pub-5238575981085443 CONTEXTO POLÍTICO.
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sábado, 9 de junho de 2018

Como a política identitária dividiu a esquerda: uma entrevista com Asad Haider


Rashmee Kumar


A política identitária atende a todos os gostos, mas não no bom sentido. Em sua campanha eleitoral de 2016, Hillary Clinton invocou a “interseccionalidade” e o “privilégio branco” como um aceno vazio aos jovens eleitores liberais. Richard Spencer e membros da “alt-right” (“alternative right”, um movimento de extrema-direita nos EUA) se autodenominam “identitários” para mascarar o fato de que são, na verdade, supremacistas brancos. E, para algumas pessoas “conscientes”, usar uma camiseta onde se lê “feminista” e criticar celebridades por serem vagamente “problemáticas” é a máxima extensão de sua participação política.
O que pretendia ser uma estratégia revolucionária para derrubar opressões entrecruzadas tornou-se uma palavra de ordem nebulosa e carregada, que foi cooptada pelos diferentes polos do espectro político. Um novo livro, “Mistaken Identity: Race and Class in the Age of Trump” (“Identidade Trocada: Raça e Classe na Era Trump”, ainda sem tradução no Brasil), empreende uma análise rigorosa das políticas raciais e da história racial nos Estados Unidos para debater a mutável relação entre identidade pessoal e ação política.
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Foto: Cortesia de Verso
Em “Mistaken Identity”, Asad Haider defende que a política identitária contemporânea é uma “neutralização dos movimentos contra a opressão racial”, e não uma progressão em relação à luta de base contra o racismo. Haider, doutorando da Universidade da Califórnia, em Santa Cruz, coloca o trabalho dos acadêmicos e ativistas negros radicais em diálogo com suas experiências pessoais de racismo e organização política. Ele mapeia o processo por meio do qual as visões revolucionárias do movimento de libertação negra – que viam o racismo e o capitalismo como dois lados da mesma moeda – foram substituídas por um conceito restrito e limitado de identidade.
Ele argumenta que a identidade foi abstraída das nossas relações materiais com o Estado e a sociedade, que a tornam relevante para as nossas vidas. Assim, quando a identidade serve de base para as crenças políticas de alguém, ela se manifesta em divisionismo e atitudes moralizantes, em vez de estimular a solidariedade.
“O enquadramento da identidade reduz a política ao que você é como indivíduo e enquanto ganha reconhecimento como indivíduo, e não à sua participação em uma coletividade e na luta coletiva contra uma estrutura social opressora”, escreve Haider. “O resultado é que a política identitária paradoxalmente acaba reforçando as mesmas normas que se dispõe a criticar.”
O conceito de política identitária foi originalmente criado em 1977 pelo Coletivo Combahee River, um grupo de feministas socialistas lésbicas negras que reconheciam a necessidade de uma política autônoma própria, uma vez que se confrontavam com o racismo no movimento das mulheres, o sexismo no movimento de libertação negra, e o reducionismo de classe. Foi fundamental para sua política emancipatória trazer para o centro a forma como as opressões econômica, racial e de gênero se materializavam simultaneamente em suas vidas. Seu trabalho político, porém, não parou aí. As mulheres de Combaheem defendiam a construção de alianças em solidariedade a outros grupos progressistas para erradicar todas as formas de opressão, ao mesmo tempo em que traziam a que elas próprias sofriam para o primeiro plano.
Ao fundamentar sua crítica em histórias específicas e relações materiais, Haider adota uma abordagem de múltiplas vertentes para explorar em que intensidade a política identitária se afastou de suas origens radicais.
Por meio de seu envolvimento na organização contra o aumento das anuidades escolares e a privatização, Haider descreve as falhas dos movimentos que criam uma falsa separação das questões econômicas e raciais por critérios baseados em identidade: questões “de brancos” e questões “de não brancos”. Sua análise do “privilégio branco” reflete sobre o desenvolvimento da raça branca, codificada no estado colonial da Virgínia no século XVII pela classe dominante para justificar a exploração econômica dos africanos como escravos e evitar as alianças entre trabalhadores africanos e europeus na sequência da Revolta de Bacon.
No seu capítulo sobre “passabilidade”, Haider tenta compreender o caso de Rachel Dolezal como um exemplo das “consequências de reduzir a política à performance identitária”. Ele analisa o trabalho do novelista Philip Roth, bem como a transformação política do poeta Amiri Baraka, que abraçou o nacionalismo negro nos anos 1970 e depois o renegou em prol do universalismo marxista. Por fim, Haider explica como a eleição de Donald Trump estava delineada na ascensão do neoliberalismo na política eleitoral décadas atrás. Usando o trabalho do teórico cultural britânico Stuart Hall, ele traça cuidadosas comparações com a gestão da crise econômica e do pânico moral pelo Partido Trabalhista do Reino Unido na década de 70, que preparou o caminho para a chegada de Margaret Thatcher ao poder.
O curto livro de Haider se encerra com o paradoxo dos direitos como o objetivo final dos movimentos de massa. Ele convoca, em vez disso, a uma retomada do “universalismo insurgente”, onde os grupos oprimidos se posicionam como atores políticos, não como vítimas passivas. Ao mesmo tempo fascinante e provocativo, “Mistaken Identity” se afasta das brigas no Twitter e dos artigos de opinião para contextualizar os debates sobre política identitária e reconfigurar como a ideia de raça conforma os movimentos de esquerda. A entrevista de The Intercept com Haider foi resumida e editada por razões de clareza.
Você pode fazer um apanhado de como a política identitária se converteu de prática política revolucionária a ideologia liberal individualista?
1977 foi historicamente um divisor de águas. Em primeiro lugar, veio a crise dos movimentos de massa, que remonta ao movimento dos direitos civis – a Nova Esquerda da década de 60 e o nacionalismo negro que se seguiu a ela. Essas mobilizações e organizações de massa enfrentaram seus próprios limites estratégicos, confrontadas com a repressão estatal, e assim seu dinamismo entrou em declínio. Ao mesmo tempo, houve o que Stuart Hall chamou de “crise de hegemonia”, onde as coordenadas da política americana estavam sendo completamente reorganizadas. O mesmo processo estava acontecendo na Europa, onde as crises econômicas dos anos 1970 tinham levado a uma completa reordenação dos locais de trabalho, os sindicatos estavam na defensiva, e os movimentos de massa estavam se dissolvendo. Assim, parte do que aconteceu naquele período é que a linguagem da identidade e da luta contra o racismo se tornou individualizada e unida ao progresso individual de uma classe política negra ascendente e de elites econômicas que haviam sido excluídas do centro da sociedade americana pelo racismo, mas passaram a ter uma via de entrada.
Penso que nos falta, no momento atual, uma linguagem política que possa promover o deslocamento da divisão para a solidariedade, que foi uma questão importante para os movimentos antirracistas desde a década de 50 até a de 70, e é sobre isso que o Coletivo Combahee River estava escrevendo. Não temos uma linguagem para as lutas coletivas que inclua as questões do racismo e possa incorporar movimentos interraciais. Acho então que parte do motivo para que esse tipo de política identitária individualista apareça tanto na esquerda entre ativistas que realmente querem estruturar movimentos que desafiem a estrutura social é que nós perdemos a linguagem que acompanhava os movimentos de massa, e que nos permitia pensar em formas de construir essa solidariedade.
Você escreve que “a ideologia de raça é produzida pelo racismo, não o contrário”. O que isso significa?
Nesse livro, eu não falo sobre “raça” em geral porque é possível pensar em muitos contextos históricos diferentes em que são introduzidas divisões entre grupos que se tornam hierárquicas, e algumas delas podem estar relacionadas à cor da pele. Mas existem exemplos desse tipo de diferenciação de grupo que não estão relacionados a isso, como o caso do colonialismo irlandês e inglês na Irlanda, no século XIII, a que faço referência no livro. Se olharmos para os diferentes exemplos de escravidão no sistema de plantation do Caribe, precisaremos explicar [raça] de outra forma, porque não havia apenas escravos africanos, mas também “coolies” [termo pejorativo usado para se referir aos trabalhadores braçais vindos da Ásia] da Índia e da China.
Falo de uma história muito específica do conceito de raça que emergiu dos trabalhos forçados no estado da Virgínia no período colonial do século XVII. (…) Meu argumento é que a primeira categoria racial que se produz é a da raça branca, de forma a excluir os trabalhadores africanos da categoria em que se incluíam os europeus, para os quais havia uma previsão de término para o período de servidão, [em oposição à] categoria dos escravos, que não tinham prazo. A raça branca foi inventada, como diz Theodore Allen, na forma como as leis mudaram em relação aos trabalhos forçados, e esse foi o começo da divisão das pessoas em categorias raciais na história dos EUA. O que o racismo fez nesse caso foi estabelecer uma diferença entre os tipos de exploração econômica, ao ponto de se tornar uma forma de controle social, que dividiu os explorados ao introduzir entre eles hierarquias e privilégios para alguns, impedindo que [os trabalhadores forçados migrantes europeus e africanos] percebessem seus interesses comuns e o antagonismo comum contra aqueles que os exploravam.
Seus encontros pessoais com o racismo e suas observações sobre o ativismo universitário estão entremeados ao livro. Como a sua própria identidade e as suas experiências influenciaram a sua compreensão de raça?
Asad Haider, cofundador e editor da Viewpoint Magazine e autor do livro "Mistaken Identity".

