pub-5238575981085443 CONTEXTO POLÍTICO.
Powered By Blogger

domingo, 20 de maio de 2018

Durval Muniz: Elites antimodernas

Resultado de imagem para durval muniz de albuquerque

 

Para entendermos muitas das tragédias históricas que já vivemos no Brasil, inclusive a tragédia atual de um país em marcha batida para a irrelevância internacional, para a perda das conquistas sociais a duras penas conquistadas, entregue a um governo nascido de mais um golpe contra o Estado de direito, governo competente em realizar um projeto que atende interesses que não são os da maioria da população e nem do próprio país, é preciso que analisemos um traço persistente entre nossas elites, tanto políticas, quanto econômicas e intelectuais, traço que é compartilhado por amplos setores da população: a rejeição à modernidade. Embora apresente múltiplas facetas, a recusa à modernidade, a antimodernidade, é um traço que aproxima as elites políticas da direita das elites políticas da esquerda, aproxima o empresário do trabalhador, aproxima intelectuais e artistas que, aparentemente, estão postados em lados opostos nas escolhas estéticas e políticas. O antimoderno prevalece em nossas classes dirigentes e esteve na base da criação intelectual e artística de glórias de nossas letras e de nossas artes.
Mas o que é ser antimoderno? Primeiro é preciso deixar claro que ser antimoderno não é, necessariamente, recusar a modernização, recusar os avanços técnicos e tecnológicos. Um dos traços mais persistentes em nossas elites econômicas e empresariais é que elas são modernizadoras, mas não são modernas. Elas reivindicam e realizam, quase sempre, uma modernização conservadora, uma modernização que pretende não alterar radicalmente as estruturas sociais, as estruturas de poder e os valores e ideias dominantes. O usineiro, que veio substituir os senhores de engenho, no espaço que viria a ser o Nordeste, no início do século XX, era um modernizador mas, quase sempre, estava longe de ser um homem moderno. Muitos dos cafeicultores paulistas que se converteram em grandes nomes das finanças, do comércio ou da indústria, embora fossem agentes da modernização, do qual o crescimento da cidade de São Paulo foi uma resultante, não deixaram de ser homens conservadores e reativos quanto ao que era trazido pela modernidade. Muitos dos capitais que foram transformados em investimentos em serviços urbanos, em obras públicas, que alimentaram a emergência de nossos primeiros bancos, de muitas das primeiras grandes casas comerciais e firmas industrias advieram da acumulação ocorrida com a escravidão, surgiram da liberação de capitais ocorrida com o fim do tráfico negreiro e, depois, com a abolição, tendo, portanto, uma origem antimoderna. Esses capitais que foram indispensáveis para as reformas urbanas que transformaram e modernizaram a paisagem de várias cidades brasileiras, na passagem do Império para a República, como Rio de Janeiro, São Paulo e Recife, exerceram um papel modernizador, mas muito distante estiveram de exercer um papel modernizante.
Ser antimoderno não implica, também, necessariamente, em ser antimodernista. Muitos de nossos artistas e intelectuais foram modernistas na forma, mas antimodernos no conteúdo de suas obras. Isso pode parecer contraditório mas um antimoderno só pode sê-lo nos termos da própria modernidade. Uma pessoa antimoderna só é possível no interior da modernidade, como filho reativo ao mundo que o cria. Um político antimoderno terá que se expressar a partir do vocabulário e dos conceitos políticos trazidos pela modernidade, mesmo quando é para contestá-la. O mesmo vai se dar no campo intelectual e artístico. Os antimodernos vão lançar mão das linguagens, dos conceitos e das propostas estéticas e formais trazidas pela modernidade para emitir sua mensagem antimoderna. Um artista pode lançar mão da estética cubista, como fez o pintor pernambucano Lula Cardoso Ayres, para criar obras cujo conteúdo, cuja mensagem é antimoderna. Um cineasta, como Glauber Rocha, pôde usar uma conquista técnica da modernidade como o cinema e utilizar propostas estéticas de vanguarda para criar seus grandes épicos antimodernos. José Lins do Rêgo ou Jorge Amado, para citar duas glórias das letras nacionais, com posições políticas opostas, utilizaram da liberdade formal trazida pelo modernismo para criarem obras literárias de profundo significado antimoderno.
Mas, então, o que é ser antimoderno? Um antimoderno é aquele que contesta o mundo surgido das grandes transformações e revoluções ocorridas entre o século XVII e XVIII, na Europa. O antimoderno recusa ou critica o mundo surgido com a Revolução Industrial. Um mundo centrado no artifício, na máquina, no mecânico, na vida urbana, no trabalho fabril. Um mundo que teria trazido, com ele, a luta de classes, os movimentos sociais, as ideologias trabalhistas (o socialismo, o comunismo, o anarquismo), as organizações da classe trabalhadora. Um mundo utilitário, pragmático, centrado no dinheiro e na mercadoria. O antimoderno recusa ou critica o mundo surgido com a Revolução Francesa, símbolo máximo das revoluções burguesas. Um antimoderno recusa o mundo burguês, mesmo quando é filho da burguesia ou quando é alguém aburguesado. No Brasil, os filhos das elites agrárias, saudosos da vida aristocrática e monárquica do único Império que existiu nas Américas, devota um desprezo por tudo que seria burguês, desprezo que pode vir como uma reação conservadora ou como uma reação dita progressista e revolucionária: o mundo burguês será atacado pela direita e pela esquerda, resultando, como sabemos, na adesão de muitos à ideologias totalitárias, como o integralismo e o comunismo. A Revolução Francesa é o símbolo da desordem política para um antimoderno, que é, acima de tudo, um defensor da ordem. Ela representa o exemplo do que a entrega das decisões políticas às camadas populares pode significar: a barbárie e o terror. Normalmente os antimodernos desconfiam, por isso, da democracia, dita burguesa e liberal. Seja à direita ou à esquerda do espectro político, o antimoderno costuma ter uma visão instrumental da democracia, ela deve ser usada para se atingir objetivos que, se realizados, põem fim à democracia. Isso explica muito do porque a democracia no Brasil vive de curtos interregnos entre regimes de exceção.
Um antimoderno recusa a herança, no pensamento e na cultura, do Esclarecimento, do movimento Iluminista, da vitória do racionalismo, do cientificismo positivista. O primeiro grande movimento antimoderno no campo da cultura, o romantismo, não por mera coincidência esteve na base da elaboração dos discursos que iriam legitimar e dar identidade ao país, a nação recém tornada independente: o Brasil. O romantismo é um traço que atravessa e permanece presente em grande parte da produção cultural brasileira. A valorização dos afetos, das emoções, das sensações, dos corpos, em detrimento ou em conjunção com o elogio moderno à Razão, dará o tom à produção cultural brasileira. O Brasil é um país cuja narrativa da identidade destaca a carnalidade, a sexualidade, a sensualidade, a dimensão afetiva e cordial, a jovialidade, a afetividade, a emotividade, em detrimento de qualquer definição mais racionalista ou cerebral. A crítica das pretensões do racionalismo e do cientificismo positivista, base da modernidade burguesa, aparece mesmo num de nossos autores mais festejados por sua racionalidade e por seu cerebralismo: Machado de Assis. Já um Lima Barreto, vítima de uma das mais obscuras produções do racionalismo moderno, o manicômio, faz de seus livros uma denúncia da sociedade burguesa e dos mecanismos de exclusão que sua ciência e seus saberes são capazes de mobilizar. Mesmo um autor apaixonado pelo racionalismo positivista, como Euclides da Cunha, escreve um livro vingador contra os crimes que a modernidade pôde cometer, em sua arrogância, contra aqueles que representam o que se chama de atraso e de tradição.
A maioria de nossas elites políticas e intelectuais foram formadas por instituições católicas de ensino. O catolicismo sempre esteve na vanguarda da crítica à modernidade. Os intelectuais católicos foram muito importantes na formação de nosso pensamento e de nossa cultura. A antimodernidade de autores como Luís da Câmara Cascudo, Alceu de Amoroso Lima, Leonardo Motta, Murilo Mendes ou Ariano Suassuna tem seu lastro na formação católica e nos vínculos que mantiveram com a Igreja durante toda a sua trajetória de vida pública e intelectual. O catolicismo nunca aceitou a modernidade pois ela significou o fim da centralidade do divino como explicação do mundo. Os constantes choques entre o catolicismo e as descobertas científicas advém do fato de que elas solapam os dogmas e as bases intelectuais das explicações providencialistas do mundo. O que um filósofo antimoderno como o alemão Friedrich Nietzsche chamou da morte de Deus (que ele mais lamentava do que festejava) seria um dos principais acontecimentos da modernidade e motivo de sua recusa por boa parte de elites formadas pelo catolicismo e pelo cristianismo. A antimodernidade de setores cristãos na sociedade brasileira atual é uma continuação e uma radicalização dessa recusa do mundo moderno. Mesmo minoritários e, talvez por isso, os setores cristãos não católicos, desde os protestantes históricos até os protestantes neopentencostais recusaram ainda de forma mais radical a modernidade (também pensada como mundanidade). A atitude mais comum nas igrejas evangélicas no Brasil foi e ainda é em muitos casos, de recusa de tudo que se referia ao mundo moderno, tido como dessacralizado, mundano e até diabólico (proibição de ir ao cinema, ao circo, a jogos de futebol, de frequentar festas e parques de diversão, de ouvir rádio ou ver televisão, chegou a ser comum entre esses grupos). Por trás da recusa aos aparatos da modernização à recusa dos valores modernos que eles representariam. Se para Max Weber o protestantismo foi fundamental para o desenvolvimento de condições culturais e subjetivas para o surgimento do capitalismo, no Brasil as igrejas evangélicas vieram, quase sempre, reforçar a recusa à modernidade.
