pub-5238575981085443 CONTEXTO POLÍTICO.
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quinta-feira, 13 de setembro de 2018

Crônica: O Recife de Paulo Fernando Craveiro.

 
 
 
José Luiz Gomes
 
 
Hoje, logo cedinho, os correios - apesar das críticas e dos problemas que enfrenta - nos reservou uma bela surpresa. Um pacote de crônicas, escritas por dois monstros. Um paraibano, Paulo Fernando Craveiro - paraibano de pernambucano, é bem verdade -, e o papa capixaba, Rubem Braga. Difícil mesmo foi definir quem iríamos ler primeiro. Mas, sobretudo em razão de um projeto que desenvolvemos com o comendador Arnaldo, optamos por começar a leitura dessas crônicas pelo livro Prefácio do Recife, de Paulo Fernando Craveiro. Aliás, nossa relação com as crônicas do jornalista e escritor Paulo Fernando Craveiro é antiga, desde os tempos em que ele as publicava nos jornais recifenses. Um deleite ler essas crônicas sobre o Recife, sua história, suas ruas, seus bairros, sua gente, seus poetas, seus mangues, seus cajueiros. Ah! Os cajueiros do Recife, pelos quais o cronista era um apaixonado, colocando suas flores no mesmo patamar das famosas flores das plantas de Sevilha, na Espanha. De um tempo, Mauro Mota, onde se podia apreciá-los ainda num tom amarelado.
 
Há um tratamento especial do autor ao Rio Capibaribe, descrevendo sua trajetória até chegar à província, para molhar a cidade, entrando ali pelo bairro de Tejipió. Para a população ribeirinha, dos bairros alagados, o rio também chega para alimentá-la, fornecendo caranguejos, goiamuns, mariscos e crustáceos, que eles recolhem para o seu sustento. Craveiro é um cronista dotado de uma grande sensibilidade social. Descreve a miséria e a exclusão da população recifense com poesia, não permitindo que tais revelações comprometam sua narrativa, mas nos alerta para os problemas de uma grande cidade, com seus moradores de rua, seus ambulantes, ladrões, cheira-colas, putas e degredados de toda as espécie, Michel Foucault. Este é Recife de Paulo Fernando Craveiro, da Ponte Velha, das palafitas do Pina, do bairro de São José, da Rua da Harmonia, da Saudade, da Concórdia que, naqueles tempos, a população ainda mantinha o hábito de conversar sobre a vida alheia nas calçadas, no final de tarde. Bons tempos aqueles, diriam as fofoqueiras contumazes.
 
Em razão de suas atividades profissionais, Craveiro viajou bastante. Conheceu muito países, mas não esconde sua alegria ao retornar ao Recife, contemplar as flores do seu jardim, os cajueiros do quintal, ali na Rua São Salvador, no bairro do Espinheiro que, segundo ele, tinha um brilho todo especial. Há algumas décadas atrás, o bairro do Espinheiro era o bairro dos endinheirados do Recife. A leitura do livro do cronista nos proporcionaram a oportunidade de escrever bastante sobre o Recife, algo que devo compartilhar com os leitores daqui para frente, através deste espaço. Craveiro chegou ao Recife com apenas três meses de idade. A rigor, a rigor, é um recifense. Confidencia que uma de suas alegrias de infância era  embrenhar-se pelos mangues do bairro do Derby, banhado pelas águas do Capibaribe, depois das aulas, para capturar goiamuns e caranguejos, numa atividade pouco comum aos bem-nascidos, mas que deveria proporcionar alegrias indescritíveis ao cronista.
 
As crônicas de Craveiro nos revelam gratas surpresas, como a Mulher Deitada que ele encontrou ali no bairro de Casa Amarela. Craveiro descreve o Recife visto das suas pontes, pela lente dos seus poetas, como Carlos Pena Filho, Ascenso Ferreira, João Cabral de Mello Neto, Mauro Mota, Joaquim Cardozo. Um Recife molhado pelas chuvas de Agosto; observado de uma varanda de um quinto andar de um prédio; da praia de Boa Viagem, uma das poucas referências em crônica, que também escreveu quando esteve por aqui, o Sabiá. Só se escreve quando se lê e, ao que presumimos, Paulo lia bastante sobre o Recife. Mas não basta apenas ler, no caso de uma cidade, é preciso senti-la, passeá-la, examiná-la, comê-la em distintos momentos, para saber como ela reage de dia, de noite, madrugada a dentro, em seus redutos de boemia. Craveiro cumpriu fielmente esse rito. A melhor descrição do modo de vida da população dos mangues do Recife não está em Josué de Castro, mas no Moleque Ricardo, porque o seu autor, José Lins do Rego, conhecia muito bem o Recife, em suas andanças com o amigo sociólogo Gilberto Freyre.  

terça-feira, 11 de setembro de 2018

Quais as razões do seu voto?

Quais são as razões do seu voto?
Tarso de Mel
                                                                                

Quais são as razões do seu voto?
Se há consenso entre quem não quer ver a vida por aqui piorar, é que temos que agir (Reprodução/Revista CULT)

Retrocesso após retrocesso, derrota após derrota, tragédia após tragédia, ouço meus amigos perguntarem até quando vamos tolerar tanto retrocesso, tanta derrota, tanta tragédia. Não achamos respostas e, a cada nova pancada, as perguntas ficam ainda mais pesadas. Alguns dizem logo: tudo vai ficar ainda pior – e nisso não há uma resposta. Outros preferem se alienar do debate político – e aí também não há uma resposta. Dizer, instruidíssimo, que nada vai barrar essa onda terrível ou, alienadíssimo, tapar os ouvidos para levar sua vida pessoal em frente, no fundo, são posturas com o mesmo efeito prático. Retrocessos, derrotas e tragédias não escolhem suas vítimas apenas entre aqueles que resistiram: atingem a todos que não puderam fugir.
No entanto, entre aqueles que não querem apenas assistir à vida por aqui se tornar ainda mais insuportável, se há algum consenso, é que temos que agir com urgência. É claro que toda essa onda vai bem além da eleição e o resultado das urnas não trará soluções mágicas, mas é inevitável que, neste momento, a pergunta “o que fazer?” se reduza à simples “em quem votar?”. Num certo sentido, as mesquinharias da eleição adiam debates e tarefas mais importantes para a esquerda (a propósito, escrevi sobre essa questão na CULT que chega às bancas nesta semana).
Quando nos perguntamos “em quem votar?”, tendo no horizonte retrocessos, derrotas e tragédias, é como se estivéssemos, enfim, diante da oportunidade de dar uma contribuição verdadeira para resolver alguns (e evitar outros) problemas do país. Com a proximidade do momento em que apertaremos as teclas na urna eletrônica, não é mais possível se esconder detrás daquele “nós” indeterminado que pergunta, a cada notícia ruim, “quando é que vamos fazer alguma coisa?”. Eu, meu título de eleitor e a cabine, enfim, fechamos um circuito em que expressões abertas como “os brasileiros”, “o povo”, “os trabalhadores”, “os pobres” não me socorrem mais.
É claro que não estou falando aqui de quem afirma “voto porque sou obrigado” ou “o voto é secreto, então é problema meu”. Refiro-me aos eleitores que, a despeito da obrigatoriedade, pensam com responsabilidade em seu voto e, a despeito do segredo, querem poder declarar e defender as razões do seu voto neste ou naquele candidato. A meu ver, essa é a parte do eleitorado que está neste momento buscando respostas para as questões que fiz no início do texto e, mais que tudo, perguntando com sinceridade a si próprio: “do que não abro mão na hora de decidir meu voto?”
Sem dúvida, esta é uma questão difícil. De início, apesar do seu caráter subjetivo, as razões do voto deveriam se limitar por alguns parâmetros objetivos. Por exemplo, se o voto é próprio da democracia, minhas razões para votar jamais poderiam ser antidemocráticas, mas estamos muito distantes disso. Não apenas no Brasil, parte expressiva dos votos tem sido uma espécie de reação à democracia, porque, basta surgir algum avanço democrático, logo aparece um candidato que surfa na defesa dos valores que, supostamente, foram atingidos por aquele avanço. Lembremos, para ilustrar, de tantos candidatos que se projetam defendendo “a família” contra o que afirmam ser a “degeneração dos valores tradicionais”, quando, na verdade, tal avanço decorre apenas do respeito à igualdade, à diversidade e a tantos outros direitos fundamentais.
No mesmo sentido, é lamentável que, após 30 anos de Constituição democrática, as campanhas eleitorais, em todos os níveis, apresentem uma participação crescente de candidatos que ostentam patentes militares (cabos, sargentos, tenentes) ou credenciais religiosas (bispos, pastores, missionários) e, mais que isso, são bem-sucedidos nas urnas em razão de propostas francamente antidemocráticas.
E o mesmo vale para outros parâmetros, também fixados na Constituição, que temos sido obrigados a debater novamente a cada eleição, como se não existissem, nos campos da economia, da cultura, dos direitos sociais, entre outros. Por conta disso, somos levados a debater as razões do voto num ambiente completamente sem margens, em que todos os posicionamentos têm o mesmo valor a despeito de corresponderem a ou, frontalmente, ofenderem diversos direitos e garantias.
No caso da eleição presidencial, chega a ser hilária a forma como discursos e programas dos principais candidatos atropelam quaisquer limites (entre as instituições, entre os países, entre o real e o sonho), como se, começando a frase com “no meu governo…”, ao eleito tudo fosse permitido – e possível. E, entre os efeitos perversos desse descolamento entre o que verdadeiramente está em jogo na eleição e as pirotecnias da promessa, está fazer com que, a cada eleição, vários eleitores se digam desiludidos e migrem para o bloco dos que não querem saber de política ou votam “contra tudo que está aí”. E a presidência é apenas a ponta desse triste iceberg.
Neste ano, em especial, a disputa pela presidência está sufocando, mesmo entre os eleitores mais dedicados, a atenção para os demais cargos, num momento em que, além da chefia do Executivo federal, estão em disputa todos os cargos de governador, deputado federal, deputado estadual e dois terços do Senado. Bem sabemos que é principalmente no Legislativo que retrocessos, derrotas e tragédias costumam ser promovidos ou evitados. Ainda que o Executivo seja decisivo para nossas alegrias e tristezas (Lula e Temer que o digam, respectivamente), bem pouco acontece sem passar pelo Legislativo e, cada vez mais, pelo Judiciário, que, não obstante, segue blindado a quaisquer formas de democratização de sua própria estrutura.
O nó, portanto, é dos mais complexos, porque entre as razões de cada voto deve estar a compreensão de que, por mais insignificante que seja nossa decisão pessoal no todo do eleitorado e, mais ainda, na correlação de forças dentro do Estado e da sociedade, o voto integra um esforço coletivo para que seja respeitado um determinado conjunto de decisões políticas protegidas constitucionalmente, que não podem ser simplesmente descartadas a cada eleição, porque, sem respeitá-las, não faz mais sentido qualquer uma das instituições. Por isso, votar em quem quer destruir até mesmo a possibilidade do voto ou em quem quer negar direitos e realizar políticas mirabolantes contra o núcleo fundamental da Constituição Federal, não é apenas um contrassenso. É uma forma de tornar nossos males ainda maiores.

