pub-5238575981085443 CONTEXTO POLÍTICO.
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sábado, 17 de março de 2018

A esquerda não tem nada de novo a dizer sobre a violência urbana?

                                           
Wilson Gomes                                                                                 

A esquerda não tem nada de novo a dizer sobre a violência urbana?
Arte Revista Cult


O crime urbano violento e a corrupção, quando tratados como fenômenos sociais graves e disseminados, estão muito próximos. Os fenômenos do crime urbano e da corrupção política, em virtude do modo extremo como hoje afetam a qualidade de vida dos brasileiros, são considerados não apenas as principais razões para o desejo de migrar, o novo trend das nossas classes abastadas (a modinha do Projeto Miami e, mais recentemente, o Projeto Portugal), como também ganharam espaço cativo no topo das urgências sociais que, segundo a percepção geral, a política tem que resolver.
Mas o que o sentimento geral da população considera problemas e urgências sociais é em geral um construto da própria sociedade. Explico. O que não falta no mundo são problemas e aflições, mas toda sociedade em um determinado momento elege aqueles que são mais urgentes e que, por conseguinte, precisam estar no topo da agenda. Mas tudo tem limite, até o centro das preocupações sociais. Assim, lembramos de e ficamos aflitos com algumas poucas coisas de cada vez e vamos substituindo os temas e problemas conforme vai se deslocando o foco da atenção pública. Os cidadãos, em um dado momento, precisam pôr-se de acordo, por exemplo, que o que lhes impede de serem felizes e de terem uma vida com qualidade são agora X e Y e que A e B, que ocupavam, até o momento, o topo das suas aflições, podem ser deslocados para o segundo plano.
Assim, preocupações com saúde pública e desemprego parecem estar no centro das nossas preocupações em razão de uma imposição da realidade, mas o fato é que, em um determinado momento, uma sociedade pode decidir que temas como imigração, ajuste das contas públicas, matriz enérgica, sustentabilidade, aquecimento global, educação, violência urbana ou corrupção podem assumir o seu lugar. E é assim que os temas vão e vêm das arenas da atenção pública.
Além disso, problemas sociais não são propriamente “fatos naturais”, mas fatos interpretados, segmentos intermediários de uma sequência que inclui pelo menos um diagnóstico e uma solução preconizada. As expressões genéricas “crime” ou “corrupção” são, na verdade, um feixe de noções envolvidas em uma competição social pela interpretação das raízes do crime e da corrupção e do modo como estes temas podem ser resolvidos. Esta competição envolve, naturalmente, todas as forças sociais que disputam o mercado de interpretação e opiniões: as pessoas comuns, a comunicação massiva e as pessoas que conseguem se expressar por meio dela, intelectuais, autoridades, políticos etc. Não é simplesmente “corrupção”, mas corrupção causada por X e que deve ser resolvida pelos meios Y e Z. Idem para o crime urbano.
Por fim, depois que as pessoas se põem em suficiente acordo sobre as emergências sociais e sobre o ângulo de abordagem a ser adotado, chega o momento em que elas, as emergências, de alguma forma, estruturam as campanhas políticas. É na relação com as emergências que aparecem na percepção social que são avaliados os cacifes eleitorais dos candidatos, planejadas as narrativas da campanha e construídas as imagens dos candidatos. Assim, uma vez que a maioria admite que a corrupção é causada por X (e não por A) e será resolvida por meio da providência Y (e não B), o ator mais adaptado para o papel e a narrativa mais coerente com as premissas socialmente adotadas no esquema causa-problema-solução têm mais chances eleitorais que os seus concorrentes.
Por outro lado, as grandes contraposições políticas frequentemente desempenham um papel na estrutura das urgências sociais e da resposta política, tanto no que tange às narrativas quanto no que se refere à imagem de pessoas e instituições necessárias para disputar a opinião pública e os votos. A esquerda e a direita, por exemplo, novamente voltam, nestes dias, ao terreno da disputa acerca do tema do crime. Não é opcional. Como disse na coluna anterior, a agenda do crime ocupou o centro da atenção pública e está orientando, como nunca, as decisões eleitorais na eleição presidencial.
O problema, para a esquerda e para o centro, é que estão sendo derrotados fragorosamente no tema do crime, na arena da percepção pública. E esta é provavelmente uma das razões porque esta eleição, noves fora Lula, vem se inclinando para a direita. Antes de tudo, isso tem a ver com cultura e mentalidades relacionadas aos segmentos políticos: a direita, sobretudo a direita conservadora, consegue tradicionalmente lidar melhor com os temas do crime e da violência do que o centro liberal ou a esquerda progressista. Tudo tem a ver com a competição pela interpretação do esquema causa-problema-solução. Competição, naturalmente, para ver qual será o ponto de vista adotado pela maioria das pessoas, se o meu ou do meu concorrente. Assim, por exemplo, se o tema é o crime violento, o pacote completo inclui a disputa para ver quem consegue convencer mais pessoas sobre as causas do crime violento e as soluções ao alcance da mão para resolvê-lo.
O fato é que a esquerda em geral, e a esquerda brasileira em particular, não tem uma resposta com sucesso de público e crítica para a violência urbana. O sucesso da direita, por sua vez, tem a ver com o enquadramento que adota, as associações que evoca e com o fato de as suas explicações serem simples, intuitivas e coerentes com a matéria prima fartamente disponível no imaginário social – medo, moralização e punição -, enquanto os concorrentes fazem associações complexas e abstratas, correlacionam causas remotas e demandam muito em termos de cognição e informação do público para serem assimiladas e aceitas.
Há, naturalmente, muitas alternativas possíveis para o esquema causa-problema-solução no que se refere ao crime violento urbano. A direita conservadora costuma recorrer a duas delas. Na primeira, há crime porque indivíduos tomam a decisão de praticá-los e o fazem de caso pensado. Há racionalidade envolvida, pois o criminoso sopesa vantagens e riscos e decide que os potenciais benefícios de, por exemplo, praticar um latrocínio, superam os potenciais custos envolvidos. O sujeito põe na balança, de um lado, os benefícios do crime e, de outro, as chances de ser apanhado, multiplicadas pelas penas a que estaria sujeito se fosse condenado. E se inclinará para o prato que pesar mais.
Como, em geral, acredita-se que no Brasil é baixíssima a chance de um criminoso violento ser apanhado e que, quando ocorre identificação e condenação, as penas não são severas o suficiente, parece à população que o temor de ser apanhado e a perspectiva de punição não são o bastante para desencorajar o crime. Antes, ao contrário, o crime compensa e a escolha pelo crime, acreditam, tem fundamento racional.
Poder-se-ia perguntar, claro, por que razão, se o crime compensaria para todo mundo, nem todo mundo é criminoso. Teoricamente, a teoria da escolha racional, aplicada ao crime, é pouco consistente, mas a opinião pública não é um simpósio filosófico e a responsabilização individual pelo crime (“se eu me privo, mas não pratico o crime, os outros também poderiam fazer o mesmo”), que a acompanha, acaba desviando a atenção das inconsistências conceituais da ideia.
O passo seguinte, naturalmente, é a política pública para resolver o problema. Do diagnóstico do crime decorre que uma solução necessariamente há de passar pelo aumento das chances de identificação e captura do criminoso (vigiar) e pelo aumento das penalidades pelo crime violento (punir). Precisa-se, portanto, de mais vigilância, mais controle, mais polícia, mais exibição de força do Estado, de um lado, e do aumento das penas (tudo vai virando “crime hediondo”) e da diminuição da menoridade penal, de outro.
A fórmula parece simples: se mais vigilância, penas mais severas e mais gente podendo ser punida (até crianças), o prato da balança dos custos do crime começará a pesar mais que o prato dos benefícios, e o crime violento deixará de compensar. A banalização da violência cessaria com a distribuição de punições mais frequentes, mais severas e a mais gente.
O segundo modelo adotado para explicar a violência urbana transfere a causa do crime para o plano dos valores. A responsabilização tira o peso do indivíduo e dos seus cálculos de perdas e ganhos e o transfere para o julgamento de caráter, individual, e para a estrutura intermediária onde o caráter é formado, que são os valores. Crime tem a ver com maldade, com fraqueza de caráter, com ausência de valores.
