pub-5238575981085443 CONTEXTO POLÍTICO.
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quinta-feira, 3 de dezembro de 2020

O "preso Maria da Penha" e a armadilha da visibilidade

O “preso Maria da Penha” e a armadilha da visibilidade
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Quem chamamos de “nós”? Quem são essas “outras” mulheres? (Foto: Reprodução)

 

 

(…) uma mulher negra diz que ela é uma mulher negra. Uma mulher branca diz que ela é uma mulher. Um homem branco diz que é uma pessoa
Grada Kilomba

Pesquisa de campo, quem fez sabe, é um processo que combina abandono e surpresa. A gente mira no que desaparece e acerta no inimaginável, por mais preparadas que estejamos e por mais vezes do que conseguimos antecipar. Existe um dado da minha pesquisa de campo que emergiu assim. Eu pesquiso gestão privada de unidades prisionais e parte significativa do campo é fazer entrevistas com agentes prisionais e gestores, mas também com familiares de presos.

Em 2018, realizei algumas entrevistas com o objetivo de entender a distribuição dos presos nos pavilhões e quais as mediações pelas quais passavam as sanções disciplinares a eles aplicadas (ou seja, quando era suspensas as visitas, o banho de sol, etc). Foi aí que descobri um novo habitante do seguro: o “preso Maria da Penha”.

Seguro é aquele lugar, dentro da prisão, para onde são enviados os presos que não podem conviver com os demais. Em geral, correm risco de morte se ficarem nos pavilhões os acusados ou condenados por estupro, os ex-policiais e os que integram grupos rivais aos que dominam os espaços comuns. E, de uns tempos para cá, o “preso Maria da Penha”.

Trata-se do sujeito enredado pela lei que lhe serve de alcunha, mas o ato praticado que leva à expulsão do convívio com os demais presos é a lesão corporal. Em palavras menos judicialiescas, é o homem que bate em mulher.

Durante meses, a motivação mais comum dada pelos gestores para a presença do “preso Maria da Penha” no seguro tamborilou na minha cabeça como algo que não convencia. Diziam eles que a privação de liberdade fazia com que os presos valorizassem mais suas famílias e, consequentemente, as mulheres.

Em momento algum neguei a pertinência dessa explicação, mas ela sempre me pareceu insuficiente. A inquietação permaneceu comigo por meses até que comecei a entrevistar mulheres, mães e esposas dos encarcerados.

As mulheres que entrevistei eram familiares de presos acusados ou condenados por tráfico e roubo. Elas não foram selecionadas a partir das acusações que recaem sobre seus parentes, apenas estas são as tipificações penais mais comuns na prisão que pesquiso.

Nos relatos dessas mulheres, emergiram cenas de violências praticadas contra elas por seus companheiros e filhos presos, inclusive depois de presos, e também durante as visitas que elas, religiosamente, faziam à unidade carcerária toda semana.

Não são relatos de violências distintas das que já conhecemos desde as nossas casas e nas ruas. O fato de serem presos não os torna, neste aspecto, significativamente diferentes dos homens em estado de liberdade. O que chamou minha atenção, portanto, é que esses presos por tráfico e roubo eram parte justamente daqueles que não aceitavam conviver com o “preso Maria da Penha”.

Existe mais de um par de explicações que venho tecendo para esses dados etnográficos, mas que não cabem neste espaço. Por ora, afirmo apenas que a legislação penal que se constituiu como paradigma da proteção das mulheres, a Lei Maria da Penha trouxe no conjunto dos debates sobre sua aplicação, pertinência e atualizações a justificativa sobre a visibilidade de um problema habitualmente fechado nos espaços privados, nas casas, nas famílias. Muitas vozes feministas em defesa da lei, até hoje, demarcam que, a partir dela, o problema da violência doméstica e familiar foi exposto e ganhou o debate público de maneira inédita.

Na minha experiência de campo com mulheres familiares de presos, no entanto, o efeito parece ser o exato oposto. À acusação nos termos da Lei Maria da Penha, feita pelo sistema de justiça criminal, soma-se o isolamento do “preso Maria da Penha” no seguro também como forma de tornar invisível a violência que recai sobre as mulheres que visitam seus filhos e companheiros, acusados ou condenados por outros crimes.

