto dessa experiência.” Um distintivo, uma insígnia, uma marca. Aqui está a ideia de que raça é um significante, em outras palavras, o significado racial da negritude se encontra na memória e na realidade vivida da sua história, dos acontecimentos e seus resultantes no tempo presente. O mesmo distintivo social que liga George Floyd de Minneapolis a João Pedro em São Gonçalo, é a identidade que orienta também todo o povo negro das Américas. A luta por direitos civis nas décadas de 1950 e 1960 O Movimento pelos Direitos Civis é o nome que se dá à luta dos negros norte-americanos por esses direitos, especialmente nas décadas de 1950 e 1960. Nos Estados Unidos, os direitos civis de muitos negros foram negados em sua totalidade por quase cem anos após o fim da escravidão. Revisitar esse período de destaque do movimento Negro dos EUA, é parte da tarefa desafiadora, de compreender a história de luta do povo negro e sua trajetória incansável por igualdade racial. Alguns dos episódios de uma extensa cronologia do Movimento por Direitos Civis nos Estados Unidos nesse período2: 1955 – Rosa Parks lançou a bem-sucedida Campanha de Boicote de ônibus em Montgomery, Alabama. 1961 – Um grupo chamado Congresso da Igualdade Racial organizou uma Viagem de Liberdade, transportando 500 brancos e negros do Norte em ônibus para, simbolicamente, quebrar a segregação no transporte público. A polícia local e brancos racistas responderam com violência brutal. 1963 – Em agosto, CORE, NAACP, SNCC, SCLC e vários sindicatos organizaram a Marcha por Emprego e Liberdade de 200 mil pessoas em Washington em frente ao Memorial a Lincoln. 1964 – O Congresso e o Senado aprovaram a Lei dos Direitos Civis proibindo segregação em educação e serviços públicos. Entre 1964-1969 ocorrem 341 rebeliões urbanas em 265 cidades deixando 221 mortos, em grande parte, negros. No mesmo ano Luther King ganhou o Prêmio Nobel de Paz. 1965 – O Congresso e Senado aprovaram a Lei do Direito de Voto proibindo discriminação no processo eleitoral. Malcolm X foi assassinado em Nova York. O Movimento pela Liberdade em Chicago foi lançado pela SCLC e Luther King para acabar com discriminação em habitação e emprego dos negros nas cidades nortistas. Luther King critica o governo de Lyndon Johnson sobre a guerra no Vietnã. 1966 – O Partido dos Panteras Negras foi fundado na Califórnia e o movimento “Black Power” começa eclipsar o convencional movimento por direitos civis liderado por Luther King. 1968 – Luther King foi assassinado em Memphis. Capítulo importante da História do Movimento negro americano foi a criação do Partido dos Panteras Negras para Autodefesa, conhecido como o Partido dos Panteras Negras, fundado em 1966, por Huey Newton e Bobby Seale que criaram essa organização nacional como forma de combater coletivamente a opressão dos brancos. A violência policial com os negros era recorrente na revista por todo o país. Os Panteras Negras sintetizaram seus objetivos em um programa com 10 pontos que incluíaliberdade, terra, habitação, emprego e educação. Sua contribuição influenciou enormemente as movimentações em vários países do mundo e foi decisiva para a conformação do movimento negro e seu caráter estético, político e cultural até os dias de hoje. O mar da História está agitado A diáspora negra começa a se levantar e está mais viva hoje do que em qualquer dia do passado. George Floyd não está mais entre nós, mas a memória de luta do povo negro encontrou um novo ponto humanitário e simbólico de unidade, que canaliza a indignação social diante de toda essa violência. Este é certamente um novo capítulo da história do movimento negro que pode transbordar as relações sociais e étnicorraciais por mudanças estruturais em todo o globo. São muitos os casos como o de George Floyd pelo mundo, no Brasil o último com visibilidade foi adolescente João Pedro, de 14 anos, que teve sua casa crivada com mais de 70 balas de fuzil na cidade de São Gonçalo, no estado do Rio de Janeiro. O caso Marielle, conhecido mundialmente segue sem justiça há mais de 2 anos. Imagens dos EUA mostram uma palavra de ordem nas ruas das capitais: No Just, no Peace, que em tradução livre significa “Sem Justiça, sem paz”. A luta antirracista precisa ver respostas e, ao que tudo indica, seguirá nas ruas enquanto não as conseguir. Ainda que os poderosos quisessem verdadeiramente ajudar na resolução dos problemas sociais, sobretudo na desigualdade racial, não se trata apenas de uma vontade política, Trump representa a manutenção dos resultados políticos e econômicos, fruto das contradições e da desesperança por uma vida melhor. É a revolta e o ódio organizado por um programa conservador, que em nada se preocupa com negros, latinos ou imigrantes. Mas a dinâmica não para por aí. As instituições têm um limite até mesmo na perspectiva de atender as demandas antirracistas, pois comprometeria a estrutura capitalista do Estado, que se alimenta e mantém essa desigualdade porque lucra com isso. Há um embate inevitável com o comitê gestor do capitalismo e a essência excludente do sistema. Uma chave parece estar virando, ao menos dentro do coração do imperialismo. Abre-se um novo tempo de possibilidades e lutas pelo mundo. O caráter antirracista, combinado a indignação do povo com questionamentos sobre as formas de organização política e econômica começam a tomar conta dos debates cotidianos, ganhando forma e potencial de transformação. Na medida em que a crise econômica se aprofunda, diante de tanta desigualdade potencializada pela situação crítica que passa o mundo, somente a organização do povo poderá arrancar vitórias expressivas e salvar vidas. Há dois caminhos para a rebelião negra norte-americana. Perder força social para os substitucionistas – os que tentam substituir as maiorias por suas supostas vanguardas –, transformando as ruas em um campo de guerra. Isso justificaria a já anunciada política de Donald Trump em fazer um combate aberto, criminalizando os protestos e tratando os manifestantes como bandidos. Esse cenário poderia fortalecer Trump repetindo, guardadas as devidas proporções, o ano de 1969, no qual, após o assassinato de Martin Luther King, foi acionada a Lei de Insurreição – criada em 1807 e que prevê o recurso ao Exército em casos de extrema gravidade e ameaça de ordem pública. Após esse acontecimento histórico, os EUA elegeram Richard Nixon como presidente sob o lema “lei e ordem”. A outra via é apostar na organização do povo e no diálogo com as massas. Ampliar as manifestações de rua, vencer a tentativa de substitucionismo da pauta, combatendo os infiltrados, como vêm fazendo, para atingir maioria social capaz de emparedar o governo. E a partir da construção de um programa de exigências, como deixou de legado o Partido dos Panteras Negras e seus 10 pontos, arrancar reformas estruturais, elevando o nível de consciência, enviando uma mensagem a toda diáspora negra e ao povo explorado e oprimido pelo mundo. 1 A guarda nacional possui 13 mil soldados (Uma força convocada em situações excepcionais) Minnesota foi ativada com a justificativa de conter os “anfifas” infiltrados. 2 http://anphlac.fflch.usp.br/direitos-civis-eua-cronologia (PUblicado originalmente no site Outras Palavras)

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quarta-feira, 18 de novembro de 2020

