pub-5238575981085443 CONTEXTO POLÍTICO.
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sexta-feira, 14 de junho de 2019

Editorial: Capitalismo Gore


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No contexto deste debate que promovemos por aqui, em torno das instituições democráticas brasileiras, nesta semana gostaríamos de sugerir a leitura de um livro, assim como propor uma reflexão a partir de um posicionamento do professor Daniel Aarão Reis, em sua página, acerca da "oportunidade perdida" pelos partidos e coalizões de governo que assumiram o poder após o processo de redemocratização política. No entender do professor, os flancos ficaram abertos ou desguarnecidos, colocando nossas instituições da democracia numa condição de vulnerabilidade, susceptíveis às investidas de caráter autoritário. Os tucanos, embora tivessem estabilizado a economia, celebraram alianças com partidos cevados nos estertores do regime militar, como o PFL, interditando avanços mais significativos no sentido de democratizar a democracia. A coalizão petista, por seu turno, embora tenha distribuído renda - um dado importante no que concerne à democracia substantiva - e ampliado as conquistas e reconhecido o direito de minorias, igualmente alinhavou-se como forças políticas conservadoras, impossibilitando a materialização de reformas importantes, assim como não mexeu nos interesses da banca, permitindo lucros estupendos ao setor financeiro. 

Em linhas gerais, consoante as reflexões do professor, perdeu-se uma oportunidade de aperfeiçoar as instituições da democracia, assim como republicanizar o país, tornando-o infenso às investidas de caráter antidemocráticas. É a surrada conciliação de classe, que, no Brasil, significa não apenas não mexer nos espúrios interesses dessa elite política e econômica, assim como ficar a mercê das mesmas, tornando-se refém na primeira oportunidade, quando eles decidirem que a brincadeira deve acabar. Está se tornando cada vez mais evidente o conflito entre as instituições da democracia e as novas formas de acumulação do capital. O mercado editorial brasileiro, nos últimos meses, foi literalmente inundado por publicações que tratam da crise da democracia aqui e alhures, uma vez que se trata de uma onda conservadora que varre o planeta. Mas, no tocante à recomendação de leitura que fiz no início deste editorial,o texto é de Ellen M. Wood, Democracia Contra o Capitalismo, editado no Brasil pela editora Boitempo. Registre-se, um excelente texto, onde evidencia-se os condicionantes dessas engrenagens acumulativas, cada vez mais incongruentes com a manutenção da engenharia da democracia liberal, ferindo de morte suas instituições.


Ao longo de séculos de existência, o capitalismo passou por algumas transformações, mas manteve, em essência, inabalável, a lógica que o caracteriza: o processo reprodutivo do capital, sob quaisquer circunstâncias. Se cometo alguma impropriedade aqui, peço desculpas ao senhor Karl Marx, que dedicou uma vida a estudar esse modo de produção. Essa lógica hoje implica entender que os indivíduos não consumidores podem ser perfeitamente descartados. Mas, até neste particular, essa lógica objetiva auferir algumas vantagens, ou seja, lucrar com esses descartes.O termo gore está associado a uma situação de extrema violência, ou seja, implica dizer que o atual estágio de acumulação do capital traz, no seu bojo, algumas características bem definidas, observadas em cidades que tem sido o palco dessas barbáries, como é o caso da cidade de Tijuana, no México que faz fronteira com os Estados Unidos, que ostenta taxas elevadíssimas de violência. Salvo  melhor juízo, há uma serie da Netflix abordando a violência nessa cidade Mexicana, onde os assassinatos são cometidos com requintes de crueldade, daí o termo gore

Convém registrar que esses corpos inertes, meu caro Michel Foucault, traduzem, por assim dizer, uma identidade com a própria dinâmica da economia nesses tempos de cólera, descrito pela autora Sayang. O livro relata a experiência do estado mexicano com essa nova modalidade de reprodução do capital, mas, como estamos num mundo globalizado, essa modalidade de capitalismo já começa a demonstrar seus reflexos em cidades como o Rio de Janeiro, onde milícia, polícia, política e Estado acabam se tornando a mesma coisa, com reflexos diretos sobre a vida do cidadão comum. O mais grave é que a eliminação físicas de desafetos não ocorre apenas por suas teses - que contrariam os interesses desses grupos - mas pela tonalidade de sua pele, por sua opção sexual, por sua posição na pirâmide social. Custoso entender aqui que a militante Marielle Franco não morreu apenas por suas teses - que, de fato,  incomodavam bastante - mas por ser mulher, negra, da favela e homossexual.

Outro dia li um artigo bastante interessante sobre a origem das milícias no Rio de Janeiro. Contraditório observar que o próprio poder público esteve diretamente ligado à formação desses núcleos milicianos. As milícias surgiram na Zona Oeste,  como simples associações de moradores. Logo criariam tentáculos absurdos, impondo suas diretrizes através de muita violência, o que inclui o assassinato de desafetos. Saiu completamente do controle do poder público, com negócios que vão desde transporte - ocupam o espaço onde a Uber não entra -, extorsão de comerciantes, gás, energia elétrica, água, moradia através da grilagem de terra, e, mais recentemente, a morte por encomenda, assim como o trafico de drogas, o que as torna em narcomilícias. Ainda mais grave, seus tentáculos penetraram no aparelho repressor do Estado, assim como colocaram seus representantes no  Executivo e no Legislativo, já que esses contingentes habitacionais, onde essas milícias atuam, são responsáveis pela eleição de parlamentares em todos os níveis. As teses levantadas por Sayak Valência, assim como pelo pensador africano, Achille Mbembe, portanto, se aplicam tanto à realidade do México quanto à realidade brasileira, com seus componentes já observados em Estados como o Rio de Janeiro.