Há uma teoria sobre a decadência moral da sociedade por trás desta explicação: se no passado o crime urbano não assombrava as pessoas e todos se sentiam seguros é porque no passado os valores compartilhados eram do tipo X (valorizava-se a honestidade, o trabalho, a integridade, o respeito, a religião, a distribuição tradicional dos papeis de gênero, um padrão normativo de comportamento sexual, etc.), de muito melhor qualidade, e não do tipo Y que agora “querem nos impor”. A violência seria um sintoma de um profundo desarranjo no nível dos valores e na formação do caráter das pessoas. Assim, os jovens são piores que os velhos, os costumes antigos são melhores que os modernos e as sociedades do passado são melhores do que as do presente: O tempora! o mores!.
O antídoto à dissolução moral, naturalmente, estaria em preservar valores morais consistentes, restaurando antigos padrões e reeducando. Naturalmente, quem está disposto a diagnosticar esta causa não tem tempo nem paciência para reeducar uma inteira sociedade degenerada, preferindo mais rapidamente punir, afastando a “maçã podre” da sociedade antes que se estrague todo o cesto.
Nesta perspectiva, educar evita o aumento do dano, mas não o que já está acontecendo. De forma que tudo o que caberia ao Poder Público, dado o estado de disseminação do crime, seria punir exemplarmente a marginalidade, aumentando por este meio o medo de ser apanhado e, de quebra, reafirmando os bons valores desta sociedade. Não se deixaria de praticar o mal por virtude, mas por pavor das punições que podem ser aplicadas pelas “pessoas de bem”.
Nas duas alternativas, o “vamos punir!” é a forma de aplacar o ressentimento da parte da sociedade que é vítima habitual do crime urbano. O mesmo se aplicando, ao tema aparentado da corrupção. A convicção por trás disso tudo é que a punição é o remédio que cabe ao Estado aplicar em nome da sociedade. É um esquema freudianamente até infantil: se eu não posso fazê-lo e se quando o faço sou punido, porque ele faz e não lhe acontece nada? Se o medo da punição é eficaz em mim, também será eficaz para conter os outros. E se houver algum obstáculo social à punição severa, alargada e abrangente, que nos satisfaz, tenha este obstáculo origem nos direitos e garantias das Constituições liberais ou venha do populismo da esquerda e dos Direitos Humanos, que se danem tais barreiras, passemos por cima delas. As contas precisam fechar de maneira mais favorável às “pessoas de bem”, a sua sede de justiçamento precisa ser aplacada.
O modelo causal da esquerda já é velho e gasto. A responsabilização individual desaparece da equação, a estrutura intermediária dos valores é dispensada e tudo se resume à relação entre macroestruturas determinantes e indivíduos determinados. A violência urbana, como muitas outras mazelas sociais, é determinada em sua maior parte por fatores estruturais remotos. Pobreza, miséria, abandono social, ausência de acesso a serviços de educação, saúde e amparo social, como fatores próximos, e pela própria divisão da sociedade em classes e, enfim, pelo sistema de produção capitalista, como fatores remotos. Tudo isso vai correlacionado para explicar o crime urbano e uma série de outros fenômenos associados.
As soluções, naturalmente, passam por mudanças estruturais, geralmente fora do alcance imediato dos imediatamente envolvidos: fim da miséria e da pobreza, educação (“Se os governantes não construírem escolas, em 20 anos faltará dinheiro para construir presídios”, disse Darcy Ribeiro), alteração substancial nos índices de desenvolvimento humano em geral. Os mais radicais, naturalmente, atam tudo ao fim do modo de produção capitalista e à exploração do homem pelo homem.
As políticas públicas dedicadas ao problema da violência urbana (a rigor, desaparece o problema do crime, substituído pelo tema mais genérico da “questão social”) devem vir pari passu com todas as políticas públicas dedicadas a resolver a questão social. Não há uma ênfase exclusiva ou mesmo expressiva no tema da epidemia do crime urbano que apavora as pessoas neste momento. Em vez do mais simples e aplacador “vamos punir”, entra em campo o menos emocionante, quase frígido, “vamos construir escolas, vamos incluir todos os cidadãos, vamos reduzir as desigualdades para acabar com o crime”.
Para o cidadão comum, trancado em casa e que possivelmente já experimentou no corpo ou na vida dos que ama ou amou o horror da violência, isto soa basicamente como dizer “reze e entregue tudo a Deus”. Não resolve o seu problema, nem solução lhe parece.
Ainda mais quando lhe dão a entender que ele é causa do problema e não a sua vítima. Se é de classe baixa, dizem-lhe que a culpa é da sociedade e não do criminoso; se é de classe média dizem-lhe que a culpa é do seu egoísmo, do seu consumismo, da sua indiferença; se calha de ser rico, então, a culpa é diretamente jogada nos seus ombros, quase como se a merecesse, como punição, por ser beneficiário da exploração do seu semelhante ou por não tomar as providências que poderiam pôr fim à situação.
Quem, em situação de desespero, quer ser responsabilizado pelo mal de que é vítima, tirando a responsabilidade individual do seu algoz para colocá-la em si? Melhor migrar, melhor adotar a solução “casca grossa” de Bolsonaro, qualquer coisa é melhor que o proposto. Mas isto é praticamente tudo o que a esquerda tem a oferecer e não surpreende, em termos de mera psicologia social, que as pessoas fujam da adoção deste esquema como o diabo fugiria da cruz.
Na verdade, ninguém sabe como interpretar corretamente o problema da violência urbana brasileira e, muito menos, como resolvê-la. A intervenção militar de Temer na cidade do Rio é, neste contexto, uma cartada extrema, apostando tudo na demanda punitivista da sociedade. Bolsonaro oferece perspectivas de punição, “se eleito for”; Temer aposta no aumento da presença do Estado armado, forte, amedrontador. Poderia ter mandado a Guarda Nacional, mas a palavra Forças Armadas tem mais peso dramático e só Deus sabe como Temer precisa de soluções dramatúrgicas para o seu fim de governo.
O lance é arriscado, claro, uma vez que um esquema que pode funcionar muito tempo no nível do imaginário e das narrativas pode revelar-se um engodo quando materializado em ações. E se o crime no Rio não diminuir? E se o crime voltar assim que o Exército se retirar? Os 70% que apoiam a intervenção, com o argumento de que “chegamos ao limite, alguma coisa tinha que ser feita”, terão paciência por quanto tempo se não virem o crime reduzir drasticamente?
A esquerda em geral falha no seu esquema pela impossibilidade de mostrar resultados imediatos. “Eduque o sujeito agora e não terá que o punir daqui a 20 anos” é um argumento relativamente sensato, mas 20 anos é uma vida e a violência é um transtorno existencial tremendo aqui e agora. Os esquemas interpretativos da direita conservadora parecem mais intuitivos, mas se são transformados em política de Estado precisam fazer uma entrega imediata.
Por isso é que “bancadas da bala”, candidatos eleitos por conta da agenda do combate ao crime, são geralmente bancadas legislativas e não cargos executivos – o sujeito faz basicamente discursos, atua no interesse de corporações militares e policiais e tenta fazer Projetos de Lei transformando o delito A em crime hediondo, apoiando que a população se arme ou tentando reduzir a menoridade penal. Gasta cuspe e papel, nada mais. Não tem que testar as suas ideias em campo e mostrar que o seu esquema explicativo efetivamente dá conta da realidade do crime. Há poucos meses das eleições gerais, ao fazer do Rio o seu laboratório, Temer faz uma aposta alta. Logo saberemos no que pode resultar.
Enquanto isso, a esquerda é apanhada mais uma vez sem ter o que dizer sobre um tema dominante na conjuntura política. Aconteceu o mesmo em 1994, quando o tema que se impôs na opinião pública foram inflação e máquina pública, sobre os quais o PT nada tinha a dizer e FHC nadou de braçada. As perspectivas punitivistas continuam fazendo sucesso de público, embora estejam enfrentando um teste de fogo neste exato momento.
Nas arenas da opinião e do imaginário do público, contudo, não têm adversária à altura. E, o que é pior, a esquerda sequer demonstra ser capaz de entender a importância deste tema para a população. O que tem para oferecer, até o momento, é não apenas o esforço de demonização da urgência social, como também a tentativa de demonização dos atores políticos que, por sua vez, concentram-se em surfar com sucesso a gigantesca onda de atenção que o tema produziu. Como se demonizar temas e atores fosse capaz de fazer o tema desaparecer ou de tornar desimportantes aqueles que fornecem as interpretações que o público adota e usa para tomar decisões eleitorais.