Asad Haider, cofundador e editor da Viewpoint Magazine e autor do livro “Mistaken Identity”.

Foto: Cortesia de Asad Haider
Eu sempre me refiro a uma citação de Stuart Hall, que disse que a identidade não é um retorno às suas raízes, mas um acerto de contas com as suas rotas. Nesse sentido, identidade não é a sua essência, ou o que está dentro de você na sua fundação, mas diz respeito ao movimento que levou até onde você se encontra. Consigo rastrear minha identidade no tempo até a migração dos meus ancestrais do Irã para a Índia, e então, depois da Partição [a divisão do território da Índia Britânica pós-independência, que culminou na criação da Índia e do Paquistão], da Índia para o Paquistão; de lá, meus pais foram para o interior da Pensilvânia. É a história de um movimento pelo mundo, e, a cada passo, uma mistura que transformava o que estava se movendo. Essa percepção sempre me deixou muito cético quanto ao salto entre uma identidade e um tipo específico de política, porque a identidade não pode ser reduzida a uma coisa fixa. Quando você tem uma política que faz exatamente isso, é um desserviço para as pessoas e para todas as nossas histórias de misturas e dinamismo.
Quanto ao ativismo universitário, minha experiência foi como pessoa não branca que se radicalizou principalmente ao aprender sobre o movimento Black Power e sobre o marxismo, por meio do Black Power. Por isso, nunca imaginei que as pessoas pudessem enxergar incompatibilidade entre eles, especialmente porque o marxismo era a força poderosa que existia no século XX, e ia sendo levada e adaptada ao mundo fora do Ocidente. E isso atualmente foi esquecido ou suprimido. Então, como pessoa não branca que se envolvia em movimentos sociais, eu ficava realmente desanimado quando via que a questão racial frequentemente se tornava um catalisador de polarização, fragmentação e derrota, em vez de se incorporar a um programa de emancipação geral. Foi essa frustração que me levou a refletir e a escrever sobre os temas que compuseram o livro.
A esquerda é frequentemente acusada de ser “branca demais” ou “masculina demais”. Como a esquerda pode começar a abordar sua dinâmica racial interna?
Se você tem uma organização ou um movimento que é dominado por homens brancos, isso é um problema político e estratégico. Se ele for tratado como um problema moral, não haverá como resolvê-lo, e eu considero que o importante é conseguir mudar a situação. Qualquer pessoa que já tenha participado de ativismo sabe que, em uma reunião, alguém pode ser chamado ou intimado a “medir seus privilégios”. Jo Freeman escreveu um texto interessante, oriundo do movimento feminista, intitulado “Trashing” [“Escracho”]: o equivalente contemporâneo de “escrachar” é “expor”. O curioso do escracho é que ele não funciona, porque centraliza toda a atenção no homem branco que praticou a transgressão que esteja sendo moralmente condenada. Ele também cria uma atmosfera tal de tensão e paranoia que mesmo pessoas que não são homens brancos ficam nervosas ao falar porque podem dizer a coisa errada – e ser escrachadas. Assim, é uma questão que as pessoas envolvidas na organização precisam levar a sério, e que os homens brancos precisam levar a sério.
Havia um princípio que o comunista negro Harry Haywood dizia ser fundamental para a organização durante as lutas antirracistas dos anos 1930. Ele dizia que todos precisam acertar as contas com sua própria posição nacional. Assim, os camaradas brancos precisam se opor ao chauvinismo branco, e assumir um papel preponderante nessa oposição. E ele dizia que os camaradas negros precisavam ter um papel preponderante na oposição ao nacionalismo reacionário, que na época era representado pelo Garveyismo [de Marcus Garvey, um dos principais ativistas do nacionalismo negro] e seus equivalentes. Para ele, com essa divisão de trabalho, que era parte efetiva dos movimentos de massa, era possível começar a superar esses problemas. Mas ele disse mais tarde, quando o partido abandonou suas campanhas contra o racismo, que começaram a policiar a linguagem que cada um usava, e a divisão de trabalho acabou, e o problema não foi resolvido. E isso permanece. Homens brancos dentro dos movimentos precisam tomar a frente das tentativas de superação dessas hierarquias que se manifestam nas interações sociais, mas as pessoas não brancas também precisam dar um passo adiante e dizer: “não aceitamos essa divisão entre questões econômicas e raciais, entre classe e raça, e se alguém vier tentar dizer que essas questões são ‘brancas’ ou que este é um ‘movimento branco’, isso não é verdade, porque estamos aqui e desempenhamos um papel, e acreditamos que todas essas questões estejam conectadas e que possamos trabalhar nelas juntos”.
Você pode falar um pouco sobre as ideias por trás do nacionalismo negro dos anos 1970 e suas limitações? Como o nacionalismo negro tem resistido na política contemporânea dos EUA?
Depois de 1965, depois que o movimento dos direitos civis já havia conquistado importantes mudanças nas políticas, não estava claro para onde ele deveria se voltar. Mesmo as lideranças do movimento pensavam que, uma vez que a segregação legal já havia sido formalmente enfraquecida, ainda era preciso lidar com o fato de que a maior parte da população negra vivia na pobreza, e que existiam estruturas fáticas de exclusão. Martin Luther King, por exemplo, começou a se interessar pela “Campanha dos Pobres”, em que atuou no final de sua vida. Mas nesse momento havia também uma outra abordagem, que algumas pessoas chamavam de “tumultos” e outras chamavam de “rebeliões urbanas”, nas cidades do norte do país, numa revolta contra o controle econômico dos proprietários de imóveis e empresários brancos, e questões afins. Na região norte, num contexto urbano, o nacionalismo negro entendido como projeto político dizia respeito à construção de instituições alternativas, em vez de pleitear a integração à sociedade branca.
Havia, então, duas coisas acontecendo simultaneamente. De um lado, nacionalistas negros construindo instituições paralelas, e de outro, a superação da segregação legal e a ascensão de uma nova classe política e uma nova elite econômica negras, que sempre tinham existido em alguma medida, mas não em qualquer escala comparável. Assim, as organizações nacionalistas negras estavam por trás de boa parte das campanhas pela eleição de um prefeito negro em uma cidade de maioria negra. No caso de Amiri Baraka, foi Kenneth Gibson. Uma das razões pelas quais Baraka deixou o nacionalismo negro e aderiu ao marxismo foi a percepção de que, uma vez que Gibson estava no comando de Newark, a política continuou a de sempre. Eu considero que o nacionalismo negro teve um papel revolucionário na sua época – foi um desenvolvimento estratégico e político muito importante – mas ao longo da década de 70, com a ascensão da classe política negra e das elites econômicas negras, ele entrou em contradição.
O nacionalismo negro se tornou atrelado às elites negras políticas e econômicas porque tinha uma ideologia de união racial, e quando as pessoas estavam completamente excluídas da governança e do controle sobre suas vidas, fazia sentido que houvesse uma espécie de aliança entre essas figuras elitizadas e os estratos econômicos mais baixos, porque ambos estavam enfrentando estruturas raciais de exclusão. Porém, à medida que teve continuidade o processo de incorporação das elites negras às estruturas políticas e econômicas já existentes, aqueles interesses já não estavam alinhados, especialmente nos anos 1970, quando os políticos em todos os níveis começaram a impor medidas de austeridade à população, cortando programas sociais e afins. Passaram a ser os políticos negros fazendo isso, e então as contradições entre a elite negra e a maioria da população negra das cidades começaram a se tornar muito claras. O que eu acho que ainda permanece é a divisão entre as elites e a massa trabalhadora, e um resíduo ideológico de união racial que muitas vezes é usado para encobrir a divisão de classe. Esse era bem o caso de Barack Obama.
Como a política identitária pode ser levada de volta a suas origens radicais dentro de um discurso político e uma forma de organização contemporâneos?
Considero que precisamos estar abertos à compreensão de que nossas identidades não formam a base de nada; elas são instáveis e multifacetadas, e isso pode ser incômodo. Precisamos, porém, aprender a aceitar esses aspectos, e parte do que podemos fazer a esse respeito é criar novas formas de nos relacionarmos, que podem surgir por meio dos movimentos de massa. Poderemos superar a fragmentação a que a identidade parece conduzir atualmente ao reconhecer o que o Coletivo Combahee River propunha: que conseguíssemos afirmar uma autonomia política, mas também estar unidos. Acho isso muito prático. Essa solução não virá das discussões intermináveis no Twitter; é algo que precisa surgir da atividade política. É trabalhando em projetos práticos e concretos, aliados a outras pessoas. Esse, por si só, é um processo que enfraquece o racismo, e brancos que trabalham em conjunto com não brancos podem aprender a questionar suas próprias presunções e superar seus impulsos racistas.
Eu me inspiro muito pelo rápido crescimento de organizações socialistas na atualidade, mas algumas vezes me preocupa que o socialismo seja considerado uma espécie de projeto de redistribuição econômica que permanece inalterado desde o século XIX. Os socialistas sempre estiveram envolvidos na construção de alianças: sempre houve um princípio de internacionalismo, nunca houve um conceito fixo sobre que tipos de demanda um movimento socialista deve impulsionar. Algumas vezes uma demanda que parece não estar diretamente relacionada à redistribuição da riqueza pode ser parte da construção de alianças e da mobilização das pessoas. Se uma organização socialista está à frente de um movimento contra o racismo (e esse era o objetivo de vários membros negros do Partido Comunista na década de 30), as pessoas vão olhar ao redor e dizer: “Quem está do nosso lado? São essas pessoas. Quando estávamos lidando com a violência policial, ali estavam essas pessoas, foi essa organização que interferiu para ajudar. E essa organização é multirracial, e eles acham que essas questões que vivemos no cotidiano são importantes, exatamente na mesma medida de qualquer outra questão econômica.” Por isso as organizações socialistas também precisam estar abertas à experimentação e à flexibilidade, para poderem se antecipar à identidade como fonte de divisão e, no lugar disso, fomentar antecipadamente a solidariedade.
Você pode nos explicar sua visão de uma estrutura política universalista?
Precisamos deixar de lado o universalismo do tipo que soluciona divisões e dificuldades dizendo por antecedência que temos algum tipo de fundamento universal, como a natureza humana, ou um materialismo tratado como questão física, que não tem nenhuma relação com o materialismo de que Marx falava. Não é esse universalismo que eu defendo, porque, historicamente, ele tem sido alcançado pela exclusão e pela dominação – como o que foi trazido pelo Iluminismo, pela Revolução Francesa e pela Revolução Americana, que se mantinha associado à escravidão, ao colonialismo e a várias formas de violência. (…) Minha ideia de universalismo é que as pessoas e os grupos que estão excluídos [dessa definição] do universal se levantem e reivindiquem sua autonomia para produzir um novo tipo de universalidade. Não é algo que possa preexistir; é uma ruptura com o estado existente das coisas. O exemplo clássico é a Revolução Haitiana, que veio depois da Revolução Francesa e mostrou que a França ainda mantinha colônias onde persistia a escravidão, a despeito do que se passava na metrópole.
Conseguiríamos enxergar um novo universalismo se fossem superadas em um movimento real e pragmático as divisões rígidas entre as chamadas categorias identitárias, como raça e gênero, e a categoria de classe. Se pudéssemos ver emergir organizações que promovessem mudanças reais e concretas para aproximar esse fosso – nas quais se tornasse impossível dizer “esta é uma organização branca” ou “esta é uma organização dominada por homens”. Esse fenômeno necessariamente exigiria o questionamento da igualdade econômica e da estrutura de classes da sociedade norte-americana. Pois o surgimento de um movimento que se volte contra as estruturas fundamentais de desigualdade, dominação e exploração da sociedade americana de forma que a identidade não possa existir como força de divisão – esse seria um verdadeiro momento universal.
Foto em destaque: Isaiah Moore, à direita, discute com outros manifestantes sobre relações raciais durante uma manifestação em Coolidge Park em 17 de agosto de 2017, em Chattanooga, Tennessee.
Tradução: Deborah Leão