O pacto de morte do racismo

Em entrevista, Cida Bento compartilha reflexões sobre a questão racial e sua produção acadêmica e atuação na sociedade civil Carine Nascimento 12nov2020 06h10 (17nov2020 12h18) articles-zIClOuebFQ52Ibw Na versão mais conhecida do mito grego, Narciso é um rapaz que, ao se banhar em um lago, vê sua imagem refletida na água e se apaixona por ela. Para não abandonar a figura amada, o rapaz passa dias a fio ao lado do lago, definhando sem alimento, até que, em uma tentativa de alcançar a criatura, ele se lança ao lago e morre, afogado. É nessa figura mitológica e no estudo que Freud fez sobre ela que se fundamenta o conceito de “pactos narcísicos no racismo", elaborado por Maria Aparecida Bento, doutora em psicologia e diretora-executiva do Centro de Estudos das Relações de Trabalho e Desigualdades (CEERT). Mais conhecida como Cida Bento, ela fundou essa organização ao lado de Hédio Silva Jr., doutor em direito e advogado das Religiões Afro-brasileiras no Supremo Tribunal Federal (STF), e de Ivair Augusto Alves dos Santos, doutor em sociologia. Ao lado de Robin DiAngelo, pesquisadora estadunidense e autora do livro Não basta não ser racista: sejamos antirracistas (Faro Editorial, 2020), Cida Bento foi uma das participantes da mesa de abertura do encontro Branquitude: racismo e antirracismo, realizado pelo Instituto Ibirapitanga nos dias 26, 27 e 28 de outubro. Durante sua fala, Bento abordou os pactos narcísicos no racismo, conceito desenvolvido em sua tese de doutorado, defendida em 2002. Por ocasião do evento, ela concedeu entrevista à Quatro Cinco Um, na qual explica como esse conceito contribui para compreender a questão racial no Brasil. O que são os pactos narcísicos e como eles operam? O racismo institucional vai se entranhando nas regras e processos, até que estes automaticamente excluam os não brancos, pois quem pensa esses processos são os brancos. Eles são as grandes lideranças de qualquer instituição, seja ela pública, privada, do terceiro setor, revolucionária do movimento sindical ou de empregadores. Os homens brancos são maioria na direção dessas instituições que não são neutras, funcionam a partir da perspectiva de quem as lidera. Então o Judiciário, o Executivo, o Legislativo, é tudo de gente branca; o sujeito pode ser muito racista, ou nada racista, mas a manutenção dos privilégios para assegurar a sua perspectiva de mundo está colocada. Eu sempre digo, branquitude não é transparência, é posicionamento, é visão de mundo - então nas instituições e na sociedade civil se estabelecem regras a partir de uma perspectiva branca. O pacto narcísico é essa perspectiva que favorece, que fortalece, que protege, que assegura privilégios para o branco à medida que reserva os melhores espaços institucionais para ele, independente da intencionalidade. Se uma pessoa branca que faz uma seleção para cargo de direção ou para estagiário, por exemplo, tiver cinco candidatos ao final de um processo, a tendência dela é confiar mais nas pessoas brancas que estão nessa etapa. Ele [o pacto] não é uma coisa instintiva, mas fala de uma grande cumplicidade, que faz com que o branco acredite no outro branco, ache que o outro branco é realmente mais bonito, que aquele cabelo é o que funciona bem dentro de instituições, que aquela pessoa branca vai seguir as regras, vai assegurar que tudo funcione direito. Por isso esta confiabilidade no branco e essa tendência a trazer outros iguais para o seu entorno, para lugares onde a competência, segundo o conceito da instituição, precisa estar assegurada. Então o pacto narcísico é fortalecimento, é proteção, é assegurar lugar de privilégio para os iguais. E nesse conceito de iguais, ele é pacto de morte. Quando você estuda Freud, você tem o narcisismo de morte, porque o que é igual e monolítico não é gerador de vida, de energia criativa, de inventividade, é sempre mais do mesmo. Esse pacto de morte é tipicamente o que estamos vendo na sociedade: um monte de cabeças masculinas brancas pensando tudo, que leva o país a ser um dos que mais tem mortes pela Covid-19, o país que mais mata negros, o país do genocídio da juventude negra, que tem um grande percentual de morte de mulheres e de indígenas. Então, tudo o que não é masculino e branco fica mais fragilizado, porque não tem voz nenhuma. Nosso país é uma árvore torta na qual só um lado define tudo. A partir desta sua análise, é possível dizer que quando a gente mata a juventude negra, mata também a possibilidade de outras soluções para o país? Exatamente. Eu trabalho com o conceito de personalidade autoritária e de medo que está naquele segmento que concebeu apenas um tipo jeito de ser bem-sucedido. Quando eu estou em grandes corporações, entro em espaços em que os homens nem precisam afrouxar a gravata, tão bem climatizado é o escritório em que as janelas não abrem, e você não ouve as pessoas caminhando, tão bem colocado está o carpete; e o conceito de sucesso é passar dias, semanas, meses e anos inteiros naquele ambiente fechado, onde o ar nem chega. Então, esse conceito exige um grande aprisionamento de tudo o que não está morto, de tudo o que tem vida ainda e de tudo o que desvia deste padrão: a sexualidade, a agressividade, a inventividade. Tudo que está em outra dimensão está aprisionado, e quem tem isso preso em si próprio fica muito desconfortável em ver o outro que, mesmo sem nada, andando descalço na favela, está cheio de dúvida, tem um corpo que umedece, que sua e que tem toda a sua vivacidade - aquilo desconforta porque o sujeito prendeu tudo o que ele tinha, tudo o que ele pôde, e a sexualidade dele acaba aparecendo na perversidade ou na repetição de todo dia. Por outro lado, temos aquela mulher, aquele homem, que ainda ama a natureza, que cuida da natureza, que batalha pela preservação, que não acha que tem que matar um monte de gente para ser bem-sucedido, que tem outra perspectiva. Então, o segmento que tem essa visão de buscar “assegurar os bons costumes” — que é da direita, da extrema direita e dos conservadores, na qual as armas são usadas em nome da Bíblia —, fica muito incomodado com a vida que se manifesta em quem não tem esse conceito de desenvolvimento, de sociedade, de sucesso, de mundo. Mulheres negras incomodam, mulheres indígenas incomodam, esses cabelos revoltos, vermelhos, essas roupas coloridas, tudo vai incomodar quem concebeu o mundo bem-sucedido aprisionando tudo que saia desses conformes. Que aproximações você enxerga entre o termo “fragilidade branca”, da Robin DiAngelo, e o conceito de pactos narcísicos? Enxergo muitas aproximações. Como eu disse, trabalho com o conceito de personalidade autoritária, que é um conceito que a partir da psicologia estuda as ideologias políticas, e nele tem uma frase que diz o seguinte: “Mata-se o outro porque o outro representa o que é nosso e que não podemos suportar dentro de nós”, o outro é assassinado porque é insuportável ver aquilo que é nosso, e que está dentro de nós, se explicitar no outro. Então, onde está a fragilidade branca? A fragilidade branca está na dificuldade de entrar em contato com a sua condição humana. Quando você tem a branquitude e o conceito de supremacismo branco, que impede aquele segmento de entrar em contato com a sua fragilidade porque ele prega a supremacia branca, essas pessoas não veem seus pés de barro ou não percebem a sua condição humana. Então é difícil entrar em contato com a sua dúvida, com a sua fraqueza, com a sua sensibilidade, com a sua reflexão sobre o mundo. Tudo isso vira “mimimi”, “vamos ser pragmáticos, buscar dinheiro, tempo é dinheiro”, a fragilidade vem pela dificuldade de entrar em contato com a sua condição humana. O supremacismo faz isso. Ciclo de debates discute o papel e os limites dos brancos na luta contra o racismo A DiAngelo traz essa questão, com a qual eu me deparo frequentemente quando estou com os brancos antirracistas. Neste momento, nós estamos simultaneamente em 25 instituições, eu trabalho frequentemente com pessoas brancas que querem transformar suas instituições em instituições mais plurais e diversas, e não há nenhum passo anterior àquele que é a pessoa reconhecer o diferencial que é ser branco, objetivamente, nas estatísticas, na condição econômica, financeira, no lugar de privilégio, mas também reconhecer o desconforto do branco com o negro, com a negra, com o indígena que ainda está pautado em outros valores, em outro conceito de sociedade, de desenvolvimento, em outra relação com os corpos e com a natureza. A fragilidade branca é o pensamento único sobre tudo e ela é irmã de primeira hora do fascismo; este conceito que está no coração da personalidade autoritária, que é matar tudo aquilo que não é “o que nós somos e para onde queremos levar a nossa sociedade”. Então a pergunta que não cala é: por que homens brancos com mais de cinquenta anos, que são as grandes lideranças das instituições brasileiras, contribuem ativamente para o assassinato da juventude negra, dos indígenas, das mulheres, das mulheres negras, se omitem diante disso? Por exemplo, geralmente quando uma mulher é assassinada é porque o seu ex quer voltar, mas ela não. Porque ela, muitas vezes sem ter nada, sem saber como vai construir sua vida, sem ter recursos, já disse: “eu não vou mais ficar com você”. O homem pensa: “como assim não vai mais ficar comigo?”, e ela responde novamente: “não vou, estou indo embora”. Ele não concebe isso, se pergunta “como assim ela escolheu ser livre, independente, muitas vezes sem ter nada, sem ter segurança?” Então o enfrentamento da condição humana, o reconhecimento de seus desafios, muitas vezes está por trás da fragilidade branca. O CEERT foi fundado em 1990, e você defendeu sua tese de doutorado em 2002. Como a sua atuação no Centro ajudou você na concepção desse trabalho? Ao falar disso é importante lembrar que trinta anos não são pouca coisa. Três lideranças de áreas diferentes, mas vinculadas ao mercado de trabalho, se juntaram no CEERT: eu, que vinha da área de recursos humanos de empresas; Hédio Silva Jr., que era liderança sindical; e Ivair Augusto Alves dos Santos, que vinha da área de políticas públicas. Então esse tripé – movimento sindical, empresa e poder público – é fundamental para pensar o trabalho do Centro. Nós trabalhávamos no Conselho da Comunidade Negra de São Paulo, que foi o primeiro, depois dele vieram centenas pelo país inteiro. Nessa época, eu estava fazendo meu mestrado, estava ouvindo trabalhadores