pub-5238575981085443 CONTEXTO POLÍTICO.
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domingo, 11 de dezembro de 2016

"Cada vez mais a educação é um negócio"

Em entrevista, o educador e filósofo Gaudêncio Frigotto faz um retrospecto dos acertos e erros dos últimos governos na educação brasileira.


Eduardo Sá - Fazendo Média





Com a reforma do ensino médio estamos resgatando retrocessos que remetem ao que há de pior na história da educação brasileira, e a juventude está ocupando as escolas porque essa geração não vê um futuro seguro para sua vida. Esses são alguns dos principais elementos que o educador e filósofo Gaudêncio Frigotto, professor do Programa de Pós Graduação em Políticas Públicas e Formação Humana da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), atribui ao atual cenário de crise na educação brasileira. O pensador, discípulo de Paulo Freire, tem visitado algumas ocupações e conversado com os alunos para entender melhor esse processo, além de acompanhar atentamente as mudanças realizadas pelo governo de Michel Temer.

Na entrevista ao Fazendo Media, ele faz um retrospecto dos acertos e erros dos últimos governos na educação brasileira. Frigotto destaca ainda o surgimento de movimentos junto ao empresariado, como o Escola Sem Partido, que se tornaram hegemônicos nas decisões do ensino nacional. Para ele, a educação vista como um negócio e não um direito é o que mais prejudica as próximas gerações.

Parceiro de movimentos sociais como o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), o professor defende a aproximação com os jovens para um diálogo em busca de um bem maior: uma educação pública de qualidade para todos. Embora o cenário no médio prazo seja auspicioso, segundo ele, existem sinais de um acúmulo de lutas e consciência que nos trazem esperanças com essa juventude e outros movimentos para o futuro.

O que tem de avanço e retrocesso nesses anos de governo do PT em relação à educação?



Quando o Lula assumiu o governo havia um grupo que tinha pensado o Plano Nacional de Educação (PNDE). O contra ponto era as políticas de educação dos anos 90 no contexto do neoliberalismo e, sobretudo, o restabelecimento da dualidade na educação básica com o decreto 2.208/96. E recuperar, portanto, o debate da Lei de Diretrizes e Bases (LDB) da Constituinte da educação básica como direito social e subjetivo. Quais são os avanços? Se restabeleceu na educação básica o ensino médio como sua parte final, numa perspectiva integrada: não separar o técnico e o político do humano, uma educação básica com a ciência, a cultura e o trabalho como suporte ao jovem para sua autonomia e cidadania. Ou seja, se posicionar na sociedade ativamente e ter as bases para se inserir no mundo do trabalho. E do ponto de vista de política educacional, sem dúvida nenhuma a criação e expansão dos Institutos Federais com a sua interiorização. Isso tem extraordinários ganhos, apesar dos seus problemas. A criação de 17 universidades também, como a Fronteira Sul, que tem um papel enorme e é uma reivindicação dos movimentos sociais. Seu desenho é totalmente diferente, onde os movimentos são parte da gestão da universidade. São avanços significativos, e por isso não comungo com os que dizem que o governo Lula foi igual ao FHC na educação.

Quais foram os problemas, então?

Por volta de 2005 viu se que o governo não tinha um projeto claro de sociedade, e nem de educação. Se constituiu mais um projeto de poder, do que um diálogo com a sociedade. Aí começam, inclusive, as cisões dentro do próprio PT. Olhando hoje para trás, o capital com as forças que são donas dos instrumentos de produção quando viram o Lula assumindo o governo com aquela base social acendeu um sinal vermelho. Por isso se organizou na sua divergência e prioridade como classe, e no campo da educação surgiram duas frentes que acabaram dominantes e pautaram a educação a partir de 2006 no Ministério da Educação e nos estados e municípios. O Todos Pela Educação em 2005, que é incorporado no PDE em 2006, com um grupo de 14 empresários como financiadores e mais 18 colaboradores, que são na verdade os vampiros que querem fazer da educação um negócio ou direcionar qual o método, o currículo, etc. Antes disso, em 2004, começou a surgir o movimento Escola Sem Partido. A economia ia bem com até 6% do PIB e esses empresários ganharam muito dinheiro, porque a transferência e distribuição de renda pelo salário mínimo e pelas políticas sociais é uma margem muito pequena em relação ao que se pagou de juros da dívida interna. Mas a partir de 2012, especialmente no final do governo Dilma, a crise mundial do capital veio forte no Brasil e essa classe organizada disse basta à transferência de renda e políticas públicas. A partir de 2014 se cunhou isso com os mortadelas, que são aqueles que só comiam mortadela e começaram a ser incluídos, como os índios, quilombolas, mulheres, cotas, etc.

Quem são esses empresários, são das universidades e colégios particulares?

São o setor industrial, bancos, meios de comunicação, tudo, e os institutos como o Ayrton Senna, o Lemann e o Itaú, dentre outros. O reflexo disto é o golpe, que se materializa também na educação. A face oculta da face clara do golpe, que é o capital e seus aparelhos, como a mídia, o setor jurídico, o parlamento, setores da polícia federal, são os grandes braços do capital que executam o golpe. A face oculta é a criminalização do PT, sobretudo com a expressão petralha, que na verdade é uma crítica ao pensamento divergente. Como disse o Veríssimo numa crônica recente, justiça social se tornou sinônimo de inimigo. O explícito disso é a PEC 241, que agora é 55 no Senado, é a conta: vai se cobrir o fígado da classe trabalhadora e eliminar todas as políticas de avanços. Vão tirar migalhas para pagar juros da dívida e fazer com que ano que vem noticiem de novo que mais 11 mil brasileiros estão na lista dos maiores milionários do mundo.

Na educação temos o PL que trata da Escola Sem Partindo tentando transformar em lei aquilo que era uma disputa: só é válido ensinar na escola aquilo que é do partido, do mercado na verdade. Ninguém é imbecil de achar que queremos uma escola de um partido como PSDB, PT, etc. Não, a grande disputa é a questão da neutralidade: a escola tem que ensinar, mas não educar. A interpretação que vale é a de acordo com os trâmites, ou as visões da neutralidade científica que interessam ao mercado. Então a Escola Sem Partido é uma guilhotina que se coloca de censura e autocensura à análise: a ciência pelo que debate é política.

Na maior parte das análises políticas e sociológicas dos livros, por exemplo, nos caracterizam como uma nação européia. Mas aí outro historiador vai dizer: cuidado porque de 1500 a 1850 a cada branco europeu colonizador vieram seis negros, então na história da humanidade somos uma nação mais africana. No fundo a concepção mercantil de educação foi tomando a gestão da escola, depois o currículo, o método e agora eles dizem “cala a boca professor” com a Escola Sem Partido. É uma guilhotina, e com uma diferença radical da censura da ditadura civil e militar nos anos 60: o dedo duro era conhecido e pago para dedurar o que não devia ser dito nas aulas, mas hoje pode ser o meu colega, o meu aluno, o pai do aluno ou o diretor da escola. Quebra-se absolutamente o que é orgânico na relação pedagógica, que é a confiança.

Uma contradição difícil de explicar é que quando nos referimos à educação sempre aparecem nomes como Anísio Teixeira, Paulo Freire e Darcy Ribeiro, dentre outros, que são pensadores com inúmeros livros publicados mundo afora e condecorados em universidades em vários países. Por que os que pensaram a educação de forma mais generosa e democrática, são criticados pelo poder hegemônico e mal vistos no senso comum no Brasil?