(Publicado originalmente no site da revista Cult)

sábado, 8 de setembro de 2018

Tensas relações entre arte e política: as vanguardas e o modelo etnográfico

Tensas relações entre arte e política: as vanguardas e o modelo etnográfico
Alessandra Parente

Tensas relações entre arte e política: as vanguardas e o modelo etnográfico
Out of Bounds, 2015, Ibrahim Mahama (Foto: Divulgação/Alex John Beck/Artsy)

Quando o mundo está de pernas para o ar e há quem ranja os dentes, babe de ódio ou até enalteça armas de fogo na vida política, não raro imagina-se que a melhor forma de resistência seja pender, tão rápido quanto possível, para outro lado, no qual ainda restam intactos sinais de bom-senso e sanidade. Renuncia-se às sutilezas, aos detalhes, à complexidade e aceita-se de pronto tudo que preserve feições civilizadas. Dito de forma sucinta: ante circunstâncias tão insólitas, advoga-se a irrelevância das minúcias. Primar pela reflexão cuidadosa ou atentar para pequenas diferenças emerge, então, como sinal de futilidade – não é incomum que tenazes análises da situação sejam vistas como veleidades. O que passa a interessar é um bem maior, contrário a qualquer marca de barbárie.
Falar sobre arte parece ainda mais grave – luxo descabido, disparate excêntrico. Violar juízos dessa natureza, porém, é uma das razões deste texto. Outra é uma aposta de que o gesto de zelar pelos pormenores torna-se, em si, espécie de antídoto contra a barbárie. Igualar arbitrariamente diferenças ou simplificar dificuldades implica renunciar à árdua tarefa de garimpar os mais preciosos afetos e ideias – o medo do pior pode levar tudo de roldão, até as melhores coisas.
Falemos, pois, sobre arte. Tratemos, em verdade, de aspectos ainda mais particulares: certas sutilezas psíquicas em processos de produção e recepção de obras artísticas e algumas diferenças formais atreladas às peças de arte que resistem à barbárie ou que se pretendem mesmo revolucionárias.
*
Depois de ter sido duramente criticado por Theodor Adorno em sua Teoria estética (1970), o conceito freudiano de sublimação atravessa as balizas exclusivamente clínicas da psicanálise; ainda que atacado, penetrou irreversivelmente o campo da Estética.
O conceito de sublimação era, como Freud fora em termos de arte, anacrônico até mesmo para as primeiras décadas do século 20. Guardava sabores conservadores que, junto ao ar novo, também compunham o gosto da Belle Époque. Seu mérito, de todo modo, foi radiografar, pela primeira vez, detalhes da engenharia psíquica no ato da criação ou da recepção da obra.
Mas traçar o conceito de sublimação não foi o último passo dado por Freud no campo da Estética. Logo após a guerra, Freud desenhou uma nova categoria que, ao contrário da sublimação, vibra potente ainda hoje: das Unheimliche.
Talvez não seja exagero considerar que o grupo de críticos americanos, reunido em torno das publicações da revista October, seja aquele que mais sistematicamente utilizou conceitos da psicanálise para suas análises da arte contemporânea. Coordenada por Rosalind Krauss e Annette Michelson, a revista conta, entre outras, com a contribuição de Hal Foster, proeminente nome da crítica de arte. A articulação entre obras artísticas e as teorias freudiana e lacaniana abriu caminhos verdadeiramente inéditos no campo da Estética. Entre o vasto trabalho de Hal Foster, o fenômeno unheimlich ganha lugar especial no estudo sobre o surrealismo em Beleza Compulsiva.
Seguindo Freud, Foster percebe a íntima relação entre trabalhos surrealistas e a experiência do trauma: “se o maravilhoso como leitmotiv do surrealismo envolve o Unheimliche, e se a experiência unheimlich, como o retorno do reprimido, envolve trauma, o trauma deve, de alguma forma, estar no interior da arte surrealista […]”.
Na psicanálise, o trauma está ligado à temporalidade (Nachträglichkeit) e ocorre em dois estágios: seguindo a ordem cronológica, o tempo 2 ocorre antes e se refere às marcas do recalque originário, e o tempo 1 é o do aprèscoup ou o da nachträglich (só-depois). O trauma é a única maneira de estabelecer elos entre impressões mnemônicas do infantil e a força do presente. Ou seja, para que seja possível conceber alguma ordem temporal, o tempo 1 – que ocorre só-depois – deve incidir sob a forma de um golpe sobre os nós psíquicos do tempo 2 – que ocorre cronologicamente antes. Só pelo golpe do trauma estabelece-se a lógica psíquica do antes e depois, só ele torna possível a articulação de uma representação temporal.
Como efeito do trauma, muitas obras expressionistas, dadaístas ou surrealistas embaralharam a narrativa temporal que prevalecia na tradição e pressionaram antigos contornos formais e discursivos para novas configurações. Daí que seja possível observar como a engrenagem psíquica entre aqueles que produzem obras expressionistas ou surrealistas e aqueles que com ela se defrontam está muito próxima da descrita por Freud em das Unheimliche.
Não é difícil notar, que o recurso do estranhamento traumático ainda integra fortemente obras artísticas contemporâneas. Basta lembrar de alguns dos elementos agrupados por Freud em seu texto para reconhecê-los também no campo das artes – o duplo, o palhaço, a boneca, os autômatos, os fantasmas, os animais, a vagina etc. Por mais diferentes que sejam, Eduardo Berliner, Cindy Sherman, irmãos Chapman, Jane Alexander são alguns artistas que poderiam entrar no registro unheimlich. Cenas ou imagens que provocam asco, terror, medo, repulsa, mas que ao mesmo tempo atraem o olhar e incitam à reflexão – ao contrário do que atestava Gotthold Ephraim Lessing, essas peças grotescas ou monstruosas impactam e exigem mais da imaginação justamente ao escancararem violentamente os limites do repertório previamente existente.
O vigor dessas obras é incontestável, mas talvez caiba hoje a pergunta: como elas, guardando esse teor vanguardista de choc traumático, se posicionam no cenário contemporâneo da produção artística? Talvez quem melhor expresse esse impasse seja Ricardo Fabbrini, que inspirado nos escritos de Otília Arantes, expõe a seguinte passagem:
Não é possível restituir à imagem o seu poder de choc […] no sentido da modernidade artística, pois no correr do tempo esse efeito de choc rotinizou-se, perdendo assim todo efeito emancipatório – ou seja, “não liberou os potenciais cognitivos supostamente aprisionados nos domínios confinados da cultura afirmativa”. A “estética do choc”, em síntese, não configurou […] “o embrião materialista de um novo iluminismo” visado pelas vanguardas artísticas internacionais, “que finalmente desaguaria na conformação de uma ordem social superior”, a Utopia.
Vanguardas e modelo etnográfico: questões atuais
Levando em conta o quadro apresentado, cabe a questão: será mesmo que tudo o que restou hoje foi o fracasso das vanguardas? Voltemos alguns passos antes de responder à essa pergunta. Alguns críticos (Arthur Danto e John Roberts) sugerem que, após a proliferação dos ready-made nos anos 1960, finalmente tivemos o que Hegel antecipou ainda no século 19: o fim da arte. Para John Roberts, nas últimas décadas esse anúncio tornou-se uma espécie de fantasma tenebroso. Em Hegel, argumenta, o fim da arte corresponderia a dois pensamentos, nenhum deles muito terrível: 1) sob novas condições pós-românticas, a força centrípeta anteriormente ligada à beleza e à mimesis acaba liberada para a abstração (conceituação) nas artes; 2) destrói-se qualquer noção de arte ligada a algo natural e, com isso, nasce um idioma próprio ao reino artístico.