Quais os elementos definidores da modernidade são comumente recusados pelas elites brasileiras? A democracia liberal, o sufrágio universal, o voto popular, são algumas delas. A saudade da monarquia, do voto censitário, do voto de gente de qualidade, do voto como monopólio dos melhores (que o elogio contemporâneo a meritocracia mal esconde) sempre esteve presente em nossa elite intelectual. A análise que o historiador José Murilo de Carvalho costuma fazer da República é filha de sua simpatia monarquista que vem acompanhada de uma clara desconfiança em relação a capacidade do povo de eleger os melhores governantes (afinal, eles assistiram a proclamação da República bestializados). Monarquistas foram grandes nomes das letras nacionais como Gustavo Barroso e Luís da Câmara Cascudo. Quando vemos hoje o príncipe herdeiro avisar que vai percorrer o país numa campanha para restaurar a monarquia e grupos a pedir o retorno do regime monárquico podemos avaliar o quanto o antimodernismo está arraigado em nosso pensamento político. As elites brasileiras sempre tiveram uma relação ambígua e instrumental com o regime democrático. Alegando que nos falta povo (houve tempos em que se queria regenerar nosso povo com ingestão de sangue estrangeiro para melhorar a raça, ideia que parece legitimar a pretensa superioridade da gente do sul sobre as do norte), que nosso povo não sabe votar (notadamente se for nordestino), que qualquer líder popular é um populista, ou seja, um manipulador dos desejos do povo, que todo político é um corrupto ou um ladrão (o que manifesta o desapreço ou o desprezo pela vida política parlamentar, sempre pensada como algo baixo ou rebaixado), nossas elites caminham para o apoio à regimes de exceção, à ditaduras, para o apoio à pretensas corporações escolhidas que sabem governar e dirigir (ontem e hoje os militares, hoje os homens de toga), para o apoio a chefetes que prometem regenerar o país à golpes de autoritarismo e violência, a partir de cima, do moralismo e do combate a desordem (ontem, a vassoura de Jânio Quadros ou Collor, o caçador de marajás, hoje, o exterminador dos gays, feministas, negros, comunistas, petistas, bolivarianos, Bolsonaro). No fundo o que temem é que o regime democrático possa trazer o questionamento de seus privilégios, que ele sirva de instrumento para que os interesses populares possam alcançar os parlamentos e os governos, que eles deixem de ser monopólios desses grupos dirigentes. Desqualificar o povo é uma forma de não o ouvir. Daí porque essas castas dominantes têm que punir violentamente aquele homem do povo que, através da democracia, conseguiu furar o bloqueio de acesso ao poder político por parte dessas elites antimodernas e, por isso mesmo, antidemocráticas, antipopulares, elitistas, defensoras de hierarquias e privilégios, defensoras de lugares e postos hereditários e estamentais.
Os antimodernos falam a língua da contrarrevolução, da defesa da ordem, da crítica a participação popular nas decisões. Eles temem as organizações populares, os movimentos sociais, eles recusam as ideologias que defendem o trabalho e o trabalhador. No Brasil, os antimodernos chegam a sentir saudade da escravidão, da vida senhorial, da ordem nobiliárquica. Abominam o que a cidade trouxe de modificação nas sociabilidades e nas sensibilidades. Sentem saudade da vida rural, mesmo quando nunca lá viveram. Possuem uma visão idílica da vida no campo, escondendo a violência das relações sociais e de trabalho no meio rural brasileiro, a pobreza da maioria de nossa população camponesa, a discricionariade dos costumes aí imperantes. A reforma trabalhista do governo Temer, a atuação da bancada ruralista, as teses que defende, mostram o caráter antimoderno desse governo surgido do golpe e dos grupos que o apoiam. O discurso anticomunista que se espalha nas redes sociais, o antipetismo, o ódio a Lula, são faces desse ódio ao moderno no campo da política, à presença das camadas trabalhadoras como agentes políticos. Muita gente ainda tem cabeça de Antigo Regime, preferiria que povo e trabalhador não fizessem parte da vida política, que essa fosse monopólio de escolhidos pelo sangue ou pelo pertencimento a dadas classes sociais (o dandismo elitista de gente como João Dória, o messianismo cristão de Marcelo Crivela, assim como o bomocismo chic de Luciano Hulk ou de um Aécio Neves, que estourou como bolha de sabão, o moralismo conservador de um Joaquim Barbosa ou de Alckmin, o moralismo e o romantismo verde de Marina Silva, são expressões de formas distintas desse elitismo reacionário). São todos apresentados como ungidos e escolhidos, pela fortuna, pela moral, pela fé, por ser santo ou por ser imaculado pela corrupção. Depois não entendem porque a maioria da população não se identifica com eles, mas com aquele que tem a sua cara e seus defeitos, o que reforça sua ojeriza ao povo e ao regime democrático.
Os antimodernos criticam a emergência da ideia de liberdade individual, de indivíduo, equiparada à prevalência do egoísmo e da falta de solidariedade e caridade cristãs. Tudo que daí adveio, como a liberdade de consciência, como a recusa a submeter seus hábitos, sua vida, seus costumes, seus gostos, seu corpo aos ditames ditos comunitários e coletivos é mal visto pelos antimodernos. Embora eles tenham sido fruto dessa cultura e desses valores, da própria possibilidade de constituírem-se como diferenças individuais, são saudosos da vida comunitária, da submissão dos filhos aos valores familiares e tradicionais (o movimento escola sem partido e a perseguição ao que se chama de ideologia de gênero entre nós nasce dessa recusa de que os filhos possam ser e pensar diferentes dos pais, que possam escolher livremente seus valores e posições políticas), da subordinação de seus valores aos ditames de uma religião, de uma Igreja. O familismo presente em obras clássicas da vida intelectual brasileira, como a de Gilberto Freyre, uma grande estrela da antimodernidade à brasileira, nasce dessa recusa da prevalência moderna do indivíduo em choque com as instituições, desafiando e transgredindo as instituições. As violentas diatribes bolsonarianas ou evangélicas contra o feminismo e a defesa dos direitos das mulheres, contra o movimento homossexual e contra a própria homoafetividade, contra as diferentes escolhas no campo da sexualidade, da moralidade, da religiosidade, das crenças políticas, das preferências estéticas, mostram a recusa a uma premissa fundamental da modernidade: a prevalência dos direitos individuais, do direito a aceitação da sua forma diferente de ser indivíduo.
O antimoderno é antidemocrático, é elitista, tem uma visão hierárquica e estamental do mundo, defende a ordem, é antitrabalhista, anticomunista, detesta e teme a revolução e transgressão, sonha com um mundo ressacralizado, guiado pelos ditames religiosos (mesmo que as religiões tenham modernamente se tornado mercadorias). O antimoderno é antiburguês e anticapitalista (por isso muito de nossos antimodernos foram e são de esquerda), por isso aderem à ideologias fascistas e totalitárias, pois no fundo temem o caráter revolucionário do próprio capitalismo que gera insegurança e desordem (por isso mesmo empresários se regem por visões de mundo aristocratizantes e senhoriais, quando não aderem e financiam movimentos de extrema-direita que prometem segurança e ordem, muitos estarão dispostos a apoiar Bolsonaro). O antimoderno vive de ilusões comunitaristas (os irmãos evangélicos e os companheiros do partido de esquerda), abominam manifestações do que seria o individualismo ou a singularidade individual (a perseguição moralista a homossexualidade tanto se dá nas igrejas como seu deu nos partidos de esquerda. Recentemente o jornalista Fernando Brito voltou a responsabilizar as lutas particularistas por direitos como as responsáveis pela crise das esquerdas que teriam perdido a capacidade de ofertarem projetos coletivos). O antimoderno é nostálgico, saudosista, encantado com um mundo rural idílico, com uma infância de harmonia e vida familiar, vida familiar e famílias que não mais existem, que não se encontram em lugar algum e que tentam restaurar por um retorno a modelos patriarcais e hierárquicos há muito contestados (por isso as feministas e as mulheres são vistas como agentes do mal e da dissolução da vida social, assim como o militante gay, trans, travesti). Essa é a cara das elites brasileiras, antimodernas, apesar de modernizadoras, moderninhas e até modernistas. Vivemos sob o império do brega, como um dia vivemos sob o império do cafona: na música, na televisão, na vida religiosa, na vida empresarial, nas sociabilidades de elites, no jornalismo, na intelectualidade consagrada e de bestseller, na crônica esportiva, etc. Temos um dos governos e um dos governantes mais bregas que já passou por aquele palácio, temos um Congresso atravancado de gente brega e um judiciário onde a breguice de toga nos é servida todo dia pela TV em doses cavalares. Essa é a face mais obscura de nossa antimodernidade. Há faces luminosas que falarei em outro momento, pois como tudo que é histórico e humano, a antimodernidade é ambivalente, é ambígua, mas isso é tema para outro artigo de opinião.