A última vez que me informei, Paulo Freire já havia sido traduzido em 27 idiomas e a Pedagogia do Oprimido é um clássico. Darcy Ribeiro com o Processo Civilizatório é outro clássico, assim como Anísio Teixeira, Florestan Fernandes, dentre outros, como Celso Furtado noutro ângulo. Essa contradição se explica pelo tipo de classe dominante que temos. Para ela, reforma agrária era coisa comunista, por exemplo. Japão fez reforma agrária! E a não reforma agrária significa hoje o entorno de grandes cidades absolutamente inabitável com favelas e todos os problemas. Isso é diferente das classes dominantes do capitalismo central, como disse Florestan Fernandes, que fizeram uma revolução burguesa mas garantiram primeiro a construção de uma nação e de direitos mais universais com menos desigualdade.

Os autores que defendem a universalidade da educação, como Paulo Freire, que educar é ajudar a criança, o jovem ou o adulto a ler o mundo, a interpretar, a tornar-se sujeito, esse tipo de formação para a classe dominante brasileira é uma ofensa, um empecilho. Os próprios empresários e os intelectuais a eles vinculados, como o sociólogo [José] Pastore, falaram em apagão educacional se referindo a pequenos setores da economia que exigem trabalho complexo e não tem gente preparada para isso. Mas quem produziu esse apagão? E a própria imagem de apagão mostra a visão medíocre dessa classe, imaginando que você forma um profissional qualificado como se corrige um problema de falta de luz. Um apagão é momentâneo, mas o processo educativo é de larga duração. Na verdade é coerente, para a classe dominante não é contraditório. Como o sociólogo Francisco de Oliveira coloca muito bem: é uma sociedade que produz a miséria, e se alimenta dela.

E manipulam, porque qualquer pensamento divergente é de comunista mas Paulo Freire nunca foi comunista. Num debate da TV Cultura com um dos fundadores da Escola Sem Partido, o Miguel Nagib, ele disse: esse petista Paulo Freire, que escreveu os livros, etc. Até o âncora corrigiu: mas olha, o Paulo Freire escreveu esses livros antes do PT existir. É uma classe dominante anti nação, povo e direitos elementares de morar, ter saúde, locomoção e educação. É uma classe de estigma colonizador e escravocrata como poucas no mundo, que faz com que cheguemos ao século XXI com 13 milhões de analfabetos e 9,5 milhões dizendo que não estudam ou não trabalham. São esses os candidatos do Degase e das prisões.

Um fenômeno que vem em paralelo a esse processo é a ascensão de uma juventude com uma nova consciência e ocupando as escolas em todo o Brasil. Qual a origem disso?

Antes gostaria de fazer uma ligação da PEC da Escola Sem Partido e a reforma do ensino médio, que é uma interdição de 85% dos jovens que frequentam escolas a terem um futuro. De criar uma base de conhecimento e valores para se tornar sujeito ativo na sociedade. E também uma interdição para que eles possam aspirar ao trabalho complexo, além de trazer três retrocessos que existiram de pior na nossa história. Nos anos 30 a reforma Capanema com a não equivalência do ramo industrial, de serviços e agrícola para ter acesso à universidade, que foi corrigido em 1961: a Lei 5.692 pega o que tem de pior da ditadura, que é a profissionalização precoce. O Decreto 2.208 do FHC e Paulo Renato também traz a dualidade, e agora liberando inclusive os professores da parte flexível da reforma de não precisar de licenciatura. E a educação básica foi então decretada por Medida Provisória por Ato Institucional, e o ensino médio não faz mais parte. O Plano Nacional de Educação ficou escanteado, e dessa virulência vem a mobilização dos jovens. Especialmente os secundaristas, que entenderam essa relação entre a hostilidade econômica e os seus futuros no mundo do trabalho. Sem uma boa escola não vão competir para entrar numa universidade nem no mercado de trabalho.

O jovem desde sempre é sensor, porque na adolescência ele catalisa e é muito sensível à falsidade. Hoje tem muita manipulação, mas a própria cisão de classe às vezes é rompida. Esse movimento Ocupa da educação começa em torno de 2004 no Chile, é um movimento dos jovens que estão querendo ter futuro e não uma vida provisória em suspenso. É um gérmen importantíssimo para mostrar que as políticas e decisões tomadas são contra o futuro dessa geração. Tem que haver um diálogo, porque sem ele os jovens não aprendem com os acertos da geração adulta e não aprendem com os seus erros. É preciso fazer essa aproximação ouvindo a partir da agenda dos jovens, e o que é mais fantástico é a clareza dos secundaristas de que eles não devem atingir o patrimônio público, manter uma ordem e ter solidariedade. Tem diferenciações, mas tem lições importantíssimas que nos dão esperança. Como diz o Florestan, são os homens e mulheres em luta que fecham ou abrem o circuito da história. Estão fechando um circuito da história negativo no Brasil, mas também tem forças sinalizando que não será eterno. O grande ganho dessa juventude é que ela não será mais a mesma.

Estão acontecendo diversas atividades extracurriculares nessas ocupações, e muitos dizem que é uma grande formação que não têm na sala de aula e um aprendizado que vão levar para a vida inteira. Essa geração é um sinal para um futuro de embate político e de conflitos?
São contextos muito diversos, a geração que foi ao embate na década de 80 foi educada na ditadura e era um momento de participação mais ampla da sociedade com a constituinte. Tinha um foco de sair de um circuito de extrema violência para uma democracia, e na década de 90 foi uma violência do neoliberalismo e um movimento mais institucional das associações científicas e culturais. Sem dúvida a juventude não se movimentou tanto, apesar de ter sido sempre disputada por partidos políticos, igreja, tráfico, mercado, etc. O movimento de agora é porque nesses 15 anos houve um processo com novos sujeitos emergindo. As ocupações não são de jovens de classe média, os secundaristas em sua maioria são classe popular: tem os segmentos de negros, mulheres, LGBT, tudo isso foi construído em políticas que permitiram voz e formação na sociedade. É o novo, por isso é um processo positivo das políticas de inclusão. Esse movimento tem um veio do aprendizado dos jovens da luta do Chile que foi extremamente bem sucedida, mas também por causa da particularidade do nosso processo histórico. Aqui o neoliberalismo chegou depois, e tivemos essa experiência de olhar para o andar debaixo ainda que com políticas mais assistenciais do que com reformas estruturais.

Quando falamos em educação sempre remetemos às grandes cidades, mas no governo do PT teve muita escola rural fechada. Como é essa questão da educação pra dentrão do país?

Cada vez mais a educação é considerada não como um direito social, mas como um negócio. Por isso a ideia da educação como custo, e não como direito. Por outro lado, para você pagar a dívida do país tem que ter criado a responsabilidade fiscal. Todo um esforço do país é pago em juros de uma dívida que é uma imoralidade, um crime. Então os municípios e estados enxugam o custo, fecha a escola, mata uma cultura, tira o menino do seu habitat, etc. Os movimentos sociais, especialmente os do campo, lutam muito contra isso. O novo do ponto de vista de concepção pedagógica vem daí, a pedagogia do MST, da via Campesina e outros movimentos diz que não quer uma educação para o campo e nem pelo campo: querem uma educação do campo. Existem sujeitos e conhecimentos, é desta particularidade que temos de partir para um conhecimento que possa dar na cidade e no campo. A política de esvaziamento do campo e fechamento de escolas vem da ideia de que a educação não é um direito: é um serviço e, portanto, tem que ser tratada por critérios de mercado. Ou seja, um processo de crescente mercantilização dos direitos, mas há resistência.