O “preso Maria da Penha” não só funciona como um bode expiatório para que os demais encarcerados se vejam e se construam como homens que respeitam e protegem suas mulheres, mas sobretudo como uma forma de ativar uma extensa malha de invisibilidade sobre as violências que companheiras, mães, filhas, irmãs, prostitutas, e tantas outras mulheres que frequentam a prisão, sofrem ali mesmo naquele espaço… protegido?

As conclusões, ainda parciais, a que cheguei, têm confirmado a máxima foucaultiana de que a “visibilidade é uma armadilha”. E mais ainda, que o direito penal só dá com uma mão o que pode tirar com a outra. Afinal, em nome da visibilidade e proteção de algumas de nós, quantas outras estarão submetidas a violências inomináveis? E quem chamamos de “nós”? Quem são essas “outras”?

Encerro, por hoje, pedindo a vocês que fechem os olhos. Imaginem ou tentem puxar da lembrança a imagem, que pode ter sido capturada da própria experiência de vocês ou dos jornais, de um grupo de mulheres, mais ou menos organizado em fila, para visitar uma prisão. Qualquer prisão brasileira.

Vocês conseguem ver essas mulheres, com seus jumbos, algumas com filhos pequenos, numa espera que atravessa a madrugada, já sabendo que vão ser colocadas sob suspeita, passar por revistas, enfrentar humilhações? Imaginem que, lá dentro, os corpos dessas mulheres permanecerão expostos à violência doméstica e familiar de formas indenunciáveis nos termos da Lei Maria da Penha. Imaginaram? Agora abram os olhos e me digam se, nessas imagens, havia alguma mulher branca.

Aline Passos é doutoranda em Sociologia pela UFS, mestre em Ciências Sociais pela PUC-SP, graduada em Direito também pela UFS. Professora de Direito Penal, Processo Penal e Criminologia

(Publicado originalmente no site da Revista Cult)


domingo, 29 de novembro de 2020

Charge! Jean Galvão via Folha de São Paulo


 

Mulheres negras na política: celebrar não é baixar a guarda

 

Mulheres negras na política: celebrar não é baixar a guarda
O Mulheres Negras Decidem promove a agenda liderada por mulheres negras na política institucional (Foto: Wendy Andrade)

 

Representatividade na política é um tema que vem ganhando espaço na agenda pública nos últimos anos. O curioso é que para os grupos não representados, como mulheres negras, quilombolas, indígenas, LGBQTI+, isso não é nenhuma novidade. Para refletir sobre isso e sobre o que significou o resultado das urnas no último 15 de novembro é preciso olhar para trás.

Existe o mito de que as mulheres negras não são eleitas porque não se candidatam. Mas, na realidade, dados do Tribunal Superior Eleitoral mostram que o universo de mulheres negras candidatas (16,8%) é muito similar ao de mulheres brancas (16,9%), levando em conta os cargos para as câmaras municipais em 2020.

Em 2016, grandes capitais não tinham nenhuma mulher negra eleita. Naquelas eleições, quando percebemos quem efetivamente se elegeu, tínhamos 8,4% de mulheres brancas e 5% de mulheres negras, 0,1% amarelas e nenhuma indígena (considerando dados de 2016 sobre vereadoras).

Mas em 2021 teremos algumas delas ocupando espaços de tomada de decisão e batalhando por nós: Karen Santos (PSOL), Laura Sito (PT), Bruna Rodrigues (PCdoB) e Daiana Santos (PCdoB) em Porto Alegre (RS); Dani Portela (PSOL) no Recife, Carol Dartora (PT) em Curitiba, Camila Valadão (PSOL) e Karla Coser (PT) em Vitória, Tainá de Paula (PT) no Rio de Janeiro, Edna Sampaio (PT) em Cuiabá, Vivi Reis  (PSOL) no Pará.

Sabemos que essas eleições foram extremamente desafiadoras por conta do contexto da Covid-19. Falta de recurso, desemprego, isolamento foram barreiras que se acumularam na corrida eleitoral.

Ainda assim, temos aprendizados e experiências graças à sociedade civil. Essas eleições nos revelaram a força da articulação das lideranças. O Movimento Mulheres Negras Decidem, em parceria com o Instituto Marielle Franco, realizou a Pesquisa “Mulheres Negras Decidem – Para Onde Vamos” com 245 mulheres negras em todas as regiões do país. Uma das lições que tiramos dela foi que “só há uma maneira de sairmos da crise sem cometer os mesmos erros do passado, que é construindo caminhos com uma perspectiva negra e coletiva. A resposta para onde vamos pós pandemia virá das mãos das mulheres negras.”

