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sábado, 30 de outubro de 2021

A psicanálise dos escritores, Pedro Nava e a repulsa à vacina

 


A psicanálise dos escritores, Pedro Nava e a repulsa à vacina
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A psicanálise formulada por um escritor é sempre mais aberta, e curiosa, do que a enunciada por um psicanalista. De algum modo o escritor contribui com a psicanálise insistindo no seu polo sensível, de espanto ou absurdo, o primeiro momento da liberdade – se levado ao estatuto do pensamento e da discussão – frente o que há de difícil na experiência humana. Se o psicanalista tem sempre em mente o quadro da história da disciplina, sua teoria de origem muito moderna e centro-europeia, ou linguística estrutural dos anos 1950, igualmente europeia, e por isso imagina ter tudo a respeito do inconsciente, o escritor, com suas prerrogativas significativas de criação, tem a vida da cultura como horizonte, a própria dúvida sobre a vida mais ampla, maior ou menor, de onde recebe seus influxos e para onde orienta o seu texto. Por isso, ele dá tudo o que tem. A cada invenção precisa construir e reconstruir aquilo que importa. Deste modo, enquanto um é compromisso teórico, o outro é processamento vital.

O psicanalista é, então, talvez, uma modalidade de cientista, ou intelectual, de perspectiva técnica, possuidor de um saber humano forte, mas também algo mesquinho. Por isso, de tempos em tempos, há crise entre suas teorias e o andamento do mundo. Enquanto o escritor, intelectual, é, de fato, um inventor: um pensador por princípio sem mapa a priori, mais aproximado da chave fundamental da produção de toda psicanálise real, por assim dizer, a associação livre. Um especulador, como Freud disse ser ele próprio, com todas as letras, diante de sua ideia de pulsão de morte – uma ideia tão rica na sua construção mediada no texto freudiano quanto arriscada e perigosa por sua carga potencial de imediatez. Se o psicanalista representa a reflexão bem determinada na esfera interior da disciplina, sempre marcada por suas formações epistemológicas e sua história teórica, o escritor representa a liberdade mediada, que tudo antecedeu na história da psicanálise. O seu amor espontâneo pela vida humana e o saber direto da coisa, que gira por vezes ao redor da ideia do inconsciente freudiano, é que o faz vislumbrar algo que tem correspondência com a psicanálise. Circundando o inconsciente de modo novo, atravessando-o, tocando-o e evitando-o, ao modo dos psicanalistas, o escritor está nele e está fora dele, escreve por ele e, de muitas formas, o inventa de novo, além dele. 

Não acho de pouca importância para a psicanálise que Borges, por exemplo, exercitando aquela arte, percebesse o modo freudiano de entender o sonho como relativamente pobre e constrito. Que aquele homem dedicado às visões da biblioteca universal, do espelho, do labirinto, da trama da memória e de formas concretas do absoluto e de outros mundos existentes, como coisa mental e literária – que nos tenha lembrado em uma noite na vida o tempo dos deuses budistas, o calpa, do qual um único dia, que transcende a nossa imaginação, equivale ao tempo que leva para desparecer uma parede contínua de ferro de dezesseis milhas de altura, por ser tocada por um anjo com uma fina seda de Benares, uma vez a cada seiscentos anos… (Sete noites) – que um homem constituído nestas esferas da trama da linguagem e da imaginação como precisão, memória – “esta espécie de quarta dimensão” segundo ele – repertório literário e espanto, e que também se dedicasse, com sua biblioteca encarnada, ao sentido do pesadelo, nos indicasse a significativa redução daquilo que pensamos sobre nossos próprios objetos, é de fato uma grande riqueza, que deveria nos despertar. Afinal, David Kopenawa, noutra direção, mas na mesma, e noutro mundo radicalmente outro do nosso e de Borges, também concorda com ele, quando observa a pobreza estrutural de nosso sonhar cultural: “vocês, que só sonham com vocês mesmos…”. Também não é irrelevante que Thomas Mann, vindo do mundo exigente sobre todos os aspectos de Lessing, Novalis, Schlegel, Schiller, Goethe e até Brecht e Adorno, visse em Freud o último romântico, sem que ele o fosse. Ou que até, em rigorosos 100 anos antes de Freud pensar qualquer coisa, o sobrinho de Rameau, e Denis Diderot, que o registrou num diálogo inaugural do espírito da razão cínica na vida do capitalismo já avançado, descrevesse com muita precisão um sintoma neurótico obsessivo como um problema da vida sexual de uma falsa puritana parisiense… e que, exatamente na mesma passagem, dissesse que a criança, entregue livre aos próprios desejos, terminaria por matar seu pai e tomar sexualmente a sua mãe…

Além disso, as visões da infância no limite da rememoração, inscritas em realidade social, antropológica e histórica muito precisas, evocadas com cuidado em obras de arte literárias, como as de Graciliano Ramos, de Proust ou de Maksim Górki, e até mesmo de Agostinho de Hipona…, são tão decisivas para a compreensão da vida emocional de uma criança quanto muito raramente podemos chegar ao nível de integridade entre a vida infantil com os adultos e a cultura, correspondência entre pensamento e afeto, nos relatos mais difíceis, geralmente travados, dos psicanalistas sobre as próprias crianças que cuidam. Não há muita dúvida que complexos saberes psicanalíticos sempre circularam livremente pelo universo dos escritores, e Freud se admirava muito deste processo, em que ele descobria em outra chave, científica, por assim dizer, o que os poetas já demonstraram saber em seus trabalhos de outra clínica. Um dia ele chegou até a dizer que o poeta épico foi o primeiro herói, exatamente por ter sido o primeiro, aos seus olhos, a transformar estruturas psíquicas inconscientes em obras de arte que falavam delas.

Por tudo isso, em seu trabalho dedicado ao estado de clínicaCrítica e clínica, Deleuze vai derivar muitas formações de éticas subjetivas, sintomáticas, projetos de existência e fantasias de self, inconscientes ou não, diretamente da literatura moderna. Clínica e crítica, naquele livro imaginário dos devires, são também claramente um problema de cultura e de literatura: “É um grande momento quando Ahab [Moby Dick, de Melville], invocando os fogos de Santelmo, descobre que o próprio pai é um filho perdido, um órfão, enquanto o filho é filho do nada, ou de todo mundo, um irmão. Como dirá Joyce, a paternidade não existe, é um vazio, um nada, ou antes uma zona de incerteza ocupada pelos irmãos, pelo irmão e a irmã. É preciso que caia a máscara do pai caridoso para que a natureza primeira se pacifique e se reconheçam Ahab e Bartebly, Claggart e Billy Budd, liberando na violência de uns e no estupor de outros o fruto do qual estavam prenhes, a relação fraternal pura e simples. Melville sempre desenvolverá a oposição radical da fraternidade com a ‘caridade’ cristã ou a ‘filantropia’ paterna. Liberar o homem da função de pai, fazer nascer o novo homem ou o homem sem particularidades, reunir o original e a humanidade, constituindo uma sociedade dos irmãos como nova universalidade”. Enfim, ato de crítica, de clínica, ou de revolução?

Todas estas visões livres da psicanálise, verdadeiras, lembram os analistas que o seu saber pertence de fato ao humano em estado de angústia, que não é ele, que ele pertence à inteligência e à boa linguagem, à literatura e à vida comum, incomum, à experiência e ao cinema. Que seu saber, embora ganhe no mais longínquo da teoria foros de objeto exotérico, vem do mundo. O chiste é ao mesmo tempo solução estética, ato de pensamento, lampejo de gozo concreto, posicionamento político e… formação freudiana do inconsciente, o mais distante dos seus significados. As visões livres do “inconsciente” dos escritores lembram que de modo algum ele é propriedade do território metapsicológico da teoria dos psicanalistas, o seu tesouro. Mesmo quando o seu tesouro é de fato uma janela para ele através dos sonhos, essa narrativa e poesia, cinema e vida primordiais. Por isso Freud constantemente se reencontrava a si próprio em escritores ocidentais, de Sófocles a Goethe, de Schiller a Schnitzler, passando por Shakespeare, Dostoiévski e Zola. Isso sem falar em quando os escritores pensam sistemas outros e verdadeiros de subjetivação, impensáveis para a psicanálise até então, como Deleuze viu em Melville, por exemplo. Ou, no nosso caso histórico particular, a real descoberta e invenção pela escritura da volubilidade do senhor de escravo liberal brasileiro, não apenas do século 19, mas também do mercador financeiro, cosmopolita e miliciano bolsonarista de hoje, por exemplo. Formação subjetiva, aquela volubilidade das múltiplas regras do jogo operadas impunemente, fora da ideia da lei como sujeito, e por isso para além do inconsciente recalcado freudiano, que ganhou forma no romance hipermoderno, fora do lugar no lugar, de Machado de Assis, Memórias póstumas de Brás Cubas. E consciência de crítica e clínica, como a de Deleuze, em Roberto Schwarz.