E incomoda, porque bateram recentemente na porta da escola Florestan Fernandes, do MST.

Por isso tentam marginalizar o pensamento divergente, e criticam esses pensadores que ajudavam a pensar, a ver a nossa diversidade e os nossos direitos. Isso é uma expressão dessa truculência do golpe, que vai tirar e já está tirando direitos em todos os campos.

Com base nessa transição de governo, quais são os sinais do que virá pela frente?

O cenário no médio prazo não é auspicioso. Ontem estava lendo uma entrevista do prefeito de São Paulo, que é uma tendência no mundo de culpar o Estado, da direita para a extrema direita. No Rio de Janeiro é o fundamentalismo religioso, que torna Deus uma mercadoria, junto ao fundamentalismo do mercado. A votação do Bolsonaro aqui é preocupante, assim como a votação localizada do Crivella nas comunidades pobres onde atua o pastor. Então o desenho, no médio e curto prazo, será de anos duros. Mas a história não é linear: esses movimentos apontam que há resistência, há acúmulo, forças. Porém, tenho ouvido muito que o campo crítico deveria ter se organizado como o campo do capital, ao invés de ficar debatendo o seus problemas e dividindo. Buscar um denominador comum no pluralismo, de sorte que fomos surpreendidos. Ninguém com mais de 60 anos que passou pela ditadura vai te dizer que se podia imaginar chegar a 2016 com esse cenário, por mais grave que fosse a crise. Para renascer das cinzas, a primeira coisa é fazer esse inventário como estamos tentando aqui.

Um fator interessante é que essa geração não previa, e também não entende essa nova geração. Os jovens chegam com uma nova dinâmica organizativa, de forma mais horizontal, e não dialogam tanto com os partidos e movimentos.

Porque os partidos tais como estão, inclusive isso foi um dos erros do PT, não pensam mais em sociedade e sim no mandato. Partido vira lugar de emprego, e não de representação da sociedade. Há um descrédito nos partidos, e isso é muito ruim. Os sindicatos idem, se encastelaram muito e se formou um emprego. É difícil fazer generalizações, mas também esqueceram em boa medida a sociedade. Há um descrédito na política, e por outro lado isso dificulta o diálogo de gerações. Mas não vai haver mudança sem organização: precisamos do sindicato, dos partidos e do Estado, mas não desse. Precisamos de um regramento jurídico, e os jovens contestam isso, assim como contestam a própria escola. O aluno não gosta da escola porque ela não é escola, é um espaço pouco educativo, não tem salas legais, o professor não tem tempo, não tem biblioteca nem espaço para lazer ou cultura. Como diz Miguel Arroyo, mais escola dessa escola que horror.

Os alunos estão pedindo exatamente isso: espaço para se organizar, tempo integral para não só ter aula de física, matemática, química, etc. Quando existe um clima educativo, os jovens gostam de ficar, até porque muitas vezes a comunidade não tem os recursos que a escola tem. Na Escola Joaquim Venâncio da Fiocruz, por exemplo, a garotada canta, faz teatro, namora, tem violão, oficinas, enfim, é uma escola que educa. Então, esse diálogo tem de ser mobilizado pelos dois lados. Por parte do jovem entender que estudar, especialmente quem vem da classe popular, exige esforço, disciplina e é importante. A classe dominante faz uma reforma de ensino que desqualifica a escola, mas os filhos deles estão em sala de aula com tempo integral e tudo que negam aos jovens da classe popular. E esse jovem também fica infeliz, tem centros de psicologia que tratam hoje só filho de classe média alta. Então é restabelecer o diálogo, que não é necessariamente concordância. Diálogo é pôr em comum visões e tirar proveito, no sentido de qualificar a luta inclusive dos próprios jovens. Os jovens não ganham falando só pra si e nem os adultos, e do ponto de vista dos adultos nós temos de ouvi-los atentamente. A experiência nas ocupações no Rio mostra que o diálogo é possível, e é um ganho extraordinário. Muitas vezes os jovens nos corrigem num diálogo que é fraterno, cujo objetivo é um bem maior. Qual o grande problema dos jovens hoje? O que fazer com o futuro, a insegurança, a sensação de não poder se programar, e temos de ajudá-los.


(Publicado originalmente no portal Carta Maior)

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sábado, 10 de dezembro de 2016

Artigo: O fim da democracia


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José Luiz Gomes

A nossa fé na democracia é algo tão profunda que, não raro, nos recusamos a discutir o seu fim. Mas, por outro lado, já faz algum tempo que não temos motivos para este otimismo. Um regime que antes se orgulhava de apresentar-se como um governo do povo, pelo povo e para o povo, como informava o editor do jornal Le Monde Diplomatique, Sílvio Caccia Bava, tornou-se um governo das grandes corporações, pelas corporações e para as corporações, principalmente as grandes corporações financeiras. Diante deste fato, ainda é possível falarmos "naquela democracia" ou ela descaracterizou-se de tal modo que nos contingenciam a tratá-la de uma outra maneira? Mesmo diante de nossa capenga experiência democrática, já havia aqueles pensadores que demonstravam uma impossibilidade estrutural da mesma consolidar-se entre nós. Isso quando a nossa referência eram os pressupostos básicos de uma democracia liberal.

Hoje, quando as políticas neoliberais apresentam-se com uma face das mais cruéis - a dos ajustes fiscais, assédio aos direitos e endurecimento do poder político - há quem jogue a toalha e não veja qualquer possibilidade de convivência dessa plataforma econômica sob um regime democrático. Cabe aqui uma pergunta: que tipo de democracia comportaria a implementação dessas políticas neoliberais. Daí se entender a "necessidade" dos golpes do século XXI. Diante de uma plataforma democrática - e, portanto, negociada com a população - essas medidas serão amplamente rejeitadas. (...)

(Conteúdo exclusivo, liberado apenas para os assinantes do blog) 