sábado, 8 de junho de 2019

Charge! Via Folha de São Paulo

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Peter Handke, a escrita e o risco da literatura


Peter Handke, a escrita e o risco da literatura
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O escritor austríaco Peter Handke (Foto: Divulgação)

Em 1984, Peter Handke publica “A tarde de um escritor”, uma curta novela na qual um personagem escritor espanta-se, diante de uma crise sem nome, por ter perdido “a intimidade com a palavra”. Ele está no seu local de trabalho, o lócus onde escreve – “a casa dentro da casa”, como ele mesmo diz -, mas encontra-se paralisado. Sente-se impotente justamente por não ter escrito, recentemente, nenhuma anotação que o completasse, que o alterasse e levasse a sua prosa adiante. Se a inspiração da escrita o abandonou, ele, o escritor-personagem resolve fazer desse abandono um ato literário.
Embora não seja de fato uma novidade, esse gesto de abandono de escrita revela a encruzilhada que Handke foi tecendo ao longo da sua obra. Para ele, o escritor que usa a literatura apenas para representar o mundo individual está fadado a cair no que ele chamou, num famoso seminário do Gruppe 47 em Princenton, de “impotência descritiva”. De forma esparsa, a escrita está no cerne do projeto literário de Handke. Uma escrita, contudo, que é tensa, ambivalente e que se furta de uma delimitação concreta, precisa. A escrita de Handke é sempre movente e tensiona-se num vai e vem entre fronteiras de gêneros – como a poesia, o romance, o teatro, a prosa, o ensaio –, mas também de mídias, como o rádio e o cinema.
Um nova subjetividade
Escritos com pouco mais de vinte anos, os primeiros romances e peças teatrais de Peter Handke dialogam diretamente com o emergente paradigma de uma Nova Subjetividade, termo cunhado pelo crítico Marcel Reich-Ranicki. Um olhar mais atento, no entanto, constata que Handke tece complexos gestos diante dessa nova subjetividade. Suas aproximações são paulatinamente cadenciadas por um constante apagamento da experiência subjetiva. Nesse recorte, as suas Peças faladas são exemplos seminais de uma radical ruptura diante de uma certa excessiva primazia da subjetividade. Numa peça como Insulto ao público, de 1968, Handke dispõe quatro atores diante da platéia e avisa, desde o início, que nos últimos minutos todos os espectadores serão deliberadamente xingados. Há um gesto de afronta, mas também uma aposta em diluir e mesmo abolir o tácito pacto teatral que une – pela centralidade do verbo colado ao enredo – os jogos de projeção e identidade entre a estória, os personagens, a trama, e os espectadores.
Quando nos debruçamos nos romances de Handke dessa época, temos, contudo, uma interessante metamorfose. Em meados dos anos 1960 ele inicia uma série de romances com tons abertamente autobiográficos. Na maioria dos casos, os protagonistas são escritores que contam, narram, descrevem e relatam fatos abertamente autobiográficos.
Em 1972, logo depois de publicar O medo do goleiro diante do pênalti, Handke é arrematado pela notícia do suicídio da sua mãe. Foi nesse impulso que ele se pôs a escrever a novela Bem-aventurada infelicidade, que a partir dessa notícia conduz o leitor a uma viagem pela Eslovênia, onde Handke passou sua primeira infância, e pelas ruínas de Berlim logo após a Segunda Guerra Mundial.
Nessa novela, Handke modula suas emoções, sua imagens, e oscila entre um pathosevidente para a sua suavização diante da paisagem de abetos cobertos por neves. O que é uma morte diante do mundo? O que é um suicídio da mãe diante da nossa pequenez e as paisagens que nos cercam por todos os lados? Esse romance é exímio nas modulações do mote subjetivo, o prenúncio do que hoje chama-se “autoficção”, e uma descrição que conduz o olhar do leitor como se fosse uma câmera, uma fotografia, uma imagem do mundo mediado por letras.
Em 1981, Handke publica História de uma infância, outro livro abertamente autobiográfico e que faz parte de uma importante tetralogia – composta por História da infânciaSobre as aldeias,  Lento retorno e O mestre de Sainte-Victoire. Nessa curta novela, ele faz um relato da sua experiência como um pai solteiro; de como educou sozinho sua filha Ânima, depois que obteve a sua guarda. Sem datas, nomes nem períodos claros, a infância passeia límpida pela pena de Handke entre verões, outonos, invernos, primaveras. Sua criança torna-se criança enquanto ele se transforma em um pai. Não há mais uma clássica separação de sujeito e objeto, mas um mútuo processo de constituição da criança no pai e do pai na criança; numa dinâmica delicada, tensa, que algumas vezes reforça o patriarcalismo para, outras, sublimá-lo.
O deslocamento, a aposta na descrição e a Ekphrasis
Em 1984, Peter Handke lança o livro O mestre de Sainte-Victoire, mistura de ensaio, com um percurso de formação, no qual ele se fia nas imagens, nos locais e nos fios deixados por Paul Cézanne em Aix-en Provence, onde o pintor viveu os últimos anos da sua vida. Handke viaja para  Aix-en-Provence e é esse trajeto que ele descreve com afinco e minúcia.
Ao se aproximar de Cézanne, Handke faz da sua prosa um gesto muito bem refletido que suscita uma nova forma de paisagem. Se em Hopper a paisagem ainda é representativa, edulcorada por um belo clássico, e mimética, com Cézanne ela é uma forma de proximidade, uma maneira de estar presente quando ausente, ou ausente quando presente. É uma paisagem evidentemente materialista, na qual se vêem as pinceladas, os traços e, aos poucos, de tanto pintar a montanha por anos e anos a fio, Cézanne passa a vê-la no instante e nas flamas da sua desaparição. As pinceladas tornam-se mais esparsas. Elas ocorrem enquanto simultaneamente esboçam uma desaparição. É aqui que vemos o cerne da influência de Cézanne: gesticular para uma escrita, uma imagem, que pisque um desaparecimento no mesmo instante em que acontece, num ato estético que conjugue presença com desaparecimento. Numa das descrições que faz do quadro de Cézanne, Handke chega ao conceito de Coisa-Imagem-Escrita (Ding-Bild-Schirft).