(Publicado originalmente no site do Intercept Brasil)

Charge! Nani

Charge! Renato Machado via Folha de São Paulo

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sexta-feira, 8 de junho de 2018

Crônica: República Dominicana


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José Luiz Gomes
E aquela viagem dos sonhos? Quem sabe Paris? Mesmo enfrentando as filas e os "engarrafamentos" para ver a Monalisa de Leonardo Da Vinci, no Louvre. Conseguiu ingresso para a visitar a Torre Eiffel? E se pintar um nevoeiro, embaçando a tua visão? São os ônus dos pacotes mais baratos, oferecidos em certas épocas do ano, para conhecer a cidade luz.  Depois, uma caminhada pela Saint Elysee e terminar o dia ( ou começar?) no bairro boêmio de Montemartre. Se chove, Paris é ainda mais bonita num dia de chuva, Woody Allen. Ou, quem sabe, o Central Parque num outono de Nova York, para esbanjar aos amigos que pisou no palco onde Simon and Garfunkel se apresentaram em 1981, reunindo 500 mil pessoas, cuja renda foi revertida para as obras do próprio parque. Ainda guardo aquele vinil, que escuto de vez em quando, num toca-discos que optei por não jogar fora. Mania de fã. Londres? talvez não fosse aconselhado porque os pombinhos da família real ainda estão em lua-de-mel, o Big Ben está passando por reformas e andam atropelando muita gente em suas pontes. Modestamente, prefiro a República Dominicana. Bem que poderia ser pelas praias de Punta Cana, mas não é este o motivo. Já explico a vocês.   
Faz pouco tempo, acompanhei alguns programas de gastronomia pela TV fechada. Quando o apresentador  desembarcou na República Dominicana, leitores, foi uma verdadeira farra. Existe um prato naquele país que se assemelha muito à nossa feijoada, feito em grandes panelas, com ingredientes específicos, servido em pratos fundos, no fundo de quintal, acompanhado pelos ritmos locais e uma cachaça de rolha. Não sei se em razão da influência espanhola - São Domingos, foi a primeira capital do império espanhol   na América - o fato é que a culinária dominicana é fora de série. Somente a influência espanhola não daria conta de tantos sabores. O que mais nos impressionou, num entanto, foi um desses restaurantes de beira de estrada. Não apenas pela comida - pedaços de porcos, que são assados inteiros no local - mas em razão de sua localização, bem em frente a um monumento erguido em homenagem à morte do ditador Rafael Trujillo, que infernizou a vida dos habitantes daquele país durante décadas. Precisas três décadas, de 30 a 61.Coisa de idealistas. A lista é grande...ainda inclui as trilhas da Sierra Maestra, La Higuera...
Agora, por ocasião da divulgação dos memorandos da Agência de Inteligência Americana sobre torturas e assassinatos no país, escrevi um longo texto sobre o assunto, mas preferi não publicá-lo, numa espécie de auto-censura, Laércio, em razão dos tempos bicudos que atravessamos. Há uma grande polêmica em torno dessas revelações da CIA, justamento no momento em que se observa um recrudescimento do golpe institucional de 2016, no Brasil. Li até algumas ingenuidades sugerindo que a CIA estaria apreensiva com os rumos políticos do país, quiçá preocupada com uma nova escalada autoritária no continente americano, como já ocorrera em décadas passadas. A CIA nunca esteve preocupada com isso, gente? O importante para aquele órgão é salvaguardar os interesses norte-americanos na região, seja nos parâmetros de regimes de democracia precária, seja através de ditaduras veladas, como ocorreu, por exemplo, durante o regime do ditador Rafael Trujillo. 
Seu chefe de polícia, uma expressão eufemística para designar, na realidade, o homem que chefiava as torturas, andava com uma agenda indefectível. Normalmente, se anda com uma agenda para se anotar os compromissos e coisas assim. Quando elas não são preenchidas, servem como caderninhos de anotações em reuniões. Esta, no entanto, tinha uma peculiaridade macabra: ali eram listados, por ordem alfabética e por países, todas as práticas de torturas existentes, aplicadas sem piedade, aos opositores do ditador. Sua ascensão na cúpula de segurança do regime foi meteórica. Se prestava perfeitamente aos serviços sujos, às práticas dos estertores do regime. Mesmo em regimes fechados, ditatoriais, os membros da Igreja Católica gozam de uma certa blindagem. Na República Dominicana, ocorreu a morte de duas freiras, o que causou uma manifestação de repúdio da comunidade internacional contra o ato bárbaro. Acionado, o então secretário de Estado Norte-Americano, Cordell Hull, teria deixado escapar uma expressão lapidar para se entender o que, de fato, conta quando se está em jogo os interesses norte-americanos na região: Ele pode ser um filho da puta, mas é o nosso filho da puta. Que filho da puta...

Governo corta bolsas de estudo de indígenas e quilombolas

Política possibilitou acesso de quase 18 mil estudantes indígenas e quilombolas às universidades

Brasil de Fato | São Paulo (SP)
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Indígenas apontam desmontes e retrocessos nas políticas públicas / Foto: Flickr
Criado em 2013 pelo governo da ex-presidenta Dilma Rousseff (PT), o Programa de Bolsa Permanência (PBP) está ameaçado desde o início de 2018. As bolsas concedidas pelo programa visam garantir condições estruturais para que indígenas e quilombolas frequentem a universidade.
Desde sua criação, o programa garantiu o acesso à educação para mais de 18 mil estudantes de aldeias e quilombos, por meio de auxílio no valor de R$ 900 para custear moradia e transporte.
Agora, com os cortes já sendo realizados pelo governo federal, lideranças indígenas calculam que entre 2.500 e 5.000 estudantes que já cursam universidades federais poderão ser prejudicados. Além disso, o Ministério da Educação informou ao jornal Folha de S.Paulo que pretende disponibilizar apenas 800 novas bolsas para todo o Brasil.
Cleber Buzatto, secretário executivo do Conselho Indígena Missionário (Cimi), contou que o governo pediu que os próprios indígenas e quilombolas definissem quem seriam os beneficiários das bolsas. Os grupos se negaram a fazer essa escolha, já que a demanda é bem maior.
"Pelos levantamentos feitos pelos povos, a demanda seria entre 4 e 5 mil bolsas", diz. Estudantes e entidades quilombolas e indígenas estão se articulando para pressionar o governo. "Com esse corte haverá uma desistência drástica, porque esses estudantes não têm condição de permanecer nas universidades sem esse devido apoio", completa Buzatto.
Dinamam Tuxá, coordenador executivo da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), enxerga os cortes como mais um gesto do governo federal que causa o enfraquecimento do povo indígena e desmontes em outras áreas como saúde, moradia e acesso à terra. "Essa política de corte perpassa não só as questões orçamentárias, mas também a política genocida que o estado brasileiro vem adotando nos últimos anos", lamenta.
Uma grande mobilização está sendo articulada em Brasília/DF entre os dias 18 e 22 de junho para cobrar a permanência das bolsas de estudo. Além disso, segundo Dinamam, os movimentos vão procurar medidas jurídicas para pressionar o governo.
Edição: Diego Sartorato
 