Não venham com austeridade: rumo a oferta de educação com qualidade social



Liliane Resende | Publicado originalmente no Le Monde Diplomatique 
Em anos de crise mundial, surgem no cenário velhas receitas de austeridade e contenção de gastos públicos sociais visando “reordenar” os rumos da economia. A Europa que o diga! O Brasil reza outra cartilha, está pronto para vivenciar uma nova era, com um novo Plano Nacional da Educação democraticamente aprovado,1 com vigência prevista até 2024 e estabelecendo metas importantes, como a ampliação do investimento a 10% do PIB para educação brasileira. Criaremos, neste percurso, as bases para consolidação de um Sistema Único da Educação vigoroso e permanente.
Assumidos os compromissos, chegamos a um estágio do qual não se admitem retrocessos ou virada de página, em prol de equilíbrio macroeconômico circunstancial, porque temos um enorme e urgente passivo ainda a quitar. Muito maior que dívidas financeiras aos abutres do mercado. Se estamos melhor dentre os Brics na educação, como apontou recentemente a Unesco e exportando programas sociais ao mundo, passar recibo caduco agora vai pegar muito mal!
No aflorar de tantas agendas e mobilizações pelo avanço da educação no país e principalmente às vésperas da II Conferência Nacional da Educação, é bom esclarecer, a quem não está muito próximo a temática ou mesmo aos pessimistas de plantão, que foram promovidas mudanças significativas tanto no modelo de financiamento e repartição dos recursos educacionais quanto no seu montante, desde a conquista pela vinculação de impostos garantidas na Constituição Federal de 1988.2 Hoje não estamos partindo do ponto zero!
Trajetórias em construção, de 1988 para cá, é considerada recente a opção dos gestores de políticas públicas em transferir recursos entre União, estados e municípios de forma direta e ela tem se pautado pela concepção do chamado custo-aluno ou per capita. Essa nova concepção de financiamento estabelece que, tomados os insumos considerados necessários para o custeio do aluno matriculado nas redes públicas brasileiras, serão definidos os investimentos nos orçamentos públicos, a cada ano.
Grosso modo, o mecanismo funciona assim: o ente que ofertar o maior número de matriculas na educação básica, em sua rede pública, receberá mais recursos para seus programas educacionais.3 Mas fica a pergunta: de onde virão os recursos? Dos fundos exclusivos ao financiamento da educação básica pública, como o Fundef criado em 1996,4 voltado somente ao ensino fundamental e na sequência, findo o seu prazo de vigência, o Fundeb em 2007,4 que avançou ao incorporar todos os níveis e modalidades da educação básica.
Criados em cada um dos 27 estados do país, os fundos exclusivos propiciaram uma novidade importante: redistribuir os recursos vinculados à educação básica automaticamente, segundo o custo-aluno e em acordo com as matrículas registradas no Censo Escolar, a todas as redes públicas de ensino. Fluí assim volume expressivo de recursos, ano a ano, sem intermediação de qualquer espécie e de forma transparente. A sua utilização garantida, desde que cumpridas as regras previstas naLei de Diretrizes e Bases da Educação de 1996.5
Mas essa novidade não nasceu num passe de mágica. Vários teóricos da economia da educação vem fundamentando, há algum tempo, a metodologia de repartição de recursos através do custo-aluno. Afirmam que ela é um avanço sobre a até então dominante concepção de demanda, posta pela Teoria do Capital Humano,6 na qual o aluno é colocado como o principal responsável pela sua trajetória educacional e em consequência pelos impactos positivos em sua renda futura .
Mudança de rota, novo paradigma, mas no ele que contribuiu? Segundo especialistas da educação, ao incluir a oferta educacional no cerne das políticas públicas, os gestores públicos passam a admitir, em síntese, que o Estado e não mais o aluno é o maior responsável pelos resultados educacionais. E mais, ela sustentará a adoção de uma outra agenda que passa a eleger como prioritária a educação nos primeiros anos.
Olhando para o passado, a sociedade brasileira pode começar a compreender por que, por muito tempo, o investimento no ensino superior público em detrimento da educação básica ou primária pública foi a opção primordial dos gestores ao longo dos anos. Seguindo uma matriz teórica excludente, o Estado brasileiro supôs que quanto mais anos de estudo o aluno conquistasse por seu esforço pessoal, investindo na sua educação até a universidade, para galgar bons empregos, maior seria o crescimento econômico do país e não o contrário.
E mais, segundo as regras da boa gestão vigentes, ao propor o gasto com eficácia, além do repasse direto de recursos às redes públicas de educação básica, em cada estado e município do país, os fundos exclusivos possibilitaram também promover a solidariedade entre estados e municípios, ao privilegiar na divisão do bolo aquelas redes com menor capacidade de arrecadação.
Fruto ainda da intensa mobilização social,7 outro marco inovador no campo das políticas públicas da educação fica gravado nos artigos da lei: qual seja a inclusão da valorização dos educadores e a implementação da gestão participativa dos atores sociais da educação no monitoramento e fiscalização dos recursos, segundo as responsabilidades de cada ente, definidas desde a Constituição Federal de 1988 e na Lei de Diretrizes e Bases da Educação de 1996.8
Paradigma não é dogma e nos anos que se passaram, alguns estudiosos vêm alertando que essa nova concepção da oferta ainda prescinde de avanços. Submetida a uma matriz econômica de função insumo-produto, para ela a educação ainda é entendida como produto e não como processo. Essa constatação faz toda diferença, porque sob o impacto do novo modelo de financiamento, protagonista da universalização do ensino fundamental e que propiciou o acesso a milhões de crianças e jovens à escola pública, muitos desafios foram colocados ante a escala e diversidade do público agora atendido.
Como tudo tem um começo e um fim, ao se tornar quase um “mantra” da gestão educacional, esse viés economicista encontra adesão também no campo da avaliação das políticas públicas da educação – pois o produto deve ser medido mas também avaliado. Os resultados obtidos pelos testes aplicados pelo sistema de avaliação da educação básica nacional, o chamado Saeb, no tempo, vão redirecionar os investimentos e, ao fim e ao cabo, eleger prioridades.9
Em 2005, o Saeb foi reestruturado como ferramenta de gestão, com a criação daProva Brasil, aplicada até hoje, de forma quase censitária, segundo disciplinas eleitas como prioritárias e voltada apenas às redes públicas de ensino. A ela se uniram na sequência, segundo novas finalidades, o Exame Nacional do Ensino Médio (Enem),a partir de 2009,será aplicado para prover acesso ao Ensino Superior e aos cursos técnicos e o Exame Nacional de Certificação Competências de Jovens e Adultos (Enceja) (fora da idade adequada) também remodelado em 2009, foca a avaliação de desempenho no ensino fundamental.
Avaliações feitas, politicas remodeladas, redirecionamento de novos investimentos, mas esse conjunto de testes da educação básica está hoje sob fogo cruzado! A polêmica criada é instigante ao afirmar que os testes nacionais, nos últimos anos, geraram uma série de diagnósticos e análises sobre os resultados de desempenho de alunos da educação básica e entretanto, as soluções implementadas consideradas ainda indevidas ou mesmo insuficientes ao enfrentamento dos problemas vividos na dinâmica do cotidiano escolar.