Durval Muniz de Albuquerque é historiador e professor titular da Universidade Federal do Rio Grande do Norte

(Texto publicado originalmente no site Saiba Mais, Agência de Reportagem, aqui reproduzido com autorização do autor)
 

Frantz Fanon: Para entender a luta antirracista na era da informação

                                         
Dennis de Oliveira

Frantz Fanon: para entender a luta antirracista na era da informação                                                                              
O filósofo Frantz Fanon (Arte Andreia Freire / Reprodução)

No dia 11 de maio, participei de um debate com o professor Deivison Nkosi, no lançamento do seu livro, Frantz Fanon: um revolucionário particularmente negro (Ciclo Contínuo Editorial). Impressionou-me o número de pessoas presentes, demonstrando que há uma demanda importante por reflexões densas sobre as relações raciais.
Não vou discorrer em detalhes o debate e nem sobre o livro do grande Deivison Nkosi. Apenas destaco a importância de recuperar o pensamento de Fanon, um intelectual revolucionário pouco estudado e conhecido nos meios acadêmicos, inclusive na própria “esquerda”, particularmente por ser negro.
E a importância de Frantz Fanon reside justamente nas possibilidades que as suas reflexões possibilitam para compreender os potenciais (e limites) do que Hohmi Bhabha chama de “tempos liminares das minorias” em que estratégias de narrativas da diferença impedem a total cristalização da hegemonia do sistema vigente – e, aí, se inserem as pressões exercidas pelas narrativas identitárias aos discursos dominantes que, em determinados momentos pontuais (“tempos liminares”), acolhem parte das reivindicações – como foi o caso da película Os Panteras Negras (2015). Mas, além disto, destaco que o pensamento fanoniano também possibilita a articulação do antirracismo com o projeto descolonial.
Tal possibilidade é importantíssima tendo em vista que há uma tendência em vários expoentes do pensamento progressista em querer “periferizar” a temática do combate ao racismo, restringindo a questão da reivindicação identitária ou de direitos humanos. A leitura atenta de Fanon demonstra que a agenda antirracista vai muito além disto. E, inclusive, o ir além disto está presente nas suas críticas a um identitarismo fechado em si mesmo, razão pela qual o pensador da Martinica critica os movimentos da negritude de Aime Cesáire e Leopold Senghor.
Para Fanon, existe uma reificação da opressão na formação das subjetividades negras que só pode ser rompido à medida que se estabelece uma perspectiva de superação da ambiência de opressão racial. Assim, a superação do racismo para Fanon passa pela conscientização da população negra não de uma pretensa essencialidade positiva sua, mas na práxis de combate permanente aos mecanismos de opressão. Na mesma linha, Stuart Hall afirma que a ação dos grupos discriminados no “tempo liminar das minorias” se impede a total cristalização do poder instituído, obrigando-o a constantes negociações e deslocamentos, também “não são capazes de inaugurar formas totalmente distintas de vida”, isto é, não funcionam segundo a noção de uma superação dialética totalizante, nos dizeres de Hall.
Em uma sociedade da inflação das informações, percebe-se que esta disputa de narrativas se transforma em um cenário onde há uma atuação intensa deste tempo liminar das minorias, ou da differance no sentido dado por Jacques Derrida, que é apropriado de forma lateral nas propostas políticas alternativas. Entretanto, Fanon alerta para esta reificação e assujeitamento que ocorre pela manutenção de uma ambiência opressiva – que pode ser bem demonstrada pela exibição do filme Pantera Negra (2018) e das campanhas contra o racismo na Globo e na Copa do Mundo de futebol que, no entanto, acontecem sempre em paralelo com os crescentes assassinatos de jovens negros nas periferias.
Entender esta articulação entre as estratégias da differance e da descolonialidade do poder tem no pensamento de Fanon um suporte importantíssimo.
Primeiro, porque Fanon entende que a construção do sujeito é um processo realizado dialeticamente entre a subjetividade e as ambiências sociais. Por esta razão, Deivison Nkosi alerta que um conceito central em Fanon é a de sociogenia que se diferencia da ontogenia de Sigmund Freud (a constituição do ser humano particular em seu próprio tempo de vida e desenvolvimento) e da filogenia (as particularidades humanas como produto de uma universalização da espécie). Assim, as subjetividades são construtos realizados na práxis social, na qual as estratégias da differance também são incluídas.
Segundo, porque a completa humanização do ser negro só se realiza quando se estabelece uma ambiência de não opressão. O humanismo é, assim, um devir, um vir-a-ser para o sujeito negro, ele se realiza constantemente no enfrentamento das opressões sociais. É por esta razão que Fanon rejeita uma prática política que parte de uma dimensão particular (a identidade negra) direcionada apenas para a sua afirmação (cristalização de uma essencialidade negra como parte de um universo múltiplo) mas defende que ela sinalize para uma universalidade de uma dimensão de não opressão que possibilite a real humanização do ser negro. E isto passa, necessariamente, pela descolonialidade do poder instituído pelo sistema-mundo desde os tempos da colonização. É a descolonização das mentes.
No atual ecossistema comunicativo da sociedade da inflação das informações, em que a monopolização se direciona para as plataformas distributivas, possibilitando às estruturas hegemônicas apropriarem-se das narrativas da diferença, o pensamento de Fanon pode apresentar pistas interessantes para a reflexão das estratégias da differance exercidas nas redes sociais. Ou até mesmo pensar que este aparente caos informativo tem uma direção que espiona de forma esgueira, mas eficiente.

(Publicado originalmente no site da revista Cult)

sábado, 19 de maio de 2018

Editorial: Nossos sonhos não cabem em vossas urnas

 
 
 

Logo mais, às 17:00 horas, um dos atores mais emblemáticos do PT, José Dirceu, deverá apresentar-se à sede da Polícia Federal, em Brasília, onde, em cumprimento a uma determinação judicial, deverá voltar a cumprir pena em regime fechado. Aos 72 anos e com possíveis novas condenações pela frente, embora no Brasil não exista formalmente a prisão perpétua, este deverá ser o destino de uma liderança estudantil que, em décadas anteriores, esteve à frente de grupos armados que se insurgiram contra a ditadura militar no país. Baixada a poeira, com o então processo de redemocratização em curso, guindou seu partido, o PT, para a via da luta institucional, o que significou um dos principais suportes para a chegada de Luiz Inácio Lula da Silva à Presidência da República. Na presidência, Lula fez de Dirceu um dos principais nomes do seu Governo, tornando-o  ministro da Casa Civil.

 
A opção pela via institucional não foi algo assim muito simples de ser consolidado no interior da agremiação petista. Como se sabe, entre os grupos formadores do PT, haviam alguns deles de tendência política bastante radical, oriundos da luta armada contra o regime militar. Os “debates” foram tão intensos, que culminaram com a expulsão de duas dessas tendências partidárias, que acabaram formando novos partidos políticos de esquerda, como é o caso da Convergência Socialista, que fundou o PSTU, após ser expulsa do PT. Grupos “radicais” ainda existem no partido e são responsáveis diretos pela preservação da “organicidade” do PT, em contraponto ao processo de oligarquização que se tornaria evidente desde então, onde os morubixabas acabam ditando o que deve ser feito, passando por cima das instâncias partidárias deliberativas.

 
A via institucional, a quem, no passado, pode ser creditado o fato de o PT ter chegado ao poder, por outro lado, hoje, no país do golpe institucional de 2016, tem sido a ruína do grêmio partidário e dos seus líderes, algo que estava nas tessituras primárias daqueles que urdiram contra a normalidade democrática. Dez entre dez analistas políticos já afirmaram por aqui que esta não é a estratégia correta de se enfrentar um regime de exceção. Pelo andar da carruagem política - e jurídica - as derrotas serão sucessivas. O cerco aperta-se agora contra a atual presidente da legenda, a senadora Gleisi Hoffman. Por vezes, vejo-me perguntando como anda a “cabeça” da jararaca, lá na prisão da Polícia Federal do Paraná, sofrendo reveses sistemáticos, do alto dos seus 72 anos, sob um processo de desmonte psicológico inevitável? A última investida foi o corte dos seus benefícios como ex-presidente da República.

 
Tenho afirmado por aqui que estamos metido numa grande encruzilhada política. Trata-se de uma enrascada de nó-cego, onde o status quo golpista não tem um candidato competitivo para salvar as aparências da “não democracia” nas próximas eleições presidenciais; a economia vai muito mal das pernas, numa evidência de que os novos donos do poder não tinham assim uma varinha de condão com a solução para os problemas econômicos do Governo Dilma; altos índices de violência no campo e na cidade, inclusive em Estado sob intervenção, onde algumas modalidades de delitos e crimes contra a vida até aumentaram; o desemprego estrutural, que está levando milhões de brasileiros ao “desencanto”, de acordo com a “grande mídia” que apoiou as tessituras antidemocráticas; o avanço das teses fascistas, como a proposta de Escola Sem Partido que representa um grande retrocesso obscurantista para a educação brasileira.  

 
Com a jararaca fora do páreo - encarcerado e possivelmente inelegível, consoante a jurisprudência golpista - despontam à liderança nas pesquisas de intenção de voto candidatos com a plataforma de um Jair Bolsonaro(PSC) ou uma Marina Silva(Rede), representantes de segmentos retrógrados da política brasileira. Ficamos, como bem observou o cientista político Michel Zaidan Filho, entre a cruz e a espada. O recrudescimento do militarismo ou o obscurantismo religioso, que faz avançar, por exemplo, propostas indecorosas como as presentes em projetos como o Escola Sem Partido, conforme já mencionamos, onde serão abolidas a livre cátedra ou a autonomia acadêmica. De fato, como observou o editor do Le Monde Diplomatique Brasil, Sílvio Caccia Bava, nossos sonhos não cabem nessas urnas. Essas opções representariam um retrocesso ainda maior para o país.