Quando falamos de mulheres negras na política precisamos esclarecer que não se trata de uma atuação específica, que se resume apenas a questões étnicos/raciais. Mulheres negras vivem vidas interseccionais, enfrentando racismo e sexismo, muitas vezes ao lado da pobreza, da transfobia etc. Estamos falando de saber o que significa lutar por sobrevivência – ainda mais com o crescimento da violência política contra mulheres. Tratam-se de pessoas como Carolina Maria de Jesus, que sonhava com um projeto de país. “Comigo o mundo vai modificar-se, não gosto do mundo como ele é.”

 

Mulheres negras são aquelas
que carregam sonhos, legado
e ancestralidade da construção
de um país. Não é algo que
começou agora e nem que
terminará amanhã: é
continuidade. De um país
que é de todas e todos nós.

 

 

Tratar da fome, da falta de acesso à saúde e do desemprego, por exemplo, é combater o racismo, já que a população parda/preta representa mais de 55% dos brasileiros – são problemas atingem muito esse grupo -, mas também é garantir políticas públicas universais.

Dito isso, a resposta que tivemos nas urnas para os desafios das eleições de 2020 só foi possível porque foi construída coletivamente. A incidência com órgãos públicos como o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) e o Supremo Tribunal Federal (STF) sobre distribuição proporcional de recursos e tempo de TV e rádio para candidaturas negras foi realizada por um grupo de atores e atrizes do movimento negro (Coalização Negra por DireitosEducafro, Instituto Marielle Franco, Movimento Mulheres Negras Decidem e mais 60 organizações) para garantir uma divisão mais igualitária dos recursos. Em 2018, as mulheres negras receberam apenas 6,7% do dinheiro dos partidos destinados à campanha.

⁣Além disso, houve crescimento e fortalecimento de estratégias de financiamento coletivo e de redes de candidaturas negras. Alcançamos números históricos de visibilidade dessas lideranças, e elegemos nossas candidatas em muitas cidades.

Lélia Gonzalez, que já concorreu a cargos na política institucional, resume bem o que colocamos em prática: “Ao reivindicar nossa diferença enquanto mulheres negras, enquanto amefricanas, sabemos bem o quanto trazemos em nós as marcas da exploração econômica e da subordinação racial e sexual. Por isso mesmo, trazemos conosco a marca da libertação de todos e todas. Portanto, nosso lema deve ser: organização já!”

Sem organização e articulação cada vez mais fortes não avançaremos, pois os desafios ainda são grandes e estruturais. Por exemplo, no estado da Bahia, que tem a maior concentração de pessoas negras no Brasil, a diferença entre o grupo demográfico de mulheres negras na população e sua representação na câmara de vereadores chega a 40%, segundo dados do TSE.

Portanto, celebrar nossas vereadoras negras, quilombolas e LGBTQI+ eleitas é honrar os avanços possíveis que conquistamos por meio do voto de diversos eleitores que acreditam na potência da agenda da equidade e representatividade na política. Não haverá uma construção de democracia justa sem a energia das mulheres negras.

Ao comemorar esse cenário, não estamos deixando de lado a tarefa desafiadora de combater o racismo, o sexismo e toda forma de opressão, especialmente na política. Inclusive, estamos acompanhando nossas representantes para garantir que estejam seguras. Celebrar não é baixar a guarda. O caminho é longo, mas já está sendo iluminado.

Diana Mendes é cofundadora e coordenadora de Monitoramento e Avaliação do Movimento Mulheres Negras Decidem, para fortalecimento de mulheres negras na política. Dedica-se a aprofundar estudos e leituras em indicadores sociais e avaliação

(Publicada originalmente no site da Revista Cult)

sexta-feira, 27 de novembro de 2020

Os vencedores do Jabuti

 



Na noite desta quinta (26), foram divulgados os vencedores do principal prêmio da literatura brasileira. Solo para vialejo, da pernambucana Cida Pedrosa (foto), foi considerado o Livro do Ano de 2020 e também foi o ganhador na categoria Poesia. Pedrosa nasceu em Bodocó, na região do Sertão do Araripe, em Pernambuco, e tem sete livros de poemas publicados, como Claranã (2015) e As filhas de Lilith (2009). Na categoria Romance Literário, o prêmio ficou para Torto arado, de Itamar Vieira Junior; o melhor livro infantil foi considerado Da minha janela, de Otávio Junior; Pequeno manual antirracista, de Djamila Ribeiro, ganhou na categoria de ciências humanas. 130 anos: em busca da República, organizado por Edmar Bacha, José Murilo de Carvalho, Joaquim Falcão, Marcelo Trindade, Simon Schwartzman e Pedro Malan, foi contemplado com o prêmio na categoria de ciências sociais. André Vallias recebeu o prêmio na categoria de tradução por Bertolt Brecht: poesias, ao verter poemas do dramaturgo do alemão para o portuguêS.