De qualquer maneira, serenidade não é o que acompanha a ideia de uma arte pós-histórica. Ora vista como libertação, ora como pesadelo de declínio absoluto, o fim da arte é tópico inebriante, do qual dificilmente se escapa.
Fugindo dos termos articulados por John Roberts ou Arthur Danto e, por outro lado, admitindo como incontornável o anúncio sobre o “fim da arte”, impasses atuais podem ser divididos da seguinte maneira: 1) aqueles que interpretam o “fim da arte” como algo emancipatório, exaltando o “pluralismo estético” e o fim da lógica da autoria como conquistas a serem expandidas até a implosão do sistema capitalista, baseado no imperialismo de viés identitário e; 2) outros que veem advir, com o fim da arte, um percurso condizente com os interesses do mercado e, portanto, um retrocesso em relação ao momento anterior, no qual estava estabelecida a autonomia da arte. Vejamos melhor esses dois diferentes prismas.
Ágora: OcaTaperaTerreiro, 2016, Bené Fonteles (Foto: Divulgação/32º Bienal São Paulo)
Ágora: OcaTaperaTerreiro, 2016, Bené Fonteles (Foto: Divulgação/32º Bienal São Paulo)
Pela ótica daqueles que comemoram a queda da redoma de vidro que preservava a arte em sua condição de autonomia formal, bem como a suposta eliminação dos últimos restos heroicos do artista, fundados na ideia de autoria-criadora, a arte está a poucos passos de integrar-se aos destinos políticos e sociais compartilhados pelos demais cidadãos do mundo. Fazer cada vez mais parte da experiência cotidiana e do domínio da técnica não-artística seria, por conseguinte, caminho desejável. Inversamente a esse viés, há aqueles que veem nas ruínas da l´art pour l´art um fatal desastre, do qual só pode resultar a mais completa decadência.
Trocando em miúdos: no primeiro caso, a perda da autonomia da arte é vista como conquista, apesar do mercado de arte; no segundo, trata-se de recuperar a força inerente à autonomia da arte, supondo sua validade, enquanto o sistema burguês persiste em vigor. Seguindo este último argumento, a resistência aos moldes atualmente defendidos – contrário ao caráter heroico do artista e favorável a certo “pluralismo estético” – se deve ao pressuposto de que ainda haveria um poder da arte, quando preservado o seu lugar de autonomia. Só deste espaço isolado, supõe-se, seria possível forçar a tensão negativa contra o sistema burguês e assegurar a força revolucionária capaz de se opor a ele.
Do outro lado, o “pluralismo estético” é tratado como uma das realizações mais importantes do período pós-histórico nas artes. Como Andy Warhol, Arthur Danto comenta que todos os estilos são de igual mérito. Nenhum deles poderia se sobrepor ao outro. Claro que reconhecer tal pluralismo não significa limitar o papel da crítica – a questão do “pluralismo estético” se opõe, em verdade, à normatividade inerente à lógica ainda presente no período das vanguardas. Com elas, era comum que um estilo ou um manifesto sempre se sobrepusesse a outros. Compreender a arte como pós-histórica, como fez Arthur Danto, implica substituir a noção de sucessão temporal pela ideia de simultaneidade. Nessa espécie de relativismo cultural e de valores, a ideia de universalidade se dilui e, por outro lado, abrem-se canais inéditos para a arte de outras culturas, distantes dos cânones colonialistas ocidentais.
Dentro desse espectro, O artista como etnógrafo (1993), escrito por Hal Foster há mais de vinte anos, preserva sua vigorosa atualidade. Out of Bounds de Ibrahim Mahama (2017), exibido na última Bienal de Veneza ou Ágora: OcaTaperaTerreiro (2016) de Bené Fonteles na última Bienal de São Paulo, são apenas dois exemplos de trabalhos recentemente produzidos com estratégias e temas que poderiam ser abrangidos pela categorização estabelecida por Hal Foster. Ou seja, a técnica etnográfica ou antropológica permaneceu sólida nas artes visuais.
Essa reviravolta etnográfica na arte contemporânea, marcada principalmente pelos estudos pós-coloniais, pelos debates em torno do biopoder, pela segunda e terceira ondas feministas e movimentos LGBT, assim como pela pesquisa material no mundo artístico, não se restringe mais às instituições clássicas (estúdio, galeria, museu etc.) e amplia-se como uma rede discursiva de práticas voltadas para outras subjetividades e comunidades, bem como intervenções em espaços geográficos inusitados. O texto de Hal Foster é uma tentativa de delinear um novo paradigma, correspondente atual ao que foi o modelo da esquerda avançada, desenhado por Walter Benjamin em O autor como produtor (1934). Foster expõe a ideia do artista como um etnógrafo trabalhando em nome de um Outro cultural ou étnico. Para Foster, “embora possa parecer extremamente sutil, essa troca de um assunto definido em termos de relação econômica por outro definido em termos de identidade cultural é bastante significativa”.
Parece que, como Benjamin queria, a arte transbordou, em muitos casos, os limites circunscritos da l´art por l´art. Tornou-se um modo de estudo cultural. Depois das ousadas rupturas das vanguardas que atacavam critérios e cânones nascidos na Europa, o campo artístico ousou ultrapassar suas fronteiras, tendo como norte essa modalidade de pesquisa, a etnográfico-antropológica.
O problema do modelo etnográfico de produção artística reside no fato de que ele pode ser a mera repetição do trauma e não sua ruptura temporal, como era a produção vanguardista de teor unheimlich. Ou seja, ao invés de a arte etnográfica abrir o circuito temporal dentro da lógica do trauma, para rearticular traços reprimidos, essas tentativas de lidar com o passado oprimido repetem inadvertidamente a violência traumática no presente.
Dito com todas as letras: o viés etnográfico pode ser uma reiterada colonização traumática do Outro – mulheres, povos indígenas, africanos, LGBTs. Apresentá-lo como um objeto exótico dentro das instituições, cujos quadros foram criados para promover obras clássicas ou de vanguarda tanto do período europeu quanto do tardio, pode ser não apenas regressivo, mas extremamente violento. O risco não é menor quando artistas-mulheres ou artistas-africanos, por exemplo, recebem uma aura-fetiche ao entrarem nos sistemas de exposição e mercado artísticos. Essas poderiam ser, aliás, algumas das razões pelas quais existem resistências legítimas e justificadas ao modelo etnográfico nas artes visuais.
Recentemente, por exemplo, Ernesto Neto foi à Bienal de Veneza acompanhado por indígenas para fazer o que chamou de “ação coletiva” em uma das mais regressivas e violentas “obras”. Não se trata de exceção – muitas seguem esse método. O problema pode ser sintetizado nos seguintes termos: por um lado, é feita uma tentativa de restaurar nos ambientes artísticos uma imagem ou situação anterior à incidência da opressão – tarefa impossível, uma vez que o trauma já aconteceu (colonização, genocídio, violência misógina, racismo, etc.). Por outro lado, a defesa de um retorno ao modelo disruptivo e revolucionário das vanguardas não deixa de ser também uma posição conservadora, dado que a insurreição inerente às obras estava visivelmente voltada contra os códigos burgueses europeus anteriores à Segunda Guerra Mundial.