e trabalhadoras negras dentro de instituições para saber como se operacionalizava a discriminação. Depois do mestrado, ouvi chefes e profissionais de RH, mas dentro de um mesmo projeto; primeiro eu ouvi os trabalhadores sobre como era a discriminação no recrutamento, na seleção, na promoção, na demissão, e depois ouvi os brancos, chefes de recursos humanos e chefias intermediárias. A ideia foi construída desse jeito. Os trabalhos do CEERT, que começaram no conselho da comunidade, foram um suporte fundamental para esse conceito, pois quando você vai trabalhar com o movimento sindical, mesmo de esquerda, você está falando com brancos que também têm uma perspectiva que não considera a branquitude. Quando você vai falar com o Estado, você tem uma perspectiva de que as políticas para pobres já contemplam políticas para negros. As empresas tinham um discurso muito embrionário, mas o primeiro encontro que nós três fizemos com elas foi antes da década de 1990; já naquele período, com essas três forças, a gente discutia o perfil da força de trabalho, as diferenças de cargo, de salário, de oportunidade, e tivemos muitas ações de impacto. Denunciar o Brasil em 1992 foi uma ação bem importante, porque a denúncia apresentada pela Central Única dos Trabalhadores (CUT) e preparada por nós, junto com outras centrais sindicais e organizações do movimento negro, deflagrou vários processos. O governo brasileiro, através do Ministério do Trabalho [extinto em 2019], desenvolve uma série de ações para implementar a Convenção 111, por exemplo, que se referia à equidade na ocupação de empregos. Isso vem deste tempo, e foram criados núcleos em vários estados brasileiros, nas delegacias regionais do trabalho, para poder lidar com essa questão da diversidade e da equidade. Além disso, naquela época havia a pressão para se colocar o dado por raça na Relação Anual de Informações Sociais (Rais) e no Cadastro Geral de Empregados e Desempregados (Caged), que são de preenchimento obrigatório pelas empresas, mas nós não tínhamos esse dado. No movimento sindical, esses debates ajudaram a deflagrar a formação de núcleos que trabalhavam com este tema em todo o país, em várias categorias. Nós fizemos a primeira cláusula de promoção da equidade racial assinada nos acordos coletivos de trabalho, depois ela originou outras ações e cláusulas, mas ainda é muito pouco. Em 1996, começou o trabalho dentro das empresas, de fazer diagnóstico com censo de diversidade, fazer o trabalho com as lideranças e com as áreas estratégicas para mudar processos e programas, ou seja, mudar a instituição por dentro, verificar onde ela pode alterar seus processos para ficar mais equitativa. No campo da educação, produzimos muitos programas de formação de professores e lançamos o Prêmio Educar para a Igualdade Racial um ano antes da lei nº 10.639/2003 [que inclui no currículo escolar a obrigatoriedade do ensino de história e cultura afro-brasileira], e dá outras providências. Começamos a coletar práticas pedagógicas e de gestão de professores que trabalhavam a questão racial em sala de aula, que veio perpassando a nossa história; ao longo dos anos, chegamos a coletar mais de 3 mil práticas de 1.100 municípios brasileiros. Durante todo esse processo, fomos aprendendo sobre o lugar diferente de branco, porque quando você está trabalhando em um instituição, seja ela o MEC (Ministério da Educação), seja uma empresa, seja um sindicato, você sempre está falando com lideranças brancas, e elas sempre têm uma maneira de reagir àquilo que você está trazendo. Neste momento, em que há uma demanda pelo debate racial, você acredita que as pessoas estão buscando ser antirracistas sem romper com esse pacto? Algumas sim, não todas. Tem muita gente neste processo, em diferentes graus, em diferentes níveis e em diferentes ritmos. Mas eu acredito nessa mudança, não acho que estamos vivendo um modismo, de jeito nenhum. Trabalhando com grandes instituições há muitos anos, consigo perceber que nelas eu sempre encontro pessoas que não querem trabalhar esse tema, mas também encontro pessoas brancas que querem sim, só que muitas vezes ainda não se veem preparadas nem para reconhecer o seu privilégio. Por isso, acho que o trabalho institucional não é essa coisa de fazer um diagnóstico, uma palestra, um curso na melhor instituição do país sobre racismo, não se trata disso. Ajuda, mas o que você precisa fazer é exercitar com a pessoa, no espaço em que ela está, pensar uma atitude antirracista. É exercício dela, porque ela precisa se deparar com seus próprios conceitos de que aquilo que ela vive não é só resultado de mérito próprio, há uma história que faz homens brancos serem as principais lideranças das instituições brasileiras. A filósofa Djamila Ribeiro aponta caminhos construtivos para uma sociedade menos desigual Então, esse repensar “claro que eu tive mérito, eu lutei, eu estudava até de madrugada, para conseguir entrar na melhor universidade do país”… Bom, mas muitas vezes uma mulher ou um jovem negro, que também ficou estudando até de madrugada, não conseguiu aquele melhor emprego. Existe algo além do mérito, existe uma história que jogou cada grupo em seu lugar. O grande desafio é trazer o branco para dentro da história, porque ele foi pensado para “ver se dá uma forcinha para essa negrada, faminta, empobrecida”, como se ele não fizesse parte dessa história. Sempre digo que tudo começou para mim quando eu estava com o movimento sindical e as lideranças revolucionárias falavam: “A situação dos trabalhadores e trabalhadoras negras é uma decorrência da escravidão”, e a pergunta era “Qual é decorrência para os brancos? qual é a sua herança da escravidão?”. A resposta que recebíamos era: “Eu não fui escravocrata”. Bem, eu dizia que também não fui escravizada, mas que herança o meu segmento traz disso e o seu segmento traz disso? É preciso colocar o branco na história. Falamos muito do legado da escravatura para os negros. Existe um legado da escravatura para os brancos? A condição de superioridade, que está liderando todas as organizações brasileiras, públicas e privadas. Ter tido mais acesso à terra, ao trabalho, ao acolhimento, se pensarmos nos imigrantes – que, embora trabalhassem, tiveram um tipo de recepção pelo país que foi um empurrãozinho da meritocracia. Assim como a condição dos negros hoje tem a ver não só com o racismo de hoje, mas com a história do país, a situação do branco hoje tem a ver não só com o que ele é hoje, mas também com o que seus antepassados brancos vivenciaram e acumularam simbólica e concretamente. É sempre importante lembrar que o pacto narcísico é um instrumento de dominação, porque às vezes as pessoas pensam que ele se refere “a um monte de grupo de iguais”, como as mulheres negras, por exemplo, como se fosse algo relacionado a um pacto de igualdade. No entanto, o pacto narcísico diz respeito a quem tem um mundo construído para si, que atende a si próprio e que perpetua seu segmento numa condição de dominação. Por isso ele tem similaridades com a masculinidade, com a cisgeneridade, porque a sociedade funciona como se só existissem esses segmentos e os demais têm de ficar pressionando para serem considerados parte da sociedade; eles são parte, mas tudo caminha como se apenas os segmentos-padrão fossem os segmentos sociais. Vejamos como exemplo uma pessoa com deficiência, pense em um cadeirante. Imagine que eu estou num ônibus, ele para — e eu estava com pressa —, o motorista desce, opera o elevador, sobe com o cadeirante, vai até o espaço adequado, coloca o cinto de segurança nesse cadeirante e só depois ele volta a dirigir. Quem estava ali com pressa sabia que isso era possível, mas quem está numa sociedade onde a pessoa com deficiência não tem lugar, pensa “Nossa! Que demora, para que isso?”. Isto acontece porque a pessoa está acostumada com um mundo que funciona só para ela, é esse o conceito da branquitude e da masculinidade neste lugar em que o mundo funciona para atendê-los, porque eles estão na liderança e constroem tudo desse jeito. Por que você faz essa leitura de que o que estamos testemunhando não é um modismo? Porque não vem de agora e porque, com todos os desafios que estão colocados, esse movimento vem de muita luta, em uma conquista consistente; nós temos que mudar o país e não o estamos mudando apenas para nós, mas para toda a sociedade, tornando-o mais democrático. Quando vem esse tipo de debate, sobre como as instituições são bolhas brancas em um país tão diverso, podemos entender que a gente está dando passos muito concretos e esses debates não param. Além disso, há uma reação branca que não para de crescer, porque eles estão desesperados que nós estamos explicitando a apropriação e a dominação que eles praticaram por mais de quinhentos anos. Isso não quer dizer que todo branco é dominador, mas todos os dominadores foram ou são brancos. [Achille] Mbembe e [Frantz] Fanon já falavam que os brancos têm consciência da expropriação que foi feita com os negros, então quando a voz negra cresce, começa a apontar e a estar nos mesmos lugares, há um sentimento de ameaça muito grande, que eles respondem armando mais a polícia e resistindo à entrada negra nas instituições, de todas as formas possíveis. Você acha que essa onda conservadora que estamos vivenciando tem relação com isso? Tem. Ao mesmo tempo, crescem as vozes brancas em todo o país que buscam se juntar às vozes negras para enfrentar a mudança que a sociedade brasileira precisa fazer. Então, não significa que tivemos uma sensibilizada geral repentina, isso é reflexo da ação do movimento negro de muito tempo, é uma impaciência que está na voz das mulheres negras, da juventude negra, das pessoas que têm uma longa trajetória no movimento. Está todo mundo muito impaciente, todos se perguntam: “Quando é que vocês vão se mexer? Até quando vamos ficar nessa situação?” Cresce também o número de instituições que se sentem desconfortáveis em serem hegemonicamente brancas. Assim, eu não tenho dúvidas que isso veio para ficar. Existe um debate e uma tensão que não vão voltar atrás agora, para que os brancos fiquem todos sossegados e os pretos esqueçam tudo, isso não existe; podemos vivenciar momentos de mais tensão, momentos de recuo, mas o processo está em andamento, e eu vejo isso em muitas instituições por onde passo. Há um tensionamento, uma discordância, mas elas não param de caminhar. (Publicado originalmente no site da Quatro Cinco Um, a revista dos livros)