Indissociáveis, a materialidade, a imagem, e mesmo a escrita precisam pulsar na mesma vibração. Como se Handke se voltasse contrário a um certo cisma iconoclasta que maculou a história da literatura ocidental, no qual a imagem prescinde da palavra e esta daquela. Ao remeter à Cezanne, Handke busca uma ontologia da escrita que não negue a imagem e uma forma de despertar imagens que não faça do verbo um suporte expressivo de representação. Cézanne e Heidegger, juntos, tornam-se os profetas de uma escrita que busca sua própria espacialidade para emergir como um evento autônomo, independente. Se, para Heidegger, o ser ocorre num aparecimento e numa ocupação do espaço –  instaura uma temporalidade própria que o cria enquanto é criado – a escrita de Handke torna-se, delicadamente, uma experiência sensível dessas elaborações estéticas e filosóficas.
Em O mestre de Sainte-Victoire, Handke passa, deliberadamente, a ser um adepto das Ekphrasis. Na sua acepção mais difundida, Ekphrasis são descrições verbais de obras visuais. São formas de aludir a imagens que não estão diante dos olhos. Imagens ausentes, que o verbo reacende numa química efêmera, fugidia, fulgaz. Permeada pela perda, pela sombra do Ut pcitura poesis de Horácio – da pintura como poesia – e, sobretudo, maculada pela desaparição, a Ekphrasis assume-se mais frágil que uma narração, uma narrativa, ou mesmo a ação aristotélica, já que ela gera imagens individuais, ausentes e distantes de telas, imagens íntimas e subjetivas dos eventos que descreve. De certa forma, o projeto poético-literário de Handke visa trazer novas faíscas visuais às imaginações, à força das imagens que cada palavra carrega e transmite consigo – sozinha, no seu choque, na sua combinação com outras e outras palavras.
Peter Handke e o cinema
Desde o início da sua carreira como escritor, o cinema pairou sobre horizonte de Handke. Ele foi cinéfilo, roteirista de obras seminais de Wim Wenders, com quem colaborou em pelo menos quatro filmes, e, por fim, possui uma obra cinematográfica individual. Deve-se, primeiramente, salientar que Handke não é um caso isolado de escritor-cineasta. Na geração literária européia do pós-guerra havia um constante estímulo de produtoras de cinema e de televisão em convocar escritores para realizar roteiros e filmes. Como se fosse o projeto de reconstruir as ruínas da guerra perpasse por reunir escritores e as novas mídias. Escritores da Escócia à Itália, como Peter Weiss e Pier Paolo Pasolini, e sobretudo escritores franceses vinculados ao nouveau roman, como Alain Robbe-Grillet e Marguerite Duras, construíram obras cinematográficas paralelas à suas literaturas.
Com Wim Wenders, Handke foi roteirista da sua própria novela O medo do goleiro diante do pênalti. Em seguida elaborou uma livre adaptação de Os anos de aprendizagemde Wilhelm Meister, de Goethe, que tornou-se o filme Movimento em falso. Por fim, em 1986, colaborou com as falas de Asas do desejo, talvez o filme mais famoso da parceria entre Handke e Wenders. Bem recentemente, em 2016, essa parceria obteve a filmagem de Os belos dias de Aranjuez, realizado em 3D, e como uma adaptação de uma peça homônima de Handke.
Um tanto bissexto, o diretor Handke realiza filmagens nos intervalos seus trabalhos literários, como se fosse um refúgio, um descanso dos seus tormentos com as palavras. Em 1971, a TV alemã o contrata para dirigir Chronick der laufenden Ereignissen,uma obra experimental que flerta com a performance, elementos do teatro do seu tempo e atores que também estiveram em suas peças dos anos setenta. Em 1978, Handke filme em Paris A mulher canhota, certamente seu filme mais melancólico, que possui sua antiga casa como locação. Lançado no Festival de Cannes, mostra o auge literário-cinematográfico de Handke. Em 1985, ele realiza em Salzburg a adaptação de La Maladie de la Mort, romance homônimo de Marguerite Duras, o qual inicia-se com a mão do diretor escrevendo e traduzindo o romance de Duras, como se o ato de escrever filmes fosse sempre uma tradução de um meio, de uma mídia para a outra. Por fim, em 1992, Handke realiza A ausência, que é, sem dúvida, o seu filme melhor acabado, no qual atores como Bruno Ganz e Jeanne Moreau contracenam em sequências que impregnam na memória e enaltecem belas paisagens de vários deslocamentos pela Europa. Em cada um desses filmes, é a escrita e seu abandono que Handke busca, de forma obsessiva, recorrente, incansável. Escreve enquanto filma e filma para escrever de outra forma, para forjar uma auto-transformação.
Handke foi obsessivo em buscar um escrita performática, que instaura  um movimento. Uma escrita que inventa um local e que se furta, propositadamente, do fardo de uma representação, de uma imitação, de uma mimésis. Uma escrita não restrita ao livro, às tradicionais mídias da literatura, mas que se declina em imagens, palcos, filmes. Uma escrita que aposta na descrição, para elaborar lentas imagens que instaurem uma duração. É assim, numa aposta radical e consistente de escrita que Handke arrisca-se e risca, simultaneamente, algumas das tradições literárias mais naturalizadas dentro da história da literatura. O riso traçado por Handke é duplo, sempre ambivalente, e é por isso mesmo ele, em si, outro gesto de escrita.
Pablo Gonçalo é doutor em Comunicação pela UFRJ e professor adjunto do curso de Audiovisual e Publicidade da UnB
(Publicado originalmente no site da Revista Cult)