(Publicado originalmente no site Brasil de Fato)

quinta-feira, 7 de junho de 2018

Crônica: Tardes em Tambaú...com Geraldo Vandré


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José Luiz Gomes



Na realidade, Tambaú é um bairro para ser curtido todas as horas, desde os primeiros raios de sol, que, ali, ponto mais oriental das Américas, nasce bem antes dos outros. Numa barraca de praia, banhando-se em suas águas,  curtindo a brisa suave que brota dos coqueirais, como diria o poeta Vinicius de Moraes , saudando o seu torrão, não menos aprazível, de  Itapuã. Suas praias são de águas calmas, tranquilas e quase sempre mornas. Um convite ao mergulho, de corpo e de alma, daqueles que afastam as mazelas para bem longe, de dezembro a janeiro. Restingas preservadas completam o cenário de uma praia urbana com encantos singulares de vila de pescadores, em alguns momentos. Nos momentos em que contornamos o Hotel Tambaú e nos deparamos com barcos de pesca e uma peixaria com peixes frescos recém-chegados do mar, trazidos pelos pescadores da colônia de pescadores local. Tempo houve, dizem os mais antigos moradores, que o ambiente, como um todo, era bem mais rústico, antes das intervenções urbanas. Para mim, os resíduos dessas lembranças são impagáveis. É ali que costumo tomar uma água de coco e trocar um dedo de prosa com os trabalhadores do mar.  

Com poucas exceções, Tambaú é um dos poucos bairros onde as edificações próxima à orla respeitam o limite de quatro andares, permitindo que o direito à paisagem, Clóvis Cavalcanti, seja preservado. Há apenas dois prédios que fogem a esse padrão, construídos antes da aprovação da lei que regulamenta as construções na orla. No passado, para alguns gestores pouco criativos, a peixaria também se constituía num problema, cuja solução foi encontrada pelo então prefeito, Luciano Agra, que requalificou o local, tornando-o um espaço apreciado por turistas, que não resistem aos camarões vila franca, às ciobas e pescadas amarelas comercializadas no local. Se tem criança no recinto, corra para não perder os passeios de catamarãs até às piscinas naturais de Picãozinho, que dependem da tábua de marés. Fica a meia hora da orla e os catamarãs oferecem petiscos, bebidas e máscaras de mergulhos para os guris apreciarem o espetáculos dos peixinhos coloridos nas águas transparentes. As pedras representam o único inconveniente até se chegar às piscinas. Vale o sacrifício, no entanto. Nessas ocasiões, as crianças são os melhores juízes... 

Ainda pela manhã, ali pelas dez horas, a melhor pedida é o centenário Mercado Municipal, também conhecido como Mercado das Frutas, onde é possível comprar as frutas de época ainda fresquinhas. Com sorte  - e boa programação - você chega na época dos sapotis, dos jambos, das mangas rosas, das jabuticabas, dos famosos abacaxis de Sapé. Os mais suculentos. O Mercado de Artesanato, logo ali pertinho, é coisa para se ver à tarde, depois do almoço regional no Mangai. A feirinha de artesanato é outra opção para quem deseja levar umas lembrancinhas para os familiares e amigos. Tambaú é um bairro completo, não sei se disse isso antes...Ao cair da tarde, um passeio na orla, depois de saborear os melhores sorvetes do mundo, os da Sorveteria Friberg. Aceita uma sugestão? Não deixe de experimentar o tradicional de coco e o de chocolate africano! Hummm!Existem umas três sorveterias bem próximas. A Friberg é a mais acanhada, mas faz o melhor sorvete.  

Foi num desses momentos que este cronista encontrou o compositor Geraldo Vandré perambulando - com seu violão - por aquelas bandas, completamente absorto, sozinho, de chinelos de couro. Geraldo é um dos grandes nomes da musica popular brasileira. Bom letrista, participou de grandes festivais e tornou-se um ícone da luta pela redemocratização do país, cujas manifestações eram embaladas sempre por sua composição: Caminhando ou Para não Dizer que não Falei das Flores. Filho ilustre da Paraíba, Geraldo hoje integra um projeto mantido pela Prefeitura de João Pessoa, apresentando-se em locais públicos. Uma das provas de que este país entrou numa esquizofrenia coletiva é que tal composição foi entoada na última greve dos caminhoneiros, mas com o propósito de pedir uma intervenção militar. Exilado durante o regime militar, Vandré voltou ao país com a redemocratização, evitando entrar em polêmicas. Escreveu Fabiana, que, ao contrário de Caminhando, tornou-se um hino da Aeronáutica. Sempre muito evasivo quando questionado sobre uma possível mudança radical de comportamento, responde apenas que Caminhando, apesar dos refrões inspiradíssimos, não se propunha a estabelecer uma crítica sobre aqueles dias conturbados que o país atravessa(ops!) atravessava, digamos assim. Duas biografias não autorizadas pelo compositor comentam o episódio, insinuando uma possível perturbação mental do autor de Caminhando.

Ao cair da noite? que tal então uma tapioca gigante na pracinha de alimentação, ou, quem sabe, uns petiscos acompanhado de uma Serra Malte bem geladinha, dessas cervajas feitas com água destilada, malte e cevada? O milho não faz bem ao juízo e muito menos ao estômago. Um aviso aos navegantes e apreciadores de cervejas: há uma confraria da Serra Malte no Mercado Municipal. Esses mercadões, hoje, se constituem grandes atrações turísticas - verdadeiros points de todas as tribos e idades - como ocorre com A Ver o Peso, no Pará, o do Rio Vermelho, em Salvador, O Mercado Central, em Belo Horizonte e, o Municipal, em Tambaú. Por que não?Um passeio por sua orla muito bem cuidada, te faculta conhecer alguns pacotes para as diversões noturnas, oferecidas por casas especializados ou restaurantes com voz e violão. Se és da balada, portanto, a tua noite também está garantida. Este é Tambaú, para ser curtido todinho, até o último gole, sem remorsos, sozinho, com familiares, com parceiros ou parceiras, nesses tempos de politicamente correto.  

Charge! Benett via Folha de São Paulo

https://f.i.uol.com.br/fotografia/2018/06/06/15283334135b188465cdfc3_1528333413_16x9_th.jpg

quarta-feira, 6 de junho de 2018

Jessé: a radiografia do Golpe


Crônica: Orson Welles no Recife


José Luiz Gomes


Orson Welles esteve no Recife. De passagem, mas esteve. E que passagem, caros leitores. Aqui ele hospedou-se no antigo Grande Hotel, tomou um porre homérico, batizou-se nas águas do Rio Capibaribe e ainda encontrou tempo para conhecer as zonas boêmias de prostituição do Recife, ciceroneado pelo escritor Liêdo Maranhão, que conhecia muito bem o terreno e suas manhas. Vocês não podem imaginar o que eles aprontaram. E ainda dizem que a decadência do cineasta americano ocorreu em terras brasileiras. Não é a primeira vez que relatamos a presença de Orson Welles no Brasil. Escrevemos uma longa crônica sobre o assunto, descrevendo a famosa odisseia dos pescadores cearenses, transformada em filme pelo diretor de Cidadão Kane.  
Outro dia, ao abrir os e-mails, lá estava um longo texto escrito por um cineasta americano elogiando a crônica que escrevi. Deve ter concordado comigo, ao concluir que Orson viveu seus melhores momentos nas praias de Fortaleza, papeando com os pescadores de Iracema, degustando agulhinhas brancas com cervejas geladas e, não tenham dúvidas disso, namorando aquelas cearenses de cores avermelhadas. Já observaram que as mulheres cearenses, queimadas pelo sol, guardam um tom de vermelho na pele? Intrigado, fui procurar saber de quem se tratava. Descobri que o e-mail havia sido encaminhado por um conhecido roteirista do circuito hollywoodiano. Coisa de fã. O prestígio de Orson Welles nunca esteve em discussão por aquelas bandas. 
Os bairros boêmios do Recife sempre foram locais de perdição para a juventude. Muita gente boa não resistiu aos seus encantos, suas mulheres, suas comidas. Um verdadeiro pavor para as famílias tradicionais, cristães e conservadoras da região, que não desejavam que seus filhos seguissem aqueles maus exemplos. José Lins do Rego tirava um simplesmente na Faculdade de Direito e um louvor nas noitadas recifenses. A família de Gilberto Freyre não gostava de sua amizade com o jornalista Carlos Dias Fernandes. O jovem possuía a má fama de levar uma vida boêmia. Foi Carlos Dias quem organizou a primeira conferência pública do então jovem escritor no Brasil, num teatro em João Pessoa, com grande repercussão. Chegou a ser publicada no jornal O Norte, assim como o Diário de Pernambuco, então dos diários associados de Assis Chateaubriand.
Orson viveu no Brasil uma ponte entre os Estados do Rio de Janeiro e o Ceará, preocupado com as filmagens de It's all true. Manobras do Estado Novo getulista e o Departamento de Estado Americano, como se sabe, deixaram o cineasta à míngua, sem recursos para as filmagens, conduzidas apenas com o seu talento. Negros, pobres e favelas em suas tomadas, ainda no Rio, criaram um grande embaraço diplomático entre os dois países. O que foi concebido como uma política de boa vizinhança da diplomacia americana - despretensiosos, esses americanos - transformou-se num grande impasse. Sua passagem pelo Recife, ocorreu, portanto, em meio a essas turbulências.
Mas, se bem conheço Liêdo Maranhão, cada minuto de sua passagem pelo Recife foi muito bem aproveitado. Entre os incidentes, dar-se conta de uma possível queda no Rio Capibaribe, ali no cais que fica bem diante do antigo hotel onde hospedou-se. O porto seguro de Liêdo era o Mercado de São José, de arquitetura francesa, localizado no bairro do mesmo nome. Em suas reflexões sobre uma museologia tropical ou morena, o museólogo Aécio de Oliveira tratava o local como o melhor museu do Recife. A feira assumiria um status bastante relevante em suas concepções expositivas, daí se entender porque ele admirava tanto aquele espaço. Liêdo foi um escritor e grande pesquisador da cultura popular. Ali pesquisava as raízes, os livretos, os ditos e não ditos, também o comportamento dos seus homens e mulheres, como os camelôs, em sua lida diária pela sobrevivência. 
Afinal, o que comeu Orson Welles no Recife...depois das noitadas na Rua da Guia, do Porto do Recife, com aquelas raparigas de latifúndios dorsais, numa expressão feliz atribuída aos sociólogo Gilberto Freyre? Certamente foi ao Mercado de São José com Liêdo, experimentar alguma receita popular para curar ressaca, reconstituir as energias com um chambaril, um sururu, um arrumadinho, uma galinha à cabidela, um sarapatel, uma rabada entre outras tantas. Liêdo não revela as iguarias pernambucanas com as quais o cineasta americano se lambuzou, sem se importar com aquela salmoura que insiste em escorrer pelos lábios. E as tapiocas do Alto da Sé? E ainda dizem que o cineasta viveu sua decadência em terras nordestinas...  