No âmbito da gestão pública, enfatizam ainda os críticos que o uso de indicadores de desempenho por escola, como o Índice de Desempenho da Educação Básica (Ideb), criado em 2007 pelo Inep/MEC,10 tanto justificou o redirecionamento de substantivos investimentos quanto influiu na opção das famílias por escolas ditas de melhor performance. Estimulando o ranqueamento das escolas por notas, com base na dimensão cognitiva dos alunos ou essencialmente focados na relação ensino-aprendizagem, a divulgação desses indicadores estaria gerando na comunidade escolar constrangimentos e promovendo a exclusão.
Tantas são as controvérsias, mas, vivemos em um contexto de transição, com riscos e conflitos, próprios de uma sociedade democrática. Para além dos bastidores da história, a disputa pela concepção da qualidade social da educação está posta e fala alto, seja na mídia, na academia, nas agências de fomento, no legislativo, nos órgãos de controle fiscal e até no entorno escolar. Basta ver as diferentes propostas em tempos de eleição que revelam a força das divergências ou convergências de projeto.
Para não deixar dúvidas, comungo com a concepção da educação com qualidade social, ou seja, aquela que compreende a educação como um processo coletivo. Processo que resignifica, a cada dia, os diversos atores da comunidade escolar e os gestores, na construção de uma vivência e de um espaço que fomenta a emancipação do homem para transformar-se à si e à sociedade em que vive. Que pressupõe a educação como direito e não como mercadoria; que defende a responsabilização do Estado pela educação pública gratuita, universal e de qualidade e não dos indivíduos e as suas famílias e que tem como alvo a equidade de oportunidades a todos, com o avanço na democratização da gestão das políticas e seus orçamentos transparentes à sociedade.
Alguns passos foram dados nessa direção, o novo Plano Nacional da Educação está aprovado, mas a luta não terminou. Enquanto propostas ao bom debate, existe um consenso entre vários pesquisadores da educação e até algumas experiências exitosas em redes públicas do país que propõem incorporar uma matriz diagnóstica e analítica nova, que oriente as políticas educacionais e redirecione os recursos, aprimorando a concepção da oferta vigente. Chega de responsabilizar os pais, os alunos e educadores, enfim a escola pelos fracassos escolares!
Em síntese, propõe-se combinar um conjunto articulado de fatores aos instrumentos de gestão atuais: ou seja, que se considere os fatores internos à relação ensino-aprendizagem, de caráter mais pedagógico, e também os fatores externos, tais como as condições socioeconômicas de alunos e pais; condições de infraestrutura e equipamentos pedagógicos das escolas; condições de trabalho e valorização dos trabalhadores em educação (piso, jornada, carreira) .
Nesse conjunto não poderão faltar os impactos dos modelos de gestão das políticas educacionais nas escolas e as condições socioeconômicas e territoriais do entorno escolar, que andam fazendo muito barulho por aí. Se articulados e mensurados, esses fatores ou variáveis poderão qualificar a geração de diagnósticos e indicadores inovadores aos modelos de financiamento e avaliação.
Se ampliaro olhar sobre a realidade da educação nas redes públicas brasileiras é o objetivo mais óbvio, com a mudança proposta pode-se também caminhar na garantia do sucesso daquelas mais fragilizadas e disseminar as boas experiências no território nacional, porque afinal de contas as avaliações e os indicadores são um meio e não o fim das politicas educacionais. Vamos tornar visível o que não está!
Para seguir adiante, ciente da existência de imperfeições no modelo (sejam aquelas de ordem teórica, sejam aquelas de ordem técnica) é hora de enfrentar questões como a falta de disponibilidadecom qualidade de dados no tempo, bem comode metodologias estatísticas apropriadas para realizar testes e estimativas. Mas já existem evidências e agendas no cenário nacional para o enfrentamento e busca de soluções coletivas a essas questões, reafirmando o pacto que a sociedade continua a exigir pela educação com qualidade e equidade.
Se no mundo globalizado a dinâmica dos tempos e movimentos é célere e sem perder de vista o que já foi construído, a proposta da Confederação Nacional dos Trabalhadores da Educação Pública11 é de avançarmos na garantia da implementação do chamado CAQi- Custo-Aluno Qualidade Inicial (CAQi),12 incorporado no PNE e que determina um padrão mínimo de condições de oferta educacional para cada etapa e modalidade de ensino. É, sem dúvida, um passo adiante na metodologia atualmente vigente.
Com o CAQi a educação básica vai dispor de instrumento mais qualificado de transferência e controle do uso dos recursos da educação básica. Porque ele considera no seu escopo fatores como infraestrutura, valorização e qualificação docente, tamanho máximo de turmas por nível e modalidade, gestão democrática e garantias de acesso e permanência de alunos, como defendido pelos especialistas em educação. Ele é ferramenta simples e didática para garantir aos diversos atores a medição e monitoramento das condições de oferta educacional, segundo as responsabilidades partilhadas entre os entes, definidas na LDBE.
Ao par desse objetivo quanto a implementação do CAQi e ciente do volume de novos recursos que o novo PNE veio garantir somados à Lei dos Royalties (Lei 12858/13), o jogo ainda precisa ser jogado. A CNTE defende ainda que dispositivos legaiscomplementares como a Lei do Fundeb e o Projeto de Lei da Responsabilidade Educacional13 devem ser respectivamente atualizada e aprovado no Congresso Nacional, num tempo concomitante e necessariamente curto.
Na esfera do controle social é importante também encampar a luta pela efetiva articulação entre os órgãos de controle externo, como tribunais de contas, controladorias e Ministério Público, nas várias esferas. Já passou a hora de se construir a padronização da jurisprudência, tanto sobre a prestação de contas dos investimentos nos programas e projetos da educação básica pública, como dos elementos validados ao investimento na manutenção e desenvolvimento da educação básica, como determina os artigos 70 e 71 da LDBE.
Infelizmente, nesse campo, o que se criou foi uma “colcha de retalhos” com diferentes interpretações e julgamentos sobre o que se considera investimento em educação básica, combinados a prática de aplicação de multas irrisórias aos gestores punidos, como citam os pareceres de prestação de contas anuais dos tribunais de contas, de cada um dos 27 estados da federação.
Tão importante ao avanço, em se tratando de processo histórico, é lembrar que o movimento pela educação com qualidade social projeta, como superação da implementação do CAQi, a implementação progressiva do Custo Aluno Qualidade social. Para esse alcance, ainda existem questões técnicas para se encaminhar no percurso, além das políticas. Das primeiras vou tratar aqui e melhorar a base primária de dadosé um primeiro movimento.
Nessa vertente, porque não propor ao MEC que no próximo Censo Escolar de 2015 já seja incorporada a pesquisa sobre a existência quantitativa e qualitativa daqueles elementos dispostos no CAQi, segundo o Parecer da Câmara da Educação Básica/CNE 08/201014 aprovado. Esses dados, se coletados, contribuirão não só para disseminar o conhecimento sobre o CAQi pela comunidade escolar, como poderão subsidiar um diagnóstico mais realista sobre as atuais condições de oferta nas redes de ensino públicas e privadas brasileiras. Os orçamentos da educação aprovados ganharão, a partir daí, com certeza, mais efetividade.
Em tempos de transversalidade das políticas e programas sociais, na qual a educação está cada vez mais inserida, um segundo movimento seria computar também no Censo Escolar do MECos dados quantitativos e qualitativos dos vínculos profissionais de todos os educadores e seus regimes de contratação. Essas informações, em bases regionais e estaduais, consolidadas em uma única fonte são fundamentais. Tornam visíveis e comparáveis o quadro de profissionais das redes de ensino e criam bases sólidas para subsidiar a valorização dos educadores – meta 17 do PNE.