No terreiro da Bodega - Conversa com Dona Lia

O que diz o maior estudo sobre imunidade à Covid-19

O que diz o maior estudo sobre imunidade à covid 90% dos que contraíram o vírus parecem desenvolver defesa duradoura contra reinfecção. E mais: governo não tem planos contra segunda onda, reafirma o ministério da Economia. Alastra-se, na Polônia, revolta contra fundamentalismo OUTRASAÚDE NEWSLETTER DO DIA por Maíra Mathias e Raquel Torres Publicado 18/11/2020 às 08:13 - Atualizado 18/11/2020 às 10:36 Células T atacam uma célula infectada. Parte importante da defesa imunológica humana, as células T parecem perdurar em grande número, nos pacientes infectados pela covid ASSINE DE GRAÇA Esta é a edição do dia 18 de novembro da nossa newsletter diária: um resumo interpretado das principais notícias sobre saúde do dia. Para recebê-la toda manhã em seu e-mail, é só clicar aqui. O ESTUDO MAIS ABRANGENTE Quanto tempo dura a imunidade ao novo coronavírus? Ninguém sabe ao certo, mas um estudo publicado online ontem é, segundo o New York Times, o mais abrangente e de longo alcance já feito a esse respeito. Traz boas perspectivas: oito meses após a infecção, a maior parte das pessoas ainda parece ter células imunológicas suficientes para responder ao vírus e se proteger da covid-19. Mesmo que o nível de anticorpos caia um pouco, como tem sido relatado em várias pesquisas. Foram analisadas 185 pessoas de 19 a 81 anos que tiveram covid-19 (a maioria com sintomas leves), e os cientistas procuraram ao mesmo tempo por quatro componentes do sistema imunológico: anticorpos, células B (que produzem mais anticorpos quando necessário), e ainda dois tipos de células T, que destroem células infectadas. Viram que normalmente havia reduções modestas nos anticorpos após seis a oito meses (e essa queda foi muito heterogênea, variando até 200 vezes entre os participantes), enquanto as células T mostraram uma queda muito leve e lenta. A surpresa ficou por conta das células B, que aumentaram em número. Os pesquisadores ainda não sabem o porquê. Essas informações ainda não são suficientes para prever a duração da imunidade, porque não se conhecem os níveis de cada célula imunológica necessários para garantir a proteção. Mas sua duração em níveis altos é uma boa coisa, e essa memória imunológica “provavelmente impediria a maioria das pessoas de contrair doenças hospitalizáveis, doenças graves, por muitos anos”, segundo disse o co-líder do estudo Shane Crotty, virologista do Instituto de Imunologia La Jolla, ao NYT. Os olhos brilham quando o vemos falar em “muitos anos”, mas é preciso atentar também para a expressão “maioria das pessoas”. Isso porque cerca de 10% dos participantes do estudo não apresentaram uma proteção tão robusta. Segundo Crotty, isso levou à conclusão de que “pelo menos uma fração da população infectada com SARS-CoV-2 com memória imunológica particularmente baixa seja suscetível à infecção de forma relativamente rápida”. Precisamos também acrescentar que em nenhum momento o estudo aponta para a viabilidade de se pensar em imunidade coletiva por via das infecções. Não custa repetir: no caso da covid-19, deixar a população se infectar a esse ponto significa aceitar mortes em massa. O trabalho ainda não foi revisado por pares, mas “bate” com evidências de outros estudos recentes (por exemplo este, este e este). Já comentamos alguns deles por aqui, como o que mostra que sobreviventes de SARS ainda carregam células T mesmo 17 anos depois da infecção. Ao mesmo tempo, é consistente com os poucos casos de reinfecção já relatados. CONTRA TODAS AS EVIDÊNCIAS Na semana passada falamos de como os técnicos do Ministério da Economia rechaçam a possibilidade de a pandemia recrudescer no Brasil porque acreditam que vários estados já alcançaram a imunidade “de rebanho”. A aposta é um tanto frágil, porque se baseia em estudos que mostram 20% de infecções em certos estados – um percentual alto o suficiente para provocar muitas mortes e crise nos sistemas de saúde, mas baixo para garantir imunidade coletiva. Mas a pasta não tem nenhuma reserva em reconhecer publicamente esse palpite mais do que duvidoso: “Vários estados já atingiram ou estão próximos de atingir imunidade de rebanho. Acho baixíssima a probabilidade de segunda onda“, disse o secretário de Política Econômica do ministério, Adolfo Sachsida. A Folha obteve o tal estudo no qual eles se baseiam. É um um artigo publicado por três integrantes da Secretaria de Política Econômica pela UFPel que trata da subnotificação de casos de covid-19 no Brasil, e estima que a taxa de infectados pode variar de 5,8% no Rio Grande do Sul a 30% em Roraima. Questionado sobre se haveria um plano a ser adotado em caso de nova onda, Sachsida se absteve de responder porque se trata de uma pergunta “hipotética”… É verdade que alguns pesquisadores já chegaram a aventar a possibilidade de uma proteção coletiva com um percentual relativamente baixo de infecções, mas isso nunca foi consenso. E agora a tese parece ter caído por terra, com locais que já foram atingidos em cheio pelo coronavírus e começam a se ver em maus lençóis de novo. No Brasil, o maior exemplo disso é o Amazonas, que já precisou reabrir leitos de UTI depois do aumento recente nas hospitalizações e mortes. Lá fora, a Suécia teve um crescimento de sete vezes nas internações em relação a outubro e suas UTIs estão 70% cheias. Destacamos ontem como o governo, que sempre se baseou só em recomendações de distanciamento e não em imposições, colocou regras mais rígidas pela primeira vez, proibindo reuniões públicas com mais de oito pessoas. “Não vão à academia, não vão à biblioteca, não organizem jantares. Cancelem“, implorou à população o primeiro-ministro Stefan Lofven. RAMPA DE INCERTEZAS O Brasil registrou ontem 676 mortes em 24 horas – os números nos últimos dias têm sido muito superiores aos que vinham sendo observados antes, mas é difícil dizer o quanto disso ainda se deve ao apagão de dados que gerou o represamento dos registros em alguns estados. A média de mortes dos últimos sete dias ficou em 557, utrapassando as 500 pela primeira vez no mês. É um aumento de 52% em relação a 14 dias atrás. O aumento pode ser porque o apagão baixou a média nas duas últimas semanas e, depois que ele acabou, concentrou registros nos últimos dias. Da mesma forma, se os números diminuírem em breve, não saberemos se houve redução real ou só o fim dos registros atrasados. Em várias cidades e estados, porém, a piora é visível. Já mencionamos o Amazonas, onde o número de hospitalizações por dia dobrou de outubro para novembro. Em Santa Catarina, os principais hospitais públicos e privados de Florianópolis estão com 90% de suas UTIs cheias. No Paraná, Curitiba está perto do seu recorde diário de casos e a prefeitura suspendeu cirurgias eletivas por tempo indeterminado. ATAQUE À OMS Jair Bolsonaro parece querer seguir adiante com o bastão de Trump, disseminando dúvidas sobre a atuação da Organização Mundial da Saúde, enquanto enaltece a sua própria. “Desde o início também critiquei a politização do vírus e o pretenso monopólio do conhecimento por parte da OMS, Organização Mundial da Saúde, que necessita urgentemente sim de reformas“, declarou ontem durante a cúpula do Brics. “Temos que reconhecer a realidade de que não foram os organismos internacionais que superaram desafios, mas sim a coordenação entre os nossos países”, disse o presidente da segunda nação com mais mortes por covid-19 do planeta que, dentre tantas declarações, recentemente afirmou que “tudo agora é pandemia” e o Brasil “tem que deixar de ser um país de maricas”… SEM MARCO INICIAL O G1 fez um bom trabalho de compilação sobre o que se sabe – e o que se especula – sobre o início de transmissão do novo coronavírus. Isso porque ontem, 17 de novembro, pode ter sido o dia em que o governo chinês identificou o primeiro paciente com covid-19 na província de Hubei. A informação foi divulgada ainda em março pelo South China Morning Post. Baseado em Hong Kong, o jornal diz ter tido acesso a documentos oficiais que relatam o caso de um homem de 55 anos. A China nunca confirmou a história. A linha do tempo da pandemia feita pela OMS começa no dia 31 de dezembro, quando a organização foi informada pelo país sobre um surto de casos de uma misteriosa pneumonia em Wuhan. Coincidentemente foi nesse mesmo dia que o médico Li Wenliang enviou uma mensagem pelo WeChat a um grupo de colegas alertando-os sobre a possibilidade de circulação de um vírus da família do causador da SARS. A mensagem de Wenliang foi rastreada pelo governo e ele teve de ir à polícia assinar um termo se comprometendo a não “espalhar rumores”. Ele se tornou uma espécie de herói nacional depois da confirmação da existência do novo coronavírus, especialmente porque ele próprio se infectou em janeiro atendendo pacientes e acabou morrendo em fevereiro, aos 34 anos. Perguntado pelo New York Times se faria diferença para a proteção dos profissionais de saúde o governo ter divulgado as suspeitas sobre a circulação do patógeno antes, ele respondeu: “Acho que teria sido muito melhor. Deve haver mais abertura e transparência”. Na China, a cronologia oficial indica como 29 de dezembro o dia em que foram reportados os quatro primeiros casos