Le Monde Diplomatique: Os impasses de nossas elites

Frente às eleições deste ano, qual o programa que vai ser defendido pela direita, pelas elites, na campanha eleitoral que se inicia? Quais serão suas propostas para enfrentar o desemprego e o subemprego de 26 milhões de brasileiros; para combater a pobreza que aumenta com as políticas de austeridade; a perda de nossa soberania? 
A democracia é o sistema político que tem nas eleições a forma de legitimar os governantes. Hoje, depois de muitas lutas, da conquista do direito de voto para as mulheres (1932), da conquista do voto para os analfabetos (1985), da extensão do voto facultativo para maiores de 16 anos (1988), o voto é universal. Todos os cidadãos e cidadãs brasileiras têm o direito a votar e escolher seus representantes e o programa de governo que defendem.
Assim, a disputa pelo controle da máquina publica, pela destinação dos recursos públicos, por programas de governo, pelo modelo de desenvolvimento, passa a ser feita de maneira pública, principalmente através dos meios de comunicação, buscando formar maiorias em defesa deste ou daquele programa, em defesa deste ou daquele projeto de desenvolvimento.
A transição da ditadura para a democracia no Brasil, entretanto, criou mecanismos de continuidade para garantir o controle das elites, mesmo em um cenário democrático. Vem daí o presidencialismo de coalizão, as políticas de coalizão no Congresso para garantir a maioria que permita ao Executivo governar. Pelo poder do dinheiro, pelo controle das mídias, buscava-se convencer as maiorias a sufragar os representantes das classes dominantes, e assim continuar a garantir o controle das elites sobre os governos eleitos.
Esse sistema politico, entretanto, não foi capaz de assegurar a continuidade conservadora nas eleições de 2002 e nas três eleições seguintes, quando se elegem candidatos do PT, com amplo suporte popular.
Com o amparo da Constituição de 1988 e politicas de conciliação de classes, os governos do PT conseguiram reduzir o desemprego, aumentar os salários, dinamizar o mercado interno, implantar politicas sociais redistributivas, reduzir significativamente a pobreza extrema, sem incomodar as classes dominantes, as que mais se beneficiaram do período do boom das commodities. O 2º governo Lula termina com 80% de aprovação do governo e 87% de aprovação do presidente. Com esse capital politico o PT elege Dilma Rousseff em 2010.
Já em 2012, no governo Dilma, em razão de medidas que contrariam seus interesses, como aponta André Singer, as classes dominantes desencadeiam uma campanha de difamação de seu governo e investem fortemente para modificar o cenário político nas eleições de 2014.
Os seis principais grupos econômicos investem mais de R$ 5 bilhões para eleger 70% dos novos parlamentares e controlar o Congresso, investem também fortemente na candidatura de Aécio Neves, do PSDB, que obtém mais de 51 milhões de votos. Mas perdem as eleições para Dilma, que arrebanha 54,5 milhões de votos e dá inicio ao seu segundo mandato. Uma diferença estreita, mas que lhe dá a vitória e permite um horizonte de continuidade com a perspectiva de Lula a suceder novamente.
Neste novo cenário, mesmo depois que a presidente Dilma dá uma guinada em sua política e encampa a agenda neoliberal, as classes dominantes se afastam das regras democráticas, criam as pautas-bomba no Congresso para impedi-la de governar, armam o impeachment se utilizando de seu controle do Congresso Nacional. E finalmente depõem a presidente eleita em 2016 e assumem o governo.
A partir daí o novo governo, presidido por Temer, pratica uma politica que jamais seria sufragada pelas urnas porque é contrária aos interesses das maiorias. Tendo à frente a FIESP e a CNI, as classes dominantes aplicam as politicas de austeridade, congelando os gastos públicos por vinte anos, promovendo corte de direitos, o desemprego, a precarização das relações de trabalho, a redução da cobertura da previdência, cortes no orçamento da educação, da saúde, das politicas sociais como um todo, beneficiando especialmente o pagamento do serviço da divida pública, o capital financeiro e o rentismo.
A insatisfação popular é crescente, as periferias das cidades vivem em um estado de sitio informal, com perseguições e uma politica repressiva que tem licença para matar jovens negros pobres. Nunca é demais lembrar que serão eles a definir a próxima eleição, já que 86% dos brasileiros vivem em cidades e 68% das famílias brasileiras vivem com uma renda mensal de até três salários mínimos.
Alardeando a criminalidade e a violência, e atemorizando continuamente a população, a TV busca implantar um sentimento de medo que encontra espaço na falta de uma narrativa que se oponha a esta manipulação, e busca convencer a população que são dois os problemas a serem enfrentados: a corrupção e a criminalidade, ambos pela via da repressão. Não se fala no substancial, a desigualdade crescente, a pobreza, a destruição dos recursos naturais, pois esses elementos são constitutivos do capitalismo.
Agora, frente às eleições deste ano, qual o programa que vai ser defendido pela direita, pelas elites, na campanha eleitoral que se inicia? Quais serão suas propostas para enfrentar o desemprego e o subemprego de 26 milhões de brasileiros; para combater a pobreza que aumenta com as políticas de austeridade; para enfrentar a precarização das politicas públicas, especialmente a saúde e a educação; as questões da vida nas cidades, como saneamento básico, transporte púbico, moradia, acesso a serviços públicos que deveriam ser bens comuns; a degradação ambiental e o sequestro de nossos recursos naturais pelo agronegócio, pelas mineradoras e petrolíferas multinacionais, pelo grande capital; a perda de nossa soberania?
Este governo das elites, que só voltaram ao poder pela via do golpe parlamentar, não tem propostas para apresentar para as maiorias. E mesmo com toda campanha pela mídia, seus candidatos não decolam nas pesquisas. Neste momento as classes dominantes ainda buscam um candidato conservador, mas com diálogo com outros setores da sociedade.
Se não tiverem sucesso, a única alternativa para eles ou é apoiar Bolsonaro e aprofundar um cenário de mobilizações fascistas, perseguições e violência, sem qualquer projeto para o Brasil, mas com risco de perder as eleições; ou desistir das eleições e aprofundar o golpe de Estado.