(Publicado originalmente no site da Revista Cult)

Le Monde: Marielle Franco: O novo sempre vem




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Marielle Franco ajudou o Le Monde Diplomatique Brasil no momento em que mais precisamos. Em dezembro de 2017 gravou depoimento em apoio à nossa campanha de financiamento coletivo. Em janeiro de 2018, seu artigo compôs a cobertura da capa sobre a revolução feminista. No texto, ela dizia: “nós aprendemos umas com as outras, estamos buscando formas de fazer política que não sejam mera reprodução do que sempre foi feito”. Sua solidariedade jamais será esquecida. Seu exemplo será seguido. O novo sempre vem. Expressamos também nossos sentimentos aos familiares, amigos e amigas de Anderson Pedro Gomes.
Republicamos a seguir o artigo escrito por Marielle para nossa edição de janeiro. A postagem original pode ser acessada aqui.
O novo sempre vem
Por Marielle Franco
Em 1975, um grupo de mulheres organizou um evento na Associação Brasileira de Imprensa (ABI), no Rio de Janeiro, sobre a situação das mulheres no Brasil. Foram mais de quatrocentas participantes, num movimento que deu início ao Centro da Mulher Brasileira (CMB), primeira organização feminista no país. Mais de quatro décadas depois, ocupamos o mesmo espaço, agora como mulheres, negras, trans, faveladas, professoras, nordestinas, mães, enfim, mulheres em toda a sua diversidade.
No evento de outrora, mulheres negras fizeram críticas contundentes à organização que, apesar de contar com personagens importantes da luta contra a ditadura, não abarcou a diversidade de experiências do que é ser mulher. No final de novembro de 2017, fizemos da ABI um espaço de debate político. Um debate vivo, cheio de nuances, em que cinco centenas de nós afirmamos que vamos ocupar a política, os espaços de poder; contudo, não em uma ocupação meramente “cotista”. Há, inegavelmente, um novo momento, uma marcha em fermentação de mulheres rumo à apropriação dessas engrenagens.
Chegamos a 2018 colhendo frutos de décadas de lutas das mulheres por melhores condições de vida e por mais igualdade nos espaços de tomada de decisões. Nesse período, é inegável que o feminismo se tornou mais diverso, em especial com os avanços das pautas de raça, orientação sexual e identidade de gênero, e também nas reflexões sobre as diversas experiências pelas quais as mulheres passam, como a maternidade. Essa diversidade se expressa nas ruas, em manifestações, e nas redes sociais, por meio de páginas, aplicativos, blogs e vídeos.
Fala-se muito que estamos vivendo uma nova onda feminista, embora a ideia de onda indique um rompimento maior do que como acontece na história de fato. A mídia propaga a ideia de que há um “novo feminismo”, mas na verdade o que vivemos é o resultado de uma convergência de diferentes expressões do feminismo que, mesmo com estratégias de atuação muito diversas, têm em comum a compreensão de que a internet é um espaço de diálogo e articulação política. O feminismo brasileiro hoje não é só jovem e empoderado. O bonde das feministas históricas e o bonde das feministas hashtag dialogam na construção das ações. O feminismo como um todo é plural, diversificado e capaz de produzir convergências.

Desde a eleição de 2010 vivemos uma conjuntura marcada por contradições importantes no que se refere às questões de gênero. O saldo das manifestações e campanhas que se seguiram foi a necessidade de uma representação política mais diversa. As mulheres se colocaram como uma força política importante no cenário nacional, em especial as negras e indígenas. Assumimos o papel de apontar para o que seria o “novo” de verdade na política: inverter o jogo, sair da posição de subalternidade na sociedade para ocupar espaços de formulação, de desenvolvimentos programáticos e de projetos, de tomadas de decisão.
Apesar de termos chegado a alguns lugares importantes, a representação política das mulheres ainda é ínfima, e a das mulheres negras é ainda pior. Mulheres negras somos cerca de 25% da população brasileira, segundo censo do IBGE de 2010. Segundo o “Retrato das desigualdades de gênero e raça” (Ipea, 2015), somos também a maior parte das pessoas desempregadas, que trabalha sem carteira assinada, como empregada doméstica ou com menor renda domiciliar per capita. Essa situação não é por acaso, é fruto de um desenvolvimento civilizatório que foi capaz de desumanizar e objetificar o corpo das mulheres negras.
Em meio a tanta desigualdade, ao racismo e ao sexismo que insistem em nos violentar, a chegada da mulher negra à institucionalidade surpreende. Nossa presença assusta o conluio masculino, branco e heteronormativo. Ao mesmo tempo, nos vemos diante do desafio de construir um projeto político que não exclua as questões que nos trouxeram até aqui, que não as torne secundárias e que se mantenha afinado com as lutas dos movimentos.
Ironicamente, se em 1975 as mulheres reunidas estavam em luta contra a ditadura militar, agora estamos em enfrentando um governo ilegítimo e os golpes cotidianos que ele promove em nossos direitos e em nossas liberdades. Em um cenário de graves retrocessos e da ação articulada das forças religiosas no Congresso Federal, as mulheres estão conseguindo impedir as mudanças de legislação pela articulação de formas muito diversas de fazer feminismo por meio do fortalecimento mútuo. Estamos resistindo aos ataques racistas cotidianos e tentando encontrar caminhos para superar a situação de miséria em que a crise colocou as pessoas que moram nas favelas, periferias e no campo, fortalecendo as iniciativas de economia solidária e de fortalecimento de movimentos como o MTST e o MST.
Graças ao surgimento de grupos como o PretaLab, à formação sobre segurança digital da Universidade Livre Feminista, à MariaLab e às Blogueiras Negras, estamos resistindo à difusão do discurso de ódio e às novas formas de violência que acontecem no âmbito virtual. Quando ouvimos o Slam das Minas, levando a poesia falada das mulheres para os diferentes territórios e reinventando a ideia de batalha – elas não competem nos recitais, elas estão lado a lado, se complementando na performance –, sabemos quem somos, as vozes que se escutam, que se acolhem, que fazem política o tempo todo. Essa resistência é nova também em sua estética!
A PartidA Feminista está mobilizada para lançar candidatas e fazer o debate sobre a importância de eleger feministas comprometidas com os projetos de transformação. O movimento, surgido em 2015, quando ativistas se reuniram para discutir o sentido e a possibilidade de um partido feminista brasileiro, reúne coletivos de mulheres de partidos e movimentos diversos de todo o Brasil. Ou seja, de forma articulada, as eleições de 2018 estão sendo gestadas. Iniciativas para uma representação mais diversa devem ser reeditadas, além de instrumentos para o financiamento coletivo das campanhas.
Em nosso encontro recente na ABI, partimos da ideia de que “uma mulher puxa a outra” – um dos motes da Marcha das Mulheres Negras em 2017. Reunimos mulheres que se destacaram no cenário político do Rio de Janeiro e que são potenciais candidatas a diversos espaços de poder – câmaras estaduais e federal, sindicatos, partidos e associações diversas –, com destaque para as mulheres negras. Isso porque o recado foi dado nas eleições de 2016, e aqui no Rio de Janeiro seguimos à frente da Comissão da Mulher para pautar o debate de gênero na Câmara partindo da nossa perspectiva. Talíria Petroni tem enfrentado o desafio de construir um mandato negro, popular e feminista como a única mulher na Câmara de Niterói. Áurea Carolina, em Belo Horizonte, inova ao criar a “gabinetona” aberta às mais diferentes lutas e ao mesmo tempo atenta aos afetos, à poesia e ao autocuidado. Nós aprendemos umas com as outras, estamos buscando formas de fazer política que não sejam mera reprodução do que sempre foi feito, porque isso nos deixa mais fortes para ocupar espaços da institucionalidade, apesar de todos os retrocessos. Mas não queremos ficar sozinhas nesse espaço, queremos outras e que transformem a política.
O evento recente da ABI foi gestado dentro de um mandato parlamentar, mas não só por ele. Uma rede de mulheres independentes de filiações partidárias se uniu para demandar e organizar o encontro. Por si só essa movimentação descortina um novo momento. O sistema político, tal qual (não) funciona hoje precisa ser urgentemente transformado. Nossa aposta é que outras mulheres sejam fortalecidas para ocupar os espaços de poder. E, para isso, qualquer projeto político de esquerda não pode ignorar as questões que trazemos. 2018 que nos aguarde!
*Marielle Franco é vereadora do Rio de Janeiro pelo Psol.

Charge! Leo Villanova via Gazeta de Alagoas

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O xadrez e o fator detonador com a morte de Marielle

Peça 1 – como semear ódio e colher assassinato

Seja quem forem os responsáveis diretos pelo assassinato de Marielle, entra-se em novo patamar da dissolução do Estado brasileiro.

Etapa 1 – plantando o ódio

Os anos sucessivos, começando antes do “mensalão”, das matérias diuturnas plantando e irrigando o ódio irracional contra o governo Lula, com factoides sobre venezuelização, cubanização, tapiocas e outros recursos conhecidos, o que passou a ser chamado, agora, de fakenews.
Alimentamos o antipetismo, Lula perde as eleições e tudo volta ao normal.

Etapa 2 – o “mensalão”

A entrada no jogo da Procuradoria Geral da República (PGR) e do Supremo Tribunal Federal (STF) como agentes políticos, montando a tese da “organização criminosa” em cima de uma fraude: o suposto desvio de recursos da Visanet, que jamais ocorreu.
Como alertamos na época, tinha-se, descoberto, ali, a fórmula da desestabilização política do PT. Dilma e o PT descobriram essa novidade, alguns meses após o impeachment. O pacto democrático da Constituição de 1988 começa a ruir. O desfecho é adiado pelo desempenho imprevisto de Lula na crise econômica global de 2008.

Etapa 3 – a Lava Jato

O aparato repressivo retoma o protagonismo, alimentado pelo Departamento de Justiça dos Estados Unidos, e todos os pecados são perdoados, desde que contra o inimigo correto. Nessa etapa, todos os princípios civilizatórios, de direitos individuais, de respeito aos ritos processuais, tudo vai por água abaixo, mas ainda contra alvos definidos. Sem problema. Como declarou o Ministro Luís Roberto Barroso, há a necessidade de medidas de exceção para situações de exceção.
Mas depois que Lula e o PT forem anulados, tudo volta ao normal.

