pub-5238575981085443 CONTEXTO POLÍTICO. : agosto 2021
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segunda-feira, 30 de agosto de 2021

Editorial: Um nome para o eleitor da terceira-via chamar de seu



Como estamos discutindo por aqui há algum tempo, o eleitorado brasileiro demonstra um certo desconforto com a polarização da política brasileira, hoje praticamente cindida entre as alas lulista e bolsonarista. Tanto as pesquisas quantitivas quanto as pesquisas qualitativas indicam um espaço reservado a algum candidato que se apresente como alternativa concreta a esta polarização, que leve o país a voltar a crescer, minimize o conflito entre os poderes e enfrente o desemprego e a inflação em alta. De preferência um líder que recupere a agenda positiva que o país já ocupou no cenário mundial, onde estamos com a imagem arranhada no tocante aos valores democráticos e nos cuidados com o meio-ambiente. 

Mas, como se diz no Nordeste, é aqui que a porca torce o rabo, ou seja, há uma série de complicadores na construção dessa alternativa de terceira-via e algo nos diz que esses problemas não seriam contornados antes das eleições presidenciais de 2022. Começa por um dado primário: até este momento, nenhuma das possíveis alternativas testadas ou apresentadas ao eleitorado, foi do seu "agrado". Sabedores desse "espaço alternativo', lideranças partidárias se movimentam no sentido de apresentarem novos nomes ao eleitorado, em alguns casos, amparados pelas pesquisas qualitativas, que tentam esquadrinhar este retrato falado e, principalmente, o seu perfil, assim como o seu eventual programa de governo. 

Um desses partidos é o DEM, que já realizou alguns levantamentos neste sentido e acaba de fechar uma aliança com o PDT de Ciro Gomes, um acordo circunscrito - ainda - ao Nordeste brasileiro. Tivemos acesso ao resultado dessas pesquisas qualitativas e ficamos gratamente surpresos com a capacidade de os eleitores identificiarem, de uma maneira tão objetiva e fidedigna, as características desses nomes que já se apresentaram como de "terceira-via" e, principalmente, porque eles estão sendo preteridos na corrida presidencial de 2022.Um é estorvado demais, esquentado, de pavio curto, outro é falso, sonso, oportunista  e dissimulado.    

Se, neste momento, o DEM sinalizou, mesmo que pontualmente, para o candidato Ciro Gomes(PDT-CE), é porque deve considerar a hipótese de que a fera possa ser domada. Todos sabem que um dos problemas de Ciro é o temperamento explosivo. Isso talvez explique o fato de que o seu "namoro' com este eleitorado está relativamente melhor depois que João Santana assumiu a sua estratégia de comunicação. 

Dois outros movimentos estão em jogo, sempre na procura de um rosto que o eleitor da terceira-via possa chamar de seu. Em entrevista às páginas amarelas da revista Veja desta semana, o presidente nacional do PSD, Gilberto Kassab, dá os contornos do atual momento político vivido pelo país e aponta as razões pelas quais está sondado o nome do atual Presidente do Senado Federal, Rodrigo Pacheco(DEM-MG), para o projeto de uma candidatura presidencial. Para evitar essas confusoes de siglas partidárias, explico que, caso Rodrigo Pacheco aceite o convite, deve deixar o DEM e filiar-se ao PSD.  

Outro nome que pode ser apresentado a este eleitorado é o da senadora Simone Tebet, do MDB, que vem realizando um excepcional trabalho na Comissão Parlamentar de Inquérito da Covid-19. Será que é ela? Aqui na província, a notícia de que o governador Paulo Câmara(PSB-PE) deve mesmo disputar uma vaga ao senado nas eleições de 2022. O conclave entre socialistas e petistas para a definição de um nome para disputar o Governo do Estado nas eleições de 2022 promete ser demorado.  

Crédito da charge: André Dahmer, Folha de São Paulo. 

Publisher: A dark September for our democratic institutions?



The week begins with a high temperature and the following month promises to be a dark September for our democratic institutions, which are now significantly weakened in this struggle between the Executive and Judiciary powers. Today, the 23rd, twenty-two governors of the federated states are meeting in Brasília with the purpose of containing the spirits and putting out the fire - before it's too late - since the rope has already been stretched too far. The future is uncertain when litigants refuse to lay down their arms and this is the situation we find ourselves in right now. Readers who follow us know that the topic of democracy is widely discussed here, not without some pessimism on the part of this editor, especially because we know our level of institutional starvation, as a reflex produced by Portuguese colonization.

This institutional crisis we are facing is inopportune and deeply marked by nonsense. We would already have enough problems to worry about, such as the sanitary, social and economic crisis, which is throwing thousands of Brazilian citizens into poverty, begging for meat bones in butcher shops. Every economic crisis has its "emblems". This one, without a doubt, is from the Row of Bones, a Dantesque spectacle, difficult to follow. Sad and embarrassing for a country that is one of the biggest meat exporters in the world. Gone are the days when the poorest and most fragile outskirts of the favelas indulged in the "luxury" of a skirt steak on the roof, accompanied by some beer brewed with corn. But who cared? Today, even chicken wings aren't there present, as the other meats tend to increase in almost the same proportion, accompanying the rise in beef.

All government efforts should be focused on tackling these problems. The aggravation of a political and institutional crisis at a delicate moment like this could have extremely harmful consequences for our social fabric, which has already suffered so much. In fact - to be honest - there is no opportune moment for a political crisis. Much less at a time like this, as it would lead to a deepening of these problems. Thankfully, the most consequential political actors are trying to put out this fire, whether in their speeches and public meetings - such as the state governors - or through the seams of backstage, checking the temperature of the barracks.

But there are also, regrettably, those incendiary political actors, who try to promote chaos, which would, by this calculation, give rise to undesirable - at least for convinced Democrats - military interventions. The mobilizations that are being planned by more radical groups, for the month of September, on the occasion of the celebration of our independence, fit this profile. September promises to be a Black September, should these predictions come true. Sincerely? We do not understand how anyone can defend a non-democratic regime, which has limitations on their own individual and collective freedoms. Generally, its supporters are the first to feel the strong arm of authoritarianism or the State of Exception, as history has demonstrated in past experiences.

O paradoxo da experiência: raça e as (in)autenticidades da vida intelectual

 

Gustavo Rossi e Rafael do Nascimento Cesar

O paradoxo da experiência: raça e as (in)autenticidades da vida intelectual
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Se a posicionalidade, mais conhecida no debate público como lugar de fala, não é narcisismo, por que vemos surgir mais constrangimento do que reflexão por parte de quem não se acostumou a ter sua neutralidade posta em xeque? (Foto: David Kuko/Pexels)

 

 

Logo no início de A marca humana, romance de Philip Roth escrito na virada do último século, o professor universitário Coleman Silk é acusado de racismo ao se referir a dois alunos negros com a expressão spooks. O sentido ambíguo do termo, denotando ao mesmo tempo “assombração” e, com conotação pejorativa, “negro”, é recebido de maneira incômoda pela classe. Apesar de se defender com base na primeira acepção da palavra, Silk é forçado a pedir exoneração da universidade, dando sua carreira por encerrada. A trama se desenrola e descobrimos que o docente, cuja aparência e história pessoal outorgavam-lhe uma branquitude insuspeita, era na verdade um afro-americano que na juventude decidiu passar-se por um branco de ascendência judaica de modo a perseguir suas aspirações intelectuais num país ainda legalmente segregado. A revelação dessa identidade secreta, por assim dizer, bem como os seus desdobramentos perante a comunidade acadêmica de Athena, no estado de Nova Jersey, se nos mantêm ligados à narrativa, tornam insustentável a vida do protagonista. O mal entendido, decorrente do uso de uma palavra carregada de significados por alguém igualmente repleto deles, deflagra a impossibilidade da ambivalência, além de exigir uma reparação: a “expiação do sangue pelo sangue”. O que remete à epígrafe do livro, uma passagem da tragédia Édipo Rei, de Sófocles: “Édipo: Qual o rito de purificação? De que modo há de ser feito? / Creonte: Pelo desterro, ou pela expiação do sangue pelo sangue…” (Roth, 2014, p. 5).