 
Advogo aqui a tese de que devemos lutar contra a prisão de Lula, assim como pelo seu direito de candidatar-se às eleições presidenciais de 2018. Isso nos parece um ponto fora de discussão, antes que os petistas nos condenem, afirmando que pensar diferente é apoiar o trama do golpe de 2016. Mas advogo, igualmente, que é necessário se trabalhar com o realismo político que tem infringido duras derrotas ao compo da esquerda progressista. Neste contexto, torna-se urgente redefinir as estratégias de enfrentamento. Vejo com bons olhos as recentes conversas mantidas entre o candidato Ciro Gomes(PDT) e o ex-prefeito de São Paulo, Fernando Haddad,(PT) que podem, juntos, formarem uma chapa para concorrer às próxima eleição presidencial, caso ela ocorra.
 


 

Charge! Renato Machado via Folha de São Paulo

https://f.i.uol.com.br/fotografia/2018/05/18/15266931965aff7d4c4b809_1526693196_5x2_th.jpg

sábado, 12 de maio de 2018

13o anos de abolição: Projeto Escola Sem Partido impede professor de condenar escravidão


Mário Magalhães



No próximo domingo completam 130 anos as dezessete palavras que, ordenadas em dois artigos, mudaram a história:
“É declarada extinta, desde a data desta lei, a escravidão no Brasil. Revogam-se as disposições em contrário”.
Na tarde de 13 de maio de 1888, a Lei Áurea foi sancionada pela princesa imperial regente, Isabel Cristina Leopoldina Augusta Micaela Gabriela Rafaela Gonzaga de Bragança Bourbon e Orleans. Um nome quase tão extenso quanto a lei assinada por ela – duas letras a menos, conforme a grafia em vigor mais comum.
O Brasil foi o derradeiro país das Américas e do Ocidente a eliminar a escravidão. No mundo, o último foi a Mauritânia. Inexistiram generosidade da princesa Isabel e grandeza do imperador Pedro II. A condição de quase lanterninha na medida emancipatória trai o bolor dominante nas cacholas da família de monarcas prognatas.
Movimentos vigorosos, dos quilombos e revoltas negras às campanhas em salões ilustrados do Império, conquistaram a Abolição. Sem políticas que reduzissem a assimetria social, a desigualdade racial perdurou – e perdura. O Instituto de Segurança Pública do Rio de Janeiro divulgou na sexta-feira o Dossiê Mulher 2018. Com base nos homicídios propositais do ano passado, concluíram que o risco de uma mulher negra ser morta no Estado é o dobro do que espreita uma branca.
Cento e vinte e seis anos, dez meses e dez dias depois da Abolição, o deputado Izalci Lucas apresentou um projeto de lei à Câmara. “Dia histórico”, o 23 de março de 2015, festejou o movimento Escola Sem Partido. “Trata-se de uma iniciativa destinada a entrar para a história da educação em nosso país.”
Se vingar, o projeto de lei 867 entrará mesmo para a história, mas impedirá que sejam contadas nos colégios e universidades histórias como a da Abolição.

Anatomia do projeto

O tucano do Distrito Federal pretende incluir “entre as diretrizes e bases da educação nacional o ‘Programa Escola Sem Partido’”. Apregoa proteger os alunos da “doutrinação política e ideológica” que professores hoje perpetrariam. Até janeiro, uma equipe de acadêmicos opositoredo Escola Sem Partido inventariou 158 propostas (a maioria projetos de lei) protocoladas no Senado, na Câmara dos Deputados, em Assembleias Legislativas e Câmaras Municipais. Todas aparentadas à do deputado Izalci. Dezesseis haviam sido aprovadas. A maioria tramita.
O projeto de Izalci Lucas prescreve “neutralidade política, ideológica e religiosa do Estado”.
Não peita, porém, a invocação “sob a proteção de Deus” inscrita no preâmbulo da Constituição, à qual devem obediência também os que reconhecem muitos deuses ou nenhum Deus. Mas o busílis é outro: como exigir neutralidade se a Carta de um século depois da Abolição toma partido do “regime democrático”? – isso é política. “A propriedade atenderá a sua função social”, determinação constitucional, é escolha ideológica. Propriedade rural onde se flagrar “exploração de trabalho escravo” será destinada à reforma agrária – eis outro desprezo pela neutralidade impossível.
O projeto estabelece que o professor “respeitará o direito dos pais a que seus filhos recebam a educação moral que esteja de acordo com suas próprias convicções”.
Portanto, presume-se que se mãe, pai ou qualquer responsável se entusiasmar retrospectivamente com a escravidão o professor será proibido de informar que a Declaração Universal dos Direitos Humanos preconiza que “ninguém será mantido em escravatura ou em servidão”. E não poderá estimular a identificação – opção em certo aspecto moral – com o documento adotado pelas Nações Unidas em 1948. Com pais devotos do lema exterminador “bandido bom é bandido morto”, o professor omitiria dos estudantes a trajetória sangrenta de esquadrões da morte e escantearia pensamentos humanistas.
E se em casa os mais velhos forem stalinistas empedernidos? A escola terá de calar sobre o caráter da maior farsa judicial do século 20, os Processos de Moscou, que condenaram os líderes bolcheviques veteranos à morte. Se a família cultivar crenças criacionistas, o perigo será reivindicarem a incineração de livros didáticos com lições de Darwin. A professora de biologia que abra o olho.
Se a vontade do deputado amigo do Escola Sem Partido prevalecer, cada sala de aula terá afixado um cartaz com no mínimo 70 centímetros de altura e 50 de largura. Uma das ordens a constarem dele:
“Ao tratar de questões políticas, sócio-culturais e econômicas, o professor apresentará aos alunos, de forma justa – isto é, com a mesma profundidade e seriedade –, as principais versões, teorias, opiniões e concorrentes a respeito.”
Ao pé da letra, o dever do professor deixaria de ser o de esclarecer fatos e iluminar controvérsias. É recomendável que o docente descreva abordagens distintas sobre o aquecimento global. No entanto, configura crime de lesa-ensino ocultar a comprovação científica do fenômeno. E se os pais jurarem que a lei da gravidade não passa de patranha? Tem maluco para tudo. O professor menciona grupos racistas atuantes mundo afora, mas expor teorias “supremacistas” com a mesma “seriedade” das razões de quem rechaça o racismo seria leniência com o mal. Se a família é racista, que se dane – professores têm obrigação de contribuir para a formação de gente tolerante e decente. E se um pai for adepto de violência doméstica? Mais um assunto no index.
O projeto interdita “a prática de doutrinação política e ideológica bem como a veiculação de conteúdos ou a realização de atividades que possam estar em conflito com as convicções religiosas ou morais dos pais ou responsáveis pelos estudantes”.
Sala de aula não é palco para proselitismo político. Porém, não é “doutrinação” explicar que transfusões de sangue salvam vidas, aceitem-nas ou não pais Testemunhas de Jeová. O Estado é laico.
Educação sobre reprodução humana, em linguagem compatível com cada faixa etária, não pode ser banida porque na mesa do jantar falaram que a cegonha trabalha no Sedex de bebês. A cabeça medieval de certos responsáveis não é motivo para o Estado escamotear a prevenção de doenças sexualmente transmissíveis. Se papai e mamãe nutrem ojeriza por Chico Buarque e Rita Lee, as crianças não têm por que não tocar suas canções, sambas e rocks nas sessões escolares de flauta doce. E se embatucarem que o sol gira em torno da Terra?
Se aplicada ao pé da letra, a proposta retiraria dos professores a prerrogativa de dizer que a escravidão constituiu infâmia, bem como as chibatas que castigavam africanos e seus descendentes; que a violência sexual contra as mulheres escravizadas alimenta ainda hoje selvageria semelhante; que quilombolas eram criminosos somente nos termos da legislação escravocrata; eles exerceram o legítimo direito de se rebelar contra a opressão.
Essas são afirmações e interpretações de conteúdo político, ideológico e moral. E se estiverem “em conflito” com pais que consideram merecida a tortura de seres humanos escravizados, como punição por desobediência? E se famílias herdeiras de senhores de escravos perorarem que, considerando a época em que vigorou, a escravidão não foi moralmente tão nefasta assim, pois turbinou a economia agroexportadora e coisa e tal? Podem evocar a Bíblia, para justificar o escravismo, como já aconteceu em numerosos países.
O projeto suprime a voz do professor que quer tomar partido e declarar que a escravidão foi ultrajante. Se não declara, ele conta qualquer história, mas não a da escravidão.
As proposições legislativas embaladas como Escola Sem Partido ou rótulos assemelhados são sementes de leis da mordaça. Pugnam pela censura.
Confrontam a Constituição de 1988, que assegura: “É livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença”. No ensino, resguarda a “liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar o pensamento, a arte e o saber”.
No ano-fetiche de 1968, os muros de Paris telegrafaram ao mundo a proclamação libertária “É proibido proibir”.
Se o movimento Escola Sem Partido impuser o silêncio, talvez apareça um fanático sugerindo que as revoltas de cinquenta anos atrás sumam dos livros de história.