Muitos pesquisadores, incluso a CNTE, já fizeram alguns levantamentos apontando o alto número de profissionais temporários nas redes de ensino públicas do país e como as propostas de terceirização e privatização da gestão rondam as escolas públicas, há que se possibilitar o alcance da meta 18 do PNE, que prevê a implementação do plano de carreira e do piso nacional. Com ela se almeja dar limites a esses dispositivos, que definitivamente não corroboram ao alcance da educação com qualidade social.
Um terceiro movimento a propor seria incluir, ao longo do tempo, no rol dos elementos do CAQi, alguns fatores que contemplem as condições de trabalho dos funcionários de escola considerados também educadores pela Lei 12014/10, como local de reunião, local de estudo, creche para filhos, profissionalização, carreira e outros. E por que também não incluir fatores que garantam infraestrutura adequada e profissionais qualificados para aprendizagem ou vivência da arte e da cultura, respeitadas as diversidades regionais. Hoje o CAQi ainda não prevê esses elementos e eles são um passo adiante rumo a qualidade social.
No âmbito das relações de cooperação entre as esferas, que está sob evidente tensão no atual contexto de guerra fiscal e debate federalista, como um quarto movimento, a propostaé reforçar no Programa Ações Articuladas do FNDE/MEC15 os mecanismos de transferência de recursos articulados ao cumprimento das suas condicionalidades, com prazos alinhados ao cumprimento das metas do PNE e qualificando mais o Termo de Adesão ao programa.
Como? O Termo de Adesão ao PAR deve pressupor o alinhamento com os Projetos Políticos Pedagógicos da escolas de cada rede pública; hoje ele mais parece um documento de intenções! Ao fim e ao cabo, o que se pretende é que o programa valorize, sim, as redes que se anteciparem às metas, sem perder a dimensão da qualidade e equidade, medida pelo CAQi, mas na outra ponta, que amplie o apoio técnico e financeiro àqueles entes com déficits elevados.
E finalmente, sem esgotar os termos do debate, como um quinto movimento no âmbito da cooperação entre as esferas, seria investir, no tempo, na promoção de pesquisas sobre os impactos e resultados dosnovos arranjos territoriais de oferta de educação básica: tanto daqueles já existentes como daqueles advindos do estímulo da proposta do MEC, com os chamados Arranjos de Desenvolvimento da Educação.16 Eles serão testados como instrumento de gestão consorciada da educação pública, incluindo aí as parcerias privadas, vis a vis, a necessidade de cumprimento do conjunto de metas propostas no PNE.
“Não existe futuro sem o presente nem passado sem memória”!
* – Liliane Resende é Mestre em Economia (CEDEPLAR/UFMG) e assessora técnica do Dieese.
Notas:
1 A Lei 1.005/2014 que aprova o PNE em seu artigo 2º estabelece como diretrizes: I erradicação do analfabetismo; II – universalização do atendimento escolar; III – superação das desigualdades educacionais, com ênfase na promoção da cidadania e na erradicação de todas as formas de discriminação; IV – melhoria da qualidade da educação; V – formação para o trabalho e para a cidadania, com ênfase nos valores morais e éticos em que se fundamenta a sociedade; VI – promoção do princípio da gestão democrática da educação pública; VII – promoção humanística, científica, cultural e tecnológica do país; VIII – estabelecimento de meta de aplicação de recursos públicos em educação como proporção do PIB, que assegure atendimento às necessidades de expansão, com padrão de qualidade e equidade; IX – valorização dos (as) profissionais da educação; X – promoção dos princípios do respeito aos direitos humanos, à diversidade e à sustentabilidade socioambiental.
2A garantia da educação como um direito está intimamente ligada ao financiamento por parte do poder público. Na história da educação brasileira, a vinculação de recursos acontece somente em períodos ditos democráticos: 1934-1937, 1946-1964, 1983,1988 (com os 25% mínimo dos impostos vinculados constitucionalmente para estados e municípios e 18% para a União), e a desvinculação de recursos acontece em períodos autoritários: 1937-1945, 1964-1985, o que, sem dúvida, comprometeu a garantia do direito e da gratuidade da educação (DAVIES, 2012).
3Tomando como foco a educação básica, grosso modo, o chamado custo-aluno nacional, calculado anualmente pelo Ministério da Educação, é uma resultante da divisão entre a somatória de todos os recursos vinculados à educação básica pública e o total das matrículas divulgadas pelo Censo Escolar, definidos os valores para repasse, segundo ponderações diferentespara cada nível de ensino e modalidade. O FNDE/MEC publica anualmente portarias definindo os valores do per capita e ajusta o valor segundo a evolução da arrecadação. Em 2013 o per capita mínimo nacional para a educação básica foi de R$ 2.243,71, segundo definido pela Portaria Interministerial 1496 (dez/2012/MEC/M.FAZENDA) e comparado a 2007 houve crescimento em 50% nominais no valor do custo aluno mínimo.
4 Fundo de Valorização e Financiamento do Ensino Fundamental (Fundef), criado pela EC 14/96 e regulamentado pela Lei 9424/96 em seu artigo 13 previa padrões mínimos de qualidade. O Fundo de Desenvolvimento Manutenção da Educação Básica e Valorização dos Profissionais da Educação (Fundeb), criado pela EC 53/2006 e regulamentado pela Lei 11 494/07 que versa sobre o art 60 das Disposições Constitucionais Transitórias. Segundo dados do MEC, as transferências via Fundeb evoluíram de R$ 2,9 bilhões em 2007 para R$ 9,2 bilhões em 2013. Além do expressivo suporte liberado anualmente pela União aos estados, o fundo dispõe de outros meios para suplementar despesas das redes públicas. No ano passado (2013), foram R$ 116 bilhões, destinados ao pagamento da complementação de salários de professores, compra de equipamentos e manutenção da merenda e do transporte escolares.
5 O artigo 70 da LDBE aponta os elementos que podem ser considerados como despesas da educação básica pagas com as receitas vinculadas ao mínimo constitucional do MDE. Art. 70. Considerar-se-ão como de manutenção e desenvolvimento do ensino as despesas realizadas com vistas à consecução dos objetivos básicos das instituições educacionais de todos os níveis, compreendendo as que se destinam a: I – remuneração e aperfeiçoamento do pessoal docente e demais profissionais da educação; II – aquisição, manutenção, construção e conservação de instalações e equipamentos necessários ao ensino; III – uso e manutenção de bens e serviços vinculados ao ensino; IV – levantamentos estatísticos, estudos e pesquisas visando precipuamente ao aprimoramento da qualidade e à expansão do ensino; V – realização de atividades-meio necessárias ao funcionamento dos sistemas de ensino; VI – concessão de bolsas de estudo a alunos de escolas públicas e privadas; VII – amortização e custeio de operações de crédito destinadas a atender ao disposto nos incisos deste artigo; VIII – aquisição de material didático-escolar e manutenção de programas de transporte escolar. E o artigo 71 aqueles que não podem ser computados como despesas do MDE.Art. 71. Não constituirão despesas de manutenção e desenvolvimento do ensino aquelas realizadas com: I – pesquisa, quando não vinculada às instituições de ensino, ou, quando efetivada fora dos sistemas de ensino, que não vise, precipuamente, ao aprimoramento de sua qualidade ou à sua expansão; II – subvenção a instituições públicas ou privadas de caráter assistencial, desportivo ou cultural; III – formação de quadros especiais para a administração pública, sejam militares ou civis, inclusive diplomáticos; IV – programas suplementares de alimentação, assistência médico-odontológica, farmacêutica e psicológica, e outras formas de assistência social; V – obras de infraestrutura, ainda que realizadas para beneficiar direta ou indiretamente a rede escolar; VI – pessoal docente e demais trabalhadores da educação, quando em desvio de função ou em atividade alheia à manutenção e desenvolvimento do ensino.