domingo, 2 de junho de 2019

Publisher: A ranking of authoritarianism

For some time now I have not read some encouraging article about the current political situation in the country. He could, too. The country is experiencing one of its most delicate political moments, wrapped in an unprecedented institutional, political and social crisis, aggravated by the militarization of the state apparatus, a combination that can become explosive, in an acute situation of managing this crisis. In recent weeks, we have discussed here the serious situation in which our democratic institutions are, pointing out their weaknesses. We knew, therefore, that the picture was serious, but this morning I read an article published by Piauí magazine in its March issue written by Celso Rocha de Barros, where he makes a rather pessimistic assessment of another indicator, the one that indicates the current stage of our authoritarian depression.

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As we have already reported here, this authoritarian depression is something that appears on a global scale, as a crisis of liberal democracy in a more general way, with reflexes, of course, here in the country, as a rearrangement of the conservative forces. draws attention to the degree of authoritarian retreat faced by various countries, in this wave that sweeps the planet, also as a reflection of the arrangement of the capitalist economy or, more precisely, of its increasingly precarious relationship with the institutions of liberal democracy. On this scale, according to the good analysts of political science, the country had a grotesque setback, occupying the first place of the list, that is to say, it is the country where this authoritarian retrogression more evolved of that gallery, with indicators observed daily by the most insightful readers. One of the indicators pointed out in the text - with our endorsement - is the absolute disrespect for the positions of the international organisms on what happens in the country.

This may be explained by our permanent stage of democratic vulnerability, as discussed in previous editorials. Our democracy was never consolidated, it was always of low intensity, for the reasons indicated there. There is talk today of possible political pacts or solutions that could represent a safeguard against the residual remains of this autocratic tsunami that began there in 2013, culminating in the institutional coup of 2016. As I report at the beginning of this editorial, they are alvissareiras, which contributes to further aggravate the social crisis. This time without the political buffers, which would allow the rulers to emerge from the inertia, from the administrative paralysis provoked by the difficulties of negotiations with the parliament, in an environment of non ideal governance - with coalition presidentialism this would be unlikely - but possible.

Good news, readers, despite the delicate moment, is that I perceive that there are some spaces where social analysts are looking at these neuralgic themes, assuming more consistent positions, such as pointing out the mistakes and successes of previous governments, such as the the Pact's coalition government and the Tucan era. Toucans, as Celso Rocha de Barros observed in this same article, have democratized the PFL, a political group fattened in the throes of the dictatorship established in the country with the civil-military coup of 1964. These were institutional arrangements that, governance, and somehow interdicted authoritarian harassment and shocks in the conduct of economic policy by keeping the inflationary process under control. A big gain, let's face it. Today, the Toucans moved away from the game, practically handing the caption to a political actor identified with the status quo of the group that took power, the governor of São Paulo, João Dória Júnior.

sábado, 1 de junho de 2019

Editorial: Um ranking do autoritarismo


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Faz algum tempo que não leio algum artigo alentador sobre a atual conjuntura política do país. Também pudera. O país vive um dos seus momentos políticos mais delicados, envolto numa crise institucional, política e social sem precedentes, agravada pela militarização do aparelho de Estado, uma combinação que pode tornar-se explosiva, numa situação aguda de gestão dessa crise. Nas últimas semanas, discutimos por aqui o quadro grave em que se encontra nossas instituições democráticas, apontando suas fragilidades.  Sabíamos, portanto, que o quadro era grave, mas, hoje pela manhã, li um artigo publicado pela revista Piauí, em sua edição de Março, escrito por Celso Rocha de Barros, onde ele tece uma avaliação bastante pessimista acerca de um outro indicador, aquele que indica o atual estágio de nossa depressão autoritária. 

Como já informamos por aqui, essa depressão autoritária é algo que se apresenta numa escala global, como uma crise da democracia liberal de um modo mais geral, com reflexos, naturalmente, aqui no país, como um rearranjo das forças conservadoras.Mas, o que chama a atenção é o grau de retrocesso autoritário enfrentado por diversos países, nessa onda que varre o planeta, também como reflexo do arranjo da economia capitalista ou, mais precisamente, de sua cada vez mais precária relação com as instituições da democracia liberal. Nesta escala, segundo os bons analistas da Ciência Política, o pais teve um retrocesso grotesco, ocupando o primeiro lugar da lista, ou seja, é o país onde esse retrocesso autoritário mais evoluiu dessa galeria, com indicadores observados cotidianamente pelos leitores mais perspicazes. Um dos indicadores apontados no texto - com o nosso endosso - é o absoluto desrespeito pelas posições dos organismos internacionais sobre o que ocorre no país.

Isso talvez se explique pelo nosso permanente estágio de vulnerabilidade democrática, como discutimos nos editoriais anteriores. Nossa democracia nunca consolidou-se, sempre foi de baixa intensidade, pelas razões ali apontadas. Hoje se fala em possíveis pactos ou soluções políticas que possam representar uma salvaguarda dos resíduos que ainda restaram desse tsunami autocrático, iniciado ali pelo ano 2013, culminando no golpe institucional de 2016. Como informo no início deste editorial, as notícias da área econômica também não são alvissareiras, o que contribui para agravar ainda mais a crise social. Desta vez, sem os amortecedores políticos, que permitiriam ao governantes saírem da inércia, da paralisia administrativa provocada pelas dificuldades de negociações com o parlamento, num ambiente de governança não ideal - com o presidencialismo de coalizão isso seria improvável - mas possível. 