Anatomia do movimento

O advogado Miguel Nagib, criador em 2004 do Escola Sem Partido, participou de uma audiência pública na Câmara no ano passado. Estava em debate outro projeto de lei com o DNA do movimento. Ao criticar observações sobre a capacidade, mesmo relativa, de discernimento dos alunos, Nagib atacou: “É um argumento típico dos estupradores que alegam em sua defesa que aquela menina de doze anos que eles acabaram de violentar não é tão inocente quanto parece”.
Essa é a pegada do Escola Sem Partido, cuja página na internet dá a impressão de se inspirar no macarthismo de meados do século passado. Nos Estados Unidos, o senador Joseph McCarthy caçava comunistas e bruxas. Aqui, Nagib e aliados como o autointitulado MBL caçam comunistas na pele de professores. “Flagrando o doutrinador” é um dos títulos estampados na página. Denunciam nominalmente um professor “filmado por uma de suas vítimas em pleno ato de incitação de ódio aos EUA”.
Entre os “procedimentos utilizados pelos mestres da militância” estariam se desviar “frequentemente da matéria objeto da disciplina para assuntos relacionados ao noticiário político ou internacional”. Outro: o professor “ridiculariza, desqualifica ou difama personalidades históricas, políticas ou religiosas”.
Por que maldizer um padre comprovadamente pedófilo seria difamação? Mussolini é “personalidade histórica”; não pode ser desqualificado? Chamar o ditador Pinochet de ditador seria impropriedade?
Mais um título, “Conselho aos pais”. Ei-lo: “Processem por dano moral a escola e os professores que transmitirem conteúdos imorais aos seus filhos”.
Seria imoral uma aula sobre a diversidade da composição das famílias contemporâneas?
Fornecem um modelo de notificação extrajudicial: “Elaboramos um modelo de notificação anônima”. Ameaçam o destinatário, enumerando leis, com processos, detenção por seis meses e perda de cargo, emprego e patrimônio. Muitos projetos de lei preveem punições funcionais. Outra chamada: “Planeje sua denúncia”.
Não encontrei a palavra deduragem e a sugestão de introduzir uma disciplina técnica para formação de alcaguete.
Miguel Nagib define o Escola Sem Partido como “uma iniciativa conjunta de estudantes e pais preocupados com o grau de contaminação político-ideológica das escolas brasileiras, em todos os níveis: do ensino básico ao superior. A pretexto de transmitir aos alunos uma ‘visão crítica’ da realidade, um exército organizado de militantes travestidos de professores prevalece-se da liberdade de cátedra e da cortina de segredo das salas de aula para impingir-lhes a sua própria visão de mundo”.
Em seu perfil no Facebook, ele compartilha mensagens do jurista Ives Gandra Martins e do jornalista Olavo de Carvalho. O projeto de lei pioneiro, elaborado com o auxílio do coordenador do Escola Sem Partido e apresentado à Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro, foi proposto pelo deputado estadual Flávio Bolsonaro, filho do candidato a presidente. Na turma de Miguel Nagib, militam chorosas viúvas da ditadura, o regime que impunha matérias conformadas como “doutrinação ideológica”: OSPB, organização social e política brasileira, e moral e cívica.
O movimento se empenha numa cruzada discriminatória e obscurantista. A escola seria transformada em mera extensão do lar, sem novos aprendizados e conhecimentos. Os estudantes viveriam à margem de descobertas, vivências e saberes estranhos à família. Não receberiam informações nem teriam acesso a ideias plurais para formar juízos próprios e tomar decisões autônomas.
Os correligionários do Escola Sem Partido têm obsessões. Inventaram uma nova categoria filosófica-sociológica-antropológica, a falaciosa “ideologia de gênero”. Tal “ideologia” é bramida por segmentos católicos e evangélicos de sotaque fundamentalista para combater a diversidade “pecadora” e constranger identidades.
O discurso de extrema direita de aparência inofensiva, de tão caricatural, virou um inferno para muitos professores. Eles se sentem intimidados e perseguidos por pais surtados que reencarnam McCarthy. Sobretudo os da área de ciências humanas do ensino médio e dos últimos anos do ensino fundamental.
Um otimista fora da casinha relativizaria: pelo menos os alunos testemunham o que os livros contam sobre o fascismo da década de 1930.

Anatomia da resistência

Se o Brasil tem uma tarimba, é não chamar as coisas pelo devido nome. No ano passado, o ministro Luís Roberto Barroso, do Supremo Tribunal Federal, suspendeu a mal denominada lei Escola Livre. Ela havia sido aprovada pela Assembleia de Alagoas, terra onde viveram e lutaram Zumbi dos Palmares, Dandara e Ganga Zumba. Tem trechos idênticos ao do projeto de lei do deputado Izalci. Barroso despachou:
“Quanto maior é o contato do aluno com visões de mundo diferentes, mais amplo tende a ser o universo de ideias a partir do qual pode desenvolver uma visão crítica, e mais confortável tende a ser o trânsito em ambientes diferentes dos seus. É por isso que o pluralismo ideológico e a promoção dos valores da liberdade são assegurados na Constituição e em todas as normas internacionais antes mencionadas, sem que haja menção, em qualquer uma delas, à neutralidade como princípio diretivo.”
A AdvocaciaGeral da União considerou a lei Escola Livre inconstitucional. Até o Ministério da Educação se opõe ao ideário do movimento Escola Sem Partido. O Ministério Público Federal pediu ao STF que julgue inconstitucionais leis municipais com teor Escola Sem Partido. Relatores da ONU denunciaram possível “censura significativa” no ensino, restringindo “o direito de o aluno receber informação”.
Mídia-Ninja-1525812058
Os alunos do Centro Educacional 6, de Ceilândia, organizaram um protesto em defesa de um professor.
Foto: Mídia Ninja
Nenhuma resistência ao jogo duro das brigadas da ignorância é tão relevante como a dos estudantes. Pelo Brasil inteiro pipocam manifestações. Uma deputada distrital encrencou com um professor de uma escola pública de Ceilândia. Para uma turma da segunda série do ensino médio, o professor Deneir Meirelles dera uma aula em que abordou o tema homofobia. A deputada Sandra Faraj, entre outros cri-cris, chiou com alusões às expressões “identidade de gênero” e “orientação sexual”.
Os alunos do Centro Educacional 6 chamaram colegas de outros colégios e organizaram um protesto. Uns 250 participaram. A Secretaria de Educação do Distrito Federal defendeu o direito de o professor ensinar como ensinou. “Cumpri com a função que tenho”, disse Meirelles. Os estudantes seguravam um cartaz em que se lia: “Se ‘penso logo existo’, e me tiram isso, eu existo?”. Lacrou.

(Publicado originalmente no site Intercept Brasil)

Lula e o truque do diabo

          
                                                                                                                                                                                                                                                                                          
    Além da lei 

Lula e o truque do diabo

FacebookTwitterEmailPinterestAddthisLula no Ato em defesa da democracia e por justiça para Marielle e Anderson, no Rio de Janeiro (Foto: Ricardo Stuckert)

“A primeira coisa a fazer: matar todos os advogados”
– Dick the Butcher, personagem de Shakespeare em Henrique 6º
Lula tinha três opções quando sua prisão foi decretada. Entregar-se, resistir, exilar-se. Sabe-se que seu entorno se dividiu entre elas. O núcleo jurídico defendia a primeira. O núcleo político uma das outras duas. A primeira, ao fim e ao cabo, era a opção pela institucionalidade, pela defesa meramente judicial.
As duas últimas escolhas significariam atos políticos de enfrentamento do golpe. Eram as corretas. Mais do que dizer golpe, era necessário agir como se age diante de um golpe, o que significa, antes de mais nada, não entregar seu corpo aos golpistas.  Lula é mantido isolado e não pode haver dúvida razoável neste momento de que seus carcereiros estão empenhados em sua destruição psíquica e em mantê-lo preso pelo resto de seus dias.
A escolha, assim, foi jurídica. Havia a expectativa de julgamento, na semana seguinte, da Ação Direta de Constitucionalidade que poderia declarar que a prisão sem trânsito em julgado violava a presunção de inocência estabelecida pela Constituição. Isto teve forte peso na decisão de Lula de submeter-se passivamente ao decreto de prisão de Moro.
Apostar temerariamente no voto da melíflua, sibilina e sinuosa Rosa Weber era um erro. Imaginar que a presidenta do STF, comprometida com o golpe até o pescoço, permitisse fosse deliberada a ADC, outro erro. Ambos consequência da mãe de todos os erros: supor que um golpe se derrota com um recurso ao Judiciário.
Na lógica inexorável do golpe jamais aquele julgamento aconteceria naquele momento. O golpe havia, afinal, chegado à sua consumação triunfante: depois de derrubar a presidenta constitucional, encarcerar aquele que seria, segundo todos os prognósticos razoáveis, o próximo presidente da República.
Um golpe e um regime  de novo tipo. Desde, digamos, Napoleão III até as ditaduras militares da América Latina entendemos golpe como uma ruptura rápida que elimina do cenário político os adversários e rompe com a estrutura jurídica e política anterior.
Os golpes de novo tipo fazem tudo diferente. São difusos.  Não há um agente facilmente identificável que deflagra o processo. O Judiciário pode protagonizar o golpe, como em Honduras e no Brasil. São preservadas as instituições políticas e jurídicas típicas do Estado de Direito. Age-se no seio delas aparentando, insidiosamente, respeitar a legalidade que estão violando. A vigência e o texto da Constituição não se alteram, mas sua matéria é esvaziada por meio de interpretações anômalas, bizarras, e assim instaura-se um estado de anomia constitucional em que tudo é permitido porque desconsidera-se até mesmo o quadro lógico mínimo estabelecido pela linguagem normativa.
O objetivo do golpe, derrubar a presidenta, aniquilar um partido político e sua maior liderança política para que não voltasse ao poder, foi avançando passo a passo nessa anomia constitucional. Moro violou a proteção constitucional do sigilo das comunicações entregando a uma rede de televisão a conversa de dois presidentes da República, sob o olhar complacente e omisso do STF.
O impeachment, que em toda nossa tradição jurídica e constitucional exigia um crime de responsabilidade, foi transformado em uma espécie de voto de desconfiança que só existe no parlamentarismo, igualmente sob o olhar complacente e omisso do STF.  A própria Corte, por fim, autorizou a prisão de Lula negando-lhe o habeas corpus mediante uma interpretação esdrúxula da presunção de inocência, mas de acordo com o “princípio da colegialidade” que, claro, como todo o mundo civilizado sabe, se sobrepõe ao princípio da liberdade.
Esse quadro mostra simplesmente a categoria ditadura, embora sob nova forma. Concentração do poder e ausência de limites constitucionais.
Contribuições teóricas recentes e oportunas, ainda que sob nomenclaturas diferentes ou com nuances de abordagem, identificam esse fenômeno em que a aparência de Estado de Direito é preservada para encobrir e legitimar a concentração de poder e a ineficácia de regras constitucionais que o limitem. Rubens Casara, em seu Estado pós-democrático (2017), observa que a figura do Estado democrático de Direito, que se caracterizava pela existência de limites rígidos ao exercício do poder (e o principal desse poder era constituído pelos direitos e garantias fundamentais), não dá mais conta de explicar e nomear o Estado que se apresenta”.
A perspectiva de Pedro Estevam Serrano também vê o estado de exceção, embora não o identifique como permanente. Mas acrescenta um ingrediente largamente utilizado no atual processo político e social brasileiro e, a rigor, clássico do fascismo: a construção do inimigo interno. De fato, o reacionarismo, ou por vezes o filofascismo da classe média acolheu amplamente em seu imaginário a criminalização e a desumanização da esquerda.
Essa ditadura de novo tipo é a forma política do neoliberalismo. A captura integral do Estado pelo mercado. A categoria do político tem que ser diluída para ampliar e acelerar a acumulação. Nesse contexto, diluir o político significa expulsar do cenário político e social os que defendem direitos e as políticas de bem-estar social que podem retirar da miséria milhões de brasileiros.
Lula decidiu se entregar e ao fazê-lo agiu como se tudo não passasse de uma contingência a ser resolvida juridicamente pelos bons juízes que ainda há em Berlim. Escreveu uma carta no 1º. de maio afirmando que vivemos em uma democracia incompleta. O que estamos vivendo desde 2016 não é uma democracia incompleta. É uma ditadura completa. Como disse Baudelaire, o truque mais esperto do diabo é convencer-nos de que ele não existe.
O que vai tirar Lula da cadeia é a luta de classes, a verdade e a razão que só estão nela e em lugar nenhum mais. E a arena da luta de classes não é o parlamento, a sala do pleno do STF ou o gabinete do Moro. É a rua.