Como disse Peter P. Ekeh sobre a África: “Nosso presente pós-colonial foi moldado por nosso passado colonial”. Nessa breve frase, fica claro como não é possível simplesmente apagar o que já aconteceu, assim como também não é possível voltar às velhas estratégias subversivas, quando os problemas já foram colocados sob novos prismas – o que foi mérito, diga-se, de trabalhos vanguardistas.
Daí que o olhar tem que ser ainda mais fino. Não se trata, então, de descartar o modelo etnográfico. Ainda que guarde alguns problemas, ele preserva uma potência vigorosa nas estratégias artísticas atuais. Por outro lado, deve-se repensar a função do trauma incrustado nas bases formais das obras artísticas/intelectuais.
Em O autor como produtor (1934), Benjamin trata como infrutífera a velha polêmica em torno das relações entre forma e conteúdo – permito-me aqui ousar outro prisma. Longe de ser infecunda, a articulação dialética entre forma e conteúdo exige que se considere esses dois elementos separada e alternadamente, observando atentamente ora um, ora outro em suas intenções, mediações e contradições. Com isso, são engendradas as cruciais questões: a forma de uma determinada obra contradiz o conteúdo revolucionário que ela pretende trazer? A intenção revolucionária do artista é observável também nas mediações da produção e na forma assumida pelo trabalho? A forma de exposição da obra, por sua vez, elimina ou fortalece aquela intenção?
Série Debret, de Vasco Araújo, 2013 (Divulgação)
Série Debret, Vasco Araújo, 2013 (Divulgação/Bienal do Mercosul)
Como diz Walter Benjamin: o trabalho [do intelectual ou do artista revolucionário] “não visa nunca a fabricação exclusiva de produtos, mas sempre, ao mesmo tempo, a dos meios de produção.”. Acresce ainda que a “utilidade organizacional [das obras bem como de suas técnicas de produção] não precisa de modo algum limitar-se à propaganda. […]. Aliás, diz ele, “a melhor tendência é falsa se não prescreve a atitude que o escritor deve adotar para concretizar essa tendência”. Longe da propaganda barata, o artista ou intelectual “só pode prescrever a atitude [revolucionária] em seu próprio trabalho, isto é, escrevendo [ou produzindo obras de arte].
Justamente essa passagem contradiz a afirmação, feita por Benjamin, sobre o caráter estéril do debate forma-conteúdo. Dito de maneira simples: tratar da técnica implica necessariamente observar o caráter formal assumido por uma obra e sua relação com o conteúdo nela trabalhado. Forma emerge aqui como resultado da própria técnica ou meio de produção da obra. Se, como diz Benjamin, é na técnica de produção que o artista ou o intelectual tem que operar para que a obra seja tida como efetivamente revolucionária, é necessário que o olhar crítico se volte detidamente para a forma assumida por uma peça de arte ou para a obra escrita.
Deixar de olhar para os meandros da produção e tratar a obra somente enquanto produto último são atitudes que também trazem certos riscos. Um deles é a estratégia equivocada de fazer da “miséria um objeto de consumo” ou pior: transformar “em objeto de consumo a luta contra a miséria”. Ao escrever essa observação, Benjamin tinha em mente artistas da Neue Sachlichkeit que, em sua visão, exemplificam bem a aparência revolucionária a serviço da diversão ou da distração burguesa. Nesse caso, a vontade de decidir no interior da luta política converte-se em artigo ofertado como objeto de consumo – nada diferente disso poderia ser dito sobre algumas obras contemporâneas.
Por isso, seria necessário analisar singularmente cada obra, vendo-a em relação ao conjunto de trabalhos do artista e, ainda, como tal produção se articula no campo no qual se situa. Tudo isso em zonas de atritos e tensões dialéticas permanentes.
Há um elemento suplementar, porém, que a estratégia etnográfica introduziu no campo cultural contemporâneo e que definitivamente deve ser levado em conta: a voz concreta daqueles que antes integravam as obras apenas como objetos-temas.
Para dizer da forma mais simples possível: pode ser que, vivo hoje, Paul Gauguin tivesse que responder a delicadas questões levantadas pelos espectadores, representados na própria pintura. Questões sobre colonização, sobre lugar de fala e de representação, sobre limites da atual configuração acadêmica de arte e de produção intelectual estão na ordem do dia. São incontáveis os exemplos recentes de embates entre público e artista/intelectual (tensões como as vividas a partir dos debates entre Daniela Thomas e Juliano Gomes, Dana Schutz e Hannah Black, Mirna Anaquiri Kambeba Omágua-Yetê e Lúcia Hussak van Velthem, Erinma Ochu e Judith Butler são apenas poucos exemplos).
Falas que brotam da plateia de forma profundamente intensa e vibrante, muitas delas cheias de dores e marcas traumáticas que ultrapassam a experiência singular do enunciador. Palavras às vezes desarticuladas, outras vezes visceralmente engajadas, trazem a carga de histórias compostas de feridas atuais e longínquas – catástrofes incalculáveis. Do lado do palco, a inquietação não é menor – ante os limites de suas categorias, de seus olhares, de suas palavras, aqueles que detêm poder de fala espantam-se, defendem-se, fragilizam-se, estremecem. E desde que prevalece o “pluralismo estético”, vozes antes inauditas irrompem e ganham os palcos, mostrando os limites vergonhosos de algumas análises que preservam resquícios colonizadores, misóginos ou racistas. É verdade que desencontros acontecem, é verdade que os endereços das falas nem sempre são precisos, é verdade que são momentos delicados, mas vamos mesmo querer defender outros modelos depois de termos alcançado patamar tão fundamental?
O estrangeiro como horizonte
Correspondentemente ao campo etnográfico da Estética, a esfera psíquica talvez precise ser reajustada, agora em outra inscrição, diferente da noção freudiana de Unhemliche. Surge, ainda no velho Freud, outra categoria que, entrelaçada ao âmbito estético, permite observar a engenharia psíquica nos atos de recepção e produção artísticas na atualidade: o estrangeiro, tal como aparece em O homem Moisés e a religião monoteísta. Com ela, ao contrário do trauma psíquico ante o choc da imagem, há o gesto de encarar fantasmas, arriscar passos imprecisos em territórios indeterminados, fazer soar, ainda incerta, uma voz de contestação – como é cada palavra do espectador que se dirige ao autor/artista ante as tensões que brotam a partir da obra. São ímpetos de uma racionalidade oriunda das marcas do inconsciente – eles penetram espaços fronteiriços, atuam em tempos anacronicamente sobrepostos e articulam balbucios que se esforçam por traduzir os mais intensos afetos e marcas históricas. A estrutura formal dessas manifestações não é menor por carregar, junto de si, sua precariedade – ao contrário, seu vigor está alocado exatamente aí.
Conceder estatuto de cidadania aos rudimentos da obra e ao que dela ainda vibra impreciso é uma das características do caráter etnográfico, que opera pelas funções do estrangeiro pensado por Freud. Do lado do espectador, fagulhas e tensões na recepção das obras são partes centrais do próprio encontro com elas – como, aliás, já previra, de certo modo, Marcel Duchamp. Nesses registros, cabe a cada um abandonar elementos narcísicos e arriscar formas inconsistentes daquilo que estremece desconhecido em nós e na cultura que sustenta pilares, muito frequentemente, nada confiáveis.