Passar-se por branco(a) como estratégia de mobilidade social, transgredindo para isso fronteiras racializadas, está longe de corresponder a um tema episódico. Como outras antes dela, a personagem de Roth encarna muitos dos temores, ansiedades e fantasias raciais que fizeram do chamado passing um tropo significativo do imaginário cultural estadunidense, sobretudo entre meados do século 19 e 20. Em especial, o tema do passing ficou consagrado em dois romances considerados clássicos da literatura afro-americana: The autobiography of a ex-colored man (1912), de James Weldon Johnson, e Passing (1929), de Nella Larsen. O primeiro debruça-se sobre a trajetória de um personagem inominado que fizera do passing uma forma privilegiada de escapar dos estigmas associados à negritude, almejando assim acessar espaços, direitos e vivências que, de outra forma, lhe teriam sido impossíveis. O segundo, por sua vez, narra o reencontro das amigas Irene Redfield e Clare Kendry, elegendo como fio condutor a “ruptura” desta última “com tudo o que havia de familiar e amigável para aventurar-se em outro ambiente, talvez não inteiramente estranho, mas certamente não inteiramente amigável” (Larsen, 1992, pp. 186-7, trad. nossa).

Mais que sensibilizar os leitores acerca dos dramas pessoais de Coleman Silk ou convencê-los de sua astúcia em dissimular marcas corporais, o tema do passing continua a fascinar pela maneira como coloca em suspeição (e em suspensão) muitos dos pressupostos que orientam nosso entendimento sobre raça. Afinal, reafirmar aqui os fundamentos sociais das diferenças raciais não cancelam o fato de que elas continuam a ser cotidianamente percebidas e vivenciadas como realidades biológicas pré-discursivas, como se nas superfícies dos corpos fôssemos capazes de buscar a “verdade” sobre a raça. Crentes de que ali a encontraremos nua e crua, comparamos tons de pele, texturas de cabelos e outras marcas corporais que comprovem ou não a autenticidade do ser racial. Talvez por isso mesmo o passing provoque tanto espanto: ele subverte nossas expectativas quanto a esse “ser” ao evidenciar as falhas dessas verdades que insistem em inscrever no domínio da natureza o que é essencialmente uma produção social e cultural (Gayle Wald, Crossing the line: racial passing in Twentieth-Century U.S literature and culture, 2000).

Em 2015 e 2020, o assunto voltou com força no cenário intelectual norte-americano com os escândalos envolvendo respectivamente a advogada Rachel Dolezal e a historiadora Jessica “La Bombalera” Krug, ambas brancas. Estudiosas e ativistas da questão racial, elas construíram carreiras como intelectuais “negras” vinculadas a instituições de ensino, pesquisa e direitos civis nos Estados Unidos. Carreiras que, assim como a de Silk, tornaram-se insustentáveis após a revelação de seus passados. Krug, ao confessar ter ocultado a experiência de criança judia criada no estado de Kansas, assumiu a inautenticidade de seu passing e a si mesma como impostora (Lauren Michele Jackson, The Layered Deceptions of Jessica Krug, the Black-Studies Professor Who Hid That She Is White, 2020). Dolezal, por sua vez, se recusou a abrir mão da conexão “espiritual” com a negritude, não havendo para ela mal entendido entre sua subjetividade e o ato de passar-se por negra. Não se tratava, concluía ela, de vestir uma “fantasia”, mas assumir uma verdade alternativa sobre si mesma (Allison Samuels, Rachel Dolezal’s true lies, 2015). Ainda assim, a reação irada do público recaiu no fato de Dolezal e Krug terem a um só tempo apropriado e expropriado a identidade negra no intuito de obter benefícios pessoais e ocupar posições autorizadas no âmbito da luta antirracista. Mesmo que enredado por discursos de igualdade racial, o uso indevido da experiência negra e dos símbolos que lhe dão corpo (linguagem, visual, ancestralidade) foi sentido pela comunidade afro-americana como traição e, consequentemente, como racismo.

Implícito a esse roubo identitário subjaz a suposta incongruência entre o engajamento das ativistas e a materialidade de seus corpos brancos, como se a descontinuidade entre a produção do conhecimento sobre raça, de um lado, e a raça do sujeito que o produz, do outro, pudesse invalidar qualquer iniciativa de combate ao racismo. Vale perguntar, no entanto, de que maneira os casos envolvendo Dolezal e Krug iluminam os nexos de sentido entre a atividade intelectual contemporânea e a autenticidade da experiência. Diversas autoras feministas chamaram atenção para essa intrincada relação ao questionarem os limites da objetividade científica e o estatuto problemático da experiência enquanto grau zero do conhecimento e da vida política. Como consequência, a sedimentação dessa crítica nas comunidades acadêmicas estadunidense e brasileira vem fazendo da posicionalidade dos sujeitos e seus saberes um problema incontornável. “Longe de ser uma preocupação narcisista ou trivial”, afirma Patricia Hill Collins, “posicionar o ‘eu’ no centro da análise é fundamental para a compreensão de uma série de outras relações” por meio das quais nos subjetivamos e somos subjetivados como produtores de conhecimento (Pensamento feminista negro, 2019, p. 203). Explicitar tais relações, dando a ver como elas constituem os sujeitos, não implicaria constranger os horizontes da prática científica, mas libertá-la da premissa de um sujeito “neutro” e da impossível missão de nomear realidades transparentes e incontestadas.

Mas se a posicionalidade, mais conhecida no debate público como lugar de fala, não é interdição ou tampouco narcisismo, por que vemos surgir mais constrangimento que reflexão por parte de quem não se acostumou a ter sua neutralidade posta em xeque? Não seriam as acusações de infiltrações de um “mercado epistêmico” no bom fazer científico ou de revoluções travestidas de neoliberalismo reações, elas sim, narcísicas ao problema da situacionalidade? Vistas deste ângulo, tais acusações emergem não como respostas a um debate epistemológico necessário, mas como tentativas emocionadas de contorná-lo, reduzindo a posicionalidade a um jogo identitário no qual pessoas como Dolezal e Krug sairiam perdendo. Daí o medo, não raro partilhado à boca pequena nos corredores de universidades ou em textos incendiários (e anônimos), de que falas estariam sendo “canceladas” pela ação de “patrulhas identitárias”, ou ainda de que certos temas, antes disponíveis a quem quisesse estudá-los, agora haveriam se tornado propriedade exclusiva de sujeitos cuja posicionalidade nunca foi uma escolha, mas a sanção compulsória da estigmatização. A fantasia por trás desse medo é comprovada ao testemunharmos, dia após dia, mais (e não menos) pessoas tomarem a palavra, mesmo que em benefício da discórdia e da contradição.