Etapa 4 – o impeachment e o pós

O clima de ódio é potencializado e há um liberou geral no Judiciário, Ministério Público Federal e Polícia Federal. Inaugura-se um vale-tudo em que todos os abusos são permitidos e todos os oposicionistas se sentem ameaçados. Qualquer promotor, delegado ou juiz de 1ª instância se vê com autoridade para ordenar conduções coercitivas, prisões temporárias.
Os piores sentimentos vêm à tona, as demonstrações mais estapafúrdias de ignorância boiam que nem dejetos no esgoto. E ainda não se está falando em Bolsonaro e companhia, mas na promotora de Campinas que se declarou  “indignada” com um seminário sobre maconha e denunciou o cientista consagrado. Simples assim: sentiu-se indignada e do alto da sua ignorância, fez valer sua autoridade. Ou a juíza e a delegada que levaram o reitor ao suicídio. Ou os bravos desembargadores do TRF4, aparentados com os sobrinhos do Pato Donald, aqueles que tinham tanta afinidade que um completava a fala do outro. A mídia não poderia condenar os abusos, até escondeu o episódio chocante do suicídio do reitor, porque poderia enfraquecer a maratona pela condenação de Lua.
Mas depois que Lula for condenado, tudo volta ao normal.

Etapa 5 – o assassinato de Marielle

E aqui se ingressa em um fator detonador, independentemente de quem seja os responsáveis diretos, se as milícias da PM ou milícias de ultra-direita. Por fator detonador se considere os tiros com que Gravilo Princip executou o arquiduque Francisco Fernando, levando à Primeira Guerra;  a morte de Walther Rathenau, que desmontou a Republica de Weimar; a morte de João Pessoa que detonou a Revolução de 30 e a do Major Rubem Vaz, que levou ao suicídio de Vargas. Ou, ainda, a morte do estudante Edson Luis que expôs a violência que já vinha sendo praticada pela ditadura e inaugurou a nova etapa da repressão..

Peça 2 – o processo de desmanche

Quando se disseminou a repressão, no período do impeachment, gênios jornalísticos minimizavam: é muito diferente da ditadura, que matava e torturava pessoas. Era óbvio que aquele momento representava, como num filme, o período 1964-1968, que precedeu o AI-5. Não se preocuparam com os alertas que mostravam a lógica que sucedia períodos de tolerância com o arbítrio e o ódio. A Noite de São Bartolomeu passou a ser praticada em etapas.
Em 1963 nasceu o Comando de Caça aos Comunistas (CCC), no bojo da campanha de ódio alimentada pela mídia. Depois de 1968, eles se limitavam a quebrar teatros e espancar artistas e estudantes. Nos porões, torturavam-se e matavam-se pessoas. E militares planejavam atentados de grandes extensões. Todos esses processos nasceram da mesma árvore do ódio plantado.
Tempos atrás fui a uma pacata cidade do interior. Lá, em conversas familiares, um jovem casal, de família temente a Deus, sem histórico de violência,  falava da sua vontade de ver Lula morto. A campanha sistemática de ódio, a irracionalidade plantada em suas cabeças, faziam-nos, pessoas incapazes de fazer mal a um bicho, entender como natural – e necessária – a morte de uma pessoa! A mídia conseguiu naturalizar o ódio no Brasil.
Hoje em dia, é um sentimento generalizado, que se espalha por todas as regiões do país e que, até agora, tinha em Bolsonaro e sua tropa sua mais grotesca expressão. Com a execução de Marielle entra-se em uma nova etapa na qual a doença social plantada pela mídia poderá resultar em loucuras maiores do que discursos de ódio nas redes sociais, tempos de terremotos e furacões, que podem preceder a entrega do poder a Bolsonaro e sua “bancada da metralhadora”. Ele, aliás, evitou comentar a tragédia de Marielle, para não expor o que pensa.
E quem vai segurar essa onda? A indignação retardatária da velha mídia? Certamente não a PGR Raquel Dodge, uma burocrata "apparatchik", subproduto da corporação, sem qualquer brilho ou luz própria, só frases obvias, ultra burocráticas "mandei instalar um procedimento em meu gabinete”.
Personalidades opacas e sem qualquer brilho no STF, na PGR, no Senado, uma organização barra-pesada no Executivo. E completa-se o mapa com os últimos dados econômicos, a queda geral do nível de atividade do setor de serviços em relação a qualquer período do ano passado, desmontando definitivamente a fábula da recuperação irresponsavelmente vendida por Henrique Meirelles e endossada pela Globo.
Tudo isso com as eleições a caminho. Mas não tem problema.
O Lula vai preso, o PT perde e tudo volta ao normal.
Por um tempo acreditei que a perspectiva do desastre promovia a volta à racionalidade. De 2005 – quando a mídia iniciou essa loucura – para cá, todas as esperanças de uma saída racional foram jogadas fora.
 
(Publicado originalmente no Jornal GGN)

O assassinato de Marielle Franco foi uma enorme perda para o Braisl - e para o mundo.


Shaun King


Costumo dizer que é difícil compreender a gravidade e a importância de um momento histórico enquanto você está vivendo ele. E estamos agora diante de um momento que preciso que vocês entendam.
Na quarta-feira, em pleno Rio de Janeiro, uma importante líder de direitos civis foi morta por tiros que partiram de um carro. Seu nome era Marielle Franco. Como eu, ela tinha apenas 38 anos de idade.
Ainda não sabemos quem assassinou Marielle e seu motorista, Anderson Pedro Gomes, embora haja indícios preliminares de que a polícia pode estar envolvida. Foi informado que investigadores teriam concluído que as cápsulas de munição encontradas na cena do crime haviam sido compradas pela Polícia Federal em 2006. Cartuchos do mesmo lote foram usados em uma série de ataques brutais que deixaram pelo menos 17 mortos e sete feridos em uma noite de 2015, em São Paulo. Dois policiais e um guarda municipal foram condenados pela chacina.
Marielle Franco ameaçava um preocupante status quo no Brasil.
O que sabemos é que Marielle ameaçava um preocupante status quo no Brasil.
Nos Estados Unidos, cerca de 1.200 pessoas foram mortas por policiais em 2017. Essas mortes frequentemente destroem famílias, e mesmo os agentes envolvidos nos casos mais ultrajantes raramente são responsabilizados. Na maior parte das nações parceiras dos EUA, como o Canadá, a polícia mata em média 95% menos. Os policiais norte-americanos matam mais pessoas em poucos dias do que a polícia de vários países mata em um ano.
Foi a crise de brutalidade policial nos EUA, mais do que qualquer outro fator, que desencadeou o movimento Black Lives Matter (“Vidas Negras Importam”).
Mas vocês sabiam que o Brasil é provavelmente o grande campeão do mundo em violência policial? Embora tenha 120 milhões de habitantes a menos que os EUA, um assustador número de 4.224 brasileiros morreram nas mãos da polícia em 2016. Esse número representa um aumento de 26% em relação ao ano anterior.
Isso é uma crise internacional de direitos humanos. É um escândalo.

 
 
 

 

 
E o lugar que sofreu com maior intensidade a violência policial foi o Estado do Rio de Janeiro, onde a polícia assassinou mais de 1.124 pessoas em 2017 – uma disparada de 22% em relação ao ano anterior. Além de tudo isso, há uma intervenção militar em curso no Rio. Quer saber de polícia militarizada? As Forças Armadas literalmente assumiram o controle do aparato estatal de segurança.
Marielle Franco, líder brilhante com um coração enorme, era uma figura central no movimento contra a violência policial no Brasil.  Esse movimento se equipara para todos os fins ao Black Lives Matter – sem esse nome, mas com indiscutíveis semelhanças. E é por isso que dezenas de milhares de pessoas foram às ruas para protestar e chorar sua morte.
Ela era uma mulher negra e queer lutando não apenas contra a violência policial, mas por uma igualdade mais ampla e pelo empoderamento das mulheres e das pessoas negras em todo o Brasil. Ela estava exatamente saindo de um evento voltado para o empoderamento das mulheres negras no Centro do Rio quando um carro parou ao lado do dela e alguém atirou quatro vezes em sua cabeça.
Seu carro não foi roubado. Não levaram sua bolsa. Ela foi alvo de uma execução.
RJ - Rio de Janeiro - 03/15/2018 - Vel river of the councilwoman Marielle Franco - Women raise their hands in protest of the death of Marielle. The morning of this Thursday (15) in Cinel India, the wake of the councilwoman Marielle Franco, who was murdered last night in the center of Rio, after reporting abuses committed by police officers in Acari. Photo: Ian Cheibub / AGIF (via AP)

Mulheres erguem os punhos em protesto pela morte de Marielle Franco no Rio de Janeiro em 15 de março de 2018.