MARCIO SOTELO FELIPPE é advogado e foi procurador-geral do Estado de São Paulo. É mestre em Filosofia e Teoria Geral do Direito pela USP

Editorial: Caso Marielle Franco: Esclarecido?


Resultado de imagem para Marielle Franco/reconstituição

Desde de que a vereadora Marielle Franco e o seu motorista, Anderson Ferreira, foram assassinados, mantivemos na capa do blog uma charge de autoria do chargista Renato Aroeira, desenhada em sua homenagem. A ideia era só ritirá-la dali quando, de fato, seu assassinato e o do motorista Anderson fossem devidamente esclarecido. Nos últimos dias, órgãos vinculados ao Grupo Marinho, como a Rede Globo e o jornal O Globo, começaram a divulgar matérias acerca do assunto, depois que uma testemunha chave prestou dois depoimentos à Polícia Civil do Estado do Rio de Janeiro, em tese, fechando o cerco em tono do esclarecimento do assassinato da vereadora e do seu motorista, uma vez que se trata de uma peça chave no conjunto das testemunhas arroladas. Por razões óbvias, sua identidade não é revelada, assim como está sob proteção policial.

Em certa medida, a versão apresentada pelo depoente parece verossímil. No jargão acadêmico, se diria que ele tem argumento. Teria sido seguranaç de um dos acusados e presenciado todas as reuniões preparatórias, onde se planejou a morte da vereadora. Ele aponta os mandantes do crime e indica seus prováveis executores, agentes do Estado, ligados à Polícia Militar e possivelmente integrantes de grupos milicianos. Um vereador e um chefe de milícia, que se encontra preso, são apontados como mandantes. Dois dos executores teriam sido assassinados como queima de arquivo. Não tenho dúvida de que o plano seria igualmente assassinar os outros dois executores, mas existem sempre as circunstâncias no meio do caminho, seja para o bem, seja para o mal. O delator é uma espécie de fio desemcapado, ou seja, aquele elemento que foge ao controle dos operadores de delitos. Pode  ser uma pessoa, um conversa vazada inadvertidamente, um objeto incriminador deixado no local do crime. Certamente os algozes da vereadora não contavam com essa “garganta profunda”, fundamental para o desfecho do caso, se estiver dizendo a verdade. 

Segunda a versão dessa testewmunha, os mandantes do crime são o vereador Marcelo Siciliano(PHS) e o ex-PM Orlando Oliveira de Araújo, comandante miliciano que se encontra detido. Mesmo preso, ele seria um dos principais articuladores do assassinato da vereadora. A motivação, naturalmente, seria as bandeiras defendidas pela vereadora, que contrariava os interesses dos grupos milicianos, paramilitares e seus representantes no parlamento. Sabe-se, por exemplo, que o vereador citado teria reduto eleitoral onde a atuação de Marielle Franco, sobretudo quando denunciava e exigia o esclarecimentos de crimes cometidos pelos milicianos, incomodava bastante.  

A Polícia ainda pretende checar as informações repassdas por esta testemunha, com o propósito de confirmá-las ou não, antes de indiciar os acusados. Até o momento, os fmiliares da vereadora e do motorista Anderson Ferreira não se manifestaram a esse respeito. Os integrantes do seu partido, o PSOL, sobretudo o deputado Marcelo Freixo, negou uma versão apresentada pelo vereador Siciliano, que se dizia amigo da vereadora. Segundo Freixo, eram apenas colegas de parlamento. Nada mais que isso. É bom que se diga que essa versão encaixa-se com as possibilidades levantadas desde o início pela polícia, ou seja, o envolvimento de PMs, milicianos e parlamentares ligados a eles.  

quarta-feira, 9 de maio de 2018

16 livros e um conselho de Hemingway para jovens escritores

                                           
Da Redação                                                                                                                                                             

16 livros e um conselho de Hemingway para jovens escritores                                   


Ernest Hemingway no Quênia, em 1953 (Arquivo da Biblioteca John F. Kennedy/ Reprodução)
 
O jornalista Arnold Samuelson tinha quase 22 anos quando, na primavera de 1934, leu o conto One trip across na revista Cosmopolitan. Aspirante a escritor, ficou impressionado com o texto e decidiu partir em busca daquele autor, um certo Ernest Hemingway (1899 – 1961). De carona, viajou da Dakota do Norte até a Flórida – e chegou sem um tostão à casa de Hemingway, que acabou dando conselhos de escrita e leitura ao rapaz.
“O ensinamento mais importante sobre literatura é nunca escrever muito de uma vez só. Nunca seque sua fonte criativa. Deixe para o dia seguinte”, teria dito o escritor, segundo Samuelson, que conta essa história no livro With Hemingway: A year in Key West and Cuba (1988), sem versão brasileira.  
O mais importante, segundo Hemingway, seria saber quando parar de escrever: “O momento de parar é quando você sente que está indo bem e chega em um lugar interessante, a partir do qual você sabe para onde ir. Pare aí, deixe a escrita para lá e nem pense nela; permita que seu inconsciente faça todo o trabalho. Na manhã seguinte, depois de uma boa noite de sono, reescreva o que redigiu no dia anterior e, quando chegar ao ponto interessante em que parou antes, continue dele e pare em outro ponto de interesse. Assim, quando terminar, sua escrita estará repleta de pontos interessantes e você nunca se sentirá preso”.
Depois, segundo Samuelson, o autor falou da importância da leitura para a escrita e perguntou se o jovem já havia lido Guerra e paz (1867), de Liev Tolstói, “um livro bom pra burro”. Ele negou, e Hemingway o levou até seu escritório, onde escreveu uma lista de títulos e escritores essenciais enquanto separava os volumes para emprestar ao garoto. Um deles era seu último exemplar de Adeus às armas (1929), romance de sua autoria. 
No dia seguinte, o jovem voltou à casa do autor de O velho e o mar apenas para devolver os livros, e acabou sendo convidado a viajar à bordo do Pilar, que precisava de mais um membro na tripulação.  
A lista de livros essenciais sugerida por Hemingway a um jovem escritor (Reprodução)

  1. The blue hotel (1898), de Stephen Crane
  2. The open boat (1897), de Stephen Crane
  3. Madame Bovary (1856), de Gustave Flaubert
  4. Dublinenses (1914), de James Joyce
  5. O Vermelho e o negro (1830), de Stendhal
  6. Servidão humana (1915), de Somerset Maugham
  7. Anna Karenina (1877), de Liev Tolstói
  8. Guerra e paz (1867), de Liev Tolstói
  9. Os Buddenbrook (1901), de Thomas Mann
  10. Hail and farewell (1911), de George Moore
  11. Os irmãos Karamazov (1880), de Fiódor Dostoiévski
  12. The oxford book of english verse
  13. O quarto enorme (1922), de E.E. Cummings
  14. O morro dos ventos uivantes (1847), de Emily Brontë
  15. Longe e há muito tempo (1918), de W.H. Hudson
  16. O americano (1877), de Henry James
(Publicado originalmente no site da Revista Cult)

Editorial: A violência no campo como um possível indicador do recrudescimento do golpe de 2016.