A angústia quase inerente a esse debate, por vezes traduzida em um sentimento de perda seguido de melancolia, revela um curto-circuito semântico entre a produção do conhecimento nas ciências humanas e a maneira como a experiência é muitas vezes chamada a referendá-lo, assumindo o papel de uma evidência irrefutável sobre algo ou alguém. Poder afirmar vínculos com a comunidade pesquisada que vão além do compromisso ético e da solidariedade, chegando a uma identificação próxima a do parentesco, parece oferecer à(o) pesquisadora(o) a caução perfeita para as suas interpretações, um controle sobre o discurso imune à contestação, uma vez que emanado das entranhas do corpo e da alma. Para quem lida diariamente com as contendas da ciência, a possibilidade de usufruir de tal controle exerce uma atração inegável; para Jessica Krug, uma espécie de Silk às avessas, ela foi tão forte a ponto de a autora dedicar o livro Fugitive Modernities a seus “ancestrais desconhecidos, inominados, que deram a vida por um futuro o qual não tinham razão nenhuma para acreditar que deveria ou poderia existir” (2018, p. v).

Por mais que cheire a novidade, o problema é antigo. Segundo a historiadora feminista Joan Scott, as tentativas de escrever sobre a “diferença” ao longo do século 20 elegeram como ponto de partida de suas narrativas a experiência dos oprimidos, dos subalternos, dos invisíveis, em suma, dos “diferentes”. Embora animados pela melhor das intenções críticas – afirmar que o discurso histórico nunca é neutro e esconde tanto quanto diz relevar –, esses “historiadores da diferença” seguiram os passos daqueles contra os quais se dirigiam. Isso porque, ao verem na experiência desses outros e outras um acesso privilegiado ao real, eles estariam perdendo uma parte importante da questão: a experiência nunca é um dado supostamente dedutível das marcas corporais ou das práticas atribuídas a determinados sujeitos. Ao contrário, ela é algo bem mais difícil de apreender, pois depende daquilo que, em um certo momento histórico e a partir de uma linguagem específica, conta como experiência. Sem essa dimensão processual, as “histórias da diferença” representam tão somente uma mudança de objeto, mas não de método. Assim como o discurso que pretendem atacar, elas estariam naturalizando a experiência em prol da estabilidade do sujeito, reinscrevendo-a na dimensão do óbvio ululante. Afinal, o que poderia ser mais verdadeiro que o relato de quem estava ali?, provoca-nos Scott (The Evidence of Experience, 1991, p. 777).

Dizer que os sujeitos “têm” experiência, comparando-a a uma espécie de espólio ou promessa, pressupõe a ideia de um “eu” pronto a “tê-la” e preexistente a tudo aquilo responsável por torná-lo sujeito. Dessa forma, noções como “raça”, “gênero” e “sexualidade” serviriam apenas para confirmar marcas previamente constituídas nos corpos e nas biografias, como se as diferenças fossem fixas no tempo e existissem a despeito das palavras que usamos para nomeá-las. Dito de outro modo, ao situarmos a experiência na origem do conhecimento, garantindo-lhe de saída o acesso a pontos de vista “autênticos” sobre a realidade, caímos na cilada de tomar por evidência o que seria, na verdade, um efeito do conhecimento e da linguagem. Menos que o acúmulo de vivências individuais, a experiência é uma forma de organizar o vivido ou, nas palavras de Scott, é a “história de um sujeito”.

Ao se passarem por mulheres negras, Krug e Dolezal se refugiaram em noções caricatas de uma negritude ativista e traumatizada de forma a legitimar suas vozes com a autenticidade da raça. Nesse sentido, a autovigilância com que tentaram afirmar experiências isentas de ambivalências ou contradições converteu-se, ela mesma, em uma contradição caricatural diante das inúmeras maneiras de se viver a negritude. No caso de Krug, uma historiadora ligada à academia, o conhecimento por ela produzido ficou inevitavelmente manchado após seu desmascaramento, e o livro Fugitive Modernities, concebido como um exemplo acerca da posicionalidade do sujeito, acabou por atestar, no fundo, a indisponibilidade de sua autora em se posicionar como uma mulher branca, tornando-se ilegível fora da chave da suspeição e da impostura. E pior, ao se deixarem guiar pela fantasia de assumir um outro racial, Dolezal e Krug reencenam a ferida narcísica da branquitude: renunciar ao “truque de Deus”, como adverte Donna Haraway, de “ver tudo de lugar nenhum”, ao direito “universal” de falar sobre e por todo(as) (Saberes Localizados: a questão da ciência para o feminismo e o privilégio da perspectiva parcial, 1995, p. 19).

A posicionalidade, por certo, não pode ser equiparada nem reduzida a um discurso identitário. Se hoje vemos isso acontecer na sociedade brasileira é porque a entrada de novos sujeitos, de novos corpos, na vida acadêmica se faz, em grande medida, através de uma luta política para a qual as categorias identitárias são fundamentais para a reivindicação e ampliação do acesso a espaços de produção de conhecimento até então a eles interditados. Enquanto uma postura crítica, politizar a posicionalidade significa requerer não a autenticidade da fala, como imaginaram Krug e Dolezal, mas a necessária reflexividade quanto ao fato de que os sujeitos produzem conhecimentos em contextos determinados, e não a despeito deles. Como bem colocou Eric Fassin ao problematizar sua posicionalidade como homem branco, assim como os autores deste ensaio, a interrogação “De onde falo?” solicita “análise e não uma confissão: ela não convida a se abrir, mas a se pensar” (Sou um homem branco: epistemologia política do paradoxo majoritário, 2021, p. 9). Solicita, assim, não um mero protocolo de confissão de nossas próprias autorrepresentações, mas uma reflexão sobre os modos como nossos corpos e nossas posições implicam, ao mesmo tempo como limite e possibilidade, o conhecimento que produzimos.

Abrir o jogo, desnaturalizar o lugar a partir do qual se fala, significa, enfim, requerer o compartilhamento da responsabilidade científica e política de que não só os “sujeitos minoritários” tem que lidar com a particularidade de suas falas e ideias, mas também – e sobretudo – os “sujeitos majoritários” (notadamente brancos, masculinos e heteronormativos), os quais durante muito tempo e em nome da ciência, invocaram o poder de falar e nomear o ponto de vista dos outros sem que o deles próprios pudessem ser contestado.

 

Gustavo Rossi é pesquisador PNPD-Capes do Departamento de Antropologia da Unicamp, coordenador do Bitita (Núcleo de Estudos Carolina Maria de Jesus) e membro do Apsa (Ateliê de Produção Simbólica e Antropologia). É autor do livro O intelectual feiticeiro: Edison Carneiro e o campo de estudos das relações raciais no Brasil (2015).

Rafael do Nascimento Cesar é mestre e doutorando em Antropologia pela Unicamp e desde 2016 estuda relações raciais e música popular brasileira. É membro do Apsa (Ateliê de Produção Simbólica e Antropologia) e do Pagu (Núclo de Estudos de Gênero da Unicamp).

(Publicado originalmente no site da Revista Cult)

domingo, 29 de agosto de 2021

Editorial: Alianças políticas orientadas unicamente pelo cálculo eleitoral.





Em meio ao turbilhão da crise generalizada que o país enfrenta, intensificou-se claramente, nos últimos dias, as movimentações dos candidatos à Presidência da República. Alguns deles, caso dos governadores João Doria(PSDB-SP) e Eduardo Leite(PSDB-RG) ainda precisam superar a etapa das prévias partidárias no grêmio tucano. No caso do candidato do Partido dos Trabalhadores, Luiz Inácio Lula da Silva(PT-SP), apesar da folgada dianteira nas pesquisas de intenção de voto, as costuras políticas não estão nada fáceis e ele tem se mostrado reticente quanto a assumir, de fato, que é candidato. Na próxima semana, Pernambuco recebe o candidato à reeleição, o presidente Jair Bolsonaro(Sem Partido), que cumprirá compromissos políticos aqui na província e participará de uma motociata na região do Agreste, inclusive na cidade de Santa Cruz do Capibaribe, única cidade pernambucana onde venceu nos dois turnos das últimas eleições presidenciais. A motociata terminará no Pátio do Forró, em Caruaru, uma cidade estratégica nos projetos de quem deseja ocupar o Palácio do Planalto. 