Foto: Ian Cheibub/AGIF/AP
Recentemente eleita para a Câmara de Vereadores do Rio, em 2016, a voz e o poder de Marielle na política estavam crescendo. Ela era presidente da Comissão Permanente de Defesa da Mulher na Câmara e havia sido nomeada há menos de um mês relatora da comissão que fiscalizará a intervenção militar e a presença de forças policiais e de segurança nas favelas da cidade. Seu partido, o PSOL, estava planejando anunciá-la como candidata a vice-governadora do Estado nas eleições deste ano.
Ela era uma sonhadora que dava esperança a todos ao seu redor. Num país e num mundo que confiam cada vez menos nos políticos, ela mostrava às pessoas que líderes corajosos poderiam ter princípios, ser progressistas e lutar pela mudança de dentro para fora.
Devemos conectar nossas lutas nos EUA com as do Brasil. Marielle Franco era uma de nós.
O assassinato de Marielle me lembra em vários aspectos o de Patrice Lumumba, o primeiro a ser escolhido primeiro-ministro do Congo independente. Cheio de esperança e de ideias, Lumumba tinha apenas 35 anos quando foi morto. Ele personificava a esperança e a mudança em um país que precisava desesperadamente de ambas.
Antes de serem assassinados, Malcom X e Martin Luther King Jr., então apenas um ano mais velhos que Marielle Franco, tinham chegado à conclusão de que era importante conectar nossas lutas pelos direitos civis e nossas prioridades às lutas pelos direitos civis e humanos em curso pelo mundo.
E aqui estamos novamente. Devemos conectar nossas lutas nos EUA com as do Brasil. Marielle Franco era uma de nós. As prioridades dela são as nossas. Os sonhos dela são os nossos. As lutas dela são as nossas.
Não é coincidência que os países com as duas maiores populações de descendentes africanos fora da África – o Brasil, com quase 56 milhões, e os Estados Unidos, com 46 milhões – estejam ambos enfrentando uma crise de violência policial. Isso acontece porque as vidas negras, seja no Rio ou em Ferguson, em São Paulo ou Baltimore, muitas vezes não importam para a polícia e para os políticos. Em nome da segurança, vidas humanas estão sendo tratadas como descartáveis. E isso nunca pode ser aceito.
Saibam o nome de Marielle Franco. Não permitam que sua causa morra com ela. Mostrem ao mundo que é possível matar um homem ou uma mulher, mas não uma ideia.
Foto do título: Marielle Franco, recém-eleita vereadora, abraça uma apoiadora em visita à Favela da Maré, no Rio de Janeiro, em 9 de outubro de 2016.
 
Tradução de Deborah Leão
(Publicado originalmente no site do Intercept Brasil)

Charge! Duke via O Dia

quinta-feira, 15 de março de 2018

Editorial: Os emblemas em torno da morte de Marielle Franco


 
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Ato no Parlamento Europeu, em Bruxelas, em protesto contra a morte de Marielle Franco.
 
Ainda consternado com a morte da vereadora Marielle Franco, assassinada no dia de ontem, 14, emboscada numa rua do Rio de Janeiro, juntamente com o seu motorista, Anderson Pedro. Uma assessora que a acompanhava conseguiu sobreviver. A morte da vereadora Marielle Franco traz alguns emblemas importantes para entendermos o que se passa neste país, notadamente no pós-golpe institucional de 2016, onde a face do protagonismo militar já tornou-se visível, depois da intervenção no Estado do Rio de Janeiro. Já colocamos na agenda de leituras o livro de Stephen Graham, Cidades Sitiadas, editado pela Boi Tempo. O livro foi recomendado por um amigo, com o propósito de entendermos melhor como o lastro autoritário pode se ampliar no país, vitimando seus potenciais “inimigos”, que hoje vão muito além das vitimas de balas perdidas ou de supostos “soldados” do tráfico de entorpecentes. 
A vereadora Mairelle Franco era uma autêntica ativista política. Envolvida com a causa LGBT; atuava contra os excessos cometidos por policiais nas favelas cariocas, uma atuação que não se limitava apenas às favelas do Complexo da Maré, onde nasceu; seria a relatora de uma comissão criada para avaliar a intervenção federal no Rio de Janeiro. Sua dissertação de mestrado foi sobre o impacto da implantação de uma UPP, numa favela carioca, com o sugestivo título: UPP: a favela resumida a três letras. Marielle voltava de uma reunião com outras mulheres, em torno das ocorrências registradas recentemente sobre a atuação da polícia militar na favela de Acari, onde a população denunciou várias violações, inclusive com o saldo de 02 mortos. Não tenho a menor dúvida de que Marielle já estava no retrovisor dos obscurantistas, restando identificar agora sua linhagem.
Quem melhor traduziu o significado da morte de Marielle Franco foi o seu colega, o Deputado Estadual, Marcelo Freixo, também do PSOL, que compareceu ao local do assassinato e cobrou das autoridades públicas que o crime fosse devidamente apurado, com a identificação dos criminosos. O assassinato de Marielle Franco alcançou repercussão internacional, mobilizando entidades de direitos humanos e o Parlamento Europeu em sua defesa. Como disse Freixo, a morte de Marielle é uma perda irreparável para os avanços e conquistas dos direitos das mulheres, das mulheres negras, das mulheres negras das favelas, das mulheres negras LGBT das favelas ou não. Engajada na luta pelos direitos humanos, sua morte representa mais um retrocesso para a democracia brasileira, que já acumula alguns sobressaltos.
Como disse antes, sua morte ocorre num momento muito difícil para o país. Há algumas leituras possíveis sobre a intervenção federal no Rio de Janeiro, comandada por um general do Exército, Braga Netto. Uma delas dizia respeito à manobra de governantes desgastados com o propósito de recuperar popularidade, ancorado no enfrentamento do crime organizado. Essa leitura hoje é cada vez mais diluída, se entendermos que, na realidade, como afirmamos em editorial anterior, o tal governante busca apenas o escudo dos militares. Quando muito.  Uma outra leitura possível é a que aponta para o avanço do autoritarismo no país, subvertendo, cada vez mais, o Estado Democrático de Direito. Um outro emblema da morte dessa jovem é sobre a denúncia de possíveis excessos das forças policiais, movidas por uma interpretação equivocada de uma "licenciosidade" ou "permissibilidade" provocada pela intervenção. Na Vila Kennedy já ocorreu algo neste sentido - com os fiscais da Prefeitura do Rio derrubando os quiosques de comerciantes do local - e, em Acari, o fato pode ter se repetido, o que se constitui mais um equívoco da intervenção.  

quarta-feira, 14 de março de 2018

Charge! Renato Aroeira

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Editorial: Boulos candidato


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Não é incomum que os partidos de esquerda também experimentem processos de oligarquização. O PT, embora tenha construído uma sólida engenharia de tomadas de decisões coletivas, traduzidas em suas diversas instâncias partidárias deliberativas, desde o momento de sua fundação, também passa por essa experiência. Apesar do azeite orgânico partidário, no entanto, algumas decisões foram impostas goela a dentro da militância, bem ao estilo dos partidos tradicionais, cujas decisões são tomadas pela cúpula partidária, sem qualquer consulta às bases. De acordo com o sociólogo alemão Robert Michels, este é um mal ao qual padece todas as organizações democráticas, notadamente as organizações partidárias e sindicais, independentemente de suas origens. Em 1911, num livro sobre partidos políticos, Michels cunhou tal expressão a Lei de Ferro da Oligarquia, para identificar o fenômeno onde uma elite dirigente acaba assumindo as rédeas da organização. Trata-se de um fenômeno inevitável, consoante o autor. 
Remeto-me a esta "Lei de Ferro" em razão das disputas internas do PSOL, que culminaram com a decisão de lançar o nome do presidente do Movimento dos Trabalhadores Sem Teto(MTST), Guilherme Boulos, como pré-candidato à Presidência da República, que deixou algumas sequelas na agremiação, que apontam para o questionamento sobre sua militância no grêmio partidária, assim como os mecanismos de sua escolha  como candidato, que não teriam trilhado os caminhos estatutários. Aqui em Pernambuco, em relação ao PSOL, os problemas não são menores. As suas lideranças vivem às turras, travando verdadeiras batalhas internas, com saldo de mortos e feridos. Em resumo, a escolha de Boulos como candidato do partido à Presidência da República pelo PSOL, não foi assim nenhuma unanimidade. O mais descontente com a condução do processo é Plininho, filho de Plínio Sampaio, que disputou a Presidência da República pelo partido no passado.
Algumas lideranças do PSOL não nutrem a menor simpatia pelo ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva(PT). Além do líder petista ter declarado apoio ao nome do companheiro, Boulos já está sendo apresentando como um possível “novo” Lula. Talvez um Lula “daqueles tempos”, mas um Lula, o que não agrade nenhum pouco a essas lideranças, principalmente aqueles proponentes de mudanças mais substantivas na sociedade brasileira. O PSOL é um partido relativamente novo e ainda não “engolido” pela bacia semântica à qual se referia o antropólogo Gilbert Durand. Para o PSOL entrar no "sistema" é apenas uma questão de tempo, apesar do protestos do Plínio e outros companheiros. 
A plataforma de Boulos, a princípio, parece bastante identificada com o programa do partido. É uma plataforma autenticamente de esquerda, com proposta de reforma agrária, tributária e urbana, convocação de um plebiscito para revogar algumas medidas adotadas pelo Governo Michel Temer - notadamente a agenda regressiva de direitos. Precisamos ter acesso a esse esboço de programa de governo para conferir as suas posições no tocante à educação e a democratização da mídia, um gargalo que o PT não mexeu e, em razão disso, pagaria um preço bastante alto logo em seguida, como se sabe. Setores da mídia cumpriram um papel fundamental nas tecituras que envolveram a materialização do golpe institucionald e 2016.
Quem nos acompanha por aqui sabe que nutrimos simpatia pela candidatura de Boulos. Já escrevemos sobre o assunto antes. É bom que seja ampliada essa capilaridade no campo de esquerda, sobretudo se considerarmos as “limitações” programática e aliancista de uma candidatura como a do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, hoje praticamente um carta fora do baralho golpista. Se tivermos eleições, ela não contará com Lula, com base no andar da carruagem política. Isso se tivermos eleições, uma vez que estamos presenciando, no momento,  um recrudescimento do golpe institucional de 2016, que já conta com uma espécie de protagonismo militar. 