6 A Teoria do Capital Humano:a aplicação mais conhecida da ideia de “capital humano” na economia é a de Mincer e Gary Becker da “Escola de Chicago” de economia. O livro de Becker intitulado Capital Humano, publicado em 1964, tornou-se um padrão de referência por muitos anos. Nessa visão, o capital humano é semelhante aos “meios físicos de produção”, por exemplo, fábricas e máquinas: pode-se investir em capital humano (via educação, formação, tratamento médico) em que uma das saídas depende, em parte, da taxa de retorno sobre a posse de capital humano. Assim, o capital humano é um meio de produção, em que um investimento adicional produz saídas adicionais.
7 A Campanha Nacional pelo Direito a Educação para Todos está na luta há quinze anos e ainda se faz combativa, envolvendo a participação de diferentes atores sociais.Presente em todas as conquistas da educação brasileira desde a sua fundação, a campanha é um dos principais atores na luta por uma educação pública, gratuita e de qualidade. Essa história teve início em 1999, quando um conjunto de organizações da sociedade civil se preparava para participar da Cúpula Mundial de Educação em Dakar (Senegal), que aconteceria no ano 2000. No Brasil, as articulações culminaram com a criação da campanha e seu lançamento, na estação Central do Brasil, no Rio de Janeiro, em 5 de outubro de 1999, e em fevereiro do ano seguinte, em Recife.
8 A LDB estabelece algumas regras com o objetivo de organizar o sistema educacional brasileiro em regime de colaboração – ou seja, de corresponsabilidade entre todos os entes federativos (União, estados/Distrito Federal e municípios), conforme definido na Constituição (art. 205). Assim, existe uma divisão de responsabilidades entre municípios, estados e União. Aos municípios, por exemplo, cabe a função principal de oferecer vagas em creches, pré-escolas e no ensino fundamental. Os estados devem priorizar o ensino médio, mas também atuar, em parceria com os municípios, na oferta de ensino fundamental. À União cabe organizar o sistema como um todo e regular o ensino superior.
9O Sistema Avaliação da Educação Básica (Saeb) abrangeu no seu escopo, até 2011:A Avaliação Nacional da Educação Básica (Aneb): abrange, de maneira amostral, alunos das redes públicas e privadas do país, em áreas urbanas e rurais, matriculados na 4ª série/5º ano e 8ª série/9º ano do ensino fundamental e no 3º ano do ensino médio, tendo como principal objetivo avaliar a qualidade, a equidade e a eficiência da educação brasileira. Apresenta os resultados do país como um todo, das regiões geográficas e das unidades da federação. Avaliação Nacional do Rendimento Escolar (Anresc) – também denominada Prova Brasil: trata-se de uma avaliação censitária envolvendo os alunos da 4ª série/5º ano e 8ª série/9º ano do ensino fundamental das escolas públicas das redes municipais, estaduais e federal, com o objetivo de avaliar a qualidade do ensino ministrado nas escolas públicas. Participam dessa avaliação as escolas que possuem, no mínimo, vinte alunos matriculados nas séries/anos avaliados, sendo os resultados disponibilizados por escola e por ente federativo.
10 O Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (Ideb) une dois conceitos: fluxo escolar e médias de desempenho nas avaliações.O indicador é calculado a partir dos dados sobre aprovação escolar, obtidos no Censo Escolar, e médias de desempenho nas avaliações do Inep, o Saeb– para as unidades da federação e para o país, e a Prova Brasil– para os municípios.
11 Cadernos da Educação: PNE: Mais Futuro para Educação Brasileira, ano XVIII, n28, Edição Especial.
12 Aprovado no Parecer CNE/CEB nº 8/2010, aprovado em 5 de maio de 2010.Estabelece normas para aplicação do inciso IX do artigo 4º da Lei nº 9.394/96 (LDB), que trata dos padrões mínimos de qualidade de ensino para a Educação Básica pública. Em resumo, os fatores que mais impactam no cálculo do CAQi são: 1) tamanho da escola/creche; 2) jornada dos alunos (tempo parcial versus tempo integral); 3) relação alunos/turma ou alunos/professor; 4) valorização dos profissionais do magistério, incluindo salário, plano de carreira e formação inicial e continuada. O CAQijá estariaprevisto no inciso VII do artigo 206, no artigo 201 e &1º artigo 60 da Constituição Federal/88 como no inciso IX artigo 4ºe artigos 74 e 75 da Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDBE).
13 Estão contidos na proposta da Lei de Responsabilidade Educacional, o Projeto de Lei 7420/06 apensado aos projetos de lei 8035 e 8039/2010, quando aprovada terá no período de 1 ano, e síntese definirá os critérios que assegurem padrão de qualidade na educação básica, em cada sistema e rede de ensino, aferida pelo processo de metas de qualidade aferidas por institutos oficiais de avaliação educacionais e prevê penalização aos gestores que não cumprirem as metas.
14 O Parecer CNE/CEB nº 8/2010, aprovado em 5 de maio de 2010define que no cálculo do CAQi, para cada etapa da Educação Básica, foram separados os custos de implantação (aquisição de terreno, construção do prédio, compra de equipamentos e material permanente) daqueles associados com os de manutenção e de atualização, necessários para assegurar as condições de oferta educacional de qualidade ao longo do tempo. Os primeiros custos, os de implantação, são realizados de uma única vez, seria o que o “ano zero” do CAQi, os outros dois devem acontecer ano após ano.
15 A partir da edição da Lei Ordinária nº 12.695/2012, a União, por meio do Ministério da Educação, está autorizada a transferir recursos aos estados, aos municípios e ao Distrito Federal, com a finalidade de prestar apoio financeiro à execução das ações do Plano de Ações Articuladas (PAR), sem a necessidade de firmar convênio, ajuste, acordo ou contrato. Dessa forma, o Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE) passa a utilizar o termo de compromisso para executar a transferência direta, prevista na referida lei, para a implementação das ações pactuadas no PAR, considerando as seguintes dimensões do plano: Gestão Educacional; Formação de Profissionais de Educação; Práticas Pedagógicas e Avaliação; e Infraestrutura e Recursos Pedagógicos. O PAR é o planejamento multidimensional da política de educação que os municípios, os estados e o DF devem fazer para um período de quatro anos, a partir da opção por adesão, desde 2008. O PAR é coordenado pela secretaria municipal/estadual de educação, mas deve ser elaborado com a participação de gestores, de professores e da comunidade local. O PAR é supervisionado pela SEB/MEC e pelo FNDE. A sociedade também pode fiscalizar a execução dos projetos e, detectando alguma irregularidade, deve entrar em contato com o FNDE por meio da Central de Atendimento ao Cidadão (0800-616161), carta ou e-mail.
16Resolução CEB/CNE 01/2013 em seu Art. 1º: A presente Resolução atende aos mandamentos da Constituição Federal em seu parágrafo único do art. 23 e art. 211, bem como aos arts. 8º e 9º da LDB visando ao regime de colaboração entre União, Estados, Distrito Federal e Municípios, tratando da implementação de Arranjo de Desenvolvimento da Educação (ADE) como instrumento de gestão pública para assegurar o direito à educação de qualidade em determinado território, bem como para contribuir na estruturação e aceleração de um sistema nacional de educação. Art. 2º: O ADE é uma forma de colaboração territorial basicamente horizontal, instituída entre entes federados, visando assegurar o direito à educação de qualidade e ao seu desenvolvimento territorial e geopolítico.
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(Publicado originalmente no site da Plataforma Político Social)