Notícia boa, leitores, apesar do momento delicado, é que percebo que há alguns espaços onde os analistas sociais estão se debruçando sobre esses temas nevrálgicos, assumindo posturas mais consequentes, como, por exemplo, apontar os erros e acertos dos governos anteriores, como o governo de coalizão petista e a era tucana. Os tucanos, como observou Celso Rocha de Barros, neste mesmo artigo já citado, democratizou o PFL, um grupo político cevado nos estertores da ditadura instaurada no país com o golpe civil-militar de 1964. Foram arranjos institucionais que, bem ou mal, garantiram a governança e, de alguma forma, interditaram os assédios autoritários e os sobressaltos na condução da politica econômica, ao manter o processo inflacionário sob controle. Um ganho e tanto, convenhamos. Hoje, os tucanos se afastaram do jogo, praticamente entregando a legenda a um ator político identificado com o status quo do grupo que assumiu o poder, o governador de São Paulo, João Dória Júnior. 




Dória toma conta do ninho


Velha guarda tucana desiste de enfrentar governador paulista pelo comando do PSDB, mas Aécio Neves ainda briga por influência

THAIS BILENKY
28maio2019_11h59
INTERVENÇÃO DE PAULA CARDOSO SOBRE FOTO DE EDUARDO ANIZELLI/FOLHAPRESS
Na sexta-feira passada, 24 de maio, o governador de São Paulo, João Doria, jogou para a plateia. “A partir de agora, o partido não vai viver de história, vai fazer diferente”, discursou, em ato de filiação de novos membros ao PSDB. “Os que não concordarem peçam para sair”, intimou. Às vésperas de a nova executiva montada por ele assumir o partido, Doria afia a língua para dar o tom do “novo PSDB”, como definiu. Mas as brigas internas o educaram. Ele joga para a plateia em um dia e, no outro, trabalha nas coxias. No domingo, entre uma e outra reunião, recebeu, em sua casa, o senador José Serra. Conversaram sobre reforma tributária e outros temas técnicos relativos a São Paulo. Na saída, o ar na mansão do governador de São Paulo no Jardim Europa estava ameno. Aliados de Doria comemoraram. O PSDB, enfim, o engoliu.
Três anos depois de entrar para o cotidiano partidário, então como pré-candidato a prefeito da capital paulista, e encarar disputas ruidosas e fogo cruzado, o empresário, fundador do Lide e apresentador de televisão, finalmente se sentará à cabeceira dos banquetes tucanos. Políticos graduados do partido admitem reservadamente que foram frustradas as tentativas de fazer frente ao governador paulista, nunca inteiramente aceito pela cúpula partidária – Fernando Henrique Cardoso se referiu a ele como um balão em 2017, e Geraldo Alckmin insinuou que era traidor em 2018. Aventou-se um comando rotativo do PSDB, em que o presidente ficaria apenas alguns meses no cargo e passaria o bastão. Não houve adesão suficiente. Outra tentativa foi convencer nomes de mais consenso, como o senador mineiro Antonio Anastasia, a assumir a direção, mas nem ele, nem outros potenciais líderes quiseram segurar o rojão. Depois do tsunami antipolítico da eleição passada, o único projeto do PSDB com pretensões nacionais que restou de pé foi o de Doria.
Assim, na próxima sexta-feira, dia 31 de maio, em convenção nacional do partido, o grupo de Doria deverá levar os postos principais: o ex-deputado pernambucano Bruno Araújo deve ser empossado presidente do PSDB, com a senadora paulista Mara Gabrilli na primeira vice-presidência e o deputado paraibano Pedro Cunha Lima no Instituto Teotônio Vilela. A tesouraria ficará a cargo de um tucano de São Paulo da confiança do governador. Não que, ao indicar aliados para os principais postos, Doria reinará sozinho. Todos aqueles que passaram pela presidência nacional do partido são membros natos da executiva. O ex-governador paulista Alckmin deixará o comando do PSDB na sexta, mas permanecerá na primeira fileira do partido, assim como Serra, Tasso Jereissati e José Aníbal. Fernando Henrique Cardoso é presidente de honra da agremiação.   
O nó da questão é a secretaria-geral, cuja indicação caberá ao diretório de Minas Gerais. E aí Aécio Neves entra nessa história.