*Silvio Caccia Bava é editor-chefe do Le Monde Diplomatique Brasil

Quem é a mulher negra no Brasil? Colorismo e o mito da democracia racial

                                           

    Bianca Santana 

Quem é mulher negra no Brasil? Colorismo e o mito da democracia racial

FacebookTwitterEmailPinterestAddthisCabelo crespo, formato do nariz, da boca, podem determinar como as pessoas negras são lidas socialmente (Arte Andreia Freire)

Minha pele não é retinta. Tenho a cor da miscigenação brasileira, que tantas vezes foi utilizada para reafirmar o mito da democracia social. “Você precisa escrever sobre isso. Precisa falar sobre colorismo”, declarou Sueli Carneiro da última vez que nos encontramos. E se Sueli declara, a gente obedece.
Colorismo significa, de maneira simplificada, que as discriminações dependem também do tom da pele, da pigmentação de uma pessoa. Mesmo entre pessoas negras ou afrodescendentes, há diferenças no tratamento, vivências e oportunidades, a depender do quão escura é sua pele. Cabelo crespo, formato do nariz, da boca e outras características fenotípicas também podem determinar como as pessoas negras são lidas socialmente. Pessoas mais claras, de cabelo mais liso, traços mais finos podem passar mais facilmente por pessoas brancas e isso as tornaria mais toleradas em determinados ambientes ou situações.
É isso. Mas não é só isso. Poder ser vista como branca, ou melhor, como não negra, me permitiu oportunidades que provavelmente eu não teria se tivesse a pele mais escura, como ocupar um cargo de coordenação em um colégio europeu, de elite, onde um dia precisei argumentar fervorosamente que era uma mulher negra e que essa era uma afirmação importante. Mas não se pode perder de vista que na cidade onde vivo, São Paulo, empregos subalternos, o trabalho doméstico, os presídios têm a minha cor de pele.
Tarefa difícil essa de escrever sobre colorismo, que certamente não se esgota neste texto. “Como determinar a cor se, aqui, não se fica para sempre negro e/ou se ‘embranquece’ por dinheiro ou se ‘empretece’ por queda social?”, perguntou certa vez a antropóloga e historiadora Lilia Moritz Schwarcz. Para falar sobre colorismo precisamos considerar classe, escolarização e outros marcadores sociais da diferença. E uma breve genealogia do termo pardo pode ser útil. Nos memes de redes sociais, pardo é papel, não gente. Mas o termo se refere a pessoas desde o Brasil colonial, com múltiplos usos e significados.
No século 17, era utilizado em São Paulo para designar indígenas escravizados ilegalmente. Já no Nordeste açucareiro do mesmo período, onde africanos eram a maior parte da população, tendia a ser sinônimo de mestiçagem, ou do fruto da união entre europeus, africanos e indígenas. Mais tarde, no Sudeste, o termo aparece não só como referência à mestiçagem, mas também como sinônimo de pessoa livre, independentemente da cor de pele. O termo pardo no Brasil Colônia, portanto, indicava, além da cor de pele, o status social de pessoas não brancas livres, em um universo escravista. Segundo Hebe Mattos, o termo era uma possibilidade de diferenciação social, variável conforme o caso. “Assim, todo escravo descendente de homem livre (branco) tornava-se pardo, bem como todo homem nascido livre que trouxesse a marca de sua ascendência africana – fosse mestiço ou não”, escreveu a historiadora.
Da mesma forma, os termos preto e negro também apresentavam diferenças semânticas no período escravocrata: negro era o escravo insubmisso, e preto, o cativo fiel. Mas é possível perceber variações de significados em diferentes períodos: até a primeira metade do século 19, crioulo era exclusivo de escravos e forros nascidos no Brasil, preto designava africanos.
Os censos evidenciam, no quesito cor, como essa semântica é negociada no Brasil de forma complexa, muitas vezes intencionalmente confusa. O primeiro e o segundo censos do país, em 1872 e 1890, registraram a população preta, branca e mestiça; no de 1872 acrescida à informação da condição de escravo ou livre. Nos censos de 1900, 1920 e 1970, o item cor foi retirado. Diante da constatação de que o Brasil era um país mestiço e negro, o terceiro e quarto censo simplesmente deixaram de registrar a informação sobre a população, assim como o primeiro censo do regime militar, quando se reforçava a ideia de homogeneizar o país. No censo de 1950, a população foi distribuída entre brancos, pretos, amarelos e pardos. Indígenas não possuíam uma categoria classificatória. Em 1960, indígenas deveriam ser declarados como pardos. Em 1980, havia uma explicação para pardos: “mulatos, mestiços, índios, caboclos, mamelucos, cafuzos etc.”.
Em 1976, o IBGE fez a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio em que deixou a categoria cor como uma pergunta aberta. Cento e trinta e seis cores diferentes foram registradas, que iam da acastanhada à vermelha.
Esse uso flexível e maleável na cor que se observa no Brasil desde o período da escravidão, tão explicitado na pesquisa de 1976, está relacionado à imagem negativa da mestiçagem propagada explicitamente até a década de 1930, seguida pela extensa propaganda oficial do mito da democracia racial. Desde o século 19, teóricos das raças enalteciam “tipos puros” e colocavam a miscigenação como sinônimo de degeneração racial e social. O termo eugenia, criado em 1883, propagava a visão de que as capacidades humanas estavam exclusivamente ligadas à hereditariedade. A criminalidade, por exemplo, era vista como fenômeno físico e hereditário. Raça se tornou, nesse período, um conceito para discriminar e hierarquizar povos. Na metade do século 20, geneticistas e biólogos moleculares afirmaram que as raças puras não existem cientificamente. Mas pouco antes disso, na década de 1930, ganhou relevância no Brasil uma interpretação social, e não biológica, das relações raciais brasileiras. Gilberto Freyre afirma que a miscigenação teria acomodado conflitos raciais no Brasil, corrigindo a distância social entre a casa-grande e a senzala.
Lélia Gonzalez é das vozes que desconstrói o mito da democracia racial denunciando que o sistema escravista-patriarcal brasileiro não se constitui sobre bases harmônicas, mas na violência racial e sexual que se reproduz desde a colonização na sociedade brasileira. Uma década depois, Sueli Carneiro cunha o “estupro colonial” da mulher negra pelo homem branco como as bases para a fundação do mito da cordialidade e da democracia racial brasileira.
O movimento negro vem buscando conscientizar quem sofre discriminações por sua aparência física e origem racial – seja quem se declara preto ou pardo ao IBGE – em torno de uma mesma identidade racial de negro. “Trata-se, sem dúvida, de uma definição política embasada na divisão birracial ou bipolar norte-americana, e não biológica. Essa divisão é uma tentativa que (…) remonta à fundação do Movimento Negro Unificado, que tem uma proposta política clara de construir a solidariedade e a identidade dos excluídos pelo racismo à brasileira”, explicou o antropólogo Kabengele Munanga. Da mesma forma, o movimento de mulheres negras, que nasce dentro do movimento negro, busca conscientizar mulheres, desde a década de 1980, de sua identidade de mulher negra.
Como já escreveu tantas vezes Sueli Carneiro, o projeto em curso no Brasil ainda é o de uma hegemonia branca. Ele opera pela exclusão e a violência contra pessoas não brancas, especialmente as negras e indígenas. No imaginário social, este projeto também aparece em uma leitura de passado que omite a violência e a resistência à escravidão; encoberta as estratégias de branqueamento e do silenciamento de vozes e memórias da população negra. O mito da democracia racial branqueava negras e negros miscigenados. É importante, ao falarmos sobre colorismo, não cometermos o mesmo erro. Afinal, a quem isso poderia interessar? Como escreveu Lélia “(…) a gente nasce preta, mulata, parda, marrom, roxinha etc. Mas tornar-se mulher negra é uma conquista”.

Editorial: Lula, uma jararaca de grande intensidade.




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Nossa experiência democrática nunca foi lá grandes coisas. Talvez o historiador Sérgio Buarque de Holanda tenha mesmo razão ao afirmar que a democracia entre nós nunca passou de um grande mal-entendido. Adjetivos não faltam para tentar identificar esse mal-entendido, mas, mais recentemente, em artigo aqui publicado, a filósofa Marcia Tiburi tenha diagnosticado bem o problema de nossa inanição democrática, ao apontar que vivemos uma democracia de baixa intensidade, que funciona aos trancos e barrancos, com rompantes antidemocráticos aqui e ali - com muita frequência, aliás - mas nos permitem agir ou atuar dentro de um ambiente onde, até certo ponto, algumas regras e parâmetros são relativamente respeitadas, dentro dos marcos impostos pelas regras do jogo democrático. O golpe institucional de 2016 colocou em risco esse "ambiente', com uma possibilidade concreta de suprimi-lo de uma vez, já que ele ainda tem chão pela frente. Diante do avanço das artimanhas antidemocráticas e a consequente fragilização das forças do campo progressista e popular, conclui a autora, talvez fosse o caso de nos concentramos naquilo que ela denomina de princípio Lula.

Como se sabe, uma das premissas básicas da engenharia do golpe institucional de 2016 foi a de esmagar o PT e suas lideranças. O expediente jurídico foi muito bem utilizado com este propósito. Daí porque a via institucional utilizada pelo PT com o propósito de combater a investida se mostraria completamente ineficiente, conforme temos afirmado por aqui. Lula está preso e não será a via institucional que restabelecerá as suas prerrogativas de cidadão, muito menos ainda com o direito a candidatar-se às eleições de 2018. É diante dessas circunstâncias adversas que se recomenda um flerte com alguma candidatura que se aproxime da plataforma do princípio Lula. E o que é o princípio Lula? Ora, com algumas ressalvas, aquela agenda que conhecemos durante os governos da coalisão petista, traduzida nas políticas sociais de redistribuição de renda; na inclusão de segmentos sociais excluídos ( 36 milhões saíram da extrema pobreza e a metade já voltou neste retrocesso golpista ); mais educação para os empobrecidos; reconhecimento e avanço dos direitos de grupos minoritários como indígenas, quilombolas e LGBTT's. Como disse aqui antes, Lula foi o cara que mais fez pelo avanço da democracia substantiva no país. Os marcos aos quais a filósofo Marcia Tiburi se referem diz respeito aos limites impostos pela democracia formal.