domingo, 11 de março de 2018

Le Monde: O golpe de 2016 e seu estudo nas universidades

Se várias universidades resolveram colocar o tema “O golpe de 2016” como objeto de reflexão e ensino, é porque o assunto é digno de ser abordado de maneira científica, metódica e sistemática. Os que possuem outra concepção dos acontecimentos de 2016 também têm autonomia para criar disciplinas e cursos que analisem a realidade sob outra ótica
O clamor irracionalista da nova direita
O espernear do momento da “nova direita” brasileira são os cursos sobre o golpe de 2016 que começam a ser ministrados em várias universidades públicas do país, motivadas pelo fato de o Ministro da Educação ter tentado coibir a iniciativa do professor Luiz Felipe Miguel, da UnB, de ofertar uma disciplina optativa sobre o tema no curso de Ciência Política. A reação não é surpreendente, dadas as características que compõem o perfil desse grupo social que se formou no processo de construção do golpe. A propósito, essa própria direita deve ser objeto de análise teórica nos cursos.
Não estamos falando de um grupo social mais ou menos orientado pelas elaborações de pensadores e lideranças que, consoantes e coerentes com os princípios do liberalismo, por convicção, apresentam ideias dentro dos parâmetros da racionalidade discursiva e dialógica. Esses – que ainda devem existir, mas estão silenciosos, provavelmente recolhidos em algum recôndito social – seriam capazes de apresentar suas proposições e análises com lógica e consistência, tornando-as passíveis de entendimento e crítica. Certamente reconheceriam os argumentos contrários e tentariam refutá-los ou reinterpretá-los para adequá-los ao corpo teórico que utilizam ou aceitá-los como elementos que modificam suas próprias convicções teóricas. Não temeriam o contraditório e tampouco usariam subterfúgios para censurá-lo ou silenciá-lo. Procurariam derrubá-lo na argumentação racional.
A nova direita, ao contrário, não apresenta esses traços de racionalidade. Sua própria conformação é paradoxal: corruptos com discurso anticorrupção, “intelectuais” sem estudo, líderes sem liderança, pornográficos moralistas, pretensos filósofos, sociólogos e cientistas políticos sem formação acadêmica (cujo aprendizado se deu apenas pelas redes sociais, blogs e sites de institutos ideológicos), juventude ativista “revolucionária” bancada por institutos vinculados à mega-indústria de petróleo estadunidense, grupos “independentes” financiados por partidos políticos, etc.
Seus elaboradores são: jornalistas que se arrogam a capacidade de fornecer a opinião correta sobre a totalidade dos assuntos e que se submetem a tudo para fazer o jogo dos donos das empresas de comunicação; historiadores (amadores ou diplomados) para os quais importa mais o destaque pessoal e a polêmica que os colocarão em evidência do que a relevância dos fatos históricos e sua complexa interpretação teórica; jovens que aprenderam a usar adjetivos e frases de efeito e se tornaram colunistas de revistas e jornais, convencidos de sua capacidade de elaboração de algum pensamento só porque descobriram a arte do ilusionismo com palavras; filósofos autodeclarados que decoram a história da filosofia e a misturam com seu discurso ideológico raivoso e, muitas vezes, desconexo, para dar impressão de que aquela tem alguma coisa a ver com este e criar a imagem pública de intelectual sério; e outras figuras idiossincráticas.
Não raras vezes, esses ideólogos apenas copiam e colam frases e truísmos que recolheram de blogs, think tanks liberais e meia dúzia de livros. Quando se propõem a argumentar, despejam coisas que, de tão distantes de qualquer fenômeno real, tornam-se a tal ponto sem sentido que não estão “sequer erradas”. Sua contestação se torna impossível não por serem solidamente formuladas, mas por serem desprovidas de qualquer sentido criticável. Tais afirmações se misturam com outras com mais sentido, mas colocadas fora de contexto, e outras flagrantemente falsas. Tudo vem em pacotes e submetê-las a um debate crítico é como jogar pingue-pongue com o adversário lançando milhares de bolinhas ao mesmo tempo – e, entre elas, algumas bolas de barro.
Tente pensar uma forma de, em poucas palavras, refutar a afirmação (existente) de que “a Rede Globo é de esquerda porque defende os traficantes, as mulheres e homossexuais, protege o Lula e está a serviço da implantação do comunismo no Brasil”. (Se duvida disso e tiver paciência, vá ao Google e faça uma busca com as palavras “Rede Globo de esquerda”).
A nova direita e o golpe de 2016
Por sua própria força e capacidade de elaboração e formação de opinião os ideólogos da nova direita jamais exorbitariam o círculo limitado de seguidores que já possuíam no passado ou teriam leitores suficientes para justificar sua contratação como colunistas ou blogueiros de algum veículo de comunicação de massa. Ocorre que, na estratégia do “golpe suave” é necessário criar uma opinião pública contrária ao governo que se quer derrubar e a tudo que a ele se relacione. Se os fatos reais e os motivos racionais são insuficientes para tanto, cria-se um sentimento, uma disposição social motivada por falsas notícias e pela criação do ódio irracional a ideias e grupos sociais. Trata-se da colocação em prática do que Bernays ensinou aos donos do poder na primeira metade do século XX:
Palavras, sons e imagens fazem pouco a não ser que sejam as ferramentas de um plano profundamente pensado e de métodos cuidadosamente organizados. Se os planos forem bem formulados e um uso adequado é feito deles, as ideias veiculadas pelas palavras se tornarão realmente parte e componente das pessoas. Quando o público está convencido da veracidade de uma ideia, ele seguirá para a ação. As pessoas traduzem uma ideia em ação sugerida pela ideia mesma, seja ela ideológica, política ou social¹.
Para os verdadeiros planejadores e protagonistas da derrubada do governo eleito no Brasil, o momento pedia não intelectuais de direita, formuladores ou expositores do pensamento político e econômico liberal. Não seria a discussão acadêmica de alto nível que iria fortalecer suas intenções espúrias. Até porque, os governos eleitos do PT não deixavam nada a desejar ao pensamento liberal moderado, sendo passíveis de crítica teórica muito mais à luz do pensamento de esquerda.
O que precisavam era de cães raivosos prontos para o ataque sem questionamento das razões, pois o que estava em jogo eram apenas ganhos monetários e financeiros, desejos de apropriação do patrimônio nacional (em particular as reservas do pré-sal), impunidade na prática de corrupção, direito de enriquecer sem prestar contas à Justiça, ao Estado e à sociedade. O plano não se justificava racionalmente: deveria ser executado ou por meio da irracionalidade da violência ou com a permissão da população pela deformação da subjetividade social.
Para tanto, projetaram e usaram as figuras esquisitas que se tornaram os modeladores da opinião da nova direita. São pessoas refratárias ao pensamento contrário ou mesmo diferente. Não concordar com eles faz o dissidente ser imediatamente identificado com um campo de pensamento, partido ou figuras públicas, ainda que a pessoa não tenha absolutamente nenhuma relação com isso – e sobre ela pesará uma quantidade tão grande de adjetivos depreciativos que apenas a defesa das desqualificações e dos termos pejorativos tomará todo o tempo que poderia ser dedicado à discussão do que houvesse de substantivo no debate.
Como é de se imaginar, os formadores de opinião da nova direita rejeitam a teoria e o estudo cuidadoso e científico dos fenômenos sociais. São, portanto, inimigos dos intelectuais e da academia. Para eles, professores universitários, cientistas políticos, historiadores, sociólogos, filósofos, etc. são apenas um grupo de esquerdistas formados conjuntamente em algum galpão clandestino, que leram dois ou três livros e que têm o projeto comum de perverter a cabeça da juventude para propósitos de “estabelecer o comunismo no país” (mas nunca esclarecem o que isso seja).
Deliberadamente ou por acreditarem mesmo no seu ilusionismo e na sua capacidade de pensamento artificialmente valorizada, os ideólogos da nova direita se sentem mais gabaritados para definir o que a universidade deve ou não ensinar do que os pesquisadores e professores, doutores e mestres, que dedicam sua vida ao trabalho acadêmico e ao estudo aprofundado e metódico de seus campos de conhecimento. É como se um prestidigitador amador, tendo comprado uma maleta de mágica pela Internet, se exaltasse tanto com seus truques banais a ponto de acreditar possuir realmente poderes mágicos.
O estudo do golpe nas universidades federais
Quando a academia se debruça sobre um tema não significa que ela detém a verdade completa sobre ele ou mesmo que chegue a resultados que são obrigatoriamente aceitáveis e incontestáveis. Pelo contrário, o mundo acadêmico precisa ser criticado na pertinência e nas conclusões de suas pesquisas, comparando-as com as demandas sociais, e na sua relação com outros tipos de saberes não sistemáticos detidos pelos povos que não estão no ambiente das universidades.
Porém, ela se caracteriza por submeter o objeto de seu estudo a um rigor metodológico e à análise de profissionais com formação, credenciados, capacitados e concursados para o exercício da função. Se há profissionais que não exercem bem suas obrigações, isso é comum a todas as instituições e deve ser tratado como exceção. As universidades públicas ainda são as principais referências de pesquisa no país e estão à frente de todas as demais em qualidade de ensino.
Se várias universidades resolveram colocar o tema “O golpe de 2016” como objeto de reflexão e ensino, é porque o assunto é digno de ser abordado de maneira científica, metódica e sistemática. Os que possuem outra concepção dos acontecimentos de 2016 também têm autonomia para criar disciplinas e cursos que analisem a realidade sob outra ótica.
A atitude de censura e a reação raivosa do ministro da educação são absolutamente justificável: é claro que alguém que ocupa ilegitimamente um ministério da República, membro de um partido que perdeu as eleições presidenciais e que, portanto, nunca teria cargo no governo em condições de normalidade, jamais ficaria confortável com a exposição de sua vergonha em público, principalmente com razões que superam as propagandas do Governo e os discursos fracos dos ideólogos da nova direita. O problema é o titular da pasta da Educação ignorar as prerrogativas do sistema público de educação e os pilares constitucionais do ensino universitário – cujo conhecimento seria o mínimo esperado de alguém que ocupa aquele ministério.
As universidades devem analisar criticamente e sob diversos aspectos a narrativa de “impeachment constitucional”, pois este só se justifica em caso de crime de responsabilidade. São um fato político digno de estudo e pesquisa (para a ciência política, direito, filosofia social e política, sociologia, psicologia social, linguística, etc.) as motivações declaradas dos deputados federais na votação da admissibilidade do impedimento. O objeto da acusação simplesmente desapareceu sob os votos dados em nome da família, de Deus, das igrejas, do filho, da esposa, etc. Qual a constitucionalidade de um processo que se desvia do objeto da acusação para punir o acusado em nome de coisas abstratas?
Fenômeno mais intrigante se deu no Senado Federal, responsável pela destituição definitiva da presidente eleita. Alguns senadores admitiram ter votado a favor do impedimento sem crime de responsabilidade.
“Rose de Freitas [senadora do PMDB-ES] já adiantou o voto favorável ao impedimento da presidente Dilma Rousseff, mas não devido às chamadas pedaladas fiscais. Neste caso, Rose não vê crime de responsabilidade, mas defende a saída de Dilma do Poder” (A Gazeta, 22/04/2016)
“Senador vota pelo impeachment, mas diz que não há crime de Dilma. Em vídeo, Acir Gurgacz [senador do PDT-RO] diz que não vê crime de responsabilidade no caso. ‘Falta governabilidade para a presidente voltar a governar’, justificou.” (Portal G1, 31/08/2016)
“Na nota, Telmário [Mota, senador do PTB-RR] afirma que Dilma não cometeu crime e que o impeachment foi aprovado por causa da perda de apoio político da petista. ‘Considero que a presidente Dilma não foi afastada pela pratica de crime algum, mas sim por posturas políticas adotadas, que não foram capazes de conquistar uma base de apoio congressual minimamente favorável ao seu governo’, diz o texto assinado pelo senador”. (Portal Uol, 31/08/2016)
Ora, se não estamos no parlamentarismo, a aprovação da destituição da presidente legitimamente sufragada em uma eleição, posteriormente julgada legal pelo TSE, sem que houvesse crime de responsabilidade é uma manobra de tomada do poder por meios não legais. O próprio Ministério Público Federal emitiu parecer afirmando não ser as “pedaladas fiscais” crime de responsabilidade – porém não se manifestou sobre o resultado do processo parlamentar. Permitiu que a Constituição fosse desrespeitada, segundo sua própria interpretação, mas não agiu em defesa da lei.
Mais ainda, se de fato, para o parlamento, as “pedaladas” passam agora a ser crime de responsabilidade passível de cassação de mandato, por que não se criou uma cascata de cassações de governadores que praticam o mesmo ato com frequência?
Para esse tipo de destituição de uma mandatária eleita (independente da avaliação que se faça de seu governo) não há outro nome na literatura a não ser “golpe de Estado”. Um golpe não se caracteriza pelo meio utilizado para ser colocado em prática (se usa o Exército, o Judiciário ou o Parlamento). O que o define é o fato de grupos minoritários se apropriarem do poder sem respeitar a decisão da maioria e os mecanismos institucionais e jurídicos que garantem o Estado de direito.
O fato de o golpe anticonstitucional ter tido maquiagem de constitucionalidade não é um acaso. Tal tipo de ação tem sido a nova estratégia de intervenção das potências do Ocidente (lideradas pelos EUA) na política de países que estão sob seu interesse – como revela a história recente de países como a Geórgia, Síria, Egito, Jordânia, Honduras, Paraguai, Venezuela, etc. O termo que vem sendo utilizado para defini-la é “Golpe Suave”, uma estratégia sistematizada, estudada e publicada e, cada vez com mais frequência, aplicada em vários países do mundo.