da doença, todos ligados ao mercado de animais da cidade. Mas pesquisadores franceses observaram que estudos filogenéticos feitos por cientistas chineses poderiam indicar que o vírus circulava em estado de latência desde outubro – mês em que Wuhan sediou os Jogos Mundiais Militares. Atletas franceses que participaram do torneio divulgaram em maio que tiveram sintomas parecidos com os da covid-19 depois da realização dos Jogos. Ainda há muito mistério rondando o início das transmissões, principalmente depois que estudos indicaram que o vírus poderia estar circulando em outros países antes de dezembro – caso do Brasil, onde partículas do patógeno foram encontradas em amostras de esgoto colhidas em Florianópolis em novembro do ano passado. UM MÊS DE PROTESTOS Há quase um mês, depois que uma decisão do Tribunal Constitucional da Polônia restringiu ainda mais o acesso ao aborto no país, milhares de pessoas foram às ruas protestar. A questão era séria, porque eliminava a possibilidade de interrupção legal da gravidez em caso de má-formação grave do feto – e essa é a justificativa da maioria esmagadora dos abortos legais por lá. Mas os protestos não foram pontuais. Eles continuam acontecendo até hoje, levando às ruas centenas de milhares de pessoas em mais de 500 cidades e vilas. Não são apenas mulheres, mas gente comum de toda parte. E o escopo foi ampliado: agora, ao que parece, o objetivo é derrubar nada menos que o governo do Partido Lei e Justiça (PiS), que comanda a nação desde 2015. Várias ativistas estão chamando a onda de protestos de “revolução”, por conta da magnitude das demandas. Organizadoras dos atos fizeram pesquisas para ver os tópicos de maior preocupação entre os manifestantes e chegaram a temas como separação entre Estado e Igreja, educação, saúde e mudanças climáticas. É tudo isso que está em pauta. A longa reportagem da New Yorker conta como a revolta ganhou tanta magnitude. O texto trata da construção dos últimos atos, ao mesmo tempo em que explica as reviravoltas do passado recente da Polônia, com polarização política exacerbada e o crescimento do PiS – as medidas do partido de extrema-direita, no fim das contas, parecem ter gerado um caldeirão pronto para derramar. A luta pela manutenção dos direitos em relação ao aborto, aliás, não é recente. Em 2016, também foi preciso ir às ruas quando o governo queria a proibição total. “A Polônia se tornou um importante ator no movimento internacional pelos chamados valores tradicionais e contra o que o movimento e o governo polonês chamam de ‘ideologia de gênero’, um termo genérico para ameaças percebidas à família tradicional, que incluem direitos reprodutivos, estudos de gênero e direitos LGBTQ. Nos últimos anos, cerca de cem municípios poloneses se declararam’zonas livres de LGBT’ ou, mais burocraticamente, ‘zonas livres de ideologia LGBT’, uma referência à crença de que direitos iguais para pessoas LGBTQ equivalem a doutrinação, particularmente de crianças pequenas”, escreve o jornalista Masha Gessen. A parlamentar Magdalena Biejat explica que “a principal forma de existência do partido no poder na cena política é criar conflito”, e que “eles sempre precisam encontrar um inimigo, alguém que possam excluir da comunidade nacional”. Qualquer semelhança com o Brasil não é mera coincidência… Por lá, organizadores acreditam que uma repressão forte da polícia é mais provável do que a derrubada do governo. Mas “nada será como antes”, acredita Marta Lempart, uma delas. MAIS UMA CHANCE E o presidente da Argentina, Alberto Fernández, cumpriu ontem uma promessa de campanha ao enviar ao Congresso um projeto de legalização do aborto . A proposta deve ser votada pelos deputados ainda este ano e, pelos senadores, no início do ano que vem. Em 2018, o país quase chegou lá: depois de a Câmara aprovar um projeto que garantia o direito irrestrito ao aborto nas 14 primeiras semanas de gestação, ele foi derrotado no Senado, numa votação apertadíssima. Os principais pontos da nova proposta estão reunidos aqui. AMAZON VENDERÁ MEDICAMENTOS Ontem Jeff Bezos deu mais um passo em direção à meta de que a Amazon seja uma “loja de tudo”. A companhia anunciou sua entrada direta no lucrativo ramo das farmácias. Começa já essa semana a venda online de medicamentos em 45 estados dos EUA. Serão comercializados apenas remédios com receita – com exceção daqueles que são definidos como de alto risco de abuso, como opioides. E é claro que a Amazon Pharmacy vai capturar dados. Para acessar, os clientes precisam preencher um perfil com opções que vão das informações do seguro de saúde às alergias. Quem é assinante Prime vai ganhar descontos. E, neste primeiro momento, a Amazon parece querer arrasar a concorrência com a promessa de preços 80% menores em medicamentos genéricos e 40% nos de marca. As medicações podem chegar em até dois dias nas casas desses consumidores, sem taxa de frete. Lembramos que não é a primeira notícia que damos por aqui envolvendo a Amazon e farmácias. A empresa de tecnologia comprou em junho de 2018 a farmácia online PillPack, por US$ 1 bilhão exatamente com o objetivo de entrar no mercado de medicamentos por prescrição, avaliado então em US$ 450 bilhões. Tampouco é a primeira notícia envolvendo a gigante do varejo e a saúde. Amazon, JPMorgan e Berkshire Hathaway anunciaram, também em 2018, a criação de uma empresa chamada Haven com o objetivo de proverem, elas mesmas, assistência médica para seus mais de 1,2 milhão de empregados. Mas a Haven também teria outra pretensão: mudar a forma como os trabalhadores usam os serviços de saúde. Como? A partir de algoritmos capazes de fazer análises de dados dos trabalhadores. Mas não se sabe muita coisa sobre como anda o empreendimento. MOVIMENTOS DE MERCADO Na segunda-feira, a Rede D’Or lançou sua oferta pública de ações. E a companhia, que opera a maior rede independente de hospitais privados do país, pode entrar para a história da Bolsa de Valores brasileira. Isso porque a faixa de preço estabelecida por ação vai de R$ 48,91 a R$ 64,35. Se a demanda foi alta, o IPO da Rede D´Or será o maior desde a estreia do Santander. O banco captou R$ 13,2 bilhões em 2009. A empresa de hospitais pode movimentar até R$ 12,6 bilhões, considerando o valor máximo por papel. O caixa levantado com a oferta será usado para arcar com os custos de construção de novos hospitais ou expansão das 45 unidades existentes. O grupo D´Or fechou o ano passado com lucro líquido de R$ 1,2 bilhão. E esse não foi o único movimento no mercado da saúde privada. A Qualicorp, empresa que atua no ramo da administração de benefícios – ou seja, intermedia a relação entre operadoras de planos de saúde e clientes, anunciou a compra de 75% da Plural e da Oxcorp por R$ 202,5 milhões. A companhia, que já era a maior do gênero no Brasil com 2,3 milhões de beneficiários. Com o negócio – que ainda precisa ser aprovado pela ANS – adicionou a sua carteira 96 mil usuários de planos por adesão, ligados a 21 operadoras, incluindo 11 Unimeds. André Pimentel, sócio da Performa Partners, analisou a aquisição da Plural em entrevista ao Globo: “Ambas as empresas focam planos coletivos por adesão, que não são tão afetados pelas demissões quanto os planos empresariais, que hoje representam a maior parte do mercado de saúde suplementar. Os planos coletivos por adesão são uma alternativa a quem não tem vínculo empregatício diante do reduzido número de planos individuais e também por oferecer preços mais baixos. A vantagem desses planos coletivos por adesão é que eles sofrem muito menos redução do número de beneficiários por aumento do desemprego ou pelo menos demoram mais a ter impacto. Nesse momento de pandemia e crise econômica, uma aquisição como essa diminui o risco de redução de beneficiários que são administrados pela Qualicorp”. Na segunda-feira, a empresa havia informado que seu lucro líquido foi de R$ 130,9 milhões no terceiro trimestre do ano, um aumento de 18% em relação ao mesmo período do ano passado. Entre janeiro e setembro, o montante chegou a R$ 326 milhões – um avanço de 4,5% em relação a 2019. O bom resultado se deve principalmente à queda das despesas operacionais durante a pandemia (-7,4%), já que os clientes de planos de saúde usaram menos os serviços com o adiamento de cirurgias eletivas, exames e consultas. SEM RESPOSTAS Como virou praxe, mais uma vez a lei de acesso à informação foi usada para obter dados que não têm motivo algum para serem escondidos do público. Desta vez, O Globo obteve o relatório final da Marinha sobre o vazamento de óleo na costa brasileira. Assinado em 9 de outubro pelo almirante Marcelo Francisco Campos, o documento não aponta a origem do vazamento. Mas faz um balanço quantitativo do desastre, dando conta de que foram coletados cinco mil toneladas de resíduos e encontrados 159 animais oleados, sendo 112 mortos. O governo federal gastou R$ 187,6 milhões com a contenção dos resíduos e envolveu 16,8 mil servidores públicos, a maioria militares. O óleo chegou ao litoral paraibano em 30 de agosto de 2019 e foi se espalhando nos meses seguintes até alcançar o estado do Rio de Janeiro. (Publicado originalmente no site Outras Palavras)

Charge! Folha de São Paulo

Editorial: O compromisso com a democracia acima de tudo.