(Publicado originalmente no site do Quatro Cinco Um )

Patativa do Assaré - Episódio Completo

Flaubert e "Salammô": Como a ficção absorve a História



 Nas suas Lições de literatura, Vladimir Nabokov afirma que, sem Gustave Flaubert (1821–1880), a Irlanda não conheceria um James Joyce e a própria França ficaria desprovida de seu Marcel Proust. O autor de Madame Bovary (1857) parece ter chegado a uma nova região possível para o romance e, chegando lá, estabeleceu as regras e alcançou o máximo de suas possibilidades, tudo ao mesmo tempo — algo semelhante ao que fazia Félix Nadar com a fotografia na mesma época.

Logo depois de lançar Bovary, considerada sua obra-prima, Flaubert tomou um rumo que até hoje deixa os leitores intrigados: ele publica Salammbô, um complexo romance histórico sobre Cartago e as Guerras Púnicas, recheado de detalhes pitorescos e cenas exóticas. Uma amostra da excelente tradução de Ivone Benedetti que a Carambaia acaba de publicar: “Com nódoas vermelhas sobre o focinho negro, alguns cães vagavam por ali. O sol a pino esquentava as cabeças descobertas. Um cheiro nauseabundo emanava dos cadáveres mal sepultos; alguns estavam desenterrados até a cintura”.

O ano de lançamento de Salammbô, 1862, é um marco na história da literatura no século XIX: Victor Hugo publica Os miseráveis, Ivan Turguêniev publica Pais e filhos (famoso pela difusão do termo “niilismo”) e Dostoiévski lança Memórias da casa dos mortos, sobre sua experiência traumática na Sibéria. Salammbô exigiu anos de pesquisa maníaca da parte de Flaubert — e o verbo “exigir” é adequado, tendo em vista que para o autor a literatura era, de fato, uma presença tirânica em sua vida, em sua mente. Flaubert passa a estudar minuciosamente arqueologia, tanto as obras clássicas sobre o tema quanto os resultados mais recentes da disciplina então em voga (a Vitória de Samotrácia, por exemplo, célebre escultura hoje no Louvre, foi descoberta em 1863, em Edirne, na Turquia).

De forma deliberada, Flaubert escolhe a primeira Guerra Púnica como tema, bem menos conhecida do que a segunda (célebre por conta de Aníbal e seus elefantes). Dentro desse tema pouco utilizado, Flaubert aproxima ainda mais o foco e escreve sobre uma obscura revolta de mercenários, articulando a narração ao redor de três personagens: a princesa Salammbô, filha do general Amílcar, e Mâthos, o mercenário que se apaixona por ela. Com esse gesto, Flaubert desvia a atenção do leitor da tarefa de se preocupar com a precisão histórica do relato: se você não conhece a Cartago de Amílcar, a Cartago de Flaubert é tudo que você precisa conhecer.

A princesa, contudo, não é apenas uma figura de mediação entre os dois lados da batalha, representados pelo general Amílcar (o poder estabelecido) e o mercenário Mâthos (a “nova política”). Com Salammbô, a mulher, Flaubert joga com os limites do visível e do invisível, do sacro e do profano; cada aparição sua é tão enigmática quanto rica em detalhes, levando a narração adiante e também contribuindo para a sensação de um tempo suspenso, mítico, religioso: “Salammbô tirou os brincos, o colar, os braceletes e a longa samarra branca; soltou a faixa que lhe prendia os cabelos e durante alguns minutos sacudiu-os brandamente sobre os ombros, para se refrescar, espalhando-os”.