 
 
 
Acabo de saber, através de uma postagem nas redes sociais, que o ex-ministro do Supremo Tribunal Federal, Joaquim Barbosa, desistiu de candidatar-se à Presidência da República nas eleições de 2018. Melhor assim, diriam alguns, notadamente aqueles que conhecem o pavio curto do ex-ministro do STF. Nesta galeria, possivelmente entrariam aqueles que endossam as palavras do cientista político Wanderley Guilherme dos Santos, que o aponta como um dos principais artífices do golpe institucional de 2016, ele que embasou a tese do domínio do fato para condenar os petistas no escândalo do mensalão, escancarando as porteiras da insegurança jurídica que tomaria conta do país desde então. Pontuaria aqui, ainda, aqueles que o veem encarnando uma personalidade de perfil eminentemente conservadora. Uma pesquisa recente apontou que o maior estrago produzido por um Joaquim Barbosa candidato seria em relação às pré-candidaturas de Jair Bolsonaro(PSC) e Marina Silva(Rede), o que confirma essa tese. Mas, aqueles leitores que desejaram ler nossas considerações sobre tal candidatura, recomendo a leitura do editorial publicado aqui, no dia  02 de Maio. 

Hoje, no entanto, gostaria de enfocar um tema dos mais preocupantes: o recrudescimento do golpe de 2016, sobretudo num aspecto emblemático ocorrido recentemente, como o caso dos sem-terra torturados no Estado do Pará, ato cometido por pistoleiros contratados a soldo por grileiros e grandes latifundiários locais. O caso do aumento exponencial do aumento da violência no campo é, sem dúvida, um dos parâmetros mais objetivos para inferirmos sobre a precariedade da saúde do Estado Democrático de Direito no país, e, consequentemente, sobre a saúde das nossas instituições da democracia. A bancada ruralista(do boi ) e a bancada  escravocrata( aqui denominada de bancada da berlinda, numa alusão a este instrumento de tortura) tiveram uma participação das mais decisivas nas tessituras que culminaram na efetivação do golpe de Estado contra a ex-presidente Dilma Rousseff. Portanto, o que ocorre neste "terreno" é fundamental para entendermos seus desdobramentos.  

Logo em seguida ao golpe, o que se viu foi uma agenda regressiva, que se caracterizou pela supressão de direitos e garantias individuais e coletivas;o afrouxamento na legislação que identificava a  existência de trabalho escravo; omissão na divulgação da famosa lista suja do trabalho escravo, que apontava empresas, fazendas e latifundiários que exploravam o trabalho escravo; corte de verba aos órgãos fiscalizadores; suspensão ( e revisão) das demarcações de terras de comunidades indígenas e quilombolas; o aumento expressivo de casos de assassinatos de camponeses e lideranças indígenas e quilombolas. Ao passo em que recrudesce a violência no campo, diminui os índices de esclarecimentos e punição dos culpados. Nunca se matou tanto, nunca se puniu tão pouco. Há aqui quase que uma licença para matar. Desta última vez, de acordo com denúncia da pastoral da terra do Pará, homens encapuzados e muito bem armados, entraram num acampamento de sem-terra na região do Rio Araguaia e cometeram todo tipo de atrocidades e torturas, espancando homens e mulheres (havia uma grávida) e crianças, cujas mães tiveram que acompanhar seu sofrimento, com tiros disparados pelos pistoleiros próximos ao seus ouvidos. 

Estabeleço aqui uma categoria recorrente em todos esses golpes de um novo tipo, ou seja, o aumento expressivo da violência no campo, fato que não ocorre apenas no Brasil, mas em Honduras e, em certa medida, também no Uruguai, como consequência da expansão do agrobusiness, que não respeita o meio-ambiente, pessoas e minorias como indígenas e quilombolas. O capital dita todas as regras, consoante um Estado leniente aos seus interesses. Se discute no parlamento uma espécie de permissibilidade do uso de agrotóxicos em lavouras, uma medida que significa um salvo-conduto para todo tipo de prática danosa à saúde humana. Trata-se de um grande retrocesso - mais um - de acordo com os representantes do Greenpeace.  

Se no campo a situação encontra-se dessa maneira, os perímetros urbanos também não ficam atrás, haja vista a execução - com dezenas de tiros - de cinco jovens, numa comuindade do Rio de Janeiro, sem nenhuma motivação aparante. Registro aqui, igualmente, a prisão coletivas de 134 jovens, que logo depois foram liberados pela justiça, uma vez que não pesavam sobre eles quaisquer indícios do cometimento de algum delito. Com o golpe institucuional de 2016, o país mergulhou numa espiral nevrálgica, de consequências imprevísveis, cujo o endurecimento do sistema - ou o  enrijecimento do poder político, como observava o filósofo Sloveno Zizek - seria uma das possibilidades mais reais. A tríade é perversa: economia combalida, crise política e institucional e o status quo golpista fragilizado, sem um nome competitivo para salvar as aparências nas eleições presidenciais de 2018. Parece mesmo que Zizek está certo.  Infelizmente.

P.S.: do Contexto Político: O flagrante acima foi obtido  pelo repórter fotográfico Guilherme Santos, do Jornal Sul 21, no exato momento em que membros da comitiva de Lula são atacados por um fazendeiro, de relho em punho. Nada mais emblemático no país da chibata, como observou o professor Durval Muniz.