Uma grande raposa da política pernambucana ensinava que política era a arte do possível. Exímio articulador, segundo pessoas mais próximas, sacrificava até mesmo a vida pessoal para manter-se ao telefone, costurando alianças, negociando apoios, indicando nomes de sua confiança para ocupar postos na administração pública. Por essa lógica eu seria um péssimo político, por guardar princípios identitários que jamais nos permitiram tamanha flexibilidade em busca do poder ou alguma vantagem pessoal. Ainda ontem comentamos por aqui que princípios são inegociáveis, assim como a plataforma política do partido ou candidato. Chegar ao poder abdicando desses princípios ou comprometendo a linha programática da agremiação ou do candidato seria um suicídio político. Com o Partido dos Tabalhadores ocorreu um pouco isso, ao aliar-se com setores atrasados da nossa elite, impedindo a materialização de reformas importantes, como a reforma política, agrária, tributária, dos meios de comunicação. Em setores estratégicos, o partido ficou paralisado, exceto nas politicas públicas de corte inclusivo, na distribuição de renda e no atendimento de demandas repremidas de minorias de gênenro, raça e sexuais. Nos últimos quinhentos anos, o único indicador da raça negra que avançou foi o da inserção de jovens negros no ensino superior. Isso graças a política de cotas. Por isso reafirmo aqui que o PT deu uma enorme contribuição para a nossa democracia substantiva, a despeito dos inúmeros equívocos no campo político. Quando a nossa elite torpe, entreguista e asquerosa se cansou dessas concessões ao andar de baixo, retomou o poder, de onde, na realidade, para ser mais preciso, nunca saiu. Essa preocupação vem a respeito do leque de alianças que está sendo montado no Recife em torno da candidata Marília Arraes(PT), que disputa, no segundo turno, com o candidato do PSB, João Campos, a Prefeitura da Cidade do Recife. Marília, que aliás, tem o DNA de um outro grande político pernambucano, o ex-governador Miguel Arraes. Quando dos estudos universitários, conversei com diversos políticos pernambucanos acerca da política de alianças do ex-governador. Por mais hábil que ele fosse nessas costuras aliancista - como a estratégia de cindir os redutos conservadores da elite estadual, principalmente a aristocracia açucareira, que ele passou a conhecer tão bem como presidente do IAA - jamais negociou as políticas sociais que sempre o caracterizou, inclusive celebrando acordos importantes no campo, juntando capital e trabalho. Um exemplo disto é que a FETAPE sempre foi uma aliada incondicional do Dr. Miguel Arraes. Um outro fato observado pelo atual vice-prefeito, Luciano Siqueira, é que, apesar desses apoios de setores conservadores, Arraes nunca abandonou os comunistas. De fato, justamente naqueles tempos de comunistas autênticos, Arraes sempre esteve com eles, permitindo que eles participassem dos seus governos. Apesar da inegável simpatia por sua candidatura, passei a ter dúvidas se Marília foi uma boa aluna do professor Arraes. Ontem, inclusive, afirmávamos ser improvável que os eleitores da delegada Patrícia(Podemos) e de Mendonça Filho(DEM) estejam disposto a votarem numa candidata do PT. Insufladas por inúmeras campanhas depreciativas, essa turma passou a nutrir uma espécie de ojeriza ao PT. Mesmo que seus dirigentes acenem para uma composição - caso já definido pelo Podemos - é muito pouco provável que seus filiados e simpatizantes sigam a orientação dos seus dirigentes. Muitos criticaram a postura de Mendonça Filho neste segundo turno, mas ela é, no mínimo coerente. Ele não teria motivos para pedir aos seus eleitores que votassem no PSB, tampouco no PT, que ele até se orgulhava, durante a campanha, de ter ajudado a tirar do poder. No intervalo entre o primeiro e o segundo turno, certamente, não tempo suficiente para costuras de alianças bem amadurecidas, onde as cartas sejam devidamente apresentadas. Dizer que estará com Marília porque o PSB já deu o que tinha que dar é muito pouco. Esse momento político que estamos vivendo é crucial para o futuro da democracia no país. Embora a eleição seja municipal, convém não negligenciar as questãos da macro política que estão em jogo neste momento. Quem não tem compromisso com a democracia não pode integrar um jogo democrático. Tenho dúvidas sobre se Marília está atenta a essas questões.

terça-feira, 17 de novembro de 2020

O cinema revolucionário de Fernando Solanas

O cinema revolucionário de Fernando Solanas (I) Morto por covid há dez dias, cineasta filmou uma Argentina e uma América em luta contra a persistente colonização. E esta mesma busca refletiu-se em sua estética rebelde, intensamente criativa, desejosa de romper os padrões eurocentristas OUTRASMÍDIAS POÉTICAS por A Terra é Redonda Publicado 17/11/2020 às 10:26 Por Luciano Monteagudo, no Página12, traduzido em A Terra é Redonda É impossível pensar no cinema argentino do último meio século sem a presença de Fernando “Pino” Solanas, que faleceu na madrugada de 7 de novembro em Paris após várias semanas de internação depois ter contraído o coronavírus. Sua figura foi determinante em todos os campos do cinema argentino: documentário e ficção, teoria e prática, direção e produção. Premiado nos grandes festivais internacionais – Berlim, Cannes, Veneza –, Solanas nunca fez, contudo, um filme que não estivesse relacionado com o país ao qual também dedicou seus conhecimentos, energia e compromisso como militante e dirigente político. Se tivesse que definir numa só palavra o tema essencial de seu trabalho como cineasta, essa palavra seria “Argentina”. O país como um todo – com suas lutas e contradições, riquezas e misérias, trabalhadores e intelectuais – foi sua paixão e obsessão, do primeiro ao último filme, de La hora de los hornos (1968) até Tres en la deriva del caos (2020), ainda inédito devido à pandemia. Neste enorme arco, que vai de um extremo ao outro de sua filmografia, em que prevaleceram o filme-ensaio e o documentário, houve também grandes marcos no campo da ficção, como Tangos – El exilio de Gardel (1985) e Sur (1988), dois filmes cruciais do primeiro período da recuperação democrática, que deram conta respectivamente das experiências de exílio estrangeiro e interno que viveu o povo argentino sob a ditadura civil-militar. Estes dois filmes fora do comum também abriram caminhos impensáveis para o cinema nacional, até então prisioneiro – com raras exceções – de um costumbrismo ao qual Solanas sempre deu as costas para arriscar novos experimentos estéticos, com os quais ele foi criando uma poética própria, única. Nascido em Olivos, na Província de Buenos Aires, em 16 de fevereiro de 1936, numa família de classe média simpatizante da União Cívica Radical, Solanas fez algumas disciplinas nos cursos de Direito e Letras, mas seus primeiros estudos decisivos foram piano e composição musical, antes de se formar no Conservatório Nacional de Arte Dramática, em 1962. Essa experiência seria determinante em sua obra cinematográfica porque confirmou em Solanas a noção de encenação como a arte da convenção, uma abordagem metafórica da matéria representativa. Nesse tempo, Solanas frequentava o que ele considerava ser “na prática, minha pequena universidade”: os círculos intelectuais que se agitavam em torno dos escritores Gerardo Pissarello e Enrique Wernicke, locais de encontro que reuniam os jovens núcleos culturais da esquerda independente da época e onde eram discutidos os textos de Leopoldo Marechal, Raúl Scalabrini Ortiz e Arturo Jauretche. Nessa época, Solanas animou-se a tentar a sorte com dois curtas-metragens, a ficção Seguir andando (1962), que participou do Festival de San Sebastián, e Reflexión ciudadana (1963), uma crônica irônica da posse presidencial de Arturo Illia, com textos de Wernicke. Mas também tinha que ganhar a vida e Pino fez um anúncio para um creme bronzeador que fez tanto sucesso que nos três anos seguintes fez por volta de 400 curtas publicitários. Esse exercício intenso permitiu-lhe uma formação em todas as áreas do cinema (fotografia, montagem, som, música) e que juntasse dinheiro para fazer o que se tornaria um dos filmes mais influentes na história do cinema latino-americano: La hora de los hornos. Desde 1963, quando conheceu Octavio Getino (“Um daqueles encontros que deixam uma marca na vida de um homem e o estimulam a criar e experimentar”, Pino dixit), Solanas vinha recolhendo reportagens e documentários sobre a Argentina com a ideia embrionária de fazer um filme que abordasse o problema da identidade do país, de seu passado histórico e de seu futuro político. Em junho de 1966, quando Solanas e Getino começaram a fazer o filme que se tornaria La hora de los hornos, o golpe militar de Juan Carlos Onganía derruba o governo civil de Illia e antecipam-se, assim, as eleições de 1967, nas quais se presumia que o peronismo, há muito proscrito, sairia vencedor. O filme então é filmado em condições clandestinas, não apenas fora das estruturas convencionais de produção, mas também dos controles policiais da ditadura. Na origem de La hora de los hornos, havia um orçamento inalienável, que respondia menos a motivações estéticas do que ideológicas, mas que inevitavelmente se manifestaria de modo decisivo na forma do filme. Se La hora de los hornos pretendia ser uma obra que apresentasse a tese da libertação como única alternativa frente à dependência (política, cultural, econômica), então o filme deveria renunciar aos modelos cinematográficos estabelecidos pelo sistema dominante. Sem ter desenvolvido ainda a teoria do “Terceiro Cinema”, que seria posterior à filmagem de La hora de los hornos, Solanas e Getino já tinham claro que aspiravam a fazer um cinema que tendesse à libertação total do espectador, entendida como seu primeiro e maior ato de cultura: a revolução, a tomada do poder. E, para isso, o filme teria que romper com a dependência estrutural e linguística que o cinema latino-americano tinha em relação ao cinema estadunidense e europeu. O filme teria que surgir de uma necessidade própria, latino-americana. “Temos que descobrir, temos que inventar…” era um lema do ideólogo da libertação Frantz Fanon que La hora de los hornos sempre teve como emblema e que pôs em prática como nenhum outro filme latino-americano tinha feito até então, exceto os de Glauber Rocha no Brasil, em quem Solanas reconhecia um companheiro de viagem. Com estreia no Festival de Pesaro, em junho de 1968, La hora de los hornos não apenas ganhou o prémio máximo, tornou-se também um acontecimento político e cultural. Não tinha passado sequer um mês das revoltas do “maio francês”, e a chama de Paris estava apenas começando a espalhar-se por toda a Europa. Neste contexto, o aparecimento de um filme latino-americano como La hora de los hornos, que era um chamado declarado à revolução e concluía sua primeira parte com um plano fixo e continuado do rosto imóvel de Che Guevara (cujo fuzilamento não fazia um ano), causou uma verdadeira comoção no campo do cinema, que nesse tempo questionava não só a sua linguagem, mas também a sua função política e social. Enquanto o filme – concebido como um filme-ensaio em três partes que totalizavam 4 horas e 20 minutos – viajava pelo mundo, na Argentina do Onganiato, sua exibição só foi possível na clandestinidade, em sessões organizadas em sindicatos e organizações sociais, que eram concebidas como atos políticos de resistência. E as trocas dos rolos das cópias em 16mm eram aproveitadas para o debate, debaixo de faixas que traziam outro lema de Fanon: “Todo espectador é um covarde ou um traidor”. A partir de La hora de los hornos, Solanas e Getino criaram o Grupo Cine Liberación, que incluía o diretor Gerardo Vallejo, o produtor Edgardo Pallero e o crítico Agustín Mahieu, dentre outros. Dali saíram vários manifestos teóricos sobre o “Terceiro Cinema”, que incluíam definições sobre o cinema militante, e que, em 1971, resultaram em dois famosos “instrumentos” intitulados Actualización política y doctrinaria para la toma del poder e La revolución justicialista, que consistiam em entrevistas pessoais aprofundadas com Juan Domingo Perón na sua residência no exílio em Madri. Tratava-se de “contra-informação”, para divulgar – em “atos” semelhantes aos de La hora de los hornos – não só a palavra mas também a imagem do líder proscrito. Em Los hijos de Fierro (1975), seu primeiro longa-metragem de ficção, Solanas enfrentou uma complexa operação cultural e simbólica: uma versão do poema nacional de José Hernández de um ponto de vista peronista. Os filhos de Fierro no título são os descendentes daquele gaúcho rebelde, a classe trabalhadora peronista suburbana, perseguida pelo poder como o próprio Martin Fierro era no seu tempo. O protagonista deixa assim de ser um herói individual e solitário para converter-se num ator coletivo, o que fez do filme de Solanas uma experiência inédita no cinema argentino. Terminado em 1975, só pôde, contudo, ser visto no país uma década mais tarde, porque tanto Solanas como quase toda sua equipe técnica e artística foram perseguidos, primeiro pela Triple A e depois pela ditadura civil-militar, que levaram o diretor ao exílio. Dessa dolorosa experiência, Solanas extrairia uma das suas criações mais duradouras, Tangos – El exilio de Gardel, que estreou no Festival de Veneza de 1985, onde ganhou o Grande Prêmio do Júri, ratificado alguns meses mais tarde pelo prêmio principal do Festival de Havana. Ao contrário de seus filmes anteriores, que tentavam provocar um processo de reflexão crítica, El exilio de Gardel exigia sobretudo um compromisso emocional do espectador com seus personagens, homens e mulheres à deriva numa cidade estrangeira, que procuram refúgio no imaginário cultural da Argentina, a qual tiveram que forçosamente deixar para trás. A polifonia que já estava presente em La hora de los hornos e Los hijos de Fierro encontra em El exilio de Gardel uma forma de expressão mais livre e espontânea, com espaço para a música, a dança e até o humor. Para falar de seu filme, Solanas (como seu alter ego no filme, interpretado por Miguel Angel Solá) utiliza o termo “tanguédia”, expressão que subsume Tango + comédia + tragédia e revela o desejo do cineasta de salvar as barreiras que separam os diferentes gêneros e criar uma forma original que rompa com as estéticas tradicionais. Realizou uma operação simétrica com Sur, prêmio de melhor direção no Festival de Cannes de 1988 e que funciona como a outra face da mesma moeda. O cenário já não é Paris, mas a paisagem suburbana à qual regressa o protagonista (novamente Miguel Angel Solá), após anos de prisão por sua militância sindical, uma situação que reflete metaforicamente o retorno do país à democracia. “Sur é uma viagem: da prisão e da morte à liberdade; da ditadura à democracia; da noite e do nevoeiro ao amanhecer”, dizia então Solanas, que, como no seu filme anterior, voltou a contar com a cumplicidade de Astor Piazzolla na trilha sonora original, à qual acrescentou um colar de tangos clássicos que – na voz de Roberto Goyeneche – vão comentando a ação. Em comparação com estes clássicos modernos, El viaje (1992) e La nube (1998) não foram filmes de tanto sucesso, mas em ambos estava claro que correspondem por si mesmos a um conjunto de obras com uma singularidade absoluta no cinema argentino como é a de Solanas. No primeiro, tratava-se do percurso iniciático de um adolescente da Terra do Fogo, que parte da cidade mais ao sul do mundo numa aventura de formação por todo o continente sul-americano. No segundo, o tom tornou-se confessional e Solanas, de alguma forma, se via refletido nesse veterano teatrólogo interpretado por seu amigo Eduardo “Tato” Pavslovsky, que resistia não apenas aos embates do tempo, mas também à modernidade crua e sem memória do crasso menemismo. A obra de Solanas recebeu um novo impulso a partir de Memoria del saqueo, quando recebeu o Urso de Ouro pelo conjunto da obra na Berlinale de 2004, um documentário que foi também a pedra angular de um enorme afresco que ele foi compondo durante mais de quinze anos. Os títulos desta grande panorâmica da realidade social, política e econômica do país são eloquentes para cada um dos temas que foi abordando. La dignidad de los nadies (2005), Argentina latente (2007), La próxima estación (2008), Tierra sublevada: oro impuro (2009), Tierra sublevada: oro negro (2010), La guerra del fracking (2013), El legado estratégico de Juan Perón (2016) e Viaje a los pueblos fumigados (2018) deram conta da resistência do povo trabalhador, do potencial científico e criativo do país, do abandono da ferrovia como instrumento de comunicação e progresso, da cobiça extrativista, dos ensinamentos do líder e da contaminação brutal da terra pelos agrotóxicos. Nada do país era alheio a Solanas, que deixou pendente um documentário sobre a pesca e a plataforma oceânica argentina e terminou Tres en la deriva del caos, um diálogo íntimo e socrático com dois de seus muitos e grandes amigos do mundo da arte, o pintor Luis Felipe “Yuyo” Noé e o dramaturgo “Tato” Pavlovsky. “Falta ao cinema argentino contato com o real”, refletia nos últimos anos. Para compensar essa falta, Solanas decidiu – com aquela nobre ambição e essa prepotência no trabalho que o caracterizavam – cuidar ele mesmo de todos os aspectos da complexa realidade argentina, que ele abraçou como ninguém. *Luciano Monteagudo é jornalista e crítico de cinema. (Publicado originalmente no site Outras Palavras)