Alessandra Parente é psicanalista e pesquisadora de pós-doutorado do Departamento de Filosofia da FFLCH-USP

(Publicado originalmente no site da Revista Cult)

Charge! Machado via Folha de São Paulo

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sexta-feira, 7 de setembro de 2018

Quando a memória pega fogo

 


Em 1999 eu viajei à Grécia. Era meu último ano no curso de Filosofia da UFRN e queria conhecer in loco a terra em que Sócrates, Platão e Aristóteles teriam andado, mais de dois mil anos antes de meu nascimento. Lembro que, ao visitar a Acrópole, fomos, eu e minha esposa, Ana Cláudia, a um pequeno museu perto do Paternon, templo da deusa Atena (ou o que sobrou dele após os turcos terem dinamitado boa parte da construção durante a guerra da independência grega no século XIX). Lá chegando identifiquei de imediato um grupo de brasileiros que estava, como eu, fazendo turismo pelas ruínas. Ao me aproximar, no intuito de trocar algumas palavras em um idioma conhecido, ouvi um sujeito de aproximadamente minha idade, com um forte sotaque paulistano, dizer em alto e bom som algo do tipo: “Não acredito que a gente pagou pra ver esse monte de pedra”.
A frase me doeu nos ouvidos. Foi suficiente para recusar qualquer tipo de interação com compatriotas até o fim da viagem.
Mesmo diante desse tipo muito usual de ferida turístico-narcísica, que muitas vezes nos acomete quando nos deparamos com outros brasileiros em viagens pelo exterior, não deveríamos cair em mitologias culturalistas redutoras diante da tragédia que transformou em cinza milhares de anos de história das Américas em pouco menos de quatro horas. Não deveríamos ser nós, “o povo brasileiro”, essa abstração ideológica, os culpados pela catástrofe que destruiu o Museu Histórico Nacional da Quinta da Boa Vista. Quando a memória de um país pega fogo, culpar todo mundo é a melhor forma de não responsabilizar ninguém.
Mesmo assim não há como negar que o brasileiro médio dá pouco valor a história e não entende que cultura e ciência fazem parte de um capital imaterial de valor incalculável.  Em um país em que proliferam doutrinas ideológicas do tipo “Escola sem partido” que tratam professores como bandidos, em que gente nas redes sociais pede o fim dos cursos de humanas nas universidades federais (supostamente antros de formação de “esquerdopatas”) ou que vibram com força diante do anúncio do desaparecimento de disciplinas como filosofia e sociologia dos currículos do ensino médio, parece fácil entender o porquê de um patrimônio incalculável como o Museu Nacional vinha sendo negligenciado a tanto tempo.
Desde 2014 o museu não recebia os 520 mil reais necessários para sua manutenção. Em 2015, com o corte de gastos e a adoção por parte do governo Dilma da agenda FIESP, que abriu alas para o austericídio do governo Temer, o orçamento caiu para 257 mil. Em 2016 subiu um pouco para cair novamente em 2017 e desabar de modo vergonhoso para 54 mil liberados até agora em 2018.
Se fizemos um passeio pelos arquivos jornalísticos vamos ver que sobram reportagens sobre as más condições do museu, com mofo, goteiras, ameaça de desabamento e infiltrações pelo menos desde 1978.
Por isso, o que todos os governantes que já passaram um dia pelos palácios desse país deveriam fazer de honesto diante dessa tragédia anunciada seria pedir perdão ao povo brasileiro ajoelhados no milho, de preferência se autoflagelando com chicotes de prego.
Mas a santa iniciativa privada não fica por menos. Para a decepção dos adeptos da religião do mercado, que acreditam piamente na competência virtuosa do empresariado brasileiro, fica o gosto de barro na boca quando a gente descobre que entre 2010 e 2018 o Museu Nacional teve 06 projetos aprovados para a captação de recursos pela lei Rouanet no total de 17 milhões de reais mas que conseguiu receber recursos privados em apenas um desses projetos, captando aproximadamente 10% do montante proposto nos oito últimos anos.
Nenhuma empresa privada apoiou o Museu quando a direção tentou ampliar o acesso a seu acervo virtual ou quando tentou reabrir nove salas fechadas há mais de 15 anos. Também não teve empresário que se dispusesse a fornecer dinheiro para a recuperação do telhado do prédio ou a criação de um sistema novo de prevenção de incêndios. Diante de uma queda de 34% no volume de visitas entre 2013 e 2017 os gentis homens do capital tupiniquim talvez não acreditassem que relacionar suas marcas a um museu seria um negócio lucrativo.  
O lado terrível e irônico disso tudo, é que o BNDES programou para esse ano a liberação de 21 milhões de reais para a reforma do museu.
O fogo chegou antes do dinheiro.
Dizem os cronistas antigos, que Heráclito, o grande pensador de Éfeso, teria escrito em pedra seu livro “Sobre a natureza” e afixado suas palavras nas paredes do templo da deusa Hécate. Mesmo assim, a pedra na qual seu livro estava escrito ruiu com o colapso do templo da deusa e tudo que resta de seu pensamento hoje são fragmentos citados por outros autores.
É a consciência dolorosa da impermanência de todas as coisas que faz o ser humano recolher as ruínas da história em pedras, vasos partidos, antigos manuscritos, ossos de animais fossilizados ou estátuas mutiladas. A busca de preservar essas ruínas não apenas é uma espécie de desobediência humana contra o tempo, mas também é uma forma de recuperar os traços de uma narrativa que nos compõe nossa experiência comum. Uma narrativa que explica a nossa origem, cria as impressões de um destino coletivo e lança as bases de um futuro possível.
Museus são como templos. Espaços de desobediência contra o efeito cauterizador da história que reduz toda memória, como em um imensa tempestade de fogo, às cinzas da silenciosa imobilidade do esquecimento.
Ver o Museu Nacional desaparecer no fogo da negligência queima a esperança de todos nós que labutamos diariamente com as humanidades, a ciência  e a cultura em um país onde esquecer parece ser uma obsessão nacional.
Por isso, vou confessar uma coisa, amigo velho, é muito difícil não desistir de um país como esse numa hora dessas.

(Texto originalmente publicado no site Saiba Mais, Agência de Reportagem)
 

Charge! Leo Villanova via Gazeta de Alagoas

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Charge! Jaguar via Folha de São Paulo

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quarta-feira, 5 de setembro de 2018

Charge! Renato Aroeira

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No táxi com Michel Foucault

                                          
José Castilho Marques Neto
                                                                                                                                                             

No táxi com Michel Foucault


Detalhe do pronunciamento de Michel Foucault na Assembleia Universitária da USP, 1975 (Reprodução)