Em tese, Jair Bolsonaro ainda não tem um palanque montado aqui em Pernambuco, embora existam alguns atores políticos afinados com o seu projeto de reeleição, como o ministro do turismo,Gilson Machado Neto, que, muito provavelmente o acompanhará nesta motociata. Quem sabe até na garupa da moto, que ele já disse que seria uma honra. Conforme afirmamos em outros editoriais, os interesses e as composições políticas engendradas no plano nacional, não necessariamete, se reproduzem no plano estadual, onde outros arranjos e interesses podem prevalecer sobre as composições políticas nacionais.  

Hoje, entre os postulantes ao Governo do Estado mais identificados com o presidente Jair Bolsonaro, poderíamos citar o nome do prefeito Anderson Ferreira(PSL), de Jaboatão dos Guararapes, que realiza um périplo pelo Estado com o propósito de viabilizar o seu nome, pela oposição, como candidato ao Governo do Estado nas eleições de 2022. Embora bastante afinado com o Governo Federal - que não mede esforços em celebrar convênios com o município -  ainda não assume que montará o palanque do presidente aqui na província. Alguns analistas advogam que o candidato dos sonhos do presidente Jair Bolsonaro seria o seu ministro do turismo, que não esconde seus projetos políticos, guardados,  por enquanto, em banho maria. 

Mas, como dissemos, neste primeiro freio de arrumação, o quadro ainda se apresenta bastante confuso. É dado como certa a filiação do senador Fernando Bezerra Coelho(MDB-PE) ao Democratas, num acordo nacional, que viabilizaria a candidatura do seu filho, Miguel Coelho(MDB-PE) ao Governo do Estado nas eleições de 2022. O senador, então, deixaria a liderança do Governo no Senado Federal? Por outro lado, o presidente daquela Casa Congressual, Rodrigo Pacheco(DEM-MG), estaria entabulando conversas com o presidente nacional do PSD, Gilberto Kassab(PSD-SP), como candidato à Presidência da República. Salvo por uma mudança de sigla, a rigor, o DEM poderia ter um candidato à Presidência da República e o seu nome não seria Ciro Gomes(PDT-CE), com quem seu dirigente nacional, ACM Neto (DEM-BA), estaria firmando uma aliança "regional', ou seja, circunscrita à região. Ou seja, o acordo do PDT com o DEM é um e o acordo do PSD com o DEM é outro. Exceto, se entendermos que Rodrigo Pacheco estaria de malas prontas para desembarcar no partido de Kassab.

Este conjunto de interesses difusos nos Estados - orientados unicamente pelo cálculo eleitoral,inclusive na região Nordeste, talvez seja a razão pela qual Lula ainda se mostra ponderado a assumir, de fato, sua candidatura à Presidência da República, embora seus apoiadores nem discutam mais este assunto, posto que dado como certo. Essa esquisofrenia entre as alianças celebradas no plano nacional e como elas reverbaram no planos estaduais e nos municípios é histórica e reflete a fragilidades do nosso sistema partidário, aliado a outros fatores. 

O MDB, por exemplo, funciona como um partido de feudos estaduais, controlados por verdadeiras oligarquias políticas familiares. Nosso sistema partidário seria uma ótima fonte de inspiração para o sociólogo alemão Robert Michels, que cunhou o conceito da Lei de Ferro das Oligarquias, mostrando que este fenômeno seria inevitável no que concerne aos partidos políticos e organizações sindicais. Nem o PT, que, na sua origem era um partido orgânico, de base, surgindo nos movimentos sociais, escapou a este processo. Uma candidatura que tiver apenas o apoio das bases e militâncias autênticas - e contar com a rejeição das cúpulas partidárias - terá poucas chances de viabilizarem-se. Aqui em Pernambuco, um bom exemplo é o da Deputada Federal Marília Arraes, uma guerreira que move moinhos de ventos pelo Estado, mas é ignorada pelos arranjos aliancista celebrados pela cúpula do Partido dos Trabalhadores.   

sábado, 28 de agosto de 2021

Tijolinho: Em Caruaru, Doria já se posiciona como candidato


Antes da pandemia - que obrigou a todos um confinamento compulsório - sempre nos meses de Outubro, costumava levar as crianças para a cidade de Caruaru, na região do Agreste Pernambucano. Cidade de clima ameno nesta época do ano, boa gastronomia, parques ecológicos e equipamentos culturais bem preservados e um distrito inteiro dedicado à arte popular com barro, como é o caso do Alto do Moura, com suas cazinhas simples, um ambiente de vila rural. Na agenda, um espaço para arruar na Feira de Caruaru, para matar a saudade da comida tipicamente nordestina e apreciar os artefatos de couro, outro atrativo para este editor. O sociólogo espanhol - Galego para ser mais preciso - Manuel Castells Oliván afirmou que esta pandemia iria nos levar a uma valorização das coisas mais simples da vida, aquelas que realmente importam. Do que sentiremos falta mesmo? Perguntava ele? De uma conversa sem compromisso,no final de tarde, acompanhada de uma cervejinha gelada e um petiscozinho qualquer. Qualquer, não, Castells! Pode ser uma panceta de porco? 

Conforme o blog antecipou em uma semana, hoje a cidade de Caruaru recebeu o governador de São Paulo, João Doria(PSDB-SP), que veio à cidade em campanha para as prévias do tucanato, que devem escolher seu candidato às eleições presidenciais de 2022. A rigor, há quatro nomes no páreo,mas, à medida que o tempo passa, dois deles já parecem derrotados antes mesmo das disputas internas, como é o caso do senador Tasso Jereissati(PSDB-CE) e o prefeito de Manaus, Arthur Virgílio(PSDB-AM). Quem, de fato, está se mobilizando pelo eleitorado são os governadores João Doria(PSDB-SP) e Eduardo Leite(PSDB-RG), governador do Estado do Rio Grande do Sul. Pode até ocorrer alguma surpresa aqui, mas é pouco provável. O nome de Arthur Virgílio sequer entra na bolsa de apostas.   

Doria já se posiciona como um candidato presidencial de fato, talvez em razão de sua experiência corporativa na iniciativa privada, onde estratégias tem um grande significado, inclusive o motivacional. Já fala em projetos para a região Nordeste, na eventualidade de chegar ao Palácio do Planalto. Fez rasgados - e merecidos - elogios à gestão da prefeita Raquel Lyra(PSDB-PE), que está no páreo para a disputa ao Governo do Estado de Pernambuco nas eleições de 2022. Como não poderia deixar de ser, depois dos compromissos políticos, aproveitou a ocasião para experimentar um prato típico do café da manhã do nordestino, ou seja, um bode guizado com cuscuz e um cafezinho no ponto. Aprovou sem arrodeios. Imagina se não aprovaria.     

Tijolinho: Um acordo difícil entre os "menudos" da oposição.