Assim, escritores antecipam em dezenas de anos problemas que os psicanalistas, tão dedicados em suas vidas a compreender os termos de Freud e de Lacan, só levarão em conta um tanto mais tarde, como o ressentimento enunciado por Dostoiévski quando Freud dava seus primeiros passos teóricos; ou a normopatia, de Bartebly, de Melville; ou a normopatia brasileira, do Amanuense Belmiromelancólico mas resignado, de Ciro dos Anjos; ou a volubilidade sádica, ilustrada e política de um senhor de escravos brasileiro, do século 19 ou do 21. Sem dúvida, entre nós, ao menos Machado de Assis, Lima Barreto, Guimarães Rosa, os poetas Manuel Bandeira e Carlos Drummond de Andrade, Clarice Lispector, Pedro Nava e Raduan Nassar, têm muito a dizer à psicanálise. Talvez ainda mais do que uma certa psicanálise, com seu território tão estruturado das próprias ilusões, alheias ao movimento do tempo e da história, tem a dizer sobre eles.

Pedro Nava é um dos maiores escritores brasileiros do Século 20. Não há dúvida a esse respeito. Suas memórias, que surgem no momento em que a grande literatura moderna brasileira está desaparecendo, mantém-na suspensa em um tempo vivo a ser permanentemente reencontrado, são movidas a uma certa função poética, da inteligência da construção quase arquitetada dos períodos que, no entanto, fluem, ao mesmo tempo que são exemplarmente concretas. Pensamento e acontecimento, linguagem e história, em balanço de um modo próprio de inteligência moderna, encontraram em Pedro Nava um equilíbrio acentuado.

Diferentemente de Proust, seu processo de rememoração não é fugidio, bem como não é estetizante. Suas memórias não se derramam, não mergulham infinitamente no detalhe, nem se misturam com a música ou com o sonho. Ele não tem uma grande belle époque burguesa parisiense, elegante e ostentosa, rica e socialmente envenenada, às vésperas do fim do mundo da guerra mundial de 1914, como medida para a revivescência do tempo pessoal e o fim de um grande ciclo histórico onde viveu. Ao contrário do modelo, evidentemente reconhecido, o moderno memorialista mineiro do século 20 é sempre nítido e sua reflexividade materialista, desencantada ou inteligente, se confunde com a própria memória. Sua graça vem das coisas mesmas, pode-se dizer. Ele rememora a riqueza narrativa de uma longa vida, muitas vezes com o brilho preciso do amor do historiador pelo documento. Como quando reconstrói as possibilidades de vida do tataravô italiano que se fixou no Maranhão, Francisco Nava, do qual para os contemporâneos só restou o apelido, mas “o nomeado, porque o é, existe; servo do Senhor, pode se pedir por ele na missa dos mortos” (Baú de ossos), e, sendo assim, evocando instituição genealógica que visitou em Roma em 1955, chega a conceber no mais distante da origem do antepassado obscuro um certo Giuseppe, figlio de Mattiolo, que no quattroccento teria prestado juramento ao Duque de Milão, Giovanni Maria Visconti… Afeito ao acontecido e ao traço de verdade de um caráter ou de uma situação, suas recordações se desenham como em bico de pena nítido sobre o papel, sem impressões, ao contrário da aquarela meio apastelada das multiplicidades sensoriais sem fim do chic mundo literário proustiano. Pedro Nava escrevia sempre do que foi, em um acento nítido no referente na história, do objeto, mundo e gente respeitados porque acontecidos.

Assim, falou de seu modo de rememorar, em uma das muitas vezes que comenta o sentido da ação da memória na vida e na cultura de quem lembra, de fato na primeira vez que se volta sobre sua própria prática e ética:

Só o velho sabe daquele vizinho de sua avó, há muita coisa mineral dos cemitérios, sem lembrança nos outros e sem rastro na terra – mas que ele pode suscitar de repente (como o mágico que abre a caixa dos mistérios) na cor dos bigodes, no corte do paletó, na morrinha do fumo, no ranger das botinas de elástico, no andar, no pigarro, no jeito – para o menino que está escutando, e que vai prolongar por mais cinquenta, mais setenta anos a lembrança que lhe chega, não como coisa morta, mas viva qual flor toda olorosa e colorida, límpida e nítida e flagrante como um fato do presente. E com o evocado vem o mistério das associações, trazendo a rua, as casas antigas, outros jardins, outros homens, fatos pretéritos, toda a camada da vida de que o vizinho era parte inseparável e que também renasce quando ele revive – porque um e outro são condições recíprocas.

Assim, na construção da língua, para Nava a memória era transmissão viva do passado no presente, “flor límpida, nítida e flagrante”, que volta com poucos restos, plasmada na própria narrativa. Em um elo entre os vivos e as gerações, os vivos e os mortos prosseguem o mútuo reconhecimento em um desejo de linguagem clara nestes termos, da experiência de vida, do outro e de si mesmo, e do mundo que renasce com ela. São as “condições recíprocas de existência”, na dimensão da memória, e sua ética mágica evidente para o presente, a quarta dimensão de Borges. Coisa nítida, mas surpreendente como o objeto tirado da caixa do mágico, que liga a vida das diferentes gerações em um fio contínuo permanente, através do narrador, que, vive agora, vivo no passado. E o “menino que está escutando, que vai prolongar por mais cinquenta ou setenta anos a lembrança que lhe chega”, matéria humana vivida, que sobrevive ao tempo como as obras de civilização, somos nós, o leitor.

Também, à diferença do francês, o fundo pressuposto de sua posição como narrador de si mesmo era um verdadeiro país em construção. Daí a oferta generosa da memória como coisa do presentematéria para também fazer o presente. Seu grande continente histórico era o Brasil em acontecimento, em que o compromisso com a inteligência e a nova liberdade pessoal, laica, moderna e científica, era o ponto de fuga de tudo. Ainda mais em contato com a inquietação modernista da Belo Horizonte dos anos 1920, sem traço de positivismo reacionário que embalara a modernidade nacional até então. Um Brasil realizado na própria realização dos homens modernos em devir social, de um mundo mais amplo, que se tecia em cada ato e em cada decisão de cada personagem produtivo das memórias, cidadão do sonho daquele mundo, em construção. Já moderno, o Brasil de Pedro Nava foi um grande processo de apresentação de todas as suas possibilidades, que seriam condensadas por ele em seu amor e sua luta particular pela nova medicina que aqui se fazia.

Médico culto, historiador da medicina no tempo de sua primeira modernidade entre nós, em trabalhos que endereçou à universidade nos anos de 1940 e nas páginas da própria vida lembrada clara nas memórias, formado em tradição intelectual exigente da linguagem, talvez extinta hoje, seus percursos existenciais pelas cidades em que viveu desde menino, Rio de Janeiro, Juiz de Fora, Belo Horizonte, a família, os amigos, os mestres, o encontro com os intelectuais modernistas, as experiências mundanas agudas, políticas, científicas e profissionais, na cultura e nos setores dos hospitais, ganham nele brilho tão nítido e constante, como ele concebia o rememorar, de uma literatura de uma vida em edificação crítica, que, na verdade, se confunde com o espirito do fundo histórico do país em estruturação, tanto quanto se pode imaginar a relevância de um percurso modernista e moderno, da vida prototípica de um mineiro que vai dos anos de 1910 a 1950 no Brasil, em contato autônomo com os verdadeiros criadores do país que estiveram por lá. 