Naqueles primeiros anos da década de 1970 de reconstrução democrática após a dizimação sangrenta de toda resistência ao arbítrio e à brutalidade da ditadura civil-militar, nós, que recomeçávamos a resistência contra a opressão, não sabíamos pensar ou agir no singular. O plural e o coletivo nos inspiravam e orientavam nossas ações, a despeito das diferenças entre os poucos e aguerridos grupos que reconstruíam o movimento estudantil (ME) na USP.
Escrever um depoimento na primeira pessoa, como me pede a CULT, sobre um inesquecível encontro com Michel Foucault em 1975, é uma difícil tarefa. Além, é claro, da lembrança incômoda de um período no qual muitos de nós tivemos parte da juventude ceifada pela onipresença do arbítrio e da usurpação dos direitos mais fundamentais.
A verdade é que tínhamos muito medo e do medo tiramos uma força solidária que nos fazia vibrar a cada colega que se juntava a nós tornando-se companheiro de luta e resistência, unidade indivisível que expressava uma vontade de liberdade cada vez mais plural. Queríamos mais do que sobreviver, queríamos viver plenamente.
Com esse espírito e vontade comecei meu curso na Filosofia da USP em 1972. O convívio entre os estudantes acontecia em ritmo lento, as conversas contidas se aprofundavam conforme o ritmo da confiança que ganhávamos entre nós pouco a pouco. Os colegas da pós-graduação se achegavam, procuravam nos influenciar sobre as questões do país e da necessidade de reerguer o ME. Engajar-se ou se alienar tentando manter distância dos tímidos movimentos de recriação de espaços representativos como os Centros Acadêmicos foram as primeiras dúvidas quase filosóficas que tive que enfrentar.
Eram tempos de censura às notícias e opiniões políticas nos diários e, ao mesmo tempo, de explosão cultural e transgressões da ordem imposta. Livros proibidos de humanidades eram comprados em outros idiomas na banca do Raul Castell nos “Barracos” da USP ou em algumas livrarias no centro velho, como a Duas Cidades, a Brasiliense, a Avanço, capas embaladas em papel pardo para o caso de alguma “batida” nas ruas paulistanas. Ao mesmo tempo surgiram novos ares na imprensa: “Brasil Mulher”, “Lampião”, “Em Tempo”, “Movimento”, “Nós, mulheres”, “Versus”, “Bondinho”, “ex”, “Jornal da República”, os chamados “nanicos” eram contra a censura e a ditadura, se alinhavam à contracultura, à argumentação oposicionista, aos direitos das mulheres e homossexuais.
Tempos de medo, mas tempos de reação. Tomei a decisão de juntar-me aos colegas que reconstruíam o Centro Acadêmico de Filosofia – CAF, batizado por nós “João Cruz Costa”, o inesquecível professor aposentado da USP que nos acolheu algumas vezes em sua casa para contar histórias da faculdade e nos animar com sua erudição filosófica.
Éramos poucos, mas irmãos quase siameses. De todos, eu e Vânia, e mais tarde Jorge, éramos os mais inseparáveis. No CAF fazíamos murais de notícias, fomentávamos grupos de debates, montávamos mesas-redondas com professores da casa e outros aposentados compulsoriamente, como José Arthur Gianotti. A Filosofia foi a primeira unidade da USP a proclamar um CA livre. Não tínhamos uma diretoria hierárquica, mas um grupo de lideranças que coordenavam os trabalhos.
Pronunciamento de Foucault, 1975
Pronunciamento de Michel Foucault na Assembleia Universitária da USP, 1975 (Reprodução)
Na pauta de lutas estudantis a autonomia universitária, o Decreto 477, o combate ao ensino pago ganharam maior densidade em 17/03/1973 quando os órgãos de repressão assassinaram o nosso colega Alexandre Vanucchi Leme. A missa na Catedral da Sé em sua memória, celebrada por D. Paulo Evaristo Arns, mobilizou 3.500 pessoas que enfrentaram o enorme aparato repressivo que se formou na região. O passar pelo corredor de PMs para entrar na Sé naquele início de noite foi uma das experiências mais assustadoras por que já passei. Mas o ar de solidariedade e revolta ativa que recebíamos ao entrar na catedral enchia nossos pulmões de vontade e força para seguir resistindo.
Desde então o ME avançou em lutas por liberdades democráticas. Em 1974 constituiu-se o Comitê de Defesa dos Presos Políticos e, em 1975, a famosa “greve da ECA” marcou a USP com a primeira concentração estudantil desde o AI-5.
Foi nesse contexto de repressão, medo e resistência ativa, que conheci Michel Foucault em 1975, não como aluno ou pesquisador de sua obra, mas como jovem militante e estudante de filosofia combatente da ditadura militar.
À ousadia das manifestações estudantis em 1975, a ditadura reagiu efetuando várias prisões de estudantes, e fez o mesmo com a resistência civil ao golpe, prendendo jornalistas, professores e sindicalistas, alguns deles membros de partidos clandestinos de esquerda.
Em setembro e outubro essas prisões se intensificaram e, justamente nesse período, Michel Foucault, que acabara de lançar uma de suas mais importantes obras – Vigiar e punir –, estava ministrando um concorridíssimo curso na Psicologia da USP, nos mesmos “Barracos” em que estudávamos.
A primeira vez que eu o vi foi atendendo a um chamado de socorro dos organizadores que me procuraram, e à Vânia, para convencer nosso colega Luiz Gonzaga, que sofria de alguns distúrbios emocionais, a se retirar da frente da mesa onde Foucault ministrava sua conferência. Com uma garrafa de cachaça na mão, já alterado, Luiz falava alto: “Bobagem”, “Mentiras”, para espanto do culto auditório. O clima estava quase hostil para com ele e entre os poucos olhares de compreensão e de aceitação daquela contravenção explícita da ordem, estava o de Foucault. Delicadamente conversamos com nosso amigo e o conduzimos para seu habitat naqueles anos, o CAF. Mas me sobrou o olhar não discriminatório do ilustre palestrante.
A repressão se intensificou, o clima estava tenso e o medo à flor da pele. No dia 22 de outubro a Profa. Marilena Chaui nos procurou e nos informou que Foucault estava disposto a se manifestar contra a repressão de Estado que estávamos sofrendo e gostaria de saber o que sugeríamos enquanto ME. Lembro que de pronto afirmamos que renunciasse às aulas, denunciasse a ditadura militar no exterior e expressasse sua solidariedade aos presos. No dia seguinte, 23, teríamos uma Assembleia Universitária no Salão Caramelo da FAU-USP contra as prisões e convidamos Foucault, que prontamente aceitou. Apenas pediu uma conversa prévia antes do evento.
Coube-me fazer essa conversa e por volta das 8 h do dia 23 de outubro de 1975, às vésperas da prisão e antevéspera do assassinato de Vladimir Herzog, lá estava eu, com 22 anos, em um banco na Praça Roosevelt, aguardando o famoso filósofo e seu colega (e nosso professor) Gerard Lebrun.
Recordo-me de que preparei esse encontro com toda a apreensão do mundo, não porque iria encontrar um filósofo de renome internacional, mas porque o assunto era por demais importante e estratégico para a nossa luta democrática. É incrível como a juventude e a força da época de combate ao arbítrio podem tornar-nos, mesmo muito jovens, avessos ao deslumbramento.
Novamente a atitude de um verdadeiro mestre se impôs perante a notoriedade do filósofo estrelado. Tive dele diálogo objetivo, questionador, respeitoso e atento a um jovem estudante que o escutava, o compreendia em francês, mas que precisava de um tradutor (Lebrun) para fazer-se compreender. Não era um diálogo de intelectuais, entre pares, mas o respeito cidadão se impunha e tivemos uma longa conversação sobre o que estávamos construindo no ME, no foco de nossas lutas, na situação dos presos políticos e no horror cotidiano de estudar e trabalhar sob uma ditadura sanguinária. Ele ouvia, argumentava, questionava. Ao final disse-me: “vamos, estou pronto, podemos ir, farei lá uma declaração renunciando às aulas e denunciarei no exterior o que está se passando no Brasil”.
Tomamos o primeiro táxi que passou, um fusca apenas com o banco traseiro. Sentei-me ao meio, ladeado por Lebrun e Foucault e, naquele momento, senti “cair a ficha”, como se dizia na época. Subia a Consolação com um dos pensadores mais polêmicos e inovadores daquele período e o sentia próximo a nós, à nossa luta, à nossa identidade. Como tantos professores que estavam conosco naqueles tempos, Michel Foucault também era um dos nossos.
A chegada à FAU criou um justificado murmúrio na assembleia que já estava acontecendo. Levei-o aos bastidores onde alguns colegas já nos esperavam. Ele pediu papel, sentou-se à mesa e rapidamente escreveu um pequeno texto de dois parágrafos. Glauco fez a tradução para o português, alguns revisaram e me coube ler a versão para a assembleia ao lado de Foucault que leu o texto em francês. Aplausos emocionados, vibração genuína pelas palavras fortes do filósofo que se recusava a continuar dando aulas num país que prendia e torturava intelectuais e trabalhadores.
No manifesto, o prenúncio do que viria a se tornar realidade nos anos vindouros, a de aproximação do ME com o novo sindicalismo que já se anunciava em 1975 no ABC: “Na defesa dos direitos, na luta contra as torturas e a infâmia da polícia, as lutas dos trabalhadores intelectuais se unem à dos trabalhadores manuais”.
Terminada a leitura nos demos as mãos com energia e olhos emocionados. Nunca mais o vi, apenas o acompanhei ao longe, nas leituras e nas incontáveis polêmicas de sua vida. Mas o garoto aguerrido de 22 anos, ainda em formação, recebeu de Foucault outro tipo de lição que certamente o ajudou a marcar sua própria trajetória intelectual como professor e cidadão. Tempos duros, mas de grandes lições!