Conforme antecipamos por aqui, dificilmente será consturado um acordo político entre os jovens prefeitos de oposição no que concerne à escolha de um nome de consenso entre eles, de olho na disputa das eleições estuduais de 2022, em Pernambuco. Em seus périplos pelo interior do Estado, o prefeito do segundo maior colégio eleitoral do Estado, Jaboatão dos Guararapes, Anderson Ferreira(PSC-PE), já é abertamente tratado como candidato ao Governo do Estado por alguns apoiadores. A prefeita de Caruaru, Raquel Lyra(PSDB-PE) tem recebido os pré-candidatos à Presidência da República, do seu partido, o PSDB, que disputam as prévias tucanas. Já recebeu o governador do Rio Grande do Sul, Eduardo Leite(PSDB-RG) e, neste sábado, dia 28, acompanhou o governador João Dória(PSDB-SP)em sua visita à cidade, onde conheceu a tradicional Feira de Caruaru e tomou um tradicional café da manhã nordestino, ou seja, cuscuz com bode guisado. Dizem que aprovou com distinção.É tratada pelos tucanos de bico fino como candidata ao Governo do Estado nas eleições de 2022. Prego batido, de ponta virada como se diz por aqui.    

A mesma movimentação política observa-se em relação ao jovem prefeito de Petrolina, Miguel Coelho(MDB-PE), que já aduba as bases há algum tempo e, naturalmente, aguarda o tempo certo para colher os frutos produzidos. E, o tempo certo, parece ser mesmo as próximas eleições previstas para 2022. Como o MDB parece ter outros planos, todo o grupo político pode desembarcar do partido e ingressar no DEM, onde o prefeito objetiva viabilizar sua candidatura. O deputado federal Fernando Bezerra Coelho Filho já é filiado ao Democratas, assim como o deputado estadual Antonio Coelho.    

Como as eleições estauduais são casadas com as eleições nacionais para a Presidência da República, há uma série de arranjos em jogo, o que envolve acordos com os candidatos para montagem de palanques estaduais, assim como os inevitáveis ajustes ou composições partidárias, o que transforma a tarefa de construção de consensos ainda mais complexa. Tão complexas que, não raro,ocorrem situações onde os estados federados não reproduzem, necessariamente, as alianças celebradas no plano nacional. Comenta-se, por exemplo, sobre a possibilidade do grupo político dos Coelho se afinarem com a candidatura presidencial de Ciro Gomes(PDT-CE), quando se sabe dos acordos entre os Democratas e o presidente Jair Bolsonaro(Sem Partido) no plano federal. Pelo acordo, o pastor Silas Malafaia abocanha um naco político importante no Estado do Rio de Janeiro. 

P.S: CONTEXTO POLÍTICO: Raposa política cevada no "carlismo', o ex-prefeito de Salvador, ACM Neto, celebra acordos políticos com Deus e com o Diabo. Na semana passada se noticiou que ele teria construído uma ponte com o Governo Jair Bolsonaro(Sem Partido), sobretudo direcionado ao Rio de Janeiro, com o objetivo de isolar o ex-presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia, que acaba de ser nomeado para um cargo no Governo de João Doria(PSDB-SP). O acordo, na medida em que interdita a influência da família Maia no diretório do partido naquele Estado, abria as porteiras para o pastor Silas Malafaia, assim como Moisés, cruzar o mar Vermelho - se é que me entendem - e conduzir seu rebanho para o suporte da candidatura à reeleição do presidente Jair Bolsonaro. Hoje, porém, já se dá como certo a celebração de uma aliança entre Democratas e Pedetistas, capitaneados por ACM Neto e Carlos Lupi, colocando o neto de Antonio Carlos Magalhães no projeto de Ciro Gomes(PDT-CE) presidente, arranjo que, no plano local, viabilizaria a candidatura de Miguel Coelho ao Governo do Estado de Pernambuco nas eleições de 2022. O senador Fernando Bezerra Coelho, líder do Governo Bolsonaro no Senado Federal, também estaria se filiando ao Democratas. 

Cabe, aqui, um outro adendo, já devidamente tratado num editorial, consoante a necessidade de esclarecer as eventuais dúvidas produzidas por esta política de alianças partidárias e dança de cadeiras entre os atores políticos. A aliança que o DEM celebrou com o candidato Ciro Gomes(PDT-CE) é uma aliança do tipo "regional", ou seja, vale apenas para a região Nordeste, o que, possivelmente, não o impediu de fechar alguns acordos com o presidente Jair Bolsonaro no que concerne à arena política específica do Estado do Rio de Janeiro. Em todo caso, o ex-governador e grande lideraça política brasileira, Leonel Brizola, deve estar revirando na tumba.    

Charge! Duke via O Tempo

 


Editorial: Rodrigo Pacheco: Uma aposta de Gilberto Kassab como candidato à Presidência da República.


O quadro sucessório das eleições presidenciais de 2022 ainda não está definido. Há um longo percurso pela frente e, parafraseando um experiente cientista político aqui da província, tudo seria possível acontecer, inclusive nada. Vale aqui a lição de um macaco velho, daqueles que não põe a mão na cumbuca antes de ter certeza sobre o que encontrará lá dentro. O presidente Jair Bolsonaro(Sem Partido) - que pretende continuar como inquilino do Palácio do Planalto pelos próximos quatro anos - não muda uma vírgula de sua estratégia de comunicação, embora as ruas sinalizem que sua postura deveria ser repensada, em razão de estar perdendo inserção junto a um eleitorado não necessariamente raiz. Há indícios que apontam que o seu ministro das comunicações, Fábio Farias,  possa ser seu companheiro de chapa, na condição de candidato a vice-presidência. Quem sabe ele o convença sobre a necessidade de alguma mudança neste sentido.
   
Jair Bolsonaro(Sem Partido) sabe que não está num céu de brigadeiro, diante de uma crise sanitária em curso e uma economia combalida, com altas taxas de desemprego, inflação crescente e sob a perspectiva sombria de uma crise energética pela frente, algo que deve pesar não apenas no bolso, mas no humor dos eleitores. Com índices de aprovação em queda, a sua reeleição  torna-se bastante incerta, se considerarmos a radiografia deste momento. Especialistas em pesquisas de aprovação de governos asseguram que um escore abaixo de 45% de bom e ótimo podem interditar uma reeleição. 

Aparecendo bem nas pesquisas de intenção de voto, o provável candidato do PT, Luiz Inácio Lula da Silva(PT-SP), tem articulado conversas com lideranças políticas da região Nordeste, o principal reduto eleitoral daquela agremiação partidária. Essas costuras não estão bem alinhavadas, em razão dos vários interesses políticos em jogo nos Estados da região, à exemplo do caso do Ceará, que possui um candidato à Presidência da República, Ciro Gomes(PDT-CE), e um senador que objetiva disputar as prévias tucanas, Tasso Jereissati(PSDB-CE), igualmente com o mesmo propósito. Camilo Santana(PT-Ceará), atual governador daquele Estado, já teria fechado um acordo com o grupo político liderado pelos Ferreira Gomes para viabilizar seu nome como candidato ao Senado Federal em 2022, numa composição onde o PDT lançaria o nome de Roberto Cláudio (PDT-CE) como candidato ao Governo do Estado. Camilo Santana parece não ter esperado uma sinalização do cacique petista para fechar um acordo com os Ferreira Gomes.  

O Maranhão é outro desses Estados onde as composições políticas estão confusas. Quando esteve por aquelas bandas, Lula almoçou com o Flávio Dino(PSB-MA), mas não se fez de rogado ao aceitar um convite da família Sarney para um repasto de jantar com o grupo da velha oligarquia comandada pelo cacique José Sarney, um antigo aliado do petismo no plano nacional.E olha que não foi apenas em função das guloseimas da rica culinária maranhense. Aqui na província pernambucana, onde o morubixaba petista também já esteve, o quadro também parece indefinido, em razão dos "estragos" causados pelo candidato Ciro Gomes(PDT-CE) desde as eleições municipais passadas,onde esteve presente no processo de eleição do prefeito do Recife, João Campos(PSB-PE). 