Em 1972, Baú de ossos começava a dar a ver a história do século brasileiro no corpo e na vida de um homem de classe média urbana, apenas um homem moderno e culto, rico das narrativas concretas da vida em modernização, desde a estrutura “mítico social” da Juiz de Fora da infância; dos territórios revolucionários e reacionários da cidade e seus habitantes desenhados pela história; dos folhetins de sangue e sua política, contados como estórias por qualquer membro da família, na sala da casa pequeno burguesa, aos retratos vivos, de poucas linhas, dos amigos, e de muitas camadas dos parentes, como a inesquecível avó de índole forte, ainda escravocrata, Inhá Luiza – “de gênio detestável… mãe admirável, sogra execrável, sinhá odiosa para escravas e crias, amiga perfeita de poucas, inimiga não menos perfeita de muitas e corajosa como um homem” – ou a exclusiva tia-avó Marout, que veio buscá-lo um dia em sonho para um encontro íntimo na morte; e ainda o retrato das ruas e dos bares, as reflexões paralelas a Proust sobre os modos de ser da sua memória, e tantas outras coisas assim. O escritor era capaz de olhar todas elas simultaneamente por dentro do vivido e também nitidamente pelo pensamento, por fora do acontecido, pensamento da linguagem estruturada surpreendente nas curvas elegantes das frases, sempre relativas às coisas, com poucos excessos e muita variação, fazendo a coisa antiga ganhar forma nova ao modo moderno dos anos de 1970.

Era a sua “capacidade meio demoníaca, meio angélica, de transformar em palavras o mundo feito de acontecimentos”, segundo Drummond. Ou, poderia se dizer, o modo do historiador e do médico, escritor, de transformar em palavras o mundo do seu acontecimento. Tinha início uma monumental obra de experiência, que não temos ainda, salvo engano, crítica capaz de abarcar inteira. Até o seu duplo imaginativo, a série um pouco menos grandiosa, também em busca do tempo perdido, também concreta e de pensamento dialético, epigramático e episódico, das memórias poéticas Boitempo do seu grande amigo Carlos Drummond de Andrade – descrito em Beira-mar enquanto jovem nos anos de 1920 da noite anárquica e boêmia de Belo Horizonte – teve de aguardar até outro dia para José Miguel Wisnik começar a nos dar mapa crítico mais preciso de seu universo infantil, político e dialético, em Maquinação do mundo: Drummond e a mineração.

É possível dizer, com categorias muito atuais de pensamento, que essa obra monumento de uma vida comum, de um médico inteligente bem formado do Brasil, que se deu no tempo real da emergência contemporânea de um país, nos provoca com a força do próprio ato de sua existência, do modo de um eu moderno dizer-se, com a história, quando nos faz permanentemente medir algo da pobreza de nossa vida no tempo cada vez mais escasso da experiência embalada no mercado.

Duplo encarnado e consciente da história do século 20 brasileiro impresso como tempo nas retinas sem cansaço – “a sua memória implacável (seu futuro martírio) os fragmentos de um presente jamais apanhável, mas que ele sedimentava e ia socando quando eles caiam mortos e virados no passado de cada instante; fantasmas que suscito como coisa minha e dócil, à hora que quero” (Balão cativo) – de um homem moderno, ao mesmo tempo comum e exemplar, diante da sua riqueza de cem mil e um dias e noites vividos… podemos chegar a intuir não termos nada de parecido a oferecer. Nada a oferecer à história e à própria vida e, talvez por essa medida concreta, de uma obra que dá a ver a vida, mas não fantasia, por essa ampulheta real do fim do mundo de nossa experiência, e de nossos anseios, da conexão histórica de nossos seres no mundo, deixemos, inconscientes da perda, tal monumento ao tempo e à vida, dormindo, um tanto esquecido, nas estantes.

Os meninos, já há muito, perderam todo o contato com os avós.

Pedro Nava – cujo pai, morto quando ele ainda era menino, foi farmacêutico e médico – amava a medicina. Ele a amava e a via de modo prático, e filosófico, também sem ilusões. Quando questionado, aos 17 anos no colégio Pedro II no Rio de Janeiro, o que achava da vida, escreveu: “a vida é como um anfiteatro anatômico: aí estudamos as chagas sempre abertas, vemos a podridão, o mal, o horror, o cancro e o pior de tudo a ‘hipocrisia do otimismo’, tudo num montão de lama – a sociedade”… Assim, não hesitava, e, ao responder o que queria seguir como carreira naquela sociedade de lama, se apresentava: “Medicina.” Pois afinal “é a que me oferece mais encantos, porque por intermédio dela estudarei este emaranhado de vasos, esta reunião de músculos, esta teia de nervos, que compõem este monte de elementos apodrecidos.” Afora a nota decadentista e cômica destacada das respostas, ao modo de um Augusto dos Anjos buscando um lugar de verdade na própria vida, que sabe bem a fim, de um adolescente tendente à dissolução boemia de poucos anos depois e do garoto que já havia lido tudo o que lhe caiu nas mãos e, entre tudo, Arthur de Azevedo, Machado de Assis e Lima Barreto…, observamos nas respostas a força sinalizada de um sujeito, o rigor positivo de uma visada genericamente negativa sobre as coisas. A medicina resolvia assim, com sua complexidade imensa – que ele multiplicaria em um senso de filosofia da história médica ainda mais amplo do que aprendeu como clínica –, a firmeza do julgamento sem apelação do jovem estudante.

Antes de chegar, tardiamente, ou na hora certa da vida, à literatura da memória, aos 69 anos, Nava foi de fato um médico muito consciente, dedicado à construção do serviço público, e um historiador e cronista plural da medicina pensada e acontecida no Brasil, desde as origens coloniais até o seu próprio tempo moderno de formação e prática, anterior à penicilina. Interessado em tudo o que dissesse respeito à medicina, da sua história clássica e primeiras imagens civilizatórias ao encontro de sabedorias e civilizações médicas estranhas umas às outras no Brasil colônia, no nosso mundo em desenvolvimento, ele estabeleceu um próprio plano de Nascimento da clínica, eclético e aberto, orientado pela antropologia nova da vida no Brasil, ainda antes do advento do cientificismo anatomopatológico. Criou assim um território pessoal de médico filosofo e historiador. Um projeto de história e de convivência de várias epistemes, da origem das imagens ocidentais, gregas, árabes, clássicas da coisa, ao encontro de mundos distintos de mágica e ciência no Brasil, da origem e em devir, um sistema de leituras da ciência que certamente interessaria ao Foucault epistemólogo, também da medicina, que escrevia em Paris no mesmo momento em que Nava escrevia as memórias no Rio.

Vinte e cinco anos antes de Baú de ossos, Pedro Nava publicou pela editora C. Mendes Jr. seu primeiro livro, o conjunto de estudos históricos, de epistemologia e de antropologia médica portuguesa brasileira e… francesa, Território de Epidauro. Pouco depois, surgiam os Capítulos de história da medicina no Brasil, publicados em separatas na Revista Brasil médico cirúrgico em 1948 e 1949, e, em 1961, sua conferência, entre a crítica e a história médica, Camões e a medicina, também era publicada. Tudo antes da experiência mais ampla das memórias. Nestes escritos de grande erudição e visada antropológica, um duplo de história médica no Brasil de Casa-grande e senzala e Raízes do Brasil, pode-se observar aquele interesse cultural e filosófico, filológico, o mais amplo possível para o entendimento do território conceitual da medicina desde o advento da vida colonial no Brasil. A coisa ia muito longe, e o documento histórico, literário ou científico, era situado na imaginação teórica sem fronteira do pesquisador:

Se a cronologia médica exige, historiologicamente, conhecimento de filologia, de linguística, de história geral, de etnografia, de antropologia e de literatura – a história filosófica da arte exige tudo isso e mais o conhecimento indispensável da anatomia, da fisiologia, da patologia geral e da medicina prática. Sem esse conhecimento (não o do detalhe especializado, mas o conhecimento abrangedor e doutrinário) é impossível o estudo interpretativo das ideias médicas porque, antes de explicá-las, é preciso tê-las penetrado, o que vale dizer que, para se aprender a estudar a História da Medicina, é preciso antes conhecer um pouco de Medicina, o que só se consegue “vendo, tratando, pelejando.” (…)

A história da Medicina deve ser encarada primeiro como história da Patologia Geral, como a história das ideias médicas e como a história dos pensamentos dos médicos. A cronologia que venha depois, não como base e sistema, mas como processo auxiliar à maneira de referência. (…)

Posta no plano filosófico ou cronológico, a História da Medicina tem que ser buscada nas fontes que já enunciamos e que pedem do que vai à sua cata, além do conhecimento da medicina do seu tempo, os da medicina clássica; os conhecimentos de linguística, de etnografia, de história geral, de literatura, de filosofia e de artes plásticas, cuja utilidade vamos encarecer (“Introdução ao estudo da história da medicina no Brasil”, em Capítulos da história da medicina no Brasil).