Ex-candidato a presidente da República, ex-governador e ex-senador, o hoje deputado federal trabalha com afinco para se reabilitar na vida política do PSDB e do país, depois de ser dragado pela Lava Jato com a delação de Joesley Batista. Reportagem da Folha de S.Paulo mostra que a maior parte dos inquéritos instaurados em 2016 e 2017 pelo Supremo Tribunal Federal sobre Aécio segue inconclusa. Só uma investigação resultou em denúncia e transformou Aécio em réu, e uma foi arquivada.
Ex-presidente nacional do PSDB, Aécio tem seu assento na executiva garantido, mas ele pleiteia mais. O diretório mineiro ainda negocia cadeiras extras na direção nacional para acomodar deputados como Domingos Sávio e Eduardo Barbosa como forma de ampliar a sua participação nas decisões do partido. O grupo sabe que o ambiente não será favorável. Doria deu o tom. Na sexta-feira, em seu discurso, o recado foi anotado. “Se alguém fez coisa errada, que pague por isso, que tenha seu julgamento e o direito de defesa pleno. Nós não vamos condenar ninguém antes. Mas peça licença, tenha grandeza, se afaste”, cobrou. “Faça sua defesa. Se for isento, volte, será bem-vindo, será aplaudido, será abraçado. Mas, enquanto [estiver] nesse processo, tenha dignidade e o respeito de fazer a sua defesa na plenitude, mas fora do PSDB.”
Investigado em nove inquéritos e réu em uma ação criminal por corrupção, Aécio está preocupado, relatam seus aliados, e se dedica à sua defesa com advogados para obter notícias positivas na esfera judicial que aliviem sua situação política. Enquanto isso, sem alarde, ele faz o que já provou dominar: política.
Abancada tucana na Câmara, que o recebeu em fevereiro com desconfiança e às vezes desprezo, já deixa escapar lances de simpatia pelo mineiro. Internamente Aécio costura um argumento segundo o qual a intolerância com investigados como ele pode acabar por minar projetos como o do próprio Doria, a eleição presidencial de 2022. Inúmeros prefeitos, deputados estaduais e federais e senadores respondem na Justiça por problemas de financiamento de campanha e acusações mais graves na esfera criminal. Qualquer candidato precisará de capilaridade para se erguer nacionalmente. Se investigados forem tratados como condenados, não se disporão a ficar no PSDB, sustentam aecistas. O mesmo se espera de potenciais aliados. Dirigentes de partidos com os quais o PSDB costuma se associar em campanhas eleitorais não terão simpatia por uma postura moralista se eles também se veem em meio a imbróglios judiciais, advogam tucanos ligados a Aécio.
O grupo mineiro, por fim, fia-se na expectativa de que Bruno Araújo tenha autonomia em relação a Doria. Em um primeiro momento pode até ceder aos ímpetos do governador paulista, calcula-se, mas com o tempo trabalhará pela pluralidade política e regional no PSDB.
Já a turma de Doria é menos conciliadora. Seus aliados dizem esperar que, passada a fase inicial do novo comando partidário, Aécio pedirá para sair. Citam como referência a desfiliação do ex-governador Eduardo Azeredo, preso no mensalão tucano, negociada pelo presidente do PSDB de Minas, deputado Paulo Abi-Ackel.
Encarregado de convocar reuniões, definir pautas, ordenar despesas, contratar e demitir pessoal, o secretário-geral do PSDB teve suas atribuições esvaziadas justamente na gestão de Aécio no partido (2013-17), com alterações no estatuto que fizeram acumular os poderes na caneta do presidente, acusam aliados de Doria. Quem está sentado na cadeira de secretário-geral até sexta-feira é o ex-deputado mineiro Marcus Pestana, que foi secretário estadual de Aécio no governo de Minas, mas hoje conquistou a confiança de tucanos para além das fronteiras de seu estado. Pestana foi convidado a ficar onde está, mas não quis. Ainda não ficou definido quem o sucederá, em uma disputa que mostrará a força ou fragilidade de Aécio no xadrez tucano.
Aliados do governador de São Paulo se referem com graça ao regramento do partido como estatutécio, o estatuto do Aécio. Uma nova redação do texto está em fase de finalização. Quando aprovada, passará a submeter automaticamente aquele que for denunciado na Justiça à comissão de ética do PSDB. Sem disposição de expulsar antes de uma condenação em segunda instância, a direção poderá aplicar sanções como afastamentos temporários ou cartas de reprimenda. Mas, como disse Doria, espera-se que o enrolado “tenha grandeza, peça licença” para sair.