Estudar essa nova estratégia de destituição de governos no mundo contemporâneo é condição fundamental para o entendimento de geopolítica, geoeconomia e das novas configurações do poder no mundo Globalizado. Por isso, deve ser estudada de maneira acadêmica, ou seja, de forma metódica e sistemática nos ambientes universitários e ser também tratada como objeto de ensino em diferentes campos do saber. Entender sua aplicação no Brasil é condição para se entender o próprio país.
Quem é contrário a que esse estudo seja feito nas universidades deve contentar-se em entender o país por meio de blogs de internet, think tanks liberais, “memes” de Facebook e leituras dinâmicas de textos de meninos cujo conteúdo não consegue ultrapassar adjetivos, falsas analogias e frases de efeito. Mas não se pode querer retirar o direito de quem quer estudar o Brasil com mais seriedade e responsabilidade.
Os elaboradores da nova direita e seus seguidores vêm atacando as universidades públicas acusando-as de ser um local de formação de ideias contrárias à sua ideologia de direita difusa. Mas, o fato das universidades serem o lugar onde mais se estuda, pesquisa e debate com profundidade e, ao mesmo tempo, o local em que a nova direita reconhece que suas ideias são rechaçadas não é uma coincidência.
Maurício Abdalla é professor de filosofia na Universidade Federal do Espírito Santo

(Publicado originalmente  no site do jornal Le Monde Diplomatique Brasil)

Olhar higienista e classista da mídia turva discussão séria sobre drogas

                                           
Dennis de Oliveira

Olhar higienista e classista da mídia turva discussão séria sobre drogas
 
Prefeito João Dória Jr (Arte Revista CULT | Foto @Jdoriajr)