Na fotografia deste momento, as pesquisas apontam para um alto índice de indefinição entre o eleitorado e uma expécie de cansaço com esta polarização entre bolsonaristas e lulistas, o que alimenta as expectativas dos candidatos que correm pela raia da terceira via, como é o caso do governador paulista João Dória (PSDB-SP), que já iniciou um périplo pelo país - desembarcando aqui na província pernambucana neste sábado - de olho nas eleições presidenciais de 2022. Os tucanos passarão por um processo de prévias, onde há quatro nomes no páreo: O do governador do Rio Grande do Sul, Eduardo Leite(PSDB-RG), Tasso Jereissati(PSDB-CE) e Arthur Virgílio(PSDB-AM), além de Dória, que, neste momento, já está na tradicional feira de Caruaru, acompanhado da prefeita Raquel Lyra(PSDB-PE).  

É neste contexto que entendemos as movimentações do presidente nacional do PSD, Gilberto Kassab, no sentido de manter a capilaridade política do seu partido nas próximas eleições. O PSD foi um dos partidos que mais cresceram nas últimas eleições municipais, tornando-se uma agremiação política estratégica num projeto presidencial. Há evidentes sondagens do partido no sentido de atrair o atual presidente do Senado Federal, Rodrigo Pacheco(DEM-MG) para este projeto. O martelo ainda não foi batido, mas as conversas estão bastante avançadas. Rodrigo Pacheco tem se notabilizado nacionalmente por sua defesa intransigente da democracia, das suas instituições, da autonomia e independência dos três poderes. Segue à risca o que determina a Constituição Federal, cumprindo o papel que se espera de um homem público.  Uma postura republicana importante, nesses tempos bicudos de assédio às instituições democráticas.  

segunda-feira, 23 de agosto de 2021

Editorial: Um setembro negro para as nossas instituições democráticas?


A semana começa com a temperatura alta e o mês seguinte promete ser um setembro negro para as nossas instituições democráticas, hoje sensivelmente fragilizadas nesta queda de braços entre os poderes Executivo e Judiciário. Hoje, dia 23, vinte e dois governadores dos Estados federados estão se reunindo em Brasília com o propósito de conter os ânimos e apagar o incêndio - antes que seja tarde demais - posto que a corda já foi demasiadamente esticada. O futuro é incerto quando os litigiantes se recusam a baixarem as armas e  esta é a situação em que nos encontramos no momento. Os leitores e leitoras que nos acompanham sabem que o tema democracia é bastante abordado por aqui, não sem algum pessimismo por parte deste editor, sobretudo por conhecermos o nosso nível de inanição institucional, como reflexo produzido pela colonização portuguesa.  

Esta crise institucional que estamos enfrentando é inoportuna e profundamente marcada pela insensatez. Já teríamos problemas suficientes para nos preocupar, como a crise sanitária, social e econômica, que está jogando milhares de cidadãos e cidadãs brasileiros na miséria, mendigando ossos de carne nos açougues. Cada crise econômica tem seus "emblemas". Esta, sem dúvida, é da fila dos ossos, um espetáculo dantesco, difícil de acompanhar. Triste e constrangedor para um país que é  um dos maiores exportadores de carne do mundo. Longe se vão os tempos em que a periferia mais pobre e fragilizada das favelas se dava ao "luxo' de um churrasco de fraldinha na laje, acompanhada por alguma cerveja fermentada com milho. Mas quem se importava? Hoje, nem as asinhas de frango estão presente, pois as demais carnes costumam aumentar quase na mesma proporção, acompanhando a alta da carne de boi. 

Todos os esforços governamentais deveriam ser concentrados no sentido de enfrentamento desses problemas. O agravamento de uma crise política e institucional num momento delicado como este poderia trazer consequências extremamente danosas para o nosso tecido social, já tão castigado. Aliás - a bem da verdade - não há momento oportuno algum para uma crise política. Muito menos num momento como este, pois acarretaria um aprofundamento desses problemas. Ainda bem que os atores políticos mais consequentes estão tentando apagar este incêndio, seja em seus pronunciamentos e encontros públicos - como o dos governadores dos Estados -  seja através das costuras de bastidores, checando a temperatura dos quartéis.  

Mas há, também,lamentavelmente, aqueles atores políticos incendiários, que tentam promover o caos, o que oportunizaria, por este cálculo, as indesejáveis - pelo menos para os democratas convictos - intervenções militares. As mobilizações que estão sendo programadas por grupos mais radicais, para o mês de setembro, por ocasião da comemoração de nossa independência, se encaixam neste perfil. Setembro promete ser um Setembro Negro, caso essas previsões se confirmem. Sinceramente? Não entendemos como alguém possa defender um regime não-democrático, o que incide em limitações de suas próprias liberdades individuais e também coletivas. Geralmente, seus apoiadores são os primeiros a sentir o braço forte do autoritarismo ou do Estado de Exceção, como a História tem demonstrado em experiências passadas. 

 

domingo, 22 de agosto de 2021

Tijolinho: No sábado, Dória chega à Princesa do Agreste


Não está fácil para ninguém. O país está mergulhado numa profunda crise social, política e institucional. Contingentes expressivos da população estão regressando à condição de extrema probreza, alimentando-se com pedaços de grãos de feijão ou arroz e os ossos que sobram dos açougues. Os poderes da república estão em pé de guerra, o que se constitue num péssimo indicador da saúde de nossa democracia. Em meio a este turbilhão, os candidatos à Presidência da República continuam se movimentando, como se a nossa democracia política fosse forte o  suficiente para sobreviver a esses arroubos e solavancos de corte autoritários. Para o bem de todos, Deus permita que eles estejam certos e este editor equivocado. Os diletos leitores e leitoras que nos acompanham por aqui sabem de nossa opinião a este respeito. Em todo caso, vamos acompanhar essas movimentações dos atores políticos que já se colocam na corrida presidencial de 2022, procurando manter a maior isenção possível.  

No momento, faremos um giro pelo Ceará, pelo Maranhão e pela Princesa do Agreste - aqui em Pernambuco - a nossa querida Caruaru, uma cidade estratégica na definição de eleições estaduais e nacionais. Do Ceará, por onde Lula passou recentemente, vem a notícia de que seu ex-ministro e também concorrente ao Planalto nas eleições de 2022, Ciro Gomes(PDT-CE), tem sido ácido em suas críticas ao ex-aliado, responsabilizando-o pela crise econômica e social ora enfrentada pelo país. Ele, naturalmente, precisa construir esse espaço alternativo entre Lula(PT) e Jair Bolsonaro(Sem Partido), de onde se conclui por sua contundência discursiva. No Maranhão, apesar do apoio irrestrito do governador Flávio Dino(PSB-MA), Lula não se recusou aos acenos da família Sarney e jantou com o clã tradicional daquele Estado, mesmo sob os resmungos do Flávio Dino. Nacionalmente, a família Sarney sempre esteve ao lado de Lula e, a bem da verdade, o Flávio não é assim um anti-Sarney raiz. O líder sindical Manuel da Conceição, que morreu recentemente, sim.  