THAIS BILENKY

Thais Bilenky é repórter na piauí. Na Folha de S.Paulo, foi correspondente em Nova York e repórter de política em São Paulo e Brasília.

(Publicado originalmente no site da Revista Piauí)

quarta-feira, 29 de maio de 2019

Ernst Jandl com visto de permanência


Ernst Jandl com visto de permanência
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Ernst Jandl em uma leitura em 1992 (Foto: Deutsches Theater / Divulgação)

Ernst Jandl (1925-2000) vem finalmente ao Brasil. Não pela primeira vez, já que algumas seleções menores ou maiores de poemas seus foram publicadas no país nas últimas décadas, mas vem finalmente numa antologia de fôlego, Eu nunca fui ao Brasil (Relicário Edições, 2019, edição bilíngue, tradução de Myriam Ávila), que perpassa em mais de 160 páginas alguns dos poemas mais significativos do autor, uma entrevista longa com o mesmo e, ainda, uma breve (porém deliciosa) nota introdutória da tradutora. Os poemas escolhidos pela tradutora fazem parte de quatro volumes: Lauto e laxo (Laut und Luise), idílios (idyllen), o totó do otto (ottos mops hopst) e de de pra pra (vom vom zum zum). O título – adaptado de um verso do próprio Jandl – dá o tom da antologia e do humor peculiar do autor, que vem, digamos assim, finalmente com visto de permanência.
É sabido que a poesia de Jandl causa furor – seja por admiração, seja por aversão, tão comum uma quanto a outra. De um modo ou de outro, seus poemas mobilizam há décadas quem os lê e quem os escuta, é raro que qualquer um consiga se manter morno frente às suas eletrizantes experimentações visual-linguístico-sonoras. Ecos desse “furor Ernst Jandl” são, por exemplo, as demissões em série sofridas por editores, redatores e curadores que ousaram publicar seus primeiros trabalhos de maturidade, as acusações públicas sofridas pelo autor (aquele que “corrompe a juventude”, autor de “provocações insuportáveis”) e até uma proibição de publicação instaurada em 1958. Num tempo e num país em que a poesia é cada vez mais tomada como desnecessária, acessória e incômoda, interessa-nos muito abraçar as potencialidades do incômodo e, a partir dele, retomar uma voz tão potente e desestruturante (política e linguisticamente) como a de Ernst Jandl.
Jandl nasceu em Viena, onde passou a maior parte de sua vida como professor de alemão do ensino secundário. De sua experiência profissional vem talvez sua atenção especial ao público infantojuvenil (atenção que o autor expressou em diversas cartas, entrevistas e até na publicação de um livro com imitações de seu poema “ottos mops” feitas por crianças) e certamente a acusação de “corrompe[r] a juventude”. Afinal, onde já se viu um professor de escola escrever sempre com letra minúscula em seus poemas, cometer propositalmente erros de alemão, perder a compostura a cada leitura pública? Não dar o exemplo, ensinar errado?
Todos esses crimes do professor Jandl são coerentes com seu trabalho literário, qual seja, o de levar sistematicamente a linguagem a extremos, e fazê-lo das mais diversas formas e a partir dos mais diversos meios. Por vezes experimenta com a sonoridade de um poema (nos chamados “sprechgedichte”, ou seja, “poemas falados”/”poemas sonoros”/”poemas fonéticos”), de modo que ele só se completa quando e se oralizado (ou parece completar-se, já que poema algum se acaba de fato numa primeira leitura); por vezes experimenta com o aspecto visual da mancha gráfica, com a iconicidade da palavra; por vezes rompe as regras da gramática normativa; por vezes introduz no poema dialetos do alemão; mas, no mais das vezes, faz isso tudo ao mesmo tempo. Jandl é um poeta consistente, mas jamais repetitivo. Cada poema seu é uma tentativa diversa de ataque, de ida ao extremo da linguagem. O projeto é o mesmo, mas os caminhos são muitos. Assim, insisto: a consistência em Jandl não é de forma alguma repetição.
Aliás, permito-me aqui um aparte: mesmo que não saiba alemão, o leitor brasileiro ganhará muito assistindo às dezenas de gravações do poeta disponíveis na internet – lá ele gesticula, balbucia, grita, sussurra, cala; leva, enfim, sua poesia aos olhos e ouvidos dos que falam e dos que não falam alemão.
É interessante pensar na raiz política do quase pânico que a poesia de Jandl causou na Áustria de alguns anos depois da Segunda Guerra Mundial, país que tentava ainda se reestruturar e estabilizar como centro cultural após a catástrofe; e em como, contra tudo e contra todos, a experimentação visual e sonora de sua linguagem se popularizou enormemente com o tempo e se tornou, assim, fator efetivo na desestabilização de um meio social que naquele momento era muito pouco afim ao novo, ao uso do incômodo como princípio estruturante, ou a uma experimentação tão extrema e limítrofe na poesia. Se é verdade que poucas décadas antes as experimentações das vanguardas europeias viviam ainda seu auge, é também verdade que elas foram logo afogadas, durante a guerra, numa torrente malcheirosa de poesia solene, eloquente, nacionalista – nazista. Diversos artistas seguiram experimentando dentro e fora da Alemanha e da Áustria, mas ao menos oficialmente o momento literário era mesmo o do péssimo poema programático, oficialesco e grandiloquente. Finalmente, após a guerra houve um esforço conjunto das vanguardas artísticas para distanciarem-se da poesia que marcara o período do nazismo, e esse esforço se deu por diversas vias: a da dessacralização do verso, da experimentação visual, da experimentação sonora, do humor, da sátira, e assim por diante. Nesse contexto, talvez o Wiener Gruppe (Grupo de Viena) seja aquele ao qual se possa ligar com mais segurança a poesia de Ernst Jandl, mas mesmo desse grupo o autor manteve uma certa independência, uma ligeira distância. Se tentarmos, no entanto, ligar sua escrita à de algum autor individualmente, será sem dúvida à de Friederike Mayröcker (1924- ) – uma das mais interessantes vozes poéticas de expressão alemã em atividade hoje, companheira de Jandl de 1954 até a morte deste em 2000 e, por ora, uma lacuna no mercado editorial brasileiro –, com a qual dividiu a autoria de algumas obras. Nas palavras do germanista Helmut Gollner em artigo publicado na Pandaemonium Germanicum (junho de 2015, tradução de Ruth Bohunovsky): “Tudo o que Ernst Jandl fez com a língua pode ser chamado de contestação cultural por excelência. Jandl nega/destrói dentro da cultura caída (a do humanismo burguês) a sua língua aprumada, ao tornar feio o que ela tinha de bonito, ao idiotizar o que ela tinha de inteligente, ao banalizar o que estava cheio de sentido e ao materializar seu lado espiritual. Jandl deforma a estrutura eufemística da nossa língua de cultura”.