A precariedade das redações dos veículos de comunicação hegemônicos tem facilitado a ação dos lobbies de informação de determinados órgãos de poder. Além disso, valores ideológicos compartilhados entre estas esferas de poder e os veículos de comunicação facilitam que as informações e versões dos fatos sistematizados de setores do poder não só se transformem  em pautas, mas sejam reproduzidos pelos veículos.
Isto aconteceu com a divulgação da decisão da prefeitura de São Paulo de acabar com o programa De Braços Abertos.  Este programa foi instituído pela gestão anterior, de Fernando Haddad (PT) e atendia os usuários de drogas (em especial de crack) em uma região no centro da cidade conhecida como cracolândia, fornecendo bolsas-trabalho e moradia e atendimento e acompanhamento. O De Braços Abertos  foi reconhecido internacionalmente como uma experiência exitosa dentro da perspectiva da redução de danos.
E é justamente a incompreensão desta perspectiva que motivou as críticas ao programa. Benedito Mariano, ex-coordenador do programa e atualmente ouvidor da Polícia de São Paulo, afirmou durante a campanha eleitoral de 2016, quando a proposta foi bombardeada por vários candidatos, que “a maioria das pessoas que são contra o programa são por ignorância, no sentido de que não conhecem o programa, e outros por uma visão muito conservadora, de preconceito com essa população vulnerável e que acham que não deve haver alternativa nenhuma, a não ser aquela que o estado sempre deu que é a repressão”. Ele acrescenta ainda que “se repressão resolvesse, nós não teríamos o fluxo ou a cracolândia, pois em quase três décadas, a repressão foi a política do estado com essa população”.
A ignorância de que fala Mariano se revela nos dados divergentes apresentados como resultado do programa. Em uma pesquisa realizada em 2016 com os participantes do programa, 88% afirmaram ter reduzido o uso de crack; 83% estão em tratamento de saúde; 53% recuperaram o contato familiar; 64% aderiram às frentes de trabalho; e 83% não possuíam documentação e tiraram após entrar no programa. E o custo do programa é considerado relativamente baixo: cada beneficiário custa aproximadamente 2.800 reais por mês (para comparar, o custo de um interno na Fundação Casa chega a 7 mil reais).
Porém, as matérias dos veículos de comunicação hegemônicos reproduziram os argumentos da atual gestão para acabar com o programa. O portal Estadão inicia uma matéria da seguinte forma:
“A Prefeitura de São Paulo vai acabar com a bolsa para usuários de drogas, que recebiam R$ 500 por mês em troca de serviços de varrição de ruas, reciclagem e jardinagem. A bolsa era vinculada ao programa de Braços Abertos, instituído pela gestão do ex-prefeito Fernando Haddad (PT) para tratar dependentes químicos da região da cracolândia”.
Veja o reducionismo existente nesta abertura de matéria: o Programa todo foi reduzido a uma “bolsa para usuários de drogas”, reproduzindo a lógica da argumentação de campanha do atual prefeito de São Paulo. Em nenhum momento do texto em questão são apresentados os resultados do programa anterior, registrando apenas a avaliação da atual gestão de que o programa apresentou resultados inferiores ao esperado, como baixa frequência dos beneficiários, capacitação profissional reduzida e poucas colocações no mercado forma.
Exatamente a mesma matéria é publicada na revista Veja, de forma reduzida. A existência de somente falas oficiais é forte indício de se tratar de uma reprodução de release de assessoria de imprensa.
No caso da Folha de S.Paulo, o título da matéria é capcioso: “Dória encerra bolsa varrição criada por Haddad na cracolândia”, num nítido objetivo de fazer analogia aos programas de transferência de renda criados pela gestão do PT (o Bolsa Família) e, também, reduzindo o programa ao mero pagamento da bolsa. Nos parágrafos subsequentes ao lide, a matéria da Folha acrescenta, ainda, informações de que o programa está na perspectiva da redução de danos, que os usuários têm direito a moradia, entre outras coisas. E também informa que o fato do programa não exigir a abstinência das drogas (por estar na perspectiva da “redução de danos”) é alvo de críticas.
Apesar de apontar o centro da divergência, o restante da matéria da Folha de S.Paulo claramente não dá voz à perspectiva da redução de danos. Os argumentos elencados por Benedito Mariano, por exemplo, não constam. O centro da matéria é a inserção no mercado profissional (ou seja, exatamente a mesma coisa que a visão da prefeitura atual). O texto usa uma fala da entidade que gerencia o Braços Abertos justamente para legitimar este pretenso “fracasso”:
De acordo com a Adesaf (Associação de Desenvolvimento Econômico e Social às Famílias), gestora do contrato com a prefeitura para a política de trabalho do Braços Abertos, dos 63 beneficiários que foram convocados para participar do programa Trabalho Novo, apenas 11 foram escolhidos para processos de seleção. Dos quatro contratados, nenhum passou no período de experiência. ‘A maioria não tem o padrão exigido’, diz Fernanda Gouveia, diretora da Adesaf”.
As convergências ideológicas dos veículos de comunicação e a prefeitura de São Paulo quanto a este problema são óbvias:
  1. Um desejo de acabar o mais depressa possível com aquela situação e, por isto, má vontade com programas que pensem em processos mais longos, que não resolvem de imediato e apontam que haverá um tempo de convivência com pessoas “indesejáveis” como usuários de drogas na região central (e perto da redação da Folha de S.Paulo).
  2. Enxergar não só o fim da prática do uso de drogas por parte destas pessoas mas a sua inclusão no mercado formal de trabalho e, ainda mais, responsabilizá-los pela eventual não absorção. Interessante que ao afirmar que o programa fracassou porque as pessoas não entraram no mercado, em nenhum momento é lembrado que o país passa por uma crise e também por altas taxas de desemprego.
  3. E tais convergências entre os jornais e a prefeitura não ocorrem apenas por afinidades político-ideológicas. São também afinidades classistas. A cracolândia incomoda porque está no centro e, portanto, à vista de muitas pessoas de classe média (perfil dos jornalistas e do público dos veículos aqui analisados). Por trás de toda a “argumentação” está o desejo inconsciente de mandar o indesejável (pessoas e seus comportamentos) para longe. E talvez também este seja o motivo de em nenhuma das reportagens os beneficiários do programa tenham sido ouvidos.
O olhar higienista que trata o problema das drogas de forma seletiva – quando ocorre em escala nas regiões centrais e é praticado por pessoas muito pobres – unifica discursos de segmentos conservadores e da mídia hegemônica. E uma questão séria como este acaba sendo discutido de uma forma superficial e leviana.

(Publicado originalmente no site da Revista Cult)

Charge! Duke via O Dia

sábado, 10 de março de 2018

Editorial: Adeus às ilusões



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Li um artigo bastante pessimista - escrito pelo jornalista Rodrigo Viana - sobre o processo de consolidação ou recrudescimento do golpe institucional, instaurado no país em 2016, depois da deposição da presidente Dilma Rousseff. Rodrigo Viana considera iminente a prisão do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva(PT), acompanhada, logo em seguida, dos inevitáveis vazamentos seletivos de vídeos e fotos sobre o seu cotidiano na prisão da Lava Jato, em Curitiba. Isso é tão certo, ainda de acordo com o jornalista, como sua eleição em outubro, caso ele viesse a disputar o pleito, algo hoje muito improvável. O mais importante no texto de Viana, no entanto, é a sua recomendação de que a arena que Lula escolheu para encaminhar a sua luta - via instituições - está completamente superada. Sua recomendação é que Lula deveria romper com essa estratégia, à exemplo de Leonel Brizola, quando se rebelou contra a manobra que visava não permitir a posse de João Goulart. 
Há poucos anos atrás, os organismos dedicados a analisar a saúde das democracias no mundo afirmavam que a nossa experiência democrática estava próxima à consolidação. Instituições funcionando, Estado Democrático de Direito, eleições limpas e regulares. Nenhum indício que indicasse algum sobressalto ou um retrocesso político. Em muito pouco tempo esse quadro mudou consideravelmente, conduzindo-nos às manobras que afastaram do poder, injustamente, uma presidente legitimamente eleita, sufragada por 54 milhões de votos de brasileiros e brasileiras. Ou dormimos o sono político que produziu o monstro, conforme sugeriu o filósofo Gabriel Cohen, analisando aqueles fatos, ou havia alguma coisa de errado com o levantamento desses indicadores. Talvez um misto das duas hipóteses, dando razão ao sociólogo francês, Jean Claude Leffort, quando afirmava que  uma democracia que não se amplia tende a morrer de inanição.
No Brasil há algumas variáveis que praticamente interditam a possibilidade de consolidação de uma experiência democrática entre nós. Neste aspecto, talvez estejamos sendo até mais pessimista do que o jornalista Rodrigo Viana. a) Há uma profunda desigualdade social e econômica - criando um hiato entre democracia política e substantiva - que jamais será superado, em função do atraso de nossa elite escravagista, como suegere Jessé de Souza( A Elite do Atraso), o nosso maior cancro; b) No Brasil, no que concerne à experiência republicana, o poder militar nunca subordinou-se ao poder civil, o que fere um dos princípios basilares de qualquer regime democrático. Mesmo nos melhores momentos, nunca passamos do estágio de uma democracia tutelada ou delegada, conforme o conceito do cientista político argentino Guillermo O'Donnell; c) Lá no passado, analisando a sociedade brasileira, o historiador Sérgio Buarque de Holanda (Raízes do Brasil)já advertia sobre o “mal-entendido” da democracia entre nós, argumentando, sobretudo, em torno de algumas características herdadas do processo de colonização português. 
No atual momento político, contamos com um Executivo fraco, refém dos militares, com o comandande da nau investigado, ilegítimo e produndamente rejeitado pelo população. Foi guindado ao poder para cumprir os acordos da banca e “estancar” a sangria, posto que acompanhado diretamente por atores políticos mais sujos do que pau de galinheiro. Um Legislativo onde mais de um terço dos seus representantes estão encrencados juridicamente, alguns deles diretamente envolvidos nos rolos da Operação Lava Jato. Setores importantes do Judiciário completamente politizados, cumprindo um papel bem específico nessa engrenagem desde o início, por motivações as mais diversas. O maior líder popular desde país não terá vida fácil daqui para frente. Trata-se do maior patrimônio político dos lascados deste país, de acordo com o cientista político  Wanderley Guilherme dos Santos. Estranhamento, foi aquele que, apesar dos equívocos do PT, mais contribuiu para os avanços da democracia no país: tirou 36 milhões de brasileiros da extrema pobreza, contribuindo para minimizar as desigualdades sociais e econômicas, e foi quem mais colocou jovens negros empobrecidos no circuito acadêmico, o único aspecto em que avançamos no combate ao racismo estrutural nesses últimos 500 anos.