O PT, no entanto, é um poço até aqui de contradições. Seus movimentos parecem indicar, mais uma vez, que o partido dará prioridade a uma política de alianças pragmáticas - movidas unicamente por interesses eleitoreiros - em detrimento do princípio Lula. É a velha e surrada conciliação de classes que acaba sempre no momento em que a elite brasileira - que odeia pobre, de acordo com o sociólogo Jessé de Souza - resolve quebrar unilateralmente os acordos. Alguns petistas chegaram a comemorar uma nota do partido - publicada no dia de ontem - adiando as convenções estaduais - que devem deliberar sobre candidaturas próprias nos Estados - para o final do mês. Essas convenções estavam previstas para ocorrerem no próximo dia 10. Aqui em Pernambuco, quem deve estar comemorando essa medida devem ser aqueles que defendem uma aliança com o governador Paulo Câmara, do PSB, que está com a reeleição ameaçada e busca no PT uma tábua de salvação.  Para os partidários da candidatura própria de Marília Arraes(PT), na verdade, isso soa como mais uma manobra de balcão de negócios. Até porque, segundo fontes do próprio partido, a tese de uma candidatura própria seria vitoriosa na convenção do domingo. A candidatura de Marília é a mais identificada com o princípio Lula. Não preciso dizer aqui o que o PSB representa hoje.

A notícia boa é que Lula esta inteiro. A cabeça da jararaca vai muito bem, obrigado. Sua primeira aparição pública depois da prisão demonstra isso. Lula atuou como testemunha de defesa do ex-governador Sérgio Cabral, acusado de manobras de caráter pouco republicana para trazer as olimpíadas para o Rio de Janeiro, em 2016. Fala-se na possível compra de voto de alguns delegados. Confesso a vocês que temia pela saúde mental do ex-presidente, acossado por todos os lados e, ainda mais, detido numa cela onde recebe poucas visitas, exceção apenas para os familiares. É uma barra pesada, amigo. Numa democracia frágil como a nossa, Lula continua como uma figura pública de grande intensidade, amado pelos brasileiros e brasileiras que lhes conferem o primeiro lugar em todas as pesquisas de intenção de voto. Com Lula de fora da disputa, lidera um fascista, que poderá encaminhar o país para trevas ainda mais nebulosas do que essas que ora experimentamos. Os operadores do golpe institucional de 2016, se ainda tiverem um pouco de consciência, devem ter a dimensão de que colocaram o país numa profunda crise política e econômica.