Desse modo (e aí já está um belo motivo para lê-lo no Brasil de 2019), a poesia de Jandl é também, nesse contexto, poesia antifascista.
A implosão das antigas estruturas formais e mesmo sintáticas do poema dá lugar em Jandl não ao caos, é claro, e sim a um outro modo de estruturar o poema, um modo que, via de regra, leva ao extremo o trabalho com a sonoridade da língua e a visualidade da escrita – tornadas no autor o centro da experiência formal, não mais dois elementos entre muitos outros. Essa descrição da poesia jandliana é válida pelo menos na caracterização dos livros publicados até o início da década de 70, que são ainda hoje os mais populares do autor – com o tempo Jandl seguiu outros caminhos, mas, importante registrar, nunca perdeu seu impulso genuinamente experimental ou seu humor. Do trabalho privilegiado do autor com as dimensões sonoras e visuais da poesia se depreende a importância de Jandl no fortalecimento ou na validação dos movimentos de performance oral na poesia e também dos movimentos de poesia concreta dentro e fora da Áustria. Se a também austríaca Ingeborg Bachmann (1926-1973) sentencia que não pode haver um novo mundo sem uma nova linguagem (“Keine neue Welt ohne neue Sprache”, excerto do conto “Alles”), talvez seja Ernst Jandl quem leva a afirmação ao seu ponto mais ardente e radical. Como se apreende de todo grande autor, faça ele sonetos ou faça sprechgedichte, escreva sobre um copo d’água, sobre o fascismo ou sobre a própria escrita do poema: em Jandl a linguagem é, ela mesma, a busca e o encontro da poesia – e não simplesmente seu meio de transmissão.
Na busca pelos extremos da linguagem Jandl chega aos extremos da língua alemã, especificamente. Daí a enorme dificuldade de se traduzir seus poemas, visto que, é claro, uma outra língua se faz de e em outras estruturas: o “jogo” num poema traduzido é (espera-se) o mesmo jogo do poema de partida (ou quase o mesmo, como diria Umberto Eco), mas as regras a serem seguidas e quebradas são já outras. Como afirma o próprio Jandl em entrevista a Zimmermann, reproduzida ao final da antologia: “Essas serão então as regras do jogo, é com essas regras que terei de jogar. […] Porque o jogo segue regras. Podem ser, como no xadrez, regras que existem há séculos ou regras que eu mesmo crio na hora de escrever.”
No entanto, se a aderência muito rente do poema à língua alemã se mostra uma grande dificuldade na tradução de Jandl, vista por outro ângulo essa característica se torna uma bela oportunidade ao tradutor criativo. Como expõe Haroldo de Campos em seu “Da transcriação: poética e semiótica da operação tradutora”: “[…] quanto mais inçado de dificuldades esse texto, mais recriável, mais sedutor enquanto possibilidade aberta de recriação, […] do ponto de vista da transcriação, traduzir Guimarães Rosa seria sempre mais possível, enquanto “abertura”, do que traduzir José Mauro de Vasconcelos; traduzir Joyce mais viável, enquanto “plenitude”, do que fazê-lo com Agatha Christie […]”.
E justamente aí cabe louvar a tradução de Myriam Ávila, principalmente em poemas mais célebres, como “o totó do otto”, “dileção” ou “calipso”: da criação de uma estrutura paralela em outra língua, Myriam Ávila cria também novas rupturas, suspensões e confirmações de expectativa que, por sua vez, só funcionam na materialidade (sonora, mas não só) do português, assim como as de Jandl só funcionam na materialidade do alemão. Se Jandl leva a linguagem a seus extremos, o faz dentro dos limites daquilo que tem à mão, ou seja, a língua alemã. Ávila tem à mão os limites da língua portuguesa – e o mesmo projeto de levá-la às últimas consequências.
Mesmo jogo, outras regras. Assim, para falar aqui de “fidelidade”, termo muito caro ao discurso comum sobre a tradução e pouco caro ao meio acadêmico: justamente optando por partir de ou chegar a imagens diferentes daquelas de Jandl (mas criando estrutura visual-linguístico-sonora análoga àquela do autor) é que Myriam Ávila se mantém “fiel” à postura e ao projeto criativo de Ernst Jandl. Essa ideia da tradução como “criação de uma estrutura estética análoga” já estava, é claro, no pensamento tradutório de Haroldo de Campos pelo menos desde a formulação do “isomorfismo”, reformado e aprofundado depois no conceito da “transcriação”.
Toda tradução é a cristalização de uma possibilidade, não mais do que isso. Descontados eventuais erros incontornáveis, nascidos de lacunas de conhecimento linguístico por parte de um tradutor, toda tradução é uma proposta – uma proposta menos ou mais coerente consigo mesma. O leitor lusófono já podia encontrar belíssimas propostas tradutórias para Jandl pelas mãos de Fabiana Macchi, Ricardo Domeneck, Bruno Mendes, José Paulo Paes e até uma seleção pequena de 1999 pela própria Myriam Ávila. São seleções breves ou até poemas esparsos que de certa forma prepararam o terreno para a vinda de Jandl – foram escalas ou visitas diplomáticas, e graças a elas o autor vem agora de vez. Myriam Ávila nos apresenta em Eu nunca fui ao Brasil uma fortíssima e muito coerente tradução de Ernst Jandl, capaz, como os poemas em alemão, de tensionar, fazer gargalhar, mobilizar e incomodar seu leitor, seu ouvinte, seu leitor-ouvinte. Poemas tão engraçados quanto “o totó do otto”, “fodinha” e “pequeno manifesto geriátrico”, ou então tão desafiadores quanto “cenário de neve”, “dado: uma peça”, “[palavra pedra]” e “sete casos curtos” ganham corpo firme em português e – mais difícil ainda – funcionam em português.
Como afirma Jandl no documentário entschuldigen sie wenn ich jandle de Harry Friedl e Hermann Peseckas: “os poemas – ou qualquer outra forma artística – não são feitos para simplesmente existirem, e sim para existirem para outras pessoas. Eles são definitivamente um meio de alcançar o outro, de tocar o outro de algum modo. Ou então não se escreveria poema nenhum – só para si mesmo ninguém faria essa trabalheira toda. É parte do poema, da pintura, de qualquer forma artística, que ele seja exposto, que ele seja apresentado”.
Assim, a boa nova é que a tradução de Ávila agora existe para o leitor brasileiro. Ernst Jandl finalmente veio ao Brasil – e veio com seu visto de permanência.

Matheus Guménin Barreto é poeta e tradutor mato-grossense. Doutorando em Língua e Literatura Alemã (subárea tradução) na USP, publicou os livros de poemas A máquina de carregar nadas (7Letras, 2017) e Poemas em torno do chão & Primeiros poemas (Carlini & Caniato, 2018). Edita a revista literária Ruído Manifesto.

(Publicado originalmente no site da Revista Cult)