JOSÉ CASTILHO MARQUES NETO é doutor em Filosofia pela USP

(Publicado originalmente no site da Revista Cult)

Rio de Janeiro, uma cidade entre ruínas

                                         
Carla Rodrigues
                                                                                                                                                                 

Rio de Janeiro, uma cidade entre ruínas


Museu Nacional: incêndio destruiu 90% do acervo de instituição de 200 anos (Foto: Mauro Pimentel)

“O século 20 é o século dos objetos, e o objeto que melhor representa o século 20 é a ruína, um objeto bem formado, conforme à compreensão comum que se tem do objeto, que ocupa um lugar no espaço, pode ser produzido, ser acessível aos sentidos, ainda que, na prática, este se apresente como ligeiramente desestruturado”, escreveu o psicanalista francês Gérard Wajcman em Lacan, o escrito, a imagem (Autêntica, 2012), a quem vou recorrer para pensar os escombros do Museu Nacional como parte das ruínas que atravessam a cidade do Rio de Janeiro. As ruínas descritas por Wajcman marcam de forma indelével o Rio de Janeiro: é na implicação entre a nossa arquitetura e as nossas ruínas que está hoje o ponto de encontro que se configura como origem e destino da nossa tragédia.
Transformamos em museus ou centros culturais uma imensa quantidade de prédios históricos e temos palácios espalhados por toda a cidade. O Palácio Guanabara foi residência da princesa Isabel, desapropriado na República, fonte de uma batalha judicial até hoje. O Paço Imperial, como diz o nome, foi residência da família Real, em 1808. Temos o Palácio do Itamaraty, o Palácio Laranjeiras – hoje residência oficial do governo do estado – e o Palácio Tiradentes, sede da nossa primeira câmara, ainda no Brasil colônia, e também a cadeia onde Tiradentes ficou preso antes de ser enforcado. Na passagem para a República, abrigou o Ministério da Justiça e o DIPP da ditadura Vargas. Temos ainda Palácio do Catete, transformado em museu depois do suicídio de Getúlio e da transferência da capital para Brasília, a primeira sede do Banco do Brasil, hoje centro cultural, assim como a primeira sede dos Correios.
A tragédia do Museu Nacional era ser parte desse grupo de heranças históricas – virou cinzas a Sala do Trono, usada como gabinete de dom Pedro II – e ao mesmo tempo ser muito mais do que isso. Seu acervo abrigava preciosidades da história da humanidade e por isso provocou manifestações mundiais de pesar, tamanha a importância e raridade das peças e coleções ali perdidas, do incomensurável do que nunca mais poderá ser substituído. A perda é muito aguda para quem vive no Rio de Janeiro, para quem trabalha na UFRJ (universidade cujos prédios estão sendo destruídos pelo fogo há alguns anos), e por isso me parece que o único trabalho de luto possível é insistir na importância do museu para além das terras cariocas, fluminenses ou mesmo brasileiras.
Transformá-lo em metáfora de um país em ruínas é pouco diante do tamanho da perda, é um olhar provinciano sobre o patrimônio mundial que abrigávamos. Penso que as ruínas identificadas por Wacjman na Europa do século 20 chegaram ao continente latino-americano depois, diacrônicos que somos em relação às temporalidades hegemônicas dos países do Norte. Fomos sendo arruinados aos poucos – ao contrário dos países arruinados de uma só vez pelos bombardeios da Segunda Guerra –, destruindo o Morro do Castelo aqui, derrubando o Palácio de Monroe ali, apagando a arquitetura do passado sempre em nome de uma promessa vã de modernização de fachada. Jamais fomos modernos e nem assim fomos capazes de dar valor ao passado, à história, à memória.
O Museu Nacional é, apesar das ruínas, um monumento à ciência, ao valor do conhecimento, à pesquisa. Estar instalado num prédio histórico é, em parte, consequência de como essa ciência começou a ser feita no Brasil, para contar as nossas próprias origens como povo e continente, o que terminou por fazer do museu referência internacional em antropologia e arqueologia. Por isso, mais uma vez  as ruínas de Wacjman me são tão úteis: me ajudam a sustentar como hipótese de que arruinar a história não é um tipo perverso de descaso, é um projeto. Não deste governo, dos governos passados ou retrasados. Arruinar a história é a reafirmação de um processo permanente de colonização, aqui entendida como forma de dominação sobre todos aqueles cujas histórias não podem ser contadas. Ou, como tão bem identificou o filósofo Walter Benjamin diante das primeiras ruínas do século 20: “Os mortos não estarão em segurança se o inimigo vencer. E o inimigo não tem cessado de vencer.”

Carla Rodrigues é professora do departamento de Filosofia da UFRJ

(Publicado originalmente no site da Revista Cult)

terça-feira, 4 de setembro de 2018

Crônica: Guia sentimental de João Pessoa


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José Luiz Gomes

 
Já confidenciei aqui para vocês a nossa paixão por João Pessoa, a capital da Paraíba. Uma das razões é a preservação de suas árvores, o que a torna uma das cidades mais arborizadas do mundo, concorrendo, imaginem, com Paris. Você está ali na Lagoa do Parque Sólon de Lucena, dá apenas uma subidinha até o Tambiá, desce um pouco até o bairro do Roger, já nos proporciona aquele deslumbramento da mata da Bica. Meia volta e você já entra no "Buraquinho", uma das maiores reservas florestais urbanas. Perde apenas para a reserva da Tijuca, no Rio de Janeiro. Depois que começamos a percorrer todos os seus encantos de recantos com o comendador Arnaldo, então, a paixão virou um desse entusiasmo de adolescente. Arnaldo, dona Zélia, sua esposa, os companheiros da confraria tem nos proporcionado as poucas alegrias da vida nesses tempos bicudos que atravessamos. Sou uma pessoa de muita sensibilidade e sofremos muito com tudo isso que estamos enfrentando.

O cara é condenado sem uma prova material sequer, tem suas contas bloqueadas, os bens confiscados, está preso e ainda é cobrado numa quantia exorbitante, superior a 31 milhões, para pagar as custas do processo e danos morais. De quem mesmo?. Isso é desumano. Mas, voltemos à Jampa, que é o assunto desta crônica. Hoje pela manhã a turma da confraria encontrou-se na famosa praça de alimentação que fica ali no bairro da Torre. Depois de encher a pança com cuscuz, carne de bode, café com leite e uma caninha Volúpia de entrada, sempre guiado pelo comendador, vamos curtir um passeio de domingo à tarde pelo centro, no bairro do Varadouro, ali pelo sitio histórico. Dizem que o bairro da Varadouro é um  pouco perigoso, mas o Arnaldo é blindado. Por falar no sitio histórico, outro dia fiquei sabendo que será o único sítio histórico brasileiro a integrar um estudo especifico, realizado por pesquisadores de universidade do exterior.

Arnaldo, jornalista de batente, tendo passado por várias redações, cobrindo desde de brigas de mulheres por macho às partidas de futebol, conhece cada palmo da cidade. Aqui funcionava a pensão de Dona Zefa, que foi abandonada pelo marido e cuidava muito bem dos jovens mancebos que vinham estudar na capital; ali funcionou o nosso  abatedouro, onde se comia gente à beça; aqui funcionou a bodega de Tião, onde a rapaziada se reunia para tomar cachaça com tiragosto de fígado alemão e azarar as prostitutas que adoravam dar para jornalistas. E o escriba aqui anotando tudo. Já antecipou sua disposição em escrever, a quatro mãos, uma espécie de guia sentimental de Jampa. Topamos na hora. 