Assim, desde um saber próprio constituído no contato com o corpo, nas formas médicas do presente, o entendimento da história da medicina se projetava em todo tipo de forma e de formação da ideia de medicina entre os homens, no passado. As múltiplas visadas, guardando o mistério de seus fundamentos diferentes, convivem, e circulam através do tempo, transformando o médico de agora em um médico filósofo, como foram os da origem:

As grandes ideias médicas não pertencem a este ou àquele século, não são sucessivas e sim coexistentes. Tanto existe um naturismo hipocrático, quanto um naturismo galênico; um naturismo arabista, quanto um naturismo contemporâneo. Ao seu lado existiu e existirá sempre um dogmatismo ou um empirismo; um humorismo ou um solidismo, um metodismo ou um ecletismo. (Idem)

Já a medicina do médico Nava em sua própria vida, descrita em suas bases corpóreas e encarnadas em experiência na faculdade e na enfermaria no quarto volume das memórias, Beira-mar, era antes de tudo uma medicina do toque e da sensibilidade, uma prática da atenção e do recebimento, de uma contemplação produtiva do médico, a que não faltavam uma perspectiva de uma verdadeira e quase poética dimensão estética, da vida e da morte. “Minha medicina é sempre figurativa, e nunca abstrata. Observo, não experimento”, diria ele sobre sua postura e filosofia da aproximação da doença e do doente.

De fato, tudo indica que ele tinha o apreço dos grandes clínicos pela riqueza dos sinais, pela espantosa plasticidade da expressão do corpo, entre a saúde e as patologias de todos os tipos, com suas formas e efeitos sobre a sensibilidade, a imaginação e a inteligência de quem as recebe. Tentando permanentemente se orientar na natureza em que “nada é simples”, especializou-se nos reumatismos paralisantes e humilhantes, foi médico importante em seu tempo, cuja formação se esmerou em aprender os vínculos de cores, brilhos, texturas, tensões, formas, cheiros, lugar de dores, corpos integrais em sua produção, de vida, de doença ou de morte. Enfim, o que era dado ao médico saber com a mediação de seu próprio corpo.

Entre o contato e a razão, o espanto e a ordenação classificatória de um corpo permanentemente descoberto, singular na experiência de uma estrutura mais geral da vida que já se sabia expressar nela, se desdobrava também a curiosidade do inventor de história e de cultura da medicina no Brasil; advinda, como vimos, de todas as fontes e formações clássicas, mas também populares, da ideia da medicina, que se possa imaginar. Ao contrário do que acontece hoje, os instrumentos, os ferros e os termômetros, os remédios venenos e as entradas cirúrgicas pareciam infinitamente menos importantes na formação de Nava do que a riqueza exuberante do corpo humano, e seu sujeito, o real produtor de mil formas entre a vida e a morte, formas ligadas à vida, dinâmica permanente entre viver e morrer:

Velhas megeras que a caquexia terminava de esculpir em formas de esqueletos revestidos de pelanca, corpos monstruosamente alterados pela infecção, pela maré montante dos edemas e dos derrames cavitários ou comidos em vida até sua última migalha pelo trabalho fabuloso dos cânceres. Admiráveis caras azuis de asfixias, gessadas das anemias, rubínicas, flavínicas e verdínicas das icterícias, grenás da hipertensão, balofas das anarsacas hidropesias; olhos incertos de urêmicos, porcelana da esclerótica dos verminóticos, pupilas incandescentes dos febricitantes, envesgamento dos meningíticos, comissuras sardônicas da boca dos tetânicos; peles áridas da subida das febres, molhadas das crises defervescência… como vos conhecia e como eu pasmava da extrema complexidade de vossa fabricação. Ce qu´il y a de beau dans la nature, c´est qu´il n´y a rien de simple – dizia meu mestre Layani. Aqui e ali um resto de beleza como o rastro da passagem de um Deus sugerindo que ali não estavam só doentes mas mulheres também (Beira-mar).

Me parece evidente que a forma e o estilo de Nava considerar os corpos doentes, a história da medicina e de praticar a sua clínica tem alguma correspondência com o próprio modo, enciclopédico, fascinante e quase objetivo a um tempo, do memorialista tratar os incontáveis acontecimentos e personagens de uma vida, sempre atento ao traço concreto da memória. Assim:

Mas fantástico na vida do futuro médico é o que ele vai tirando da experiência adquirida dia a dia na exploração dessa coisa prodigiosa que é o corpo humano. Ele é sempre admirável. Admirável no crescimento, no milagre da adolescência, na saúde plena e na euritmia da idade madura, da vida em sua pujança, seu transbordamento na reprodução. Igualmente admirável na impotência, nos desiquilíbrios da velhice, na senectude, na cacoquimia, na doença, na desagregação e na morte. Tudo isso tem harmonias correlatas e depende de trabalho tão complexo para criar, como para destruir, para fazer a vida e fabricar a morte. Temos que reconhecer essas forças da natureza e delas tirar nossa filosofia médica e nossa lição de modéstia. Cedo compreendi que nós doutores, podemos, quando muito, alterar e modificar a vida pelo ferro cirúrgico e pelo veneno remédio, procurando que a alteração introduzida esteja no caminho da vix medicatrix naturae. Nesse sentido ajudamos e só ajudamos quando remamos a favor da maré. Je panse, Dieu guérit ­– dizia humildemente Ambroise Paré – o Pai da Cirurgia. O grande equívoco de todos – doentes e médicos – é julgar que prolongando a vida por alteração de condições estamos combatendo a Morte. Jamais. Tanto quanto imbatível ela é incombatível. Prova: só ampliamos a vida que existe. Em seu lugar não temos o poder de colocar mais nada porque na medida que ela se retrai, diminui e bate em retirada, cada milímetro é conquistado implacavelmente pela Morte Triunfante. É inútil pensar o contrário. O que temos é de nos convencer de que o homem, de tanto viver, que o doente, de tanto padecer – adquirem o direito à morte, tão respeitável como o direito à vida por parte de quem nasceu. Por mim mesmo eu me penetrava dessas verdades vendo o pátio dos milagres terrível de nossa enfermaria (Idem).

Pedro Nava entendia que a medicina é conexa à vida e é enquadramento, aproximação e respeito pela morte. Linha média, decodificadora dos sinais, sensível ao espetáculo, entre a ampla dinâmica do corpo vivente e a sua morte, também ela reveladora da natureza do vivo. Exatamente como Winnicott dizia na mesma época, um grande médico e psicanalista inglês rigorosamente contemporâneo de Nava, era o corpo vivo, a inscrição das potências da vida, o que de fato curava. Qualquer outra técnica aplicada só teria valor se apoiada na própria dimensão viva do corpo, e os remédios apenas se articulavam à via médica natural. É a vida que vive, os remédios a acompanham e revelam. Era a percepção naturalista dos médicos modernos que se formaram antes da revolução farmacológica e bioquímica da segunda metade do século 20 levar toda a experiência social da medicina noutra direção. E a morte… era realidade última que exige respeito laico, mistério e direito humano.