É preciso deixar claro que Salammbô não é um romance histórico “tradicional”, nos moldes de Walter Scott, o autor de Ivanhoe (1820). Flaubert desprezava intensamente as fórmulas prontas, as ideias feitas, os clichês e as facilidades em geral — um anacronismo como “literatura de entretenimento” poderia definir vasto campo de elementos que ele recusava. Como romance, Salammbô não quer ser informativo — quer, pelo contrário, dar vazão a uma experiência com a linguagem e sua capacidade de criar o “tempo histórico”, de dar forma à abstração do “passado” e da “tradição” (três superstições modernas que só podem existir por escrito). Em um célebre ensaio sobre Flaubert, Michel Foucault mostra como o autor de Salammbô cultivou uma nova vertente do fantástico, o “fantástico de biblioteca”. O “quimérico”, escreve Foucault, “nasce da superfície negra e branca dos signos impressos”, o “imaginário se aloja entre o livro e a lâmpada” e, para sonhar, “não é preciso fechar os olhos, é preciso ler”. “O imaginário não se constitui contra o real para negá-lo ou compensá-lo”, conclui, “ele nasce e se forma no entremeio dos textos”. Isso quer dizer que Flaubert não é refém dos textos do passado e de sua extensa pesquisa bibliográfica para a composição de Salammbô — é a documentação que serve ao romance, e não o contrário.

Disso tudo emerge a noção fundamental de que a liberdade de leitura deve ser equivalente à liberdade de escrita. Existe uma dissonância operando em Salammbô que reverbera até hoje: Flaubert realizou, sim, uma pesquisa rigorosa para seu romance e, ao mesmo tempo, incluiu uma série de elementos “fantasiosos”, “deslocados” e “inventados”. Para Flaubert, a literatura não é um espelho da realidade ou do passado; ela é uma performance da linguagem que absorve elementos míticos, religiosos e históricos — e Salammbô mostra isso como poucos romances até hoje fizeram.

(Publicado originalmente no site do Suplemento Pernambuco)


quinta-feira, 26 de novembro de 2020

Uma história sobre a revolução de um título

 


Qualquer coisa que ande sobre duas pernas é inimiga. Seja a cuidadora de sua enfermeira. Vá a uma prisão e recrie a cena central de 
A revolução dos bichos.

Paul B. Preciado, em Um apartamento em urano (Zahar).

 

O Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais (IPES), criado em 1961 por um grupo de empresários do Rio de Janeiro e São Paulo e por oficiais que orbitavam em torno da Escola Superior de Guerra (ESG), foi (não só) disseminador de propaganda anticomunista e grupo de extrema-direita no Brasil, mas um núcleo golpista com agenda política própria. Ao lado dos militares, protagonizou o processo de ocupação da estrutura do Estado após (aquele!) março de 1964, funcionando regularmente até 1973.

A historiadora Heloisa Starling (UFMG), coautora de Brasil: uma biografia (Companhia das Letras)conta que o IPES sempre foi “uma organização de ingresso controlado e vida dupla”. Publicamente, se apresentava enquanto instituição de orientação política conservadora que se voltava para a realização de estudos e debates sobre o contexto sócio-histórico brasileiro. Reunia empresários e diretores de empresas multinacionais que tinham influência e atuação no país, dirigentes das principais associações de classe empresariais, militares, jornalistas e intelectuais. “Todos eram ostensivamente envolvidos em atividades de produção intelectual e de divulgação que contemplavam desde a edição de livros e filmes até a realização de palestras e pesquisas sobre a realidade brasileira”, pontua.

“O IPES agiu contra Goulart com uma política de duas vertentes. A primeira consistiu na preparação e execução de um bem orquestrado esforço de desestabilização do governo, que incluiu custear uma vigorosa campanha de propaganda anticomunista, bancar diversos tipos de manifestações públicas antigovernistas e escorar inclusive financeiramente grupos e associações de oposição ou de extrema direita. A segunda traçou estratégias de planejamento e de diretrizes para subsidiar um novo projeto de governo e de desenvolvimento para o país, aberto ao fluxo do capital internacional e vocação autoritária. Era um núcleo de conspiração golpista com agenda política própria; seus membros estavam estrategicamente informados e muito bem posicionados entre os conspiradores que derrubaram Goulart e durante o processo de ocupação da estrutura do Estado após março de 1964”, conclui Starling.

O instituto realizava edições, traduções, publicações e distribuía livros, revistas e folhetos. Comprava edições inteiras de livros publicados por outras editoras e tornava-as comercialmente viáveis, patrocinava feiras de livros com “literatura democrática” e tinha objetivo de atingir públicos variados. Um dos livros foi o Animal farm, conhecido pelo público brasileiro por A revolução dos bichos, de George Orwell (1903-1950). O livro é agora relançado pela Companhia das Letras com tradução de Paulo Henriques Britto e com o título de A fazenda dos animais.