Charge! Renato Aroeira

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Michel Zaidan Filho: Os desafios do PT





Aos poucos, vai se delineando o quadro das candidaturas efetivamente postas à escolha do eleitor nas eleições presidenciais que se avizinham.A estratégia de isolar a candidatura de Ciro Gomes,persuadir o PCB a retirar sua candidatura à Presidência da República e conseguir uma relativa neutralidade do PSB na corrida presidencial, parece ter dado certo, mesmo a custa do doloroso processo de alijar a vereadora Marília Arraes da disputa pelo  Governo de Pernambuco. O que,aliás, deixou sequelas. A questão que se coloca neste momento é como viabilizar uma candidatura petista, no curto período das propaganda eleitoral e da exposição prévia dos demais candidatos no horário eleitoral gratuito. Se o Partido dos Trabalhadores não registrar definitivamente uma candidatura própria, neste tempo eleitoral que vai se esvaindo e criando fatos consumados, com a ajuda da mídia e das pesquisas de opinião, vai ficando cada vez mais apertadas as margens de manobra para que o partido dispute com força e vigor a possibilidade de ir ao segundo turno e consiga formar uma frente anti-Bolsonaro, com partidos de centro que hesitam em ter de apoiar um candidato de extrema-direita, como ele.

De toda maneira, o tempo urge. As eleições no Brasil são muito influenciadas pela propaganda e os instituto de pesquisa. Está fora desse circuito - que não se confunde com uma verdadeira esfera democrática deformação da opinião pública - pode representar um imenso prejuízo na campanha eleitoral. Naturalmente, o Partido dos Trabalhadores calcula que, não sendo mais possível apresentar o nome do ex-Presidente como seu candidato,o imenso prestígio político, eleitoral e popular de LULA por si só seria suficiente para garantir uma grande transferência de votos do líder petista para o vice ou outro nome indicado por ele. É uma aposta e não convém cruzar os braços, achando que isso vá acontecer sem mais. O PT precisa definir o quanto antes os nomes que comporão a chapa que vai concorrer às eleições e se empenhar de corpo e alma em publicizar ao máximo quem são os candidatos, para que os eleitores saibam que há alternativas, caso o nome de LULA seja vetado. A demora, o faz-de-conta, a presunção da eleição de LULA nada disso ajuda ao partido,numa campanha onde a mídia faz questão de ignorar a imensa importância política do ex-presidente da República para o país. Mais grave, não se discute sequer a ilegitimidade de um pleito eleitoral onde o nome mais popular está proibido de concorrer às eleições.

A despeito do indiscutível favoritismo e a preferência popular por LULA, a eleição não dispensa - muito pelo contrário - um enorme e democrático esforço de convencer o eleitor, sobretudo o eleitor indeciso, de que o nosso candidato é o melhor, o mais republicano e justo. Nunca se ganha uma eleição, por antecipação. Mas se perde eleição, quando se está convencido de que já ganhou. O Partido dos Trabalhadores precisa urgentemente se convencer que é necessário correr para garantir a chance de que é fundamental articular uma grande frente política para barrar a  avalanche de intolerância, autoritarismo e ódio que ameaça a desabar sobre as nossas cabeças.

Michel Zaidan Filho é filósofo, historiador, cientista político, professor titular da Universidade Federal de Pernambuco e coordenador do Núcleo de Estudos Eleitorais, Partidários e da Democracia - NEEPD-UFPE

segunda-feira, 3 de setembro de 2018

Crônica: O Quinze, uma literatura para cabra macho?


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 José Luiz Gomes
 
Há pouco, discorríamos aqui sobre as narrativas cruéis e verdadeiras da literatura, o que poderia suscitar um certo remorso ou mal-estar naquele público bem situado, que não gostaria de sentir enjoos ao se banquetearam, lendo textos tão miseráveis, tratando de retirantes, seca e fome. O Quinze, de Raquel de Queiroz, é um desses textos. Até aqui tudo bem, porque essa realidade cruel precisa ser posta de alguma forma e uma dessas formas é através dos textos literários. O que nos causaria surpresa, no entanto, é uma reação um tanto quanto misógina do escritor alagoano, Graciliano Ramos, ao tomar conhecimento sobre a obra. Ele sugere que Raquel só pode ser um homem, quando muito, um pseudônimo de um homem, que, de fato, deve ter escrito aquele livro. Surpreende-nos no escritor essa atitude, mas logo ele se refaz. 

A rigor, a bem da verdade, nunca houve alguma indisposição entre ambos. A impressão que se passa é que esse ato de misoginia - se não há algum exagero aqui - do autor de Vidas Secas estaria relacionado a um periodo em que ele ainda não conhecia a escritora cearense. Outra hipótese seria uma possível ciumeira do “campo”, uma vez que O Quinze entre na mesma seara de Vidas Secas. Aliás, um concorrente de peso quando se está em discussão não apenas as avarezas e sofrimentos do homem nordestino, castigados pelas intempereis da vida agreste, mas à qualidade do texto da cearense. Em ambas as indisposições, essas impressões são logo superadas. Ambos participaram de círculos literários em Maceió e, logo em seguida, por ocasião do lançamento de um outro livro da escritora, Caminhos de Pedra, eles já seriam bem próximos.

É bem verdade, confessa Graciliano, que somente conheceu a escritora cearense depois da publicação de João Miguel. Durante um bom tempo, confessa, em razão de um preconceito arraigado, em sua mente vinha a ideia de que Raquel era homem. Romance de mulher e ainda por cima, mulher nova? Quando foi lançado, ali pela década de trinta, o livro da escritora cearense causou mais assombro do que o romance de José Américo, A Bagaceira, tido como um marco da literatura regional. O livro de Raquel, como se sabe, foi muitíssimo bem recebido pelo crítica literária, alçando a autora à condição de uma das maiores escritoras brasileiras, com assento na Academia Brasileira de Letras.

Sítio do pica-pau vermelho

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     Quem conhece a história de fundação dos partidos políticos brasileiros, sabe que é algo muito melindroso falar sobre o tema. Mas também sabe que a maioria nasceu muito mais por divergências pessoais do que por questões ideológicas. Com relação ao PT, até quem não morre de amores por ele, reconhece que seu nascedouro foi bem diferente dos demais. Infelizmente, suas práticas com o passar dos anos tornaram-se iguais aos demais.

     Acreditando que Lula será candidato e vitorioso nas urnas, o PT tem buscado alianças escusas, visando o retorno ao poder. Dando clara demonstração de que está disposto a qualquer tipo de aliança, visando o resultado eleitoral. Aqui em Pernambuco estamos assistindo uma clara falta de coerência e de espírito republicano. Rifar candidaturas do seu próprio quadro, não é algo novo aos partidos políticos e o PT não está livre disso. Basta lembrarmos a forma como conduziram a candidatura à prefeitura da cidade do Recife em 2008. Parece que o partido acredita que como Pernambuco, segundo as pesquisas, é o Estado onde aparece o melhor desempenho do seu candidato fantasioso, pensa que os pernambucanos estão esquecidos da conduta de alguns aliados de última hora, no processo de impeachment da ex-presidente Dilma.

     A aliança formada entre PT e PSB em Pernambuco tem como principal alvo, garantir a reeleição do governo e do senador paulista, demonstrando que as preocupações com o povo pernambucano são apenas instrumentos de retórica. Na verdade, a não candidatura própria tem um fator maior. O tempo vai passando e o PT pernambucano não renova os quadros e alguns trabalham para que não aconteça, pois ofuscaria velhos companheiros que tanto lutaram pelo desempenho eleitoral do partido em outros momentos da história. O cenário atual foi articulado no Sítio do Pica-pau Vermelho. O povo parece encontra-se entre Cila e Caríbdis.  Se o modelo interpretativo da história utilizado por Maquiavel estiver correto, Pernambuco assistirá um novo 1998.

 

Hely Ferreira é cientista político.