Não vou me estender muito sobre o modo de artista de Nava entender a medicina. Por vezes sua inteligência ensaística sobre a doença e o doente parecia estar mais perto de um Artaud, de um Mário de Andrade, ou de um Levi-Strauss e até mesmo de um Bataille, do que de qualquer médico que tenhamos chegado a conhecer. Historiador e modernista, construtivo e anti-positivista, Nava é um exemplo de homem da modernidade avançada, do tempo moderno do Brasil, que esquecemos rapidamente. Isso pode ser bem percebido no capítulo de Território de Epidauro que trago aqui em seguida. Apenas vou lamentar o destino de um país que, dos anos de 1920 a 1960, teve em homens como Nava a construção ativa de sua inteligência médica e de seu sistema de saúde, público e eficaz. E que hoje, passado um século de quando o jovem modernista ingressou na faculdade, tem no médico bolsonarista, criminoso e anticientífico, sem traço do que é história ou cultura, incapaz de usar a língua para outra coisa que não a propaganda do líder boçal a quem responde ao desejo, contra toda a vida no país, a verdade dura e clara de nosso destino histórico. O que aconteceu com o Brasil, de Pedro Nava e o nosso?

O Brasil tornou-se o nosso próprio e específico “montão de lama, a sociedade”, que também sempre fora, e que o jovem estudante de medicina de 1921 já sabia, e o escritor do século 20, com cuidado, inteligência e compromisso com a vida de todos e o devir de uma sociedade impossível, combateu, na própria multiplicação da língua que operou com a própria vida.

Também não vou comentar a psicanálise de Pedro Nava no capítulo do Território que retorna aqui. Ela é evidente e, como disse antes, interessa nos seus próprios termos criadores, seus próprios modos abertos de saber. Apenas vou indicar aqui, para o leitor interessado, o seguinte problema de epistemologia freudiana com a produção livre sobre o inconsciente do escritor, originado no concreto da experiência distintiva da vida mesma, como toda psicanálise, de Pedro Nava: se ele se sentisse obrigado a perguntar sobre as origens, materialistas e corpóreas, das fantasias de longuíssima duração de recusa à introdução de injeção e de vacinas que investiga, fantasias corpórea e de ordem mágica, como pensou, se ele se perguntasse: como é um psiquismo que funciona e produz este tipo de força poética de mínima, mas forte, desrazão; se ele deslocasse a ideia de pensamento mágico para a ideia de formação de desejo e se perguntasse sobre o corpo possível, sujeito e psiquismo, desde a origem infantil, que realiza este modo de desejo, que aparece na vida como fórmula mágica e de personalidade, então, ao que tudo indica, ele estaria nos fundamentos a priori da metapsicologia freudiana, sua própria metafísica. A psicanálise de Freud descreve o acontecimento poético da força da irracionalidade, como o escritor, e também se pergunta sobre qual sistema de razões finais pode sustentá-lo.

É muito próprio de escritores informados e modernos a utilização livre da esfera imaginária da percepção das imagens do pensamento e sua força mágica, não racional, que tem lógica freudiana, sem chegar ao fundo materialista do problema freudiano final, inicial, o de tentar explicar como e porque estas imagens mágicas do pensamento se dão, qual a sua natureza de corpo, e qual a sua função em nossa humanidade comum. Aí termina a intuição poética e criadora do escritor, e começa a psicanálise como saber em estruturação.

Como já disse, assim os psicanalistas perdem algo da mobilidade da vida rica da cultura, enquanto os escritores, que usam a psicanálise na esfera imaginária do seu sonharbrincam com ela, sabem e não sabem de algo da sua ciência.

Segue a medicina psicanalítica de Pedro Nava.

Revivescências

(Esboço histórico e interpretativo da posição de espírito do doente diante do tratamento)

I

Sumário: – Posição de espírito do doente em relação ao tratamento, determinado pelo psiquismo profundo. Complexo de culpa e necessidade de expiação. “Noção sacrificial” ligada à medicação imunda, dolorosa e às curas cirúrgicas. Causa da moléstia baseada na concepção do “corpo estranho”. Medicação expulsiva. Purificação. Sacrifícios simbólicos da vida humana. Mutilações votivas na atualidade.

É sempre muito interessante para o médico observador verificar a posição e as reações obscuras do psiquismo dos doentes, com relação ao remédio e tratamento que lhes são impostos. Porque, se há recursos e agentes terapêuticos que inspiram sempre desconfiança (ao paciente inteligente, do mesmo modo que ao estúpido, ao culto como ao ignorante), existem outros que são recebidos tacitamente, sem discussão, com confiança cega, quando não com verdadeiro fervor. E a análise dessas simpatias e antipatias, aparentemente sem explicação, vai mostrá-las radicando, nessas dobras da personalidade onde vivem sua vida profunda, as ideias mágicas, os complexos de culpa com as necessidades correlatas de punição, os conceitos da inviolabilidade de todo o individual, os instintos de comunhão com a energia universal, e da incorporação desta à economia do microcosmo.

Mário de Andrade, nos seu Namoros com a medicina, estudando a terapêutica pelos excretos, acentua a “noção sacrificial” inerente à sua prática. E a intenção propiciatória, como a de expiação, não acompanham apenas a medicação imunda, senão que se ligam também à que arde, dói, queima, escarifica, marca ou mutila.

As cataplasmas, os emplastros, os sinapismos, as cauterizações, as ventosas, as sarjas, os sedenhos, a acupuntura, a mechobustão e, até, certas tatuagens – podem ser colocadas no grupo dos agentes que castigam e aliviam.

Muito propositadamente não incluímos entre esses elementos as injeções, recebidas, na maioria dos casos com repugnância e hostilidade. É comum encontrarmos pacientes que se recusam terminantemente a admitir o seu emprego, sem outra explicação se não o fato de ainda não terem, até o momento da indicação que lhes é feita, permitido o uso desta via de introdução dos medicamentos. E isso é sempre dito, no tom afirmativo onde transparece um tipo de orgulho pela manutenção dessa como que virgindade do corpo, pelo zelo da sua inviolabilidade – que lembra um pouco a jactância, o gabo, a autodignificação dos que nunca apanharam, dos que tem uma cara onde, jamais, ninguém encostou a mão, ou dos machacazes do passado, cuja barba não conhecia o aviltamento da navalha. Barbas em catadupa, cujos fios eram arrancados inteiros e entregues como penhos da palavra dada, segundo costume patriarcal onde está, na íntegra, o aspecto litúrgico da cerimônia sacrificial.

Não será propriamente pela dor que repugnam as injeções, mas pelo fenômeno paralelo da introdução do corpo estranho, do objeto heteromorfo, da coisa. Porque o instinto, o subconsciente, preferem sempre a incorporação das forças externas através os caminhos que os transformam e integram como elementos assemelhados ao complexo da economia animal. Via respiratória e via digestiva. Vias que garantem a aceitação universal do medicamento volatilizado, fumigado, inalado, bebido, engolido.

A introdução de corantes, conjuntamente às tatuagens, não serve de argumento contrário ao que estamos conjecturando. Sua visibilidade e permanência fazem-nos, provavelmente, considerar como não englobados, mantém as suas características de elemento externo, fixo ao tegumento, e por isso mesmo, não difundido nos recessos do organismo.

Os corantes, assim, não seriam identificados como “corpo estranho”, cuja importância etiológica é enorme nas interpretações da medicina primitiva.

Essa noção, nascida da contusão, da perfuração, da pedrada e da ponta da flecha, ganhou em complexidade e foi depois, por extensão e analogia, a causa responsável do tumor, do sangue alterado, do humor corrompido. Foi miasma absorvido e foi Diabo no corpo. Tudo com a feição de objeto, de agente, de “corpo estranho”.

Interpretação renitente e bem viva até hoje, garantida entre os leigos, a aceitação e a popularidade nunca diminuída das medicações esvaziadoras e expulsivas. As reclamadas purgas, os apetecidos diuréticos, os desejados vomitivos, os bem vindos esternutatórios, as abençoadas sangrias, as almejadas ventosas. E, ao lado de outros fatores, sobre que voltaremos, até das curas cirúrgicas. Por que, sem o arraigamento da noção maléfica do corpo estranho, sem a compreensão de sua retirada necessária, como explicar o homem fraco e pusilânime, sobrepujando a ideia da inviolabilidade da economia e correndo, desde os tempos remotos, os maiores riscos operatórios?