domingo, 3 de junho de 2018

Durval Muniz: Os patos e os fatos do golpe

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Passados dois anos creio ser chegada a hora dos patos serem confrontados com os fatos, serem colocados frente à frente com o que conseguiram fazer com o país, com os resultados do golpe na democracia, com o golpe contra as instituições.
Haviam naquelas manifestações várias espécies de patos, mas duas se destacavam: os patos espertos ou espertalhões, que sabiam muito bem o que estavam defendendo ali: seus interesses privados, empresariais, seus interesses de classe, pouco se lixando, de fato, para o futuro do país, para seus destinos e de sua população. Para essa espécie de patos, simbolizado pelo pato amarelo da FIESP, a corrupção, o impeachment era apenas um pretexto, um biombo, atrás do qual escondiam suas verdadeiras intenções: o desmonte das políticas sociais, da legislação trabalhista, a apropriação do Estado pelos interesses privados nacionais e internacionais.
Mas havia uma grande maioria de uma outra espécie de patos: o pato analfabeto político, a quem o senador Roberto Requião dedicou, essa semana, no Senado, um discurso memorável. Esse é a pior das espécies de patos, pois se julgam sábios, inteligentes, espertos como os primeiros, mas são de um primarismo nas ideias, nos argumentos, que, quando confrontados, tendem a partir para a ignorância apelando para os argumentos irrefutáveis do safanão, do xingamento, da chibata e da bala. Esses patos quase sempre vivem num mundo de ilusões reacionárias, numa realidade que só eles conseguem ver e quando colocados diante do cenário devastador que seu reacionarismo desinformado produziu ainda é capaz de afirmar que são simples lamúrias, pois são, além de tudo, patos onde a sensibilidade social não se faz presente, são capazes de tomar como normal a desigualdade social, a fome e a miséria.
Mas vamos aos fatos, mesmo sabendo que para a maioria de patos analfabetos políticos eles pouco importam. Negar os fatos e substituí-los pelas mentiras paranoicas que inventam e fazem circular nas redes sociais é um de seus esportes preferidos. Eles podem continuar a atribuir ao PT e aos seus governos todos os fatos que vou arrolar, afinal, quem entende de patos sabe que um traço comportamental dessa ave é realizar movimentos circulares em torno do mesmo lugar, em torno de si mesma, pato, muitas vezes, gira, gira e não sai do canto, adora fazer marola e se ver mergulhada em um círculo vicioso. Traços de psicologia de patos, patética talvez. Para ser didático (mania de professor talvez) vou colocar lado a lado os discursos e argumentos dos patos para irem às ruas, para apoiarem e promoverem o golpe, e o resultado que temos depois de dois anos.
Os patos ficaram indignados e foram as ruas principalmente em nome do combate à corrupção. O juiz Sérgio Moro tornou-se o ídolo dos bandos de patos ou da patacoada. Após anos de espetaculosas investigações, temos todos os principais ladrões, confessos e provados, nas ruas ou em casa portando tornozeleiras e desfrutando do patrimônio mal adquirido, embora os patos continuem acreditando e defendendo a Lava Jato, pois, afinal, para os patos espertalhões ela conseguiu entregar a sua encomenda: serviu de pretexto para retirar o PT do poder e condenou e encarcerou o maior líder popular do país sem provas e sem conseguir mostrar o objeto do crime.
Os patos foram as ruas para retirar do poder um governo corrupto e incompetente. E colocaram no poder, talvez, a maior quadrilha que já nos governou. Enquanto nada se conseguiu provar, até agora, contra a presidenta deposta, o vice golpista, guindado ao poder pelo golpe, já responde a vários processos por corrupção. Gravações de ministros aparecem dizendo que é preciso estancar a Lava Jato. Ministro é flagrado com malas de dinheiro em apartamento. Um assessor do presidente foi filmado transportando mala de dinheiro.
Os patos acusavam a presidenta de comprar apoios da base aliada, o que de resto nunca ficou provado. Mas o fantoche que foi colocado em seu lugar compra votos no Congresso, para escapar de ser processado por corrupção, às escancaras, à luz do dia, com deputados da prancheta a anotar o voto de cada um que antes foi recebido em palácio para as “tratativas de apoio”.
Enquanto os patos vociferavam contra o ex-presidente que teria um triplex que está no nome de uma construtora e penhorado em um banco público e teria um sítio com barquinhos de lata que tem donos devidamente registrados em cartório, o presidente do golpe, colocado lá pelos patos, tem uma fazendola no interior no nome de um testa de ferro e sua filha fez uma pequena reforma no apartamento do pai com dinheiro de propina. Mas o ex-presidente está preso, para delírio dos patos, e o presidente do golpe está solto e nos governando.
Os patos exibiam, envaidecidos, em seus carros, o adesivo com a máxima: “Eu não tenho culpa, eu votei no Aécio”, adesivos que a essa altura todos juram que nunca viram. Outro cabecilha dos patos, outro ídolo da patacoada, Aécio, o menino mimado que perdeu as eleições e agiu como se tivera perdido o doce, com a irresponsabilidade política de um play boy, incendiou o país, patrocinou o golpe e hoje arde no próprio incêndio que iniciou. Apesar de todas as gravações que o incriminam, apesar de ter até ameaçado de morte uma de suas mulas de propina, ele segue nas ruas, embora, hoje, todos os patos finjam que não fizeram campanha para ele, nem o apresentaram como um símbolo de honestidade, honradez e competência. Aécio desapareceu das páginas do Facebook dos patos. Ingratos! Aquelas fotinhas de campanha são hoje uma vergonha a ser esquecida. Até o juiz Moro outro dia, outro ingrato (ou ingato, muitas patinhas acham ele um pão), diz ter sido um erro a foto sorridente com o seu candidato a presidente e membro do partido fundado por seu pai e para quem trabalha sua esposa. Provas de imparcialidade da justiça dos patos, ou patética mais uma vez.
Os patos foram as ruas denunciando um governo que estava acabando com o país, que era incompetente na gestão da economia, que não estava sabendo gerir a crise. Dois anos após a promessa de crescimento e recuperação econômica imediata, da prometida “retomada do crescimento”, trombeteada toda manhã pela rainha dos especialistas em economia da patolândia, o país apresenta um cenário econômico desolador: a abertura neoliberal da economia, a retirada dos investimentos estatais (da qual a PEC da limitação dos gastos públicos por vinte anos e o fim de programas estruturantes como o PAC são os maiores símbolos), a entrega de setores estratégicos da economia para o capital estrangeiro (petróleo, gaz, eletricidade, mineração), a paralisação de todas as obras de construção civil (com o auxílio luxuoso da patolândia de Curitiba ao exterminar as principais construtoras do país) e das grandes obras estruturantes, o encolhimento da oferta de crédito com a consequente crise do comércio e dos serviços, está acelerando o processo de desindustrialização do país e a primarização da economia. O que foi apresentado como um argumento para o golpe agora é silenciado. O apagão, tão prometido, finalmente aconteceu. Desde que assumiram a dívida pública sobre o PIB triplicou, a arrecadação desabou, desabamento auxiliado pelos impostos perdoados aos empresários financiadores do golpe, vivemos dois anos de recessão, o desemprego triplicou, milhões de pessoas retornaram para a miséria, estados e municípios faliram, o país se tornou um pária nas relações internacionais (todo chefe de Estado que vem a América do Sul ignora o Brasil e seu governo ilegítimo).
Nas Universidades, os patos de canudo e título de doutor, que deram pulinhos pelos corredores, comemorando o golpe, veem os recursos escassearem, as bolsas e programas de financiamento a pesquisa desaparecerem, a liberdade de cátedra ser atacada por grupos de direita, parlamentares e membros do judiciário e do Ministério Público, pelos patos togados que querem se apossar do poder. No vazio de poder criado pelo golpe, na desmoralização das instituições, no desprestígio da política e dos políticos, os patos togados veem a possibilidade do assalto ao governo. Sem nenhum pudor grasnam suas sentenças nas mídias, palpitam sobre políticas publicas, se reúnem na calada da noite com membros do governo ameaçados pela justiça para ditar-lhes suas soluções mirabolantes para o país. Saídos das universidades públicas, professores de universidades públicas defendem publicamente a privatização da educação superior, enquanto um ator pornô define nossas políticas educacionais. Os patos analfabetos políticos querem assim espalhar indefinidamente seu analfabetismo, tornando-o analfabetismo político de cátedra, ou escola “sem partido”. Qualquer coisa aparentada com o uso da razão e da crítica lhes cheira a “comunismo”, conceito que usam para nomear pessoas e situações que apenas provam que eles sequer sabem o verdadeiro significado desse conceito. Para um pato qualquer crítica é patacoada lamurienta de comunista, petista, bolivariano, mortadela, que para eles, com sua visão aguçada, é tudo a mesma coisa.
Os patos foram as ruas se queixando dos serviços públicos, do preço dos combustíveis, da eficiência na gestão, até escolheram um deles para prefeito da maior cidade do país, por não ser “político”, ser “gestor”, embora o “gestor” não político após fazer uma patacoada de gestão na prefeitura, já esteja na segunda candidatura em menos de três anos. Os patos de linda plumagem rapidamente viraram patinhos feios: o governador santo atolado em corrupção; todas as principais lideranças dos tucanos (outra ave de famosa plumagem, a mais midiática de todas, a ave canora da mídia, embora mal grasne alguma ideia com sentido) flagrados em escândalos sem fim, ameaçados por paulos pretos (essa cor é um problema para essa gente) da vida; o comandante do golpe na cadeia; o juiz arauto do golpe transformado em defensor de corruptos e execrado pela mesma mídia que o deu audiência; impolutos senadores que fazem até chover dinheiro e que foram os porta vozes do golpe respondendo a inúmeras denúncias, muitos ameaçados de prisão; os novos líderes que fizeram peregrinação a Brasília pelo golpe revelando em querelas internas que não passavam de aproveitadores e oportunistas em busca da fama de quinze minutos no Jornal Nacional, a Bíblia dos patos. A saúde se deteriora com a redução dos recursos por causa da PEC do fim do mundo, com a realização do sonho dos patos de roupa branca que era o fim do programa Mais Médicos e a paralisação da expansão do ensino de medicina no país, tudo em nome da reserva de mercado e da defesa de privilégios de classe e de família. Interesse público e da população que se dane, que pobre morra, é a mensagem que vinha e vem das gloriosas faculdades de medicina, das instituições médicas, apoiadoras e entusiastas do Aécio, realmente um campeão da saúde e da sanidade.
Apesar da entrega do pré-sal às empresas estrangeiras, com o fim da destinação de seus royalties para educação, saúde, ciência, tecnologia e inovação, apesar do fim da política de preferência nacional nas compras da Petrobras, o preço dos combustíveis não para de subir. Os patos que inventaram até um adesivo misógino e machista para encher o tanque de seus carros e, ao mesmo tempo, estuprar a presidenta do país (e nada sofreram por isso, numa leniência com o crime, pois isso é crime, típica dos governos petistas que alimentou e engordou as cobras que terminou por mordê-los) hoje enchem seus tanques calados quando a gasolina se aproxima dos R$ 5,00. Não se vê as estradas serem interrompidas por locautes de caminhoneiros e empresas de carga (velha tecnologia de golpes de estado empregada pela CIA) embora o óleo diesel não pare de subir e as condições de trabalho dos caminhoneiros só tenham piorado e se precarizado com a nova legislação trabalhista (o governo golpista acabou com a obrigatoriedade dos caminhoneiros pararem entre as 22 horas e as 4 da manhã, retornando a barbárie de motorista de caminhão drogado com estimulantes circulando pelas estradas).
Os amarelinhos dos correios, dos bancos públicos, das polícias federal e rodoviária, que foram crédulos apoiadores do golpe, levando para as manifestações ilegalmente as suas viaturas, hoje veem seus salários minguarem, as agências serem fechadas, o desemprego atingir uma grande parcela deles. Hoje, circulando como motoristas da Uber para sobreviverem, choram seu arrependimento ou exibem seu ressentimento prometendo, agora, solucionar tudo votando em Bolsonaro. Não é preciso dizer que esses patos não aprendem que não se deve levar o pathos, a paixão, a irracionalidade, o ódio, os maus bofes para a política: elas são péssimas conselheiras. Achar que alguém capaz apenas de frases de efeito, de tiradas grotescas e grosseiras, que alguém incapaz de ter uma ideia sobre economia, saúde, cuja saída para segurança é distribuir armas e para a educação instalar um militar no MEC, possa ser a solução de algo, é levar sua condição de pato à enésima potência, é uma patacoada de mal gosto.
Mas nem todos os patos foram pegos de surpresa pelas políticas de descontinuação (eufemismo usado pelo erudito presidente para nomear a paralisação e fechamento de inúmeros programas que beneficiavam a população mais carente) do governo nascido do golpe: os patos espertalhões estão conseguindo boa parte daquilo que esperavam, embora a incompetência do governo que colocaram no poder é tão grande que nem a eles consegue agradar completamente. Senão vejamos. Os lobos disfarçados de patos conseguiram destruir as conquistas legais que os trabalhadores haviam conquistado na última década e, não satisfeitos, conseguiram que as conquistas de mais de sessenta anos fossem devastadas: fim da política de valorização do salário mínimo, ataque ao financiamento dos sindicatos, destruição da legislação trabalhista, precarização do trabalho, fim de garantias quando do desemprego, possibilidade da existência do trabalhador intermitente, exposição da trabalhadora grávida a condições de trabalho insalubre, extensão da tercerização para as atividades meio, ameaça a existência da própria justiça do trabalho. O país recua em dois anos o que se levou décadas para se construir em termos de direitos e garantias para o trabalhador. Sob a penugem dos patos vemos surgir a casaca do patrão, do patrão à brasileira, aquele que não quer pagar impostos e nem salários, que quer lucros exorbitantes e socorro do Estado – que sempre amaldiçoa-, sempre que estiver em dificuldades. Existem patos desse tipo até como candidato a presidência da República, cantando até musiquinha falando do painho patinho.
Os patos donos de empresas privadas de educação, que fizeram do MEC o seu poleiro, investem numa “reforma” do ensino médio que o torna uma excelente mercadoria, sem que nela esteja nenhuma preocupação genuína com a melhoria da qualidade do ensino oferecido. Retiram disciplinas que garantem uma educação crítica e humanizadora, para apostarem numa ensino de tecnologias e tecnicalidades, visando a produção do homem maquínico e não do homem pensante. O ódio a inteligência grassa e torna energúmenos símbolos de sabedoria, mestres que só dizem patacoadas. O ódio e a ignorância sobe à tribuna de um Congresso que deseja bandido morto, a criminalização dos movimentos sociais e a lei da bala e do chicote para os que pensam diferente. A ignorância pomposa se manifesta num presidente que em convescote empresarial (uma reunião de grão patos golpistas e intreguistas) pontifica a grande descoberta que a segunda-feira é o primeiro dia da semana (imagine se essa sandice fosse dita pelo odiado presidente analfabeto ou pela anta da presidente vítima do golpe?). A inteligência se retira envergonhada a cada sessão de uma Corte que existe para defender a Constituição e a conspurca a cada vez que se reúne, com argumentos tão palavrosos e contraditórios que o Kant, crente da razão pura, se mataria, quando não se tem quase que se convocar a polícia de costumes dado o palavrório que esquece o latim e passa quase ao baixo calão. E não falemos da argumentação presente nos votos dos juízes justiceiros da república da patolândia e na peroração dos especialistas todos os dias convocados a dizer que o golpe não foi golpe na mídia nativa e na Globo News, aquela que torna patacoada informação e análise, sempre entre aspas. Parece que não estão conseguindo: aqueles que eles achavam que eram os verdadeiros patos, em pesquisa recente, majoritariamente, disseram que o golpe é golpe, os patos queiram ou não o chamar assim. Contra fatos não há argumentos, a não ser, claro, para os patos.

Durval Muniz de Albuquerque Junior é historiador e professor titular da Universidade Federal do Rio Grande do Norte.

(Texto publicado originalmente no site Saiba Mais, Agência de Reportagem, aqui reproduzido com autorização do autor)
 

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