sexta-feira, 9 de dezembro de 2016

Le Monde: A PEC do Estado mínimo


O Estado deixa de cobrar impostos da parcela rica da sociedade e de investidores estrangeiros, e passa a pegar empréstimos com esses mesmos ricos a juros exorbitantes
por Leandro Farias

Pouco menos de trinta anos após a promulgação da Constituição Cidadã, o funcionamento das políticas públicas está em risco. Nossa frágil democracia presencia o atual presidente e sua equipe modificar por completo e drasticamente o projeto de governo apresentado, discutido e eleito nas urnas, tendo como foco o corte de direitos conquistados a duras penas. Um deles é a saúde pública.
Tendo como foco o reequilíbrio econômico-financeiro do país, o governo Temer e sua equipe econômica apresentaram e enviaram ao Congresso Nacional a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 55/2016. Tal medida de ajuste fiscal, que tem por objetivo estipular um teto para os gastos públicos durante vinte anos, tem gerado embates políticos e manifestações por todo o país. Mas qual seria a grande questão envolvendo o chamado ajuste fiscal e a PEC 55?
O ajuste fiscal é apresentado como a solução para a organização das contas públicas frente a uma baixa arrecadação, e uma espécie de “remédio amargo” capaz de recuperar a confiança de investidores nacionais e internacionais, e assim o país alcançar o crescimento econômico. O governo afirma que o orçamento da União está afetado pelas chamadas despesas primárias: gastos com saúde, educação, previdência, assistência social, segurança pública, saneamento etc. Porém, não são mencionadas as despesas referentes ao pagamento de juros e amortizações da dívida pública, que em 2016 devem alcançar o valor de R$ 600 bilhões.
Com a aprovação da PEC 55, o orçamento destinado às despesas primárias será corrigido apenas pela inflação durante vinte anos. Setores como saúde e educação serão submetidos a essa regra a partir de 2018. Enquanto a dívida pública, que em tese funcionaria como uma forma de complementar o financiamento do Estado, segue acarretando em desvio de recursos públicos em direção ao sistema financeiro. Totalmente na contramão quando comparados aos países emergentes e desenvolvidos que aumentaram seus investimentos em gastos sociais.
O Estado deixa de cobrar impostos da parcela rica da sociedade e de investidores estrangeiros, e passa a pegar empréstimos com esses mesmos ricos a juros exorbitantes. A partir de um determinado momento, o valor da dívida do Estado em relação a esses empréstimos é tão grande a ponto de comprometer o valor da arrecadação dos impostos pagos pelos não ricos (pobres e classe média). E como solução para esse problema financeiro, o Estado anuncia cortes nos investimentos sociais de setores, como saúde e educação, que são sabidamente subfinanciados e que oneram juntos cerca de 8℅ da arrecadação com tributos, enquanto o serviço da dívida pública isoladamente nos custa cerca de 42℅.
De acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), a expectativa de vida do brasileiro aumentou para 75 anos. Projeções apontam que a partir de 2030, no Brasil o grupo de idosos de 60 anos ou mais será maior que o de crianças com até 14 anos. Com isso haverá uma maior demanda por serviços de saúde. Porém, segundo o Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas (Ipea), com a aprovação da PEC 55, a saúde poderá perder ao longo dos próximos vinte anos mais de R$ 700 bilhões. Ou seja, menos recursos para um setor sabidamente subfinanciado e negligenciado.
Outro setor que é diretamente ligado à saúde e que também será afetado é o saneamento básico, traduzido em esgoto a céu aberto, lixo nas ruas e armazenamento incorreto da água. Levantamentos realizados pela ONU demonstraram que no Brasil 40% da população não possuem acesso adequado à água e 60% não têm acesso a esgotamento sanitário.
Lembrando que estamos em risco iminente de surtos de doenças como dengue, zika, chikungunya, microcefalia e síndrome de Guillain-Barré, que são transmitidas pelo mosquito Aedes aegypti. O último Levantamento Rápido de Índices para Aedes aegypti (LIRAa), divulgado pelo MS em novembro de 2015, trouxe a seguinte questão: no Nordeste, 76,5% dos focos do mosquito estão em armazenamento de água para consumo – por exemplo, caixa-d’água. A região concentra a maioria dos municípios com índices de risco de epidemia de dengue. Para a Organização Mundial da Saúde (OMS), cada R$ 1 investido em saneamento gera uma economia de R$ 4 em saúde.
Em 1500, nos deram espelhos e extorquiram toda a nossa riqueza. Passados quinhentos anos, continuam a fazer isso conosco. Até quando Brasil-colônia?
Ilustração: Daniel Kondo

Leandro Farias
Farmacêutico Sanitarista da Fiocruz e coordenador do Movimento Chega de Descaso.


07 de Dezembro de 2016
Palavras chave: PEC 55PEC 241ajuste fiscalgastos sociaiseducaçãosaúde

Michel Zaidan Filho: Princípio da responsabilidade civil



Segundo o ex-ministro da Justiça, da ex-presidente Dilma, todos os cidadãos e cidadãs são responsáveis, civil e criminalmente, perante a justiça do País. Ninguém está isento ou imune a responder processos ou prestar esclarecimentos às autoridades judiciais, quando aparecem indícios de crime ou violação da lei. Este é um princípio republicano que garante o tratamento isonômico a todos pelo Estado, independente de raça, credo, nacionalidade ou ideologia. Não há ninguém acima da lei ou acima de qualquer suspeita. Todos  somos imputáveis ou puníveis, desde que se estabeleça o devido processo legal, seja garantido o direito do contraditório e a mais ampla defesa. Está na Constituição de 1988.

Quando se começa a criar privilégios legais para determinada classe de cidadãos (deputados, senadores, prefeitos, procuradores, juízes etc.), o princípio  republicano da responsabilidade civil é restringido em sua amplitude e se criam dois regimes penais no Brasil. Quebra-se a isonomia legal que o Estado republicano tem de garantir a todos os brasileiros e brasileiras. Não temos um regime de castas, estamentos ou ordens diferenciadas em nosso país. Todos são, em princípio, inocentes ou culpados, até o transito em julgado no STF. Não poder haver nenhum tipo de distinção de classe, status, cargo ou função que torne imune aos procedimentos judiciais nem o cidadão comum nem a mais elevada autoridade da Nação.

Quando um senador da República ou um governador de Estado se nega a responder à uma inquirição da Justiça, sob qualquer pretexto, ele cria um precedente ilegal e desmoraliza o aparelho judicial do Estado brasileiro. A investidura do cargo (seja ele majoritário ou proporcional) não dispensa ou elimina, por imprópria e descabida, a responsabilidade civil e criminal do investigado, denunciado, citado, num inquérito penal, de responder cabalmente as questões formuladas  pela Justiça, sobretudo quando já há provas e indícios suficientes para a investigação.

Quando se intima um governador ou um senador a deixar o cargo ou a prestar esclarecimentos em relação a presunção de crime contra a administração pública, e a citada autoridade ou o  parlamentar se nega simplesmente a responder ou aceitar a intimação e afirma que vai desobedecer abertamente a decisão judicial, duas coisas podem acontecer: primeiro, a desmoralização do sistema judicial, sua força vinculante e imperativa: segundo uma jurisprudência perigosa de se só aceitar aquilo que se quer obedecer ou  concordar. Em ambos os casos, todos perdem e ninguém tem razão. A razão assistirá ao partido mais forte, naquele momento.Há sempre o risco de decisões judiciais erradas. Mas contra elas, sempre poderemos recorrer, num Estado de Direito Democrático, com as instituições e os órgãos respeitados pela sociedade. E há também o chamado “jus esperniandi”, o direito de protestar contra aquelas decisões que consideramos injustas.

Mas o que vem acontecendo no Brasil, é outra coisa. Muitas ofensas praticadas por procuradores e juízes às garantias e direitos individuais, sob o argumento da excepcionalidade dos tempos, e um progressivo desrespeito, desconsideração, menoscabo pelas decisões judiciais, sobretudo de um poder em relação a outro poder. Isso é muito grave. Nem  os juízes da suprema Corte são donos dos processos (a Constituição é que é) e portanto não podem cometer arbitrariedades, com base em sua autoridade, nem os cidadãos   (sejam eles governadores, deputados ou senadores e o próprio presidente da República) e cidadãs podem deixar de respeitar o ordenamento jurídico do País. 

Quando se abre um período de exceção jurídica, cada um acha que pode legislar em causa própria ou interpretar as leis de acordo com os seus interesses. Então se instaura  um Estado  leviatânico de guerra, onde os mais fortes, mais ricos, mais influentes sempre terão razão. E é preciso reconhecer que o STF, como a Corte responsável pelo controle concentrado da jurisdição constitucional no País, vem deixando muito a desejar, não só pela dissensão interna de seus membros, mas pela omissão, partidarismo explícito ou o ativismo judicial equivocado.

Michel Zaidan Filho é filósofo, historiador, cientista político, professor titular da Universidade Federal de Pernambuco e coordenador do Núcleo de Estudos Eleitorais, Partidários e da Democracia.