Em conversa com Emilio Fraia, editor da Companhia das Letras, ele explica que essa nova edição pretende lançar luz sobre como A fazenda dos animais se tornou A revolução dos bichos quando lançado pela primeira vez no Brasil, em pleno 1964.

“Nossa ideia é contar esta história, abrindo um capítulo novo na trajetória brasileira deste livro tão importante — e pensamos que essa atualização/contextualização ganharia força se ao livro fosse devolvido o seu título original, A fazenda dos animais. A operação, a princípio, pode gerar alguma resistência (o título está há mais de cinquenta anos entre nós)”. Nas palavras de Fraia, o interesse é o de pensar o livro a partir de uma perspectiva diferente, a começar pelo título. “Como editor, espero que isso possa oxigenar a recepção da obra, sugerir novos caminhos críticos e de leitura”.

*

A história do livro é das mais conhecidas: os animais da Fazenda do Solar estão cansados da exploração a que são submetidos pelos humanos, se revoltam e tomam posse do lugar no intento de instituir um sistema cooperativo e igualitário. Não demora para que alguns bichos passem a usufruir de privilégios, fazendo com que o sistema de opressão que antes era elaborado pelos humanos passasse a existir de forma ainda mais forte e contraditória. Escrito durante a Segunda Guerra, A fazenda dos animais é uma grande sátira sobre governos autoritários, dispositivos de poder e suas formas sistemáticas e burocráticas de operação, ainda que tenha sido por tanto tempo considerado crítica fajuta ao regime soviético. 

Orwell sempre foi crítico ferrenho de qualquer tipo de totalitarismo. Teve várias decepções com o regime soviético e mesmo tendo continuado a ser socialista — acreditava, na verdade, que o mito soviético “atrapalhava” o socialismo ocidental –, acabou por ver seu livro verter-se em propaganda contra o socialismo.

Pernambuco conversou com Marcelo Pen, professor e doutor em teoria literária e literatura comparada pela USP e autor do posfácio desta nova edição, que explicou um pouco sobre o episódio um tanto orwelliano, diga-se, de como A fazenda dos animais tornou-se A revolução dos bichos e foi instrumentalizado como arma ideológica no Brasil.

Pen conta sobre quando notou o longo intervalo entre o lançamento do original, em 1945, e o lançamento da edição brasileira em pleno 1964. “Me pus a ler sobre a história da recepção dessa obra, no exterior e aqui: o papel da CIA e do serviço secreto inglês, a atuação da viúva do Orwell, o filme de animação e a atuação do IPES/Ibad, aqui no Brasil etc etc”, ele comenta. Até mesmo a CIA ajudou a divulgar o livro e a espalhar a ideia de que toda revolução descamba em um regime de horrores. Àquela altura, Marcelo havia notado que nada dessa história de manipulações era novidade; os fatos haviam sido contados e documentados fartamente, mas ainda se encontravam muito dispersos.

O livro foi traduzido pelo capitão Heitor de Aquino Ferreira, auxiliar mais próximo do general Golbery do Couto e Silva e seu discípulo de vida – foi também secretário de Golbery de 1964 a 1967 e de Ernesto Geisel de 1971 a 1979. Os arquivos do IPES, que possuíam dados de cerca de 400 mil brasileiros, serviram de base para Golbery criar o Serviço Nacional de Informações (SNI), em junho de 1964. Golbery coordenava a elaboração de diretrizes, projetos e difusão de doutrina do IPES. E Heitor considerava A fazenda dos animais um livro eficiente como propaganda anticomunista; o traduziu e enviou para a Editora Globo, de Porto Alegre. O IPES se encarregou de comprar parte da edição. Mais tarde, em 1966, o instituto bancou também a publicação de 1984.

É interessante pensar que os fatos sobre esse contexto não foram escondidos: foram esquecidos, deixados de lado. O público passou a receber A revolução dos bichos como “a” grande obra de Orwell e já não se pensava mais no título ou mesmo no fato de que se trata de uma versão da obra, historicamente e politicamente elaborada, por sinal, no contexto da ascensão do regime ditatorial brasileiro.