Só mesmo o instinto formidável de conservação, filho do medo fecundo, poderia obter o resultado paradoxal, de fazer admitir e aceitar uma sangria ou uma abertura cirúrgica. Principalmente quando pensamos no que representavam de perigo, para o homem primitivo, quaisquer soluções de continuidade no desamparado corpo que, ele via se retorcer de dor e se aniquilar na morte, quando sobre ele se desencadeavam as forças furiosas que conduziam à sua extensão, achatamento, incisão e perfuração.

A ideia de expulsão sendo aproximável, por analogia à de purificação, não será possível colocá-la nas origens da preferência universal dos tratamentos hidro-minerais? Parece. E sendo assim, uma cura em Caxambu, Poços de Caldas ou São Lourenço assume o mesmo aspecto mágico das velhas cerimônias lustrais que repontam na vida de todos os povos, são a forma do banho ritual, da aspersão litúrgica, do batismo. E este, mais do que tudo, porque é a cura das curas contra a força e o espírito de Satanás – o pior “corpo estranho” que pode nos penetrar.

As vacinas antivariólicas recebidas com açodamento pelos índios, em cujas tribos é difundido o uso religioso ou decorativo da escarificação cutânea, é vista com má vontade por coletividades mais civilizadas onde esse processo preventivo deixa de ser identificado à marca dérmica, para conservar, apenas, o aspecto de veículo suspeito, servindo à introdução do elemento exógeno. A repugnância, nesse caso, é semelhante à que existe relativamente às injeções.

Se não assistimos mais aos propiciamentos que custam a vida dos nossos semelhantes, deparamo-nos, todo dia, com cerimônias que são como que a sua representação, sucedâneo ou símbolo. De certo que ainda há fanáticos hindus que disputam o privilégio de se fazerem esmagar pelos carros que arrastam toneladas de deuses. Mas são poucos e distantes. Entretanto, muitos e próximos, são outros com que nos acotovelamos, entre os quais, se não está na íntegra o sacrifício da vida, está presente o sacrifício de uma parte dela, representado pela oferenda real ou simbólica de um fragmento do corpo humano. Pois de joelhos que se dilaceram na subida das escadas da Penha, “ex-voto” de braço, seio, mão e pé de cera; aferta de cabelo de gente, para por em cabeça de imagem, ersats da obediência de Abraão – das mães que oferecem a vida figurada das crianças “vouées au bleu”.

Muito interessante é a dedicatória total, parcial, ou em efígie, – das partes dos genitais e paragenitais, às quais assistimos na idade contemporânea, através a descaracterização dos atributos secundários do sexo, pela castração espiritual (voto de castidade); pela castração simbólica (circuncisão judaica); pela castração ou mesmo pela emasculação completa, como se viu na heresia boçal dos skoptzy, que assaltou a Rússia, como verdadeira epidemia, até quase o fim do regime czarista.

Se a necessidade de expiação leva, assim, o indivíduo a sobrepujar o instinto de conservação e a ideia de intangibilidade do corpo – some-se isso às concepções etiológicas dominadas pelo “corpo estranho” e veremos no ato cirúrgico – a necessidade inadiável de conservação, posta lado a lado com a cerimônia de purificação das culpas responsáveis pela moléstia. A oblata são os membros amputados, os quistos extirpados e as vísceras ressecadas.

Qual o cirurgião que não reparou a plenitude e a orgulhosa alegria do operado, só comparável à satisfação do catecúmeno que se inundou do sacramento desejado? E a palavra sacramento está bem colocada aqui, se pensarmos que os skoptzy chamavam de “batismo completo” à mutilação bárbara e total que lhes abrasava, depois das duas “chaves do inferno” – a “chave do abismo” e, como refere Millant, lhes conferia “o direito de montar o cavalo branco do Apocalipse”.

(Território de epidauro, Rio de Janeiro: C. Mendes Jr., 1947)

Tales Ab’Sáber é psicanalista e ensaísta, doutor em Psicologia Clínica pela USP e professor da Unifesp. Membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae.

(Publicado originalmente no site da Revista Cult)

Editorial: A aplicação dos rigores da lei num sistema político que clama por reformas profundas.





Na década de 40 do século passado, o cenário político pernambucano contava com uma grande raposa, curtida no árido sertão do Pajeú, nascido em Serra Talhada, a mesma terra de Virgulino Ferreira, também conhecido como Lampião. Cumpriu todos os ritos acadêmicos - da graduação em direito ao doutorado - tornando-se, inclusive, professor catedrático do então conceituado Ginásio Pernambucano. Morreu relativamente jovem, antes mesmo de completar os 60 anos de idade. Foi interventor estadual, durante a vigência da ditadura do Estado-Novo, tornando-se um dos homens da estrita confiança de Getúlio Vargas. Aliás, registre-se, seu efetivo envolvimento com o projeto político do Estado-Novo ia muito além das fronteiras de Pernambuco, o que fazia dele um dos atores mais proeminentes daquele regime político. Como toda raposa política que se preze, Agamenon Magalhães deixou algumas máximas sobre a política local, reflexões que acabam não se perdendo com o tempo, como as suas conclusões de que o Recife seria uma "cidade cruel', em razão das hostilidades eleitorais dos recifenses aos seus pleitos políticos. 

Uma outra máxima atribuída a ele reflete muito bem sobre o contexto político brasileiro - nada republicano e consequentemente pouco institucionalizado - onde se aplica a categoria do "Aos amigos tudo, aos inimigos os rigores da lei". Agamenon Magalhães tinha uma rixa antiga com a família Lundgren, oligarquia industrial da cidade de Paulista, localizada na região metropolitana do Recife, nutrida, sobretudo, por motivações políticas. Os Lundgren sempre estiveram em lados opostos, apoiando políticos adversários, o que deixava o China Gordo bastante aborrecido. Mas, como convém manter os cuidados necessários em relação aos discursos políticos, eventualmente essas oligarguias política e industrial acabavam se entendendo, levando Agamenon a participar dos ritos idiossincráticos da família Lundgren, cujos membros costumavam tomar seu banho matinal nas dependência de sua fábrica de tecido. Quando esteve aqui na província, na condição de editor do jornal Hora do Povo, o cronista capixaba Rubem Braga o criticava veementemente por essas atitudes contraditórias. 

Essas reflexões vem a respeito do comentário do ministro do STF, Alexandre de Moraes, por ocasião de emissão do seu voto, quando estava em julgamento, no STE, um pedido de cassassão da chapa Jair Bolsonaro\Mourão, que vencera as eleições de presidenciais de 2018. A chapa foi "absolvida" - se houver algum equívoco aqui eu peço perdão aos juristas - mas contou com uma fala contundente do ministro, afirmando que medidas duras seriam tomadas nas próximas eleições caso equívocos que contrariem os preceitos eleitorais ou democráticos voltassem a ser cometidos. Seus infratores seriam duramente punidos, com cassassão da chapa e eventualmente prisão. 

Todo nosso respeito ao ministro Alexandre de Moraes, que está se constituindo numa espécie de paladino em defesa de nossas instituições democráticas, mas tenho uma preocupação com a aplicação dos rigores da lei - que, a princípio, seriam muito bem-vindos - numa quadra ou sistema político tão pouco institucionalizado e cheio de vícios perniciosos como o nosso. O presidencialismo de coalizão, se os leitores e leitoras nos permitem, per si, já se trata de uma aberração. O exemplo mais recente desses problemas são as denúncias desta semana sobre as práticas recorrentes de rachadinhas entre proeminentes figuras do nosso staff político, assim como as acusações de possíveis manobras escusas para inflar o número de eleitores nas prévias realizadas pelos tucanos. 