No próximo sábado, a província pernambucana recebe o presidenciável João Dória(PSDB-SP). A sua candidatura ainda não está definida, em rezão das prévias que os tucanos ainda terão que realizar para definir um candidato. Há, pelo menos, três outros postulantes à condição de candidato a candidato, como é o caso do governador do Rio Grande do Sul, Eduardo Leite(PSDB-RG), o senador cearense Tasso Jereissati(PSDB-CE), e o prefeito de Manaus Arthur Virgílio(PSDB-AM). Dória repete a visita que o governador Leite fez recentmente ao Estado, reunindo-se com os integrantes do ninho tucano no Estado, e a potencial candidata ao Governo do Estado de Pernambuco nas eleições de 2022, Raquel Lyra(PSDB-PE), atual prefeita da cidade de Caruaru. Aproveita a ocasião para fazer um repasto na culinária pernambucanae e agendar um futuro churrasco na fazenda Macambira - em caso de sair vitorioso das prévias. A fazenda Macambira é um grande "termômetro' político aqui no Estado.  

sexta-feira, 20 de agosto de 2021

Editorial: A terceira-via mostra a sua cara.


Algumas pesquisas qualitativas realizadas mais recentemente começam a esboçar um cenário onde o eleitor parece demonstrar um certo cansaço com essa polarização da política braileira, hoje basicamente cindida entre lulistas e bolsonaristas. Já diziam os cientistas sociais que a criação de binômios não são muito saudáveis para a sociedade, uma vez que funcionam sempre na perspectiva de que um desses pólos se sobrepõa ao outro, quase sempre esmagando o adversário. Talvez seja por isso que a dinâmica de funcionamento dos parlamentos sempre estabelece um mecanismo onde as minorias possam garantir uma participação efetiva nas decisões daquelas casas legislativas. Sobretudo nesses tempos bicudos que estamos vivendo, demonizar e esmagar os adversários tornaram-se práticas recorrentes, banais. Nunca se sabe do que esses atores políticos serão capazes. O eleitorado talvez tenha começado desconfiar das possíveis consequências danosas da radicalização dessa polarização.

Talvez um pouco embalada por essas pesquisas, a chamada terceira-via da política brasileira começa a apresentar sua cara ao eleitorado. Esse espectro político é relativamente amplo, mas se conforma ali, para efeitos didáticos, entre as candidaturas de Lula e Bolsonaro, ocupando o espaço do centro ao centro-direita. O PDT continua firme, trabalhando o nome do candidato Ciro Gomes(PDT-CE), que já monta palanques em diversos Estados da federação, principalmente no Nordeste, um tradicional reduto petista. 

Algumas dessas alternativas de candidaturas da terceira-via ainda não passam de meros esboços ou especulações, como é o caso do nome do Presidente do Senado Federal, Rodrigo Pacheco(DEM-MG), que ficou bastante animado com o escore de 1% que ele apresenta numa das pesquisas de intenção de voto para a Presidência da República. Rodrigo Pacheco, aliás, agigantou-se nos últimos embates políticos, em razão de sua defesa intransigente da Constituição Federal, da democracia e suas instituições,como, aliás, se esperava de um presidente do Congresso Nacional. Nas coxias especula que Gilberto Kassab, do PSD, poderia estar animado com a possibilidade de uma candidatura presidencial do senador. Outro nome com este mesmo perfil é o da senadora Simone Tibet(MDB-MS),que cumpre um papel dos mais relevantes e republicanos nos trabalhos da CPI da Covid. Demonstra muito preparo e seria, certamente, um bom nome para concorrer à Presidência da República.

Embora o nome do candidato tucano ainda não tenha sido definido - posto que se pretende que a escolha se dê através das prévias - pelo menos no seu ninho da mais alta plumagem, São Paulo,o start parece que já foi dado, a julgar por uma longa entrevista do governador João Dória(PSDB-SP), acompanhada por este editor, no dia de hoje, quando se dirigia ao trabalho. Ontem ele anunciou com grande pompa que o ex-presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia(Sem Partido), ocuparia uma secretaia estratégica em seu governo, onde estaria, entre suas funções, tratar de temas como as privatizações. 

Sabe-se, no entanto, que ele ocupará um papel estratégico,sim, mas nas costuras políticas que objetivam viabilizar o nome do governador João Dória como um candidato competitivo às eleições presidenciais de 2022. O capital político obtido por Rodrigo Maia na condição de Presidente da Câmara dos Deputados pode-se constituir num trunfo importante para o projeto político do governador João Dória(PSDB-SP). Não nutro grandes simpatias por Dória, mas não há como deixar de reconhecer a sua condição de um obstinado. Deve jogar pesado para vencer as prévias entre os postulantes,como o atual governador do Rio Grande do Sul, Eduardo Leite(PSDB-RS). Entre os tucanos, há até aqueles que não desejam alçar voos agora, mas apoiar um nome de outra legenda, como é o caso do ex-senador Aécio Neves(PSDB-MG). O antes reticente e ponderado ex-presidente Fernando Henrique Cardoso(PSDB-SP) emite indicativos de que apoiaria o voo do tucano João Dória.  

Na próxima semana, Dória deve desembarcar aqui na província pernambucana, onde encontra-se com o staff tucano local. Sobe a Serra das Russas para experimentar a famosa chã de bode do Alto do Moura, acompanhado da simpática prefeita Raquel Lyra. Há muitos anos atrás - quando dos arroubos da juventude - um grande amigo dizia que este editor já tinha o discurso pronto, na ponta da língua, tudo muito bem arrumado e articulado. Pois bem. O Dória, já tem um discurso pronto para apresentar-se ao eleitorado na condição de alternativa desta terceira-via, ou seja, faz críticas contudentes ao atual Governo do presidente Jair Bolsonaro(Sem Partido) e acena para o eleitorado dos segmentos sociais mais fragilizados, justamente aquele eleitorado mais identificado com o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva(PT-SP). Assim, ele espera quebrar essa polarização, tornando-se um nome viável na corrida presidencial de 2022.     


segunda-feira, 16 de agosto de 2021

Rubem Braga - Impressões do Recife

Editorial: Lula dá o start para as eleições presidenciais de 2022



O país, como se sabe, está mergulhado numa profunda crise institucional. Difícil mesmo fazer alguma previsão sobre seu desfecho, uma vez que, em alguns casos, a prudência e o bom-senso foram abandonados e pululam atores políticos - e até do meio artístico - com o propósito de colocarem mais combustível na fogueira, assumindo o papel de incendiários, apostando no quanto pior melhor. Uma aposta preocupante para as nossas instituições democráticas, assediadas e fragilizadas ao longo dos últimos anos, com atos que atentam até mesmo contra a sua existência. Nem mesmo as medidas restritivas de liberdade como a imposta a um ex-deputado, que teve a prisão decretada em razão de atos que ferem os princípios constitucionais, conseguiram atingir os efeitos pedagógicos de frear o ímpeto e arroubos de uma horda de atores que se insurgem contra as instituições - conforme é o caso do Menino da Porteira - que, em vídeo, propõe a radicalização de uma possível pararalização das atividades dos caminhoneiros, prevista para setembro. 

Nosso tecido democrático não resistiria ao aprofundamento dessa crise institucional, somada a uma crise econômica, social e sanitária, sem previsão de arrefecimento. No campo da saúde pública - a despeito da ampliação do programa de vacinação e a estabilização de casos de mortes e infecções pelo corona vírus, a nova cepa conhecida como Delta ainda preocupa bastante. Desemprego e inflação em alta corroem o tecido econômico, colocando em risco os mais socialmente fragilizados. Jamais se poderia pensar numa radicalização política neste momento. Aliás, objetivamente, em momento algum. 