 

Nova edição

A fazenda dos animais faz parte de um projeto de reedição pela Companhia das Letras junto com outra obra de Orwell, 1984, que ganhou nova e belíssima edição pela editora. A ideia, segundo Fraia, é dar ao leitor opções variadas para estas obras emblemáticas. “Até o fim deste ano, aliás, teremos: 1984 nas edições especiais, Penguin, trade [tipo de brochura] e graphic novel (adaptada por Fido Nesti); A revolução dos bichos nas edições trade graphic novel; e A fazenda dos Animais nas versões especial e Penguin”, diz.

“Acho que os leitores lerão a nova e ótima tradução do Paulo Henriques Britto e seguirão lendo A revolução dos bichos, na tradução do Heitor Aquino Ferreira. Novas edições com o título A revolução… fariam sentido hoje em dia? Não sei. Mas a tradução do Heitor, além de muito boa, é parte da história do livro, e a partir dela podemos pensar em aspectos importantes relacionados à política e literatura, tradução e política”, conclui Fraia. 

A obra de Orwell ainda será retomada por outras editoras nos próximos meses. A L&PM vai publicar A fazenda dos animais em 2021, também seguindo a ideia de manter o título original de Orwell, com tradução assinada por Denise Bottmann. A editora Autêntica também vai lançar o livro, com tradução de Fabio Bonillo, e a Antofágica encomendou uma versão da fábula em português a Rogerio Galindo, que será publicada em 2021, ainda sem uma decisão sobre que título vai estampar a capa do livro.

*

A partir de seus escritos, Orwell sempre pareceu almejar que as histórias viessem à tona, que os fatos não fossem ocultos ou escamoteados. A importância desta nova edição reside não só na possibilidade de elaboração de novas chaves de leituras críticas para nós – afinal, um livro que critica a opressão burocrática, em contextos sócio-históricos atravessados por autoritarismos e totalitarismos, faz com que Orwell seja leitura importante nesses tempos em que vivemos no Brasil –, também esboça lição valiosa: se, como aponta este aforismo foucaultiano, “a política é a guerra continuada por outros meios” – e se esses meios se elaboram pelo tensionamento conflitivo do discurso político –, resgatar a história desse título e de seu apagamento é investir contra a instrumentalização de narrativas – substância essencial do projeto literário do autor – em tempos em que a verdade, conceito-chave ao pensamento e às práticas democráticas, vem tornando-se algo cada vez mais fragilizado.

Ao realizar uma arqueologia da criação orwelliana e dos movimentos políticos que sua obra traça, a nova edição nos aponta os perigos daquilo que passa despercebido e a impossibilidade de se “esquecer” por decreto.

(Publicado originalmente no Suplemento Pernambuco)

 

Itamar Assumpção tem vida e obra celebrada em museu virtual

 Redação

Itamar Assumpção tem vida e obra celebradas em museu virtual
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Itamar Assumpção em 1987; museu virtual em homenagem ao artista abre hoje (Foto: Manoel Soares/Agência O Globo)

 

[Música] Museu Virtual Itamar Assumpção

Nesta sexta-feira (20) acontece a abertura do Museu Virtual Itamar Assumpção (MU.ITA) em homenagem ao cantor, compositor, escritor, instrumentista, ator e produtor paulista. Com direção geral de Anelis Assumpção, filha do artista, o museu conta com um acervo de mais de dois mil itens do músico, exibidos em uma mostra permanente. Além disso, o projeto também terá exposições de curta duração de artistas contemporâneos, loja exclusiva e um espaço dedicado a trabalhos relacionados a religiões de matriz africana, a Sala Serena. A curadoria é assinada por Anelis, Frederico Teixeira e Ana Maria Gonçalves.

O museu traz uma perspectiva preta e afrofuturista para a história de Assumpção, principal nome da vanguarda paulista, e situa o seu legado em meio a trajetória de outros artistas e pensadores negros como Elza Soares, Jimi Hendrix e Abdias Nascimento. Na plataforma, ainda é possível ouvir todos os discos do músico, recentemente disponibilizados nas plataformas de streaming. O museu será também o primeiro no Brasil a disponibilizar traduções para o iorubá. Para celebrar a abertura, Anelis faz uma live hoje às 21h30 cantando músicas do pai. A transmissão acontece pelo site do museu.