Gastronomia exótica é vendida a céu aberto em Hanói, no Vietnã

segunda-feira, 16 de novembro de 2020

CALLE DE SILENCIO - JOSÉ ELIZECHE (2017)

CORPO, PERCEPÇÃO E ESQUECIMENTO

Paris: Como o dinheiro arrasa as grandes cidades

Paris: como o dinheiro arrasa as grandes cidades Crônica da gentrificação global: na metrópole palco da Comuna, os investidores agora dão as cartas. Aluguéis impagáveis expulsam milhares a cada ano. Em vez da pulsação urbana, turistas. Mas a História não acabou, dizem os que resistem OUTRASPALAVRAS CIDADES EM TRANSE por Cole Stangler Publicado 12/11/2020 às 21:50 - Atualizado 12/11/2020 às 22:02 Por Cole Strangler, no The Nation | Tradução de Simone Paz Hernández Soumia Chohra, secretária de consultório médico, 34 anos de idade, se refere ao seu apartamento térreo, em Paris, como “ninho de ratos” — literalmente, como faz questão de enfatizar. Chohra diz que, à noite, consegue ouvir ratos correndo no pátio que fica do lado de fora da única janela de seu apartamento de 20 metros quadrados. “Eles são grandes, mais ou menos assim”, explica, traçando uma linha que vai da ponta dos dedos até um terço do antebraço. “Eles estão por toda parte.” Para lidar com o problema, ela e seu companheiro, que trabalha como funcionário de armazém e ganha um salário mínimo no Monoprix, um supermercado local, passaram a dormir com as janelas fechadas, preferindo o calor ao risco de visitantes noturnos. Os dois dormem em um colchão escondido em um mezanino acessível por escada. Às vezes, eles também hospedam a filha de 9 anos de seu parceiro, que dorme em um colchão separado no chão, ao lado da entrada. Quando Chohra e seu parceiro se mudaram, há pouco mais de dois anos, 790 euros de aluguel [R$ 4900] por mês e, em agosto, a taxa já tinha passado para € 806 [R$ 5100]. Ela considera o preço absurdo para o nível do apartamento, mas essa é a inevitável realidade de hoje: é o custo de habitar no 18º arrondissement, distrito historicamente operário, localizado na zona norte de Paris, onde Chohra cresceu — agora no meio de um boom imobiliário. “É como se vivêssemos só para pagar o aluguel”, desabafa Chohra, que está de licença médica de seu trabalho desde o ano passado — resultado de uma condição conhecida como hipertensão intracraniana, que produz dores de cabeça debilitantes. “Não podemos sair. Não podemos tirar férias. Não podemos ir a restaurantes.” Muitos parisienses de baixa renda compartilham do mesmo sentimento, lutando para sobreviver enquanto sua cidade se transforma em um ímã global de serviços financeiros, turismo, tecnologia e indústrias altamente criativas. Pior: muitos deles vêm sendo totalmente apagados da paisagem urbana, fugindo para os subúrbios em busca de moradias populares ou simplesmente deixando a área metropolitana de vez. Entre 2012 e 2017, o ano mais recente com esses dados disponíveis, cerca de 11 mil residentes deixavam a capital francesa por ano, com autoridades estaduais projetando que o declínio da população continue, pelo menos, até 2024. Nesse ínterim, a proporção de residentes parisienses que se enquadram na tradicional definição do censo como classe trabalhadora caiu de 35% (em 1999), para apenas 26% — um contraste gritante com o 51% da força de trabalho total que esses trabalhadores representam nacionalmente. As coisas já eram desafiadoras antes da pandemia, mas agora, com a França passando por sua recessão mais profunda desde a Segunda Guerra Mundial, o êxodo poderia se tornar ainda maior. Sem uma grande reforma das políticas públicas ou uma rápida reversão das tendências macroeconômicas, teme-se que a crise atual possa ser o último prego no caixão de uma Paris habitável, onde as pessoas comuns conseguiam bancar uma vida. Nesse caso, a capital da França terá quase concluído sua transformação no que os franceses chamam de ville musée, ou literalmente uma “cidade-museu”: um parque temático para turistas e visitantes ricos em homenagem eterna ao seu passado. A crise imobiliária em Paris já vem fermentando há algum tempo. Na última década, os preços de venda cresceram a uma impressionante taxa de 66% e, no outono passado, ultrapassaram o limite simbólico de € 10 mil [R$63 mil] por metro quadrado. Os custos agora subiram para uma estratosfera muito diferente das outras grandes cidades da França — a taxa média por metro quadrado em Paris é quase o dobro da de Lyon e Bordeaux, e cerca de quatro vezes a do centro de Marselha — se aproximando mais das chamadas cidades alfa globais como Hong Kong, Londres e Nova York. Mas mesmo quando comparado com esses centros do capital internacional, o mercado imobiliário parisiense se encontra na extremidade mais alta do espectro. Em seu índice anual de imóveis de 2019, com foco nas maiores cidades do mundo, o UBS — banco de investimentos suíço — mudou Paris para “território bolha”, alertando que os preços das moradias “se desvincularam da renda local”. Este ano, a empresa estimou que um “trabalhador qualificado de setor de serviços” levaria 17 anos de trabalho para comprar um apartamento de 60m² perto do centro da cidade, mais tempo do que em qualquer outra cidade do relatório, com exceção de Hong Kong, famosamente superlotada Um dos fatores que alimentam a explosão de preços é a simples geografia. Embora Paris em si tenha cerca de três vezes a população de Washington, D.C., ela ocupa apenas 60% da área da capital dos Estados Unidos. Com os limites da cidade fixados e a capacidade de construir novas acomodações restrita por uma paisagem urbana que já é muito densa, a oferta de moradias ficou muito aquém da demanda. “O mercado imobiliário é um mercado de escassez”, explica Michel Mouillart, economista da Universidade de Paris-Nanterre e porta-voz do índice de habitação SeLoger, um grupo que organiza anúncios de imóveis e pesquisa habitações em toda a França. “Paris não tem um estoque de moradias privadas em crescimento, por razões históricas. Não vamos construir por cima da Pirâmide do Louvre. ” Em um ambiente como esse, os apartamentos tendem a representar o lance mais alto. E, assim como Londres e Nova York, Paris se tornou um lugar para aqueles profissionais que viajam pelo mundo estacionarem seu dinheiro — um investimento que vem com pouco risco e algum prestígio cultural de brinde. A eleição do presidente Emmanuel Macron, em 2017, ex-banqueiro de investimentos que enfrentou uma série de protestos em massa por buscar reformas favoráveis às empresas nas leis trabalhistas, pensões e benefícios de desemprego, apenas reforçou a sensação de que a capital francesa continuava sendo um porto seguro em um tempos de incerteza. “Talvez, as pessoas considerem que há um presidente conciliador, que há estabilidade política e que é uma boa situação”, diz Marc Foujols, fundador e CEO da Marc Foujols International Properties, uma empresa imobiliária de luxo com sede em Paris. “Mesmo existindo alguns problemas, greves, coisas do tipo, nada disso prejudicou de verdade a imagem de Paris. É uma cidade associada ao prazer e ao entretenimento. Está bem localizada na Europa e os imóveis são bons, então as pessoas querem se dar esse prazer, elas acham que existe uma boa acumulação de dinheiro [aqui].” De forma extraordinária, os preços continuaram aumentando durante a pandemia, embora de forma mais lenta. De acordo com a SeLoger, os preços em Paris cresceram 4,5% entre agosto de 2019 e agosto de 2020. Esse aumento foi impulsionado, em grande parte, pela demanda sustentada de compradores nas camadas superiores do mercado, como os que Marc Foujols atende. Mas o aumento no preço das moradias é também alimentado por pessoas com poder aquisitivo relativamente menor, famílias de classe média-alta e alta, que compram apartamentos em áreas da cidade antes amplamente desprezadas por aqueles de sua classe social. Eles não estão na mesma faixa de renda dos investidores de alto padrão, mas fazem parte do mesmo processo fundamental, de acordo com Michel Mouillart “Não é que os residentes de bairros bonitos estejam se mudando; parece mais que aqueles que querem se mudar para os ‘bairros nobres’ (‘beaux quartiers’) já não podem, e têm que ir para outros lugares”, diz Mouillart. “Com o tempo, os bairros da “classe trabalhadora”, viram seus preços subir com a chegada desses clientes que não teriam para ido lá antes. Esse processo se repetiu muitas vezes, engolindo cada vez mais espaço ao norte e nordeste da cidade. As linhas de frente da gentrificação em Paris mudaram gradualmente ao longo da última década, avançando cada vez mais para o 18º, 19º e 20º arrondissements, que em outros tempos foram bairros amplamente de baixa renda Lentamente, mas com passos firmes, esse processo transformou a cidade. “Não é um movimento conjuntural”, diz Mouillart. “É um [processo de] deslocamento, uma transformação do que é território, uma transformação sociodemográfica que ocorre ao longo de um extenso período de tempo.” Soumia Chohra mora no 18º arrondissement há vinte e um anos, desde que emigrou de Saïda (Argélia) para a França, com sua mãe. Quando ela saiu do apartamento de sua mãe há alguns anos e começou a procurar um novo lugar com seu parceiro, não tinha dúvidas de onde queria morar. “Meu companheiro me disse: Vamos procurar em outro lugar. Mas eu lhe disse: Isso está fora de questão, preciso ficar no 18º”, lembra Chohra. “Eu tenho meus pontos de referência. Minha mãe mora na esquina; meu irmão mora na esquina. Minha base é no 18º, você sabe. Chohra cursou o ensino fundamental e o colegial no bairro, crescendo na esquina da Rue Doudeauville com o Boulevard Barbès, que também é a principal artéria norte-sul do distrito. Sem nenhum dos marcos culturais que tornam Paris famosa para os estrangeiros, a diversidade da rua e o ritmo frenético de vida contrastam com muitos dos bairros frequentados por turistas. O boulevard começa na estação de metrô Barbès Rochechouart, uma estação parcialmente acima do solo que se eleva sobre um cruzamento movimentado, que tem uma infeliz — senão totalmente injusta — reputação de perigoso pela sua delinquência. Conforme a avenida segue em direção ao norte, ela dá lugar a lojas de roupas africanas, cabeleireiros baratos, açougues halal, uma variedade de lojinhas de esquina que vendem de tudo, desde telefones celulares e utensílios de cozinha até inhame e banana, bem como dezenas de pequenos restaurantes populares que servem kebabs gordurosos e batatas fritas até altas horas da madrugada. Mais adiante, o Boulevard Barbès se torna o Boulevard Ornano e termina nos limites oficiais da cidade — um ponto que é praticamente impossível não perceber porque, como quase todos os outros lugares de Paris, sua fronteira é marcada pelo imponente Boulevard Périphérique, uma rodovia elevada, repleta do burburinho de caminhões e motocicletas O famoso Périph’ separa Paris de seus subúrbios, circunda a cidade e serve para reforçar o abismo socioeconômico e cultural que separa seus lados opostos. (No departamento de Seine-Saint-Denis que faz fronteira com Paris ao nordeste, por exemplo, a remuneração média é de cerca de 60% dos níveis da capital, enquanto a taxa de desemprego é cerca de 1,5 vezes maior.) No 18º arrondissement, boulevards Barbès e Ornano desempenham um papel similar. Eles marcam uma linha divisória crítica — em riqueza, demografia e política — sinalizando as fronteiras ainda existentes da gentrificação, acenando para serem cruzadas. Grandes mudanças já estão acontecendo na estação de metrô Barbès. De um lado da avenida fica a principal loja da Tati, uma rede de lojas de departamento, que planeja fechar as portas definitivamente ainda este ano. Fundada por um imigrante sefardita da Tunísia logo após a Segunda Guerra Mundial, a Tati já vinha lutando para competir com rivais maiores, baseados na Internet — mas a pandemia deu o golpe final. Do outro lado da rua, entretanto, fica a Brasserie Barbès, um bar e café de quatro andares que foi inaugurado em 2015 e conseguiu resistir à tempestade do lock down. Com design art déco e adornado com um letreiro neon ostensivo com o nome do restaurante, oferece cheeseburgers de € 18 euros e coquetéis de € 9, muito além da faixa de preço que os transeuntes conseguiriam pagar. Mais a oeste da linha divisória Barbès-Ornano fica Montmartre, uma meca boêmia do início do século 20 que há muito perdeu sua aura rebelde, mais conhecida hoje como um centro turístico internacional, por causa da basílica do Sacré-Coeur, e como um cobiçado local para imóveis de luxo. Do lado leste das vias públicas encontra-se uma série de bairros enfaticamente menos cênicos e mais acessíveis, como aquele em que Soumia Chohra cresceu. Isso inclui La Chapelle, uma estreita mistura de ruas delimitadas por trilhos de trem em três lados, um arquipélago urbano com poucas e preciosas áreas verdes. Nos últimos anos, acampamentos temporários para migrantes surgiram com frequência, mas também uma nova safra de mercearias orgânicas e de restaurantes da moda. Também surgiram boutiques de roupa e cafeterias de estilo anglo-americano no bairro vizinho de La Goutte d’Or. Imortalizada no romance L’Assommoir de Émile Zola, que narra as dificuldades dos trabalhadores braçais no final do século 19 em Paris, a área conseguiu manter sua força de classe trabalhadora ao longo dos anos, embora seus residentes atuais estejam mais propensos a rastrear suas origens para o continente africano do que para a França metropolitana. E embora os profissionais de colarinho branco tenham aumentado gradativamente sua presença na vizinhança, os restaurantes ainda têm mais chances de servir mafé da África Ocidental do que macarons. De fato, como grande parte do nordeste parisiense, o 18º arrondissement foi forjado pela imigração. Durante os anos de expansão que se seguiram à Segunda Guerra Mundial — as três décadas conhecidas como les trente glorieuses — os imigrantes vieram do Magreb, especialmente da ex-colônia francesa da Argélia. Ondas de imigração da década de 1980 em diante viram chegar um fluxo de residentes da África Subsaariana e do subcontinente indiano, mas também da Europa Oriental, dando origem a microbairros sobrepostos e, para aqueles que cresceram aqui, uma capacidade estonteante de intercâmbios interculturais “Estou acostumada a conviver com diferentes nacionalidades, com essa mistura, estou acostumada com as pessoas, com as diferentes culturas”, diz Soumia Chohra. “Não são só franceses aqui — há árabes, negros, chineses, pessoas de todas as nacionalidades. Eu gosto dessa mistura.” Essa mistura não foi um acidente aleatório da história: foi, principalmente, o resultado das moradias populares. Quando Chohra chegou, no final da década de 1990, sua mãe conseguiu se mudar com ela para um apartamento de 29 metros quadrados que custava apenas € 500 euros a cada três meses. Dado que o apartamento tinha sido construído antes de 1948 — o ano em que a legislação nacional de habitação entrou em vigor — as leis de proteção de aluguel se estenderam à mãe de Chohra, com os aumentos de preços fortemente restringidos pelo Estado Mas os apartamentos construídos depois de 1948, ou aqueles para os quais os inquilinos se mudaram após a revogação dessa lei, não eram cobertos pelos mesmos tetos de