É dever de todos buscar o diálogo, construir pontes, costurar consenso, serenar os ânimos, pensar no coletivo. Louvável aqui a atitude do grupo majoritário da CPI da Covid-19, que tem usado da ponderação necessária na condução daqueles trabalhos, aparando arestas, minimizando embates desnecessários, como uma acareação entre o Ministro do Trabalho, Onyx Lorenzoni e o deputado Luiz Miranda, acerca de fatos ocorridos nas coxias do poder, em Brasília.  E, por falar em ponderação, desembarcou ontem aqui no Recife o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva(PT). Viçoso, elegante e diplomático, costura uma ponte aliancista com os socialistas, de olho nas eleições presidenciais de 2022. 

Antes, porém, convém observar que há evidentes indícios de uma fratura entre os socialistas locais, um fato que já se observa desde algum tempo, principalmente por ocasião para a eleição do novo presidente da Câmara dos Deputados.  Sob a liderança do ex-governador Eduardo Campos, o grupo era mais coeso. Este fato ajuda a entender porque eles espõem divergências quanto a consolidar, desde já, uma aliança com o ex-presidente Lula, embora o governador Paulo Câmara(PSB-PE) tenha se desmanchado em elogios ao ex-presidente Lula através das redes sociais. O principal herdeiro do espólio político dos socialistas no Estado, o prefeito João Campos(PSB-PE), no entanto, ainda demonstra reticências em relação ao assunto.   

Por outro lado, o ex-ministro Ciro Gomes(PDT) também tem sondado os socialistas, igualmente de olho nas eleições presidenciais de 2022. Aliás, diferentemente de Lula, que foi abandonado nas eleições municipais, o ex-governador Ciro Gomes participou diretamente daquela campanha.Pelo andar da carruagem política, entendo, hoje, ser mais provável uma aliança entre socialistas e petistas, em razão da polarização política que o país atravessa. 

O eleitorado, no entanto, parece um pouco saturado com esta conjuntura, de acordo com levantamento de pesquisas qualitativas realizados mais recentemente. Ciro Gomes(PDT-CE),no entanto, não consegue descolar-se de um eleitorado consolidado, o que dificulta apresentar-se como esta alternativa. Como ainda teremos algum tempo pela frente, não é de todo improvável que surja no horizonte um nome com potencial de fazer frente a esta polarização entre lulistas e bolsonaristas.  

sábado, 14 de agosto de 2021

Charge! Duke via O Tempo.

 


O amor nos tempos de pandemia

 

Ricardo Hirata

O amor nos tempos de pandemia
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De volta a García Márquez, o amor de Florentino Ariza por Fermina Daza, ainda que tenha conseguido aguardar por mais de cinquenta anos até se realizar, não passou um dia sequer fora da sombra iminente da morte (Foto: Paco Junquera/Divulgação)

 

 

“(…) [o amor] tanto mais denso fica quanto mais perto da morte.”
Gabriel García Márquez

O amor nos tempos do cólera (1985) aproxima Eros de Tânatos pelas lentes da pandemia. Por sua vez, a Covid-19 nos proporciona o mesmo lugar privilegiado, para observação, análise e experimentação dessa face enigmática do discurso amoroso: o adensar do amor quando próximo da morte. Na trilha aberta pelo romance, intuímos que tal proximidade é da ordem do tempo.

Os termos “tanto” e “quanto”, presentes na epígrafe, apontam para uma tensão existente entre os dois polos da existência. Espécie de diferença de potencial, o que a física chama de “ddp”, da bateria psíquica; voltagem que anima o desejo. Entre o nascer (enlaçar) e o partir (desenlace), “firmar” o laço é a alternativa à frouxidão do embotamento/alheamento (lassear) mental. A arte, assim como a psicanálise, apostam também aí as suas fichas: firmar (selar pacto, assinar) o sujeito desejante. Em tese, algo novo pode advir, individual e/ou coletivamente, como fruto dos atravessamentos do mortífero, característica fundamental de uma pandemia. A crise, imersa em paradoxos (assim como o amor), traz em si uma possibilidade em potencial.

Nos tempos da experiência amorosa – tempo da inocência (linguagem infantil da ternura), tempo da descoberta (educação sentimental), tempo da paixão (linguagem da genitalidade), tempo do casamento (termos da conjugalidade), dentre outros – peculiar é o tempo da morte, da transitoriedade inquietante, tempo de assombro e revelação. “Valor de transitoriedade é valor de raridade no tempo. A limitação da possibilidade da fruição aumenta a sua preciosidade”, defende Freud em A Transitoriedade (1916)texto-manifesto escrito diante dos horrores da Primeira Guerra.

De volta a García Márquez, o amor de Florentino Ariza por Fermina Daza, ainda que tenha conseguido aguardar por mais de cinquenta anos até se realizar, não passou um dia sequer fora da sombra iminente da morte. Precioso porque limitado. O autor colombiano celebra a vida (“mais que a morte, a que não tem limites”) ao demonstrar que a transitoriedade não implica no luto inevitável, por vezes melancólico, e sim num “estado de espírito” diante do risco da perda da capacidade de amar. Nas palavras de Freud, uma “rebelião contra o fato constatado”, em lugar do “doloroso cansaço do mundo”. A questão aqui é: rebelar-se, como?

O que os tempos do cólera, assim como a pandemia atual nos faz perceber, é que a morte traz à tona a face oculta do amor. Conhecidos são os casos em que pessoas próximas do fim, ou com doenças terminais, fazem do leito um local de confidências e declarações. Perto da morte, o amor se “precipita”, condensado como o vapor d’água na forma de granizo, ou os sólidos insolúveis na reação química do iodeto de chumbo (“chuva de ouro”). A morte não sublima o amor, ao avesso, o solidifica na forma de histórias-revelação, histericiza o discurso amoroso.

Por outra via de sentido, em tempos de pandemia, precipitar-se é se antecipar em relação ao tempo ameaçador da rotina. Como Florentino Ariza, continuamente rebelde, ao longo da obra, lança mão da escrita de sua correspondência de amor a um amor não correspondido. Contra o determinismo social de sua condição de filho do acaso, aposta no evidente impossível e, eventualmente, acerta no que não viu – uma “Nova Fidelidade”.

É este o nome de batismo da embarcação que irá abrigar o amor do casal septuagenário. Uma nova aliança sob o disfarce de “navio-fantasma”, a proteção que a bandeira do cólera uma vez hasteada no barco, confere ao ninho daquela re-volta de dois a dois. Salvaguardados, enfim, dos olhos “fofoqueiros” da moral e dos bons costumes, do “espírito do tempo”.

Figura da Errância, em Fragmentos de um discurso amoroso, de Roland Barthes, o Navio-Fantasma representa no ir-e-vir, de amor e amor, a fatalidade inominável do ser amoroso – errar até a morte. Longe do “sim” ao abismo da queda, em tempos pandêmicos, precipitar pode significar a condensação do desejo em forma de escrita criativa. Quiçá?

Encerramos com Barthes: “o fim dessa história, assim como minha própria morte, pertence aos outros; a eles cabe escrever esse romance, narrativa exterior, mítica”.

Ricardo Hirata é psicanalista e escritor. Realiza desde 2015, oficinas e laboratórios de escrita criativa, na interface entre a literatura e a psicanálise, junto ao Centro de Estudos Psicanalíticos (CEP-SP). Atualmente ministra o curso “Escrever o amor nos tempos de pandemia”, no Espaço Cult. Clique aqui para se inscrever.

(Publicado originalmente no site da revista Cult)