[Cinema] Cine África

Até a próxima quinta (26) dá para assistir aos curtas-metragens da mostra Quartiers Lointains – Afrofuturismo, parte da programação do Cine África, exibido pelo Cine Sesc. Com curadoria de Claire Diao (Burkina Faso/França), a mostra exibe filmes que trazem a diversidade de narrativas que surgem da África em torno do universo do afrofuturismo. E daí se as cabras morrem? (Sofia Alaoui, França, Marrocos), Este foi para o mercado (Jim Chuchu, Quênia), Ethereality (Kantarama Gahigiri, Suíça, Ruanda), Hello, rain (C. J. Obasi, Nigéria) e Zumbis (Baloj, República Democrática do Congo, Bélgica) são os títulos em cartaz. Veja a programação completa e assista aos curtas pelo site do Sesc Digital.

[Dança] Dançadoras de Histórias

Nesta sexta (20) e na próxima (27), às 19h, a Ouvindo Passos Companhia de Dança apresenta o espetáculo Dançadoras de Histórias em parceria com o Centro de Referência da Dança da Cidade de São Paulo. As apresentações buscam valorizar as ancestralidades e oralidades negras por meio do corpo como peça central das conexões e atribuições de sentido entre as pessoas. As coreografias são criadas a partir de atividades de improvisação, inspiradas nas narrativas da arte educadora Beth Castro. Grátis, no Facebook da companhia.

[Bate-papo] Diálogos de Bastidores

Nesta sexta (20), às 19h30, os guitarristas Lupa Santiago e Ricardo Silveira participam de uma conversa sobre música, guitarra e produção musical no Brasil e no mundo. Promovido pelo Sesc 24 de Maio, o bate-papo faz parte da série Diálogos de Bastidores, que une músicos de gerações diferentes, mas que tocam o mesmo instrumento, para trocar ideias sobre o ramo. Grátis, no Youtube.

[Bate-papo] Programação Mês da Consciência Negra

A partir desta sexta (20) até o dia 30/11, o Sesc Rio apresenta uma série de lives em consonância com o Dia da Consciência Negra. Há conversas sobre reconstrução da identidade negra, cuidado com cabelos crespos, mercado editorial para autores negros, diálogos sobre o continente africano, entre outros temas. Veja a programação completa no site do SESC Rio.

[Música]  Encontros Tropicais

Neste sábado (21), às 20h, a cantora Iza e o maestro Letieres Leite, com sua Orkestra Rumpilezz, recebem Carlinhos Brown, Margareth Menezes, Larissa Luz, BNegão, Mateus Aleluia, ChicoCorrea, João Milet Meirelles e Lazzo Matumbi para celebrar a música preta brasileira. O espetáculo acontece no Museu do Ritmo, em Salvador, e será transmitido pelo Youtube da Devassa e pelo canal Multishow.

[Música] Orquestra Ouro Preto

Também neste sábado (21), às 20h30, a Orquestra Ouro Preto homenageia Fernando Brandt e Milton Nascimento com um repertório cheio de clássicos de Brandt interpretados por Milton. Estão no repertório canções como “Travessia”, “Milagre dos Peixes”, “Encontros e Despedidas”, “Canção da América” e “Maria Maria”. Com regência do Maestro Rodrigo Toffolo e participação da cantora Mariana Brandt, a apresentação acontece na Igreja Nossa Senhora do Carmo (sem plateia) e transmitido pelo Youtube da orquestra.

[Webinário] Encontro Paulista de Museus

A partir de segunda (23) até a próxima sexta (27) acontece a 11º edição do encontro, que neste ano trabalha o tema “Museus, Sociedade e Crise: do luto à luta” . Na programação diária de painéis e debates, discussões sobre o papel do público no futuro dos museus, a sustentabilidade e acessibilidade das instituições, entre outros temas. Na quarta (25), o público é convidado a responder à pergunta “O que você espera encontrar nos museus hoje?”. Grátis, no Youtube do SISEM-SP.

[Arte visuais] Linhas da Vida

A partir desta segunda (23) a mostra reúne trabalhos de diferentes períodos da artista japonesa Chiharu Shiota, cujas obras tratam de temas relacionados à memória, vida e a morte por meio de objetos do cotidiano e fios de lã. Grátis, no CCBB Brasília no Google Arts and Culture. Para os brasilienses, a mostra acontece presencialmente no CCBB até 6/12. É preciso reservar ingressos pelo Eventim.

(Publicado originalmente no site da Revista Cult)


Charge! Benett via Folha de São Paulo