preços rígidos. E, com a subsequente queda dos controles de aluguel e os preços das moradias explodindo nas últimas duas décadas, bons acordos como o que a mãe de Chohra encontrou na época são muito mais difíceis de conseguir hoje. É por isso que tantos estão fazendo as malas e indo para o outro lado do Périph’, optando por abandonar Paris ao invés de tolerar a existência apertada que Chohra escolheu. Enquanto Paris propriamente dita tem apenas 2,2 milhões de residentes, a grande área metropolitana agora conta com mais de 12 milhões de pessoas. Transformações desse tipo já devastaram outras regiões do que antes foi uma Paris da classe trabalhadora: Belleville, o berço da legendária Edith Piaf, antigo reduto da Frente de Libertação Nacional da Argélia e, mais recentemente, o centro da imigração chinesa em Paris, viu seus preços médios de aluguel mensal, para um apartamento de 40 m², atingirem o valor de € 1.200 [R$ 7.600]. No bairro de La Villette, cujas altas torres de habitação pública o tornaram, no passado, um dos bairros menos desejáveis de Paris, novos empreendimentos comerciais ao longo do Canal de l’Ourcq fizeram os preços dispararem para € 1.000 [R$ 6,3 mil], para um apartamento de tamanho semelhante. Junto com isso, intervenções regulares da polícia impediram os imigrantes de montar acampamentos na região por muito tempo, ajudando a manter o mercado imobiliário atraente. A pandemia também pesou em alguns antigos moradores dessas áreas, como Esther Saadoun, de 56 anos, que mora com sua filha de 24 anos no 19º arrondissement. Agora, ambas estão à beira do despejo de seu apartamento de 46 m² Imigrante judia da Tunísia, Saadoun mora em Paris desde 1958 e passou as últimas três décadas operando uma barraca de crepes perto da estação de trem Gare de l’Est, enquanto sua filha começou a fazer bicos para sustentar seus estudos universitários. Impedida de trabalhar durante a quarentena, Saadoun tem lutado para manter o pagamento do aluguel mensal de € 900 [R$ 5,7 mil]. Já atrasada nos pagamentos, que a certa altura atingiram uma dívida de mais de € 2.000 [R$ 12,5 mil], neste outono Saadoun foi intimada pelo proprietário ao tribunal “Sinto que tenho que ir embora, o aluguel é muito caro e o bairro não me atrai mais”, diz Saadoun, que dorme no sofá da sala, deixando o quarto para a filha. Certamente, há muito tempo que Paris é disputada entre ricos e pobres, e a luta de classes faz parte de sua identidade. Como escreveu o historiador Eric Hazan em 2011, a cidade é “o grande campo de batalha da guerra civil na França entre os aristocratas e os sans-culottes — independente da maneira como os chamemos hoje”. Da revolução de 1789 às barricadas de 1848, e da Comuna de 1871, e das greves em massa de 1936 e 1968, aos protestos dos Coletes Amarelos de 2018, os trabalhadores pobres repetidamente reivindicaram as ruas da cidade como suas. É claro que as classes abastadas têm, há tempos, um senso de luta por privilégios. Na segunda metade do século 19, Georges Eugène (“o Barão”) Haussmann — talvez o primeiro gentrificador — destruiu grande parte da cidade velha, substituindo-a por avenidas largas e arborizadas e edifícios projetados para abrigar novos residentes burgueses. Já a segunda metade do século 20 viu os ricos solidificarem seu controle sobre o centro da cidade, à medida em que os moradores de baixa renda fugiam para as periferias e o quadrante nordeste. Porém, mesmo no meio disso tudo, a Paris operária tinha o privilégio de continuar existindo. Na onda de gentrificação atual, não só se intensificou o ataque do capital, nem só os limites de uma vida acessível foram drasticamente alterados, mas as pessoas de baixa renda vêm sendo eliminadas da cidade por completo. “Por enquanto, a batalha da classe trabalhadora de Paris está perdida”, disse Jean-Baptiste Eyraud, fundador e porta-voz do grupo de direitos à moradia Droit au Logement. “Não sabemos o que a história nos reserva, mas, no momento, está claro que os ricos tomaram a capital. Essa é uma realidade objetiva. É um fato.” Uma das grandes ironias da onda cada vez mais irreversível de gentrificação que varreu Paris nos últimos anos é que ela ocorreu sob um governo de centro-esquerda. Desde 2001, o Partido Socialista lidera a cidade em coalizão com parceiros dos Partidos Comunista e Verde. Sob a liderança da prefeita Anne Hidalgo, reeleita para seu segundo mandato de seis anos em junho, a secretaria responsável pela política habitacional foi deixado para o Partido Comunista — especificamente para Ian Brossat, um esquerdista feroz que acabou de fazer 40 anos Brossat é rápido em enfatizar que muito do que aconteceu está fora de seu controle. Como ele destaca, a herança jacobina do país conferiu poder demais às autoridades nacionais, enquanto tende a deixar os políticos locais com margens estreitas de manobra. “Isso tem suas vantagens, mas, neste assunto específico, é mais um inconveniente”, disse Brossat ao The Nation. “Estamos em um país que é muito centralizado, depende muito do estado e o poder dos municípios é relativamente restrito.” A cidade de Paris por si só não consegue impor restrições aos preços dos aluguéis, a menos que obtenha autorização prévia do governo nacional — e, por anos, tem lutado para conseguir exatamente isso. Depois que a histórica lei de habitação de 1948 foi revogada pela maioria parlamentar de direita da França, em 1986, os seguidores do Partido Socialista — a força dominante na esquerda de então — abandonaram amplamente essa causa, a do controle dos aluguéis. As solicitações para restabelecer os limites de preços ficaram em segundo plano durante grande parte da década de 1990 e no início dos anos 2000. Foi somente em 2014, sob o governo do presidente socialista François Hollande, que os legisladores — finalmente — restituíram a capacidade das cidades de impor seus próprios controles de aluguel. Isso permitiu que Paris impusesse limites aos preços e aumentos dos aluguéis entre 2015 e 2017, mas a lei foi enfraquecida logo após sua aprovação e os regulamentos municipais da cidade foram por fim rejeitados no tribunal. Somente no ano passado — depois que a Assembleia Nacional deu luz verde mais uma vez — o controle dos aluguéis voltou a Paris. Mas mesmo essa autoridade é bastante restrita. Os tetos dos preços de aluguel, que são definidos pelas autoridades regionais, permanecem relativamente altos, e a nova lei se aplica apenas a apartamentos alugados após julho de 2019. Por outro lado, a cidade de Paris pode construir moradias públicas, e é exatamente isso que a liderança socialista tem feito. Desde 2001, a parcela de moradias públicas na cidade aumentou de 13% para quase 24% — conquista da qual Brossat se orgulha muito, mesmo reconhecendo que isso não seja, ainda, suficiente. (Esther Saadoun, por exemplo, contou que está na lista de espera por habitação social desde 1996.) “Isto é um sucesso que não dá para negar”, diz Brossat. “Hoje, existem 550 mil parisienses vivendo em habitações sociais; e esses 550 mil parisienses estão protegidos da especulação imobiliária. De certa forma, eles estão seguros em Paris.” Ao mesmo tempo, a cidade pretende atingir o limite estabelecido nacionalmente: de 25% de moradias públicas até 2025 — uma meta que muito provavelmente terá de envolver a compra e conversão de apartamentos privados e edifícios de escritórios. A equipe de Hidalgo também chamou à priorização de novas habitações sociais para os mais necessitados, em oposição aos residentes relativamente privilegiados que teriam mais facilidade de pagar por moradia em apartamentos privados. As autoridades municipais também têm pressionado por maior poder de intervenção no mercado privado. No mais emblemático desses esforços, Ian Brossat tentou reprimir a plataforma Airbnb, que ele acusa de ter retirado 30 mil apartamentos do mercado entre os últimos sete e oito anos. “O Airbnb não está nas origens da gentrificação de Paris, mas é um acelerador dela”, explica Brossat. “Em uma cidade onde temos poucas possibilidades de construir novas moradias, perder 30 mil apartamentos é muita coisa.” Atualmente, em algumas das cidades mais visitadas, os proprietários podem alugar seus apartamentos no Airbnb por no máximo 120 dias ao ano — e a cidade aumentou as inspeções para garantir que a empresa respeite a lei. (Uma decisão recente do Tribunal de Justiça Europeu confirmou essa lei francesa, para a alegria de Brossat.) Mas a administração de Hidalgo quer ir mais longe. Desde agora até o próximo verão, eles planejam realizar uma série de consultas em toda a cidade, com foco na redução potencial desse número em Paris: para apenas 60 ou 30 dias por ano. O objetivo é pressionar a Assembleia Nacional a devolver o poder à cidade e, assim, restringir os aluguéis do Airbnb. “Nosso cálculo é que se dezenas de milhares de parisienses pedirem por isso, o estado terá de agir”, diz Brossat, que acredita na mudança da opinião pública. Os resultados das recentes eleições locais — que viram Verdes e Socialistas vencendo em grandes cidades como Lyon e Bordeaux — podem trabalhar a seu favor. Alguns críticos reclamam que o governo socialista ainda não foi longe o suficiente. Por exemplo, o ativista habitacional Jean-Baptiste Eyraud disse ao The Nation que a cidade deveria usar de forma mais agressiva o que é conhecido como droit de preemption — o direito de impedir a venda de propriedades privadas e assumi-las para a cidade. Ele também diz que o município deveria valer-se de seu direito de desapropriação, que é autorizado em circunstâncias especiais pela lei francesa Brossat concorda que Paris deveria impedir novas vendas entre entidades privadas e tem lutado para aumentar a parte do orçamento da cidade dedicada exclusivamente a isso. De fato, durante o primeiro mandato de Hidalgo, o orçamento para essa finalidade aumentou de € 500 milhões para € 850 [R$ 5,35 bilhões]. Brossat também diz que não se opõe ao uso da ferramenta de expropriação, mas que, na prática, pode ser difícil de defender no tribunal. (Juízes podem decidir que propostas de desapropriação sejam tomada apenas como último recurso, e não de maneira “desproporcional”.) O político comunista acrescenta que gostaria de recorrer ao “direito de requisição” do setor público — que é o direito de se apropriar de construções desabitadas — mas, no momento, apenas o governo nacional detém esse poder “É muito frustrante para um secretário de habitação como eu ver que os edifícios permanecem vazios por anos e que o Estado não aciona seu direito de requisição”, diz Brossat. “Em certos assuntos, seria bom dar mais capacidade de manobra aos municípios que assim o desejam. Ao mesmo tempo, qualquer conversa séria sobre gentrificação não pode ignorar o grande elefante na sala: o fato de que a maioria da população que vive na área metropolitana parisiense, não vive mais em Paris, propriamente dita. Para o bem ou para o mal, agora, ela mora nos subúrbios, ou nas banlieues O mainstream político concorda amplamente em que existe um grande problema com o status quo. Conscientes das desigualdades que a divisão “cidade-subúrbio” gera, os formuladores de políticas nacionais há muito afirmam querer integrar melhor os dois lados da Périph’ — e, durante anos, a conversa rendeu pouca ação. Mas, em 2016, esses esforços finalmente deram origem à tão esperada superestrutura administrativa de “Grand Paris”, integrando 131 municípios diferentes Trazer a simpatia de progressistas para o projeto é seu maior potencial redistributivo: a nostalgia pode ser atraente em uma cidade com uma história tão rica, mas o quê que realmente significa defender a divisão administrativa entre Paris e seus subúrbios? Por que não reunir recursos em toda a área metropolitana e usá-los para criar um sistema habitacional mais igualitário — sem falar em escolas, transporte e instituições culturais que funcionem melhor? Afinal, a própria Paris se expandiu no passado, absorvendo vilas como Belleville, Montmartre e La Chapelle, que já foram independentes até meados do século XIX. Por que agora não fazer o mesmo com cidades como Saint-Denis, Pantin ou Clichy-sous-Bois? Um dos obstáculos é um estigma cultural persistente. No imaginário popular, a banlieue parisiense de baixa renda sofre de uma associação com o crime e com o que os franceses chamam de “comunitarismo”: a manutenção de diferentes comunidades étnicas e religiosas que são só deles. Até mesmo alguém como Soumia Chohra, que conhece muitos do outro lado da Périph’, diz que não gostaria de se mudar para lá. “Eu me sentiria muito isolada. Eles não têm o mesmo estilo de vida. Não é a mesma mentalidade”, diz ela. Um obstáculo talvez mais significativo para expandir os limites da cidade seja a resistência política. Atualmente, a Grande Paris é governada por uma maioria de direita que demonstrou pouco interesse em uma maior integração entre a cidade e seus subúrbios. Em tese, a metrópole tem o poder de impor políticas habitacionais comuns, mas essa decisão ainda não foi tomada. “Tenho plena consciência do fato de que Paris não resolverá os problemas de habitação por si só”, diz Ian Brossat. “Mas a metrópole precisa ser liderada por pessoas que se preocupem com essas questões socioeconômicas. No atual equilíbrio de forças dentro da metrópole, isso está fora de questão. ” Brossat acrescenta que, além de desenvolver a habitação social, uma Grande Paris bem-sucedida depende de municípios que estejam preparados para arcar com a carga habitacional coletivamente, em vez de transferir projetos para certas cidades e agravar as desigualdades. E, no final, esse tipo de cenário de sonho, ele argumenta, se resume a obter poder político — vencer as eleições locais e reformular as prioridades das prefeituras. Embora as eleições municipais deste ano tenham sido amplamente positivas para os partidos de esquerda, elas também ilustraram a sua dificuldade em conseguir ganhar muitos dos subúrbios de renda média que compõem a área metropolitana de Paris. A chegada dos Jogos Olímpicos de Verão, daqui a quatro anos, pode complicar ainda mais o cenário. Apesar da marca oficial “Paris 2024”, grande parte dos jogos e quase toda a construção ocorrerá nos subúrbios, inaugurando novos estádios, novos empreendimentos habitacionais e redes de trânsito melhoradas, mas junto com eles, o aumento no valor das propriedades e um grande medo de novos deslocamentos e despejos. Antes disso, a eleição presidencial de 2022 também pode acabar desempenhando um papel fundamental na definição do futuro da Grande Paris e da política habitacional de maneira mais ampla. Mas o cenário não é dos melhores para as forças progressistas no momento: enquanto o presidente Macron e a extrema direita de Marine Le Pen lideram as primeiras pesquisas, a esquerda continua dividida, dividida entre socialistas, verdes e populistas de esquerda da França Insubmissa. Enquanto isso, o boom imobiliário continua, e a crise de covid joga luz, como um fósforo aceso, sobre as desigualdades latentes da região “Minha filha gostaria de continuar aqui, mas eu fico bem de qualquer maneira”, diz Saadoun. “Se eu puder pagar um aluguel menor, é isso que importa.” (Publicado originalmente no site Outras Palavras)