Nada de concreto ainda foi constatado - portanto não inferimos aqui acerca da materialidade dessas denúncias - mas se tais fatos vierem a ser comprovados, apenas confirma o nosso antigo e surrado mau-costume político, que nos acompanham desde tempos remotos. Daí a nossa preocupação com o pronunciamento do ministro - com a melhor das intenções e eivado de espírito republicano - mas que, na prática, será muito difícil a aplicação de tal rigor numa quadra política bastante deteriorada como a nossa, que clama por uma reforma política estrutural.  

sexta-feira, 29 de outubro de 2021

Editorial: Quem diria! As prévias tucanas podem se tornar caso de polícia.

Com o tempo vem a experiência e,com ela, a prudência necessária para não incorrermos em equívocos. Pelo menos em relação aos erros cometidos em decorrência dos arroubos da juventude. Isso vale para os atores políticos,em particular, assim como em relação a alguns temas polêmicos ou controversos. Fizemos muitos elogios por aqui acerca das prévias, processo adotado pelo tucanato, para a escolha do candidato que disputará, pelo partido, as próximas eleições presidenciais. São Paulo, o seu ninho mais emplumado, foi devidamente preparado para o evento, que antes contaria com quatro disputantes,mas, no final, ficou resumido a apenas três deles: o governador do Estado de São Paulo, João Dória(PSDB-SP),o prefeito de Manaus, Arthur Virgílio(PSDB-AM) e o governador do Rio Grande do Sul, Eduardo Leite(PSDB-RS). Tasso Jereisatti, senador pelo Estado do Ceará, desistiu da disputa e passou a fazer campanha em favor do governador gaúcho. 

Antes dos debates iniciais, os candidatos, principalmente João Dória e Eduardo Leite, realizaram um périplo pelos estados da federação, estabelecendo um  diálogo com os correligionários, em busca de apoio dos diretórios naquelas eleições preliminares. Conforme já comentamos em outro editorial, o debate foi morno, aguado e circunscrito à experiência dos governadores com as suas administrações locais, o que, em tese poderia ser replicado no plano nacional, mas não necessariamente de forma tão orgânica, como os ajustes fiscais introduzidos no Rio Grando do Sul pelo governador Eduardo Leite. Dória, como se sabe, é o homem da vacina, o que não deixa de ser um trunfo. 

Mas os problemas não se restringiram apenas a performance dos candidatos no debate organizado. Logo em seguida, de parte a parte, surgiram comentários desabonadores da conduta dos candidatos durante a disputa. Hoje há, claramente, um clima de animosidade entre os postulantes, o que indica que os métodos utilizados podem não ter agradado a ambos. De Dubai,onde mantém um esccritório de representação do Governo de São Paulo, João Doria fez críticas ao oponente, que esboçou seus questionamentos acerca do controverso processo de novas filiações de prefeitos e vices, que passaram a ter direito a voto e engrossar as fileiras de apoaiadores do paulista, segundo ele, fora do prazo legal permitido.

Se comprovada, a acusação é grave e compromete toda a lisura do processo, maculando irremediavelmente seu protagonismo, concebido com as melhores intenções possíveis, até mesmo como estratéria para melhor posicionar o candidato tucano escolhido no escopo da terceira via. Filho das prévias, como se diz, João Dória enfrenta um adversário de fibra, com apoios explícitos de tucanos do bico fino, mas permanece como favorito. Difícil dizer quem tem razão nesta contenda, se Dória - que criticou duramente o fato de o gaúcho por dúvidas quanto à lisura do processo de filiações - ou Eduardo Leite, que expôs a público o problema. Vamos aguardar um pronunciamento do diretório nacional da legenda.     

quinta-feira, 28 de outubro de 2021

Patrimônio Cultural e Dominação.


 

Texto: Rogério Proença Leite

Imagem: Rafael Olinto


Em maio de 2015, o mundo assistiu perplexo o grupo extremista Estado Islâmico (EI) ocupar e depredar templos e torres da histórica cidade de Palmira, situada a 215 km de Damasco, na Síria, cujo sítio arqueológico é considerado um dos mais importantes Patrimônios Culturais da Humanidade, reconhecido pela Unesco. Palmira é considerada uma das cidades mais antigas do mundo e sua história remonta ao neolítico, tendo sido berço de diferentes tempos e culturas que marcam a formação cultural da humanidade: as culturas helenística, romana, hebraica e muçulmana.

O Estado Islâmico não ocupou Palmira por acaso. Ninguém ataca o Patrimônio Cultural de um povo sem motivo. Para o EI, Palmira representava, em seus vestígios arqueológicos, parte da cultura ocidental ao qual o grupo extremista se opunha e queria se sobrepor. A dominação de Palmira era concreta e simbólica. Era um recado para o mundo.

A destruição como dominação é parte bastante conhecida do repertório autoritário humano. Assim agem governantes tirânicos: subjugam e matam as pessoas, e tentam destruir o seu patrimônio cultural, material ou imaterial.

Quando o Terceiro Reich dominou completamente a Alemanha, uma das primeiras ações do seu führer foi designar o arquiteto Albert Speer (1905-1981), também e não por acaso Ministro do Armamento, para pensar a construção de grandes edifícios e boulevards que denotassem a grandiosidade pretendida pelo regime nazista. A arquitetura da dominação também é uma espécie de arquitetura da destruição. O inimigo é arrasado também com o aniquilamento da sua cultura e história, da sua arte, da sua memória.

O esquecimento é, assim, parte do processo de dominação. Esquecer é, nesse sentido, o equivalente a uma demolição: reduz-se algo a nada, ao pó. Do nada, pode-se erguer qualquer coisa, inclusive o falseamento da história vivida.

Com o esquecimento, outras narrativas sobre nosso passado e sobre nossas vivências vão-se sobrepondo e ganhando estatuto forçado de “verdade”, mesmo que não passem de embustes ditos e repetidos. O esquecimento abre o flanco da história para a fraude socialmente compartilhada. Por isso não podemos esquecer do passado, seja ele qual for. Muitos monumentos históricos existem exatamente para isso: o Museu judaico em Berlim, o Cais do Valongo no Rio de Janeiro e o Memorial da Paz de Hiroshima são alguns desses espaços que foram erguidos ou mantidos pela carga simbólica que possuem para nossas necessárias memórias.

Às vezes, a memória que se quer preservar e anunciar através do Patrimônio é motivo de extrema controvérsia porque se refere não ao lado oprimido, mas ao lado opressor de uma determinada história que normalmente envolve processos violentos: massacres, genocídios, extermínios. Depois do assassinato de George Floyd, uma série de manifestações antirracistas aconteceram. Em julho de 2020, foi derrubada a estátua de Jefferson Davis (1801-1889), presidente dos Estados Confederados da América durante a Guerra Civil nos EUA (1861–1865), em Richmond (estado da Virgínia). Neste ano, foram retiradas as estátuas do general confederado Robert E. Lee (1807-1870) nas cidades de Charlottesville, por onde supremacistas brancos passaram ruidosamente em 2017, e Richmond.

A onda de ataques a estátuas e monumentos continuou: estátuas de Cristóvão Colombo (1451-1506) foram pichadas e decapitadas. No Brasil, a reverberação desse movimento atingiu o Monumento em homenagem a Borba Gato (1649-1718), em São Paulo, e a estátua foi queimada, sob argumento semelhante ao caso americano: o bandeirante teria sido responsável por inúmeras mortes e incêndios em aldeias.

Este fato revela a emergência de um debate importante e que é quase inexistente no Brasil, acerca do sentido dos monumentos públicos, e chama a atenção para as narrativas que se embrenham na formação dos patrimônios. O patrimônio é um campo de disputa sobre o que se quer narrar, lembrar, enaltecer ou esquecer.

Em qualquer dos casos, o Patrimônio Cultural existe para nos lembrar de não esquecer alguma coisa; para anunciar as controvérsias da história humana; para reivindicar a plural diversidade da nossa experiência cultural.

Como uma modalidade dinâmica das consciências coletivas, o Patrimônio Cultural sempre foi uma referência relativamente estável, porém aberta e ativa, para a construção renovada de marcos simbólicos para a vida comum em sociedade. Espécie de âncora em movimento, o Patrimônio alicerça referentes estéticos, míticos e metafóricos sobre o passado e o presente, mediante os quais as pessoas e as sociedades elegem e dão sentido às narrativas sobre si e sobre os outros.