sexta-feira, 4 de maio de 2018

Le Monde Diplomatique: Poder Judiciário: A ponta de lança da luta de classes

Luís Felipe Miguel


O papel do Judiciário na canalização das disputas e a crença disseminada de que os tribunais são capazes, em algum grau, de aplicar a lei tal como ela está formulada fazem nascer uma sensação de abandono quando deparamos com uma situação de arbitrariedade judicial indisfarçada. A quem vamos recorrer, quando até a Justiça é injusta?
O golpe de 2016 representou um duríssimo revés na percepção até então dominante de que a democracia brasileira, mesmo com todos os seus problemas e aos trancos e barrancos, caminhava para sua “consolidação”. Não foi apenas porque as classes dominantes abandonaram o respeito às regras do jogo e decidiram virar a mesa quando perceberam que, novamente, eram incapazes de impor seus preferidos por meio da eleição popular. O impeachment ilegal da presidenta Dilma Rousseff e o acelerado retrocesso em direitos e liberdades que se segue a ele mostram que as instituições não só não cumpriram seu papel de proteger a ordem constitucional e a democracia, como também participaram ativamente de sua subversão.
O que a onda global de desdemocratização e os golpes brandos ocorridos principalmente na América Latina vêm revelando é que o ordenamento político da democracia liberal pode ser usado para impedir o progresso social, bloquear as demandas por igualdade e, embora mantendo uma aparência de normalidade, despir os mecanismos democráticos de qualquer efetividade a que possam aspirar. No Brasil, chama atenção o protagonismo assumido pelo Poder Judiciário.
O papel do Judiciário na deflagração e convalidação do golpe político é perceptível para qualquer observador. Mas a ação cotidiana de juízes de todas as instâncias também corrobora o viés favorável aos grupos dominantes, como mostram as sentenças diferenciadas conforme a posição social dos acusados – por exemplo, a posse de uma pequena quantidade de droga ilegal pode levar a desenlaces completamente diferentes de acordo com a cor da pele e a classe social do portador. Em seu conjunto, o Poder Judiciário atua como avalista da desigualdade e das relações vigentes de dominação – o que corresponde, aliás, à posição do direito como “código da violência pública organizada”, como escreveu Poulantzas.
O que chama atenção do Brasil é que o Judiciário ocupa a posição de ponta de lança da luta de classes, cumprindo papel crucial na produção, aplicação e, em particular, legitimação das medidas que implicam retrocessos para a classe trabalhadora e outros grupos em posição subalterna. O que permitiu isso foram mudanças ocorridas nas últimas décadas e saudadas em geral como “avanços”.
Desde a promulgação da Constituição de 1988, observadores da política brasileira têm falado do crescente protagonismo do Poder Judiciário. A Carta constitucional garantiu prerrogativas estendidas e propiciou mudanças de comportamento dos agentes, levando aos fenômenos paralelos da “judicialização da política”, que faz as disputas passarem a ser resolvidas nos tribunais, e do “ativismo judiciário”, pelo qual o poder relativiza sua caracterização tradicional como “inerte”, avoca a si a iniciativa da ação e toma decisões que seriam do Legislativo ou do Executivo. Outra inovação da Constituição foi a enorme ampliação do âmbito de atuação do Ministério Público, órgão vinculado ao Poder Executivo, mas que cumpre funções judiciárias.
No período de ascensão democrática que se seguiu à promulgação da nova Constituição, esse alargamento dos poderes de juízes e procuradores foi, em geral, visto de forma positiva pelas correntes mais progressistas. A defesa de interesses coletivos e difusos, atribuída ao MP, prometia uma ampliação – necessária e urgente – da proteção a grupos oprimidos ou ao meio ambiente. As decisões tomadas no âmbito das cortes superiores podiam representar, por vezes, uma usurpação do poder de legislar, mas se mostravam mais avançadas do que aquelas advindas de um parlamento notoriamente corrompido e no qual era crescente a capacidade de chantagem de grupos fundamentalistas.
O Tribunal Superior Eleitoral introduziu regulações na disputa partidária (a chamada “verticalização” das coligações, depois revogada em 2002), no exercício parlamentar (a perda de mandato parlamentar por desfiliação, em 2007) e no funcionamento das cotas eleitorais para mulheres (com o entendimento de que o descumprimento da regra levaria à impugnação da lista partidária, em 2010) que se alinhavam ao ideal normativo da competição democrática compartilhado por liberais esclarecidos e por grande parte da esquerda brasileira. O Supremo Tribunal Federal estabeleceu direitos de minorias sexuais (reconhecimento da união civil homoafetiva, em 2011) e ampliou direitos reprodutivos (extensão do direito de aborto no caso de anencefalia fetal, em 2012), em sintonia com bandeiras progressistas. Sem discutir o mérito das decisões, elas com certeza extrapolam o que era a intenção original do legislador. Nenhuma delas teria passado no Poder Legislativo.
O desenvolvimento talvez mais surpreendente foi a aprovação em 2010, pelo próprio Congresso, de legislação que confere ao Judiciário um poder de veto na seleção de candidatos às eleições. A chamada Lei da Ficha Limpa, apresentada como iniciativa popular, apoiada pela quase unanimidade dos parlamentares e sancionada entusiasticamente pela Presidência da República, em meio a um verdadeiro clamor midiático, determinou a tutela do Judiciário sobre a soberania popular. Ainda assim, poucas vozes se ergueram contra ela.
Diante das dificuldades para elevar a educação política média dos brasileiros, a Ficha Limpa parecia um atalho seguro para a “moralização” do Estado. Trata-se de um elemento constante: o elogio da ação política do Poder Judiciário, no momento em que ela alavancava causas progressistas, é tingindo por uma percepção elitista (juristas capacitados podem decidir com mais competência) e pelo desânimo quanto à possibilidade de produzir uma opinião popular mais engajada e esclarecida.
Outra característica do Brasil é que o ativismo judiciário não é privilégio das cortes superiores. Até mesmo juízes de primeira instância podem tomar decisões de enorme repercussão coletiva – os casos de bloqueio de aplicativos de smartphones com milhões de usuários servem de exemplo. Na crise política brasileira, o juiz paranaense Sérgio Moro ocupou posição central ao liderar a Operação Lava Jato. Embora a justificativa para o impeachment nada tivesse a ver com a operação, apoiando-se em operações de crédito junto a bancos estatais (as chamadas “pedaladas fiscais”), ela foi instrumental para criar o clima de opinião que sustentou a derrubada do governo. Declaradamente inspirado na operação italiana Mãos Limpas, Moro julga que é importante dar grande visibilidade midiática e obter o “apoio da opinião pública” ao combate à corrupção.
A Lava Jato revelou parte da corrupção sistêmica da política brasileira por meio de operações espetaculares que, no entanto, atingiram de forma muito desproporcional o PT e seus aliados. Seu modus operandi privilegiado, a “delação premiada”, dá grande margem a que o agente da lei oriente o curso da investigação. Muitas vezes, seus resultados dependem da desobediência ao devido processo legal e de formas de intimidação contra testemunhas e suspeitos.
Não custa lembrar que Moro é o tradutor do artigo de um juiz norte-americano que ensina como coagir acusados para que denunciem seus cúmplices.1 Em vários momentos, sua atuação se mostrou claramente casada com o cronograma da derrubada da presidenta Dilma, culminando na divulgação do áudio de uma escuta telefônica ilegal, com uma conversa entre ela e Lula. Embora o juiz tenha sido obrigado a um envergonhado pedido de desculpas e ao reconhecimento de que a divulgação da conversa fora “equivocada”, ele continuou chefiando a operação. Atualmente, como se sabe, Moro e o tribunal de recursos ao qual sua vara está vinculada, o TRF-4, são instrumentais no impedimento à candidatura presidencial do ex-presidente Lula, que é outro importante passo no esvaziamento do que restava de esperança de respeito ao princípio básico da democracia liberal – a consulta ao povo para a escolha dos governantes.
Como um juiz de primeira instância foi capaz de acumular tamanho poder? A resposta se vincula tanto às peculiaridades da organização do Poder Judiciário no Brasil a partir da Constituição de 1988 quanto à bem-sucedida ofensiva do juiz Sérgio Moro junto à opinião pública, orquestrada com os meios de comunicação hegemônicos. Moro se tornou o emblema vivo do combate à corrupção e, portanto, intocável. As muitas arbitrariedades que cometeu ao longo do processo foram quase sempre abafadas após exposição mínima, e denúncias de graves irregularidades que o chamuscavam, como aquelas que transparecem no depoimento do advogado Rodrigo Tacla Duran, foram simplesmente deixadas de lado.
A pergunta mais importante, porém, é outra: por que as instâncias superiores do Judiciário não intervieram diante de abusos tão patentes nas investigações? Questão intrigante, sobretudo quando se lembra que, dos onze ministros do Supremo Tribunal Federal no período da derrubada de Dilma, oito tinham sido nomeados por ela ou por Lula. Qualquer explicação deve levar em conta que o STF não ficou imune ao clima de opinião formado a partir da Lava Jato – e a vulnerabilidade aumentada à pressão da “opinião pública” e da mídia é uma das características do Judiciário ativista. E também que os governos petistas não foram capazes de apresentar indicações para o Supremo que estivessem à margem do establishment jurídico e político. Pelo contrário, optaram quase sempre por demonstrar moderação, preferindo juristas conservadores e com trânsito nos partidos de direita. Também aqui a política de conciliação cobrou seu preço.
É preciso ponderar, porém, que se trata de uma situação difícil, não algo que se pudesse resolver por um mero ato de vontade do ocupante da Presidência da República. Por um lado, a indicação de juristas abertamente comprometidos com as causas populares seria encarada como rompimento do pacto que permitia a permanência do PT no poder e a implantação de políticas tímidas (mas mesmo assim importantes) de resgate da dívida social. A atuação do Supremo como avalista dos retrocessos é um indício, entre muitos outros, de que as condições de manutenção desse pacto foram erodidas. Essa é a ficha que falta cair para parcela da esquerda brasileira.
Por outro lado, o campo jurídico possui seus próprios filtros e mecanismos internos para forçar a adaptação às posições mais conformistas, mormente quando se alcançam funções de mais prestígio, poder e visibilidade. Como em outros campos (o jornalismo serve de exemplo), o conservadorismo transita como “imparcialidade”, mas visões críticas e comprometidas com a justiça social aparecem como sectárias, dificultando, portanto, a ascensão na carreira. Certamente há juízes progressistas, mas estão em situação parecida à de oficiais militares progressistas nos anos 1960. As iniciativas do Conselho Nacional de Justiça com vistas à perseguição de dissidentes ainda têm encontrado resistência, mas mostram que, na conjuntura aberta com o golpe, é possível que o Poder Judiciário se torne ainda menos arejado.
No início deste ano, dois eventos dissimilares apontaram para mudanças no cenário. Um deles foi a exposição, pela mídia hegemônica, de vantagens imorais auferidas por grande parte dos juízes, incluído aí o próprio Sérgio Moro, em particular um “auxílio-moradia” dado a quem evidentemente não precisa dele. Ao que parece, setores da coalizão golpista decidiram indicar ao Judiciário que ele não é intocável. O outro foi o anúncio, pelo ocupante da Presidência, da intervenção federal no Rio de Janeiro, que concede peso e visibilidade a um ator que, até agora, era mantido à sombra: as Forças Armadas.
Quaisquer que sejam as mudanças a que levem as disputas internas entre os grupos que deram o golpe em 2016, é ilusório pensar que o Judiciário pode ser um agente do retorno à democracia. Recursos ao STF, como ocorreram quando da deposição de Dilma e ocorrem agora com a condenação de Lula, cumprem muito mais um papel de denúncia, já que a corte demonstrou mais de uma vez seu desprezo pela legalidade fraturada.
É uma situação dramática porque, se a lei é um código da violência do Estado, como diz a citação de Poulantzas referida antes, ela também organiza, inibe e torna predizível essa violência. Sua imparcialidade ostensiva e os valores civilizatórios que ela tem de aparentar encarnar são concessões arrancadas pela luta dos grupos dominados. Também podem ser usados contra os dominantes e constrangem o exercício arbitrário do poder. O império da lei não é a garantia de uma sociedade justa, já que a lei reflete a correlação de forças dentro dessa sociedade. Mas a ruptura do sistema legal, que permite à dominação social se exibir em toda a sua nudez, retira dos mais frágeis as garantias que eles foram capazes de obter.

Quando a discricionariedade extralegal do sistema judicial, que nunca deixou de operar em prejuízo das populações mais pobres e periféricas, atinge o coração do sistema político, a democracia liberal entra em colapso. Significa que a ordem instituída não permite mais sequer que suas próprias promessas sejam mobilizadas para conter sua violência. Significa que a pressão dos dominados, que era aceita, desde que controlada, como parte do jogo, agora deve ser extirpada.
O papel do Judiciário na canalização das disputas e a crença disseminada de que os tribunais são capazes, em algum grau, de aplicar a lei tal como ela está formulada fazem nascer uma sensação de abandono quando deparamos com uma situação de arbitrariedade judicial indisfarçada. A quem vamos recorrer, quando até a Justiça é injusta? É a realidade de um país que passou de uma democracia formal, limitada, para uma democracia menos que formal, cujas instituições não se preocupam mais em disfarçar sua tendenciosidade em favor dos poderosos.
Como instituição política que é, o Poder Judiciário é sensível à correlação de forças na sociedade. É a resistência contra os retrocessos, o aumento na mobilização social, o protesto contra as arbitrariedades e a desobediência civil que podem restaurar o funcionamento mínimo de uma justiça burguesa que, ainda que sem perder o qualificativo “burguesa”, possa aspirar ao nome de “justiça”.

*Luis Felipe Miguel é professor do Instituto de Ciência Política da Universidade de Brasília.

(Publicado originalmente no site do Le Monde Diplomatique Brasil)