Por muito tempo no Brasil, as políticas de patrimônio deram as costas à pluralidade e reconheceram apenas bens culturais associados à etnia branca de origem europeia, católica e militar. Por quase 70 anos, foram tombados e preservados fortes, igrejas, conventos, casarios coloniais, sítios de arquitetura portuguesa e monumentos à elite brasileira. Esqueciam-se convenientemente os contributos artísticos e culturais das diversas culturas africanas e indígenas que se amalgamaram conflituosos na formação do povo brasileiro.

Embora substancialmente ancoradas nas mesmas justificativas históricas europeias dos mitos de fundação nacional, a trajetória das políticas de patrimônio no Brasil surge no Estado Novo, em meados de 1937, com Getúlio Vargas, e assume um lugar de destaque na formulação de uma concepção oficial de cultura, voltada à construção de uma ideia de nação.

Embora limitadas em seu escopo e abrangência, essas políticas de patrimônio posto excluíram deliberadamente parte substantiva das culturas não-europeias. Mas, bem ou mal, foram essas políticas que asseguraram a preservação de todo um riquíssimo conjunto arquitetônico, urbanístico e paisagístico e que fundou as bases de uma “concepção oficial de cultura”, cuja criação do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Sphan), hoje Iphan, foi um dos mais importantes marcos institucionais.

Somente nos anos 2000, no contexto de ampliação mundial do conceito de patrimônio, passou-se tardiamente a reconhecer o chamado patrimônio imaterial: bens que se referem a muitos aspectos das culturas antes excluídas: ofícios e modos de saber-fazer; celebrações; formas de expressão; e lugares de tradições e práticas sociais.

Apesar de todo o viés abertamente elitista dos bens materiais reconhecidos e tombados, o Iphan sempre teve que ser uma trincheira aguerrida em defesa desse patrimônio, muitas vezes contra a própria ação depredatória dessa mesma elite para quem o patrimônio nacional foi tombado. Esse paradoxo explica o desinteresse que parte da elite brasileira trata o seu próprio Patrimônio Cultural, e explica o completo descaso em relação ao patrimônio material e imaterial dos outros (povos tradicionais indígenas, descendentes afro-brasileiros, migrantes).

É controverso que o Iphan, órgão estatal com mais de 80 anos de existência, quase sempre tenha necessitado se defender dos abusos ou descasos do poder estatal de governos intolerantes e sem compromisso com a história e a memória do país. A imaturidade política do Estado brasileiro é capaz de gerar esse incrível paradoxo: políticas de Estado necessitam ser defendidas do próprio Estado e dos interesses do mercado que adentram natural e politicamente as instâncias do Estado. De tempos em tempos, o patrimônio brasileiro oscila entre governos sensíveis à pauta cultural e defensores da inclusão da diversidade e governos que menosprezam a cultura e depreciam as minorias que formam a pluralidade da nossa realidade. No momento, estamos a viver este segundo tipo, no qual a cultura, a ciência, a civilidade e paz são renegadas a um campo sombrio de descarte e ataque.

A constante incerteza que ronda as políticas de patrimônio cultural brasileiro revela também a fragilidade institucional das políticas de proteção social da vida, por uma associação direta: parte dos detentores dos saberes e modos de vida que constituem o acervo vivo do patrimônio imaterial são pessoas de culturas historicamente marginalizadas ou excluídas, e em situação de vulnerabilidade social.

Defender a preservação do patrimônio cultural é, assim, duplamente relevante para uma cultura cívica e democrática: por assegurar que possamos rememorar o passado e aprender com ele; e por garantir no presente a visibilidade e sobrevida das culturas em sua amplitude e diversidade.

É inaceitável hoje que uma sociedade que se pretenda minimamente democrática e desenvolvida não preserve seu patrimônio e nem defenda a diversidade de sua cultura. Mas como já sabemos, ninguém ataca o Patrimônio Cultural de um povo sem motivo. E há muitas formas de destruir a cultura e o patrimônio, não necessariamente de forma tão literal quanto o atentado do EI a Palmira.

Destrói-se o Patrimônio também quando se extingue estruturas institucionais voltadas ao incentivo e promoção da cultura, a exemplo da extinção do Ministério da Cultura, em janeiro de 2019. Criado em 1985 no contexto da redemocratização política brasileira, o MinC abrigava o Iphan, a Fundação Nacional de Arte (Funarte), a Secretaria da Cidadania e da Diversidade Cultural, a Fundação Biblioteca Nacional e a Agência Nacional de Cinema (Ancine), dentre outras não menos importantes.

Destrói-se o Patrimônio também quando para as funções diretivas de órgãos culturais são designadas pessoas sem qualificação adequada ou mesmo com posições contrárias aos interesses que deveriam defender como gestor público, a exemplo da Fundação Cultural Palmares que foi criada em 1988 para promover a cultura de matriz africana e tem hoje na sua presidência um homem negro autodeclarado de direita que critica o próprio movimento negro e afirma ter sido a escravidão terrível, mas benéfica para os descendentes afro-brasileiros.

Destrói-se o Patrimônio também quando se abandona prédios à própria sorte, a exemplo de duas tragédias anunciadas: a que resultou no incêndio do Museu Nacional, na Quinta da Boa Vista (Rio de Janeiro), em setembro de 2018, destruindo um inestimável acervo construído há mais de 200 anos; e a que culminou no recente incêndio da unidade da Cinemateca Brasileira (instituição criada em 1940) situada na zona oeste da cidade de São Paulo, destruindo parte do acervo histórico audiovisual brasileiro.

Destrói-se o Patrimônio também quando se reduz os já escassos recursos a ele destinados, e com isso se pratica uma espécie de política de morte à míngua da cultura, a exemplo das estimativas atuais de cerca de 50% de redução de recursos federais para alguns setores da cultura.

Destrói-se o Patrimônio também quando se põe à venda prédios públicos de alto valor histórico e simbólico, como o recente feirão de imóveis do governo federal que incluiu em sua fúnebre lista nada mais nada menos do que o prédio ícone da história da arquitetura brasileira e do próprio Ministério da Cultura: o Palácio Capanema, no centro do Rio de Janeiro, antigo Ministério da Educação e Saúde Pública. Pôr à venda o Capanema, como é conhecido, é um escárnio.

O prédio é repleto de simbolismo: projetado nos anos 1930 sob o governo de Getúlio Vargas, o Capanema foi concebido no contexto do modernismo brasileiro por uma equipe de arquitetos notáveis, dentre eles Oscar Niemeyer e Lucio Costa, os mesmos que projetaram Brasília. O projeto, inovador em todos os aspectos, foi construído a partir das ideias lançadas por Le Corbusier, o famoso arquiteto modernista suíço, que esteve no Rio de Janeiro com Lucio Costa.

Com afrescos de Cândido Portinari e jardins de Burle Marx, o Palácio Capanema abrigou durante anos, o Iphan, a Funarte, diversos arquivos e bibliotecas. O prédio em si é de valor inestimável patrimônio cultural brasileiro.

Muitas vezes, acontecimentos aparentemente aleatórios guardam mais conexão entre si do que imaginamos. E uma das formas mais eficazes de dominar o outro, é negar-lhe o direito de memorar sua história, de se reconhecer na sua cultura, de brindar sua crença, de falar sua língua, de cultivar a memória impressa na facticidade material e imaterial do seu Patrimônio Cultural.

O reconhecimento cultural de si e do outro é um legado republicano, democrático e libertário, e por isso ninguém ataca o Patrimônio Cultural de um povo sem motivo. E por isso temos motivos de sobra para cada vez mais defendermos o Patrimônio Cultural, sobretudo neste momento delicado em que a democracia é empurrada para mais um desfiladeiro. Já é hora de voar com a sabedoria da luz antes do cair das noites escuras, para não sermos como a Coruja de Minerva de que falava Hegel, que só levanta voo ao cair do crepúsculo.

(Publicado originalmente no site do Suplemento Pernambuco, editado pela Companhia Editora de Pernambuco)

Duke via O Tempo!


 

Michel Foucault - Impressões do Recife