Com a museóloga e sobrevivente Alejandra Naftal como curadora, a inauguração do museu especial no cassino de oficiais da ESMA já está próxima.
Martín Granovsky
O visitante estará parado
lendo uma explicação e algumas luzes prontamente demarcarão um
retângulo vermelho no chão. O retângulo de uma cela, como o lugar que
cada sequestrado ocupava na Escola de Mecânica da Armada (ESMA). Esse
lugar será, neste ano, um dos cenários disponíveis no novo espaço da
memória inaugurado onde foi o primeiro cassino de oficiais da ESMA, e
depois o núcleo do campo de concentração na última ditadura (1976-1983).
A curadora do novo espaço é Alejandra Naftal, sequestrada aos 17 anos e sobrevivente do campo El Vesubio. Ela estudou museologia e foi uma das construtoras do arquivo oral do Memoria Aberta. Durante o kirchnerismo, trabalhou por seis anos com documentação no Ministério da Defesa. O co-curador é Hernán Bisman, responsável por questões visuais e de desenho – fundamentais, visto que o projeto é itinerante e não deve alterar nada do edifício. Naftal conta que escolheram o cassino dos oficiais porque foi “o lugar de alojamento dos presos e o epicentro da mecânica do prédio da ESMA”. E acrescenta sobre o próprio campo de concentração, como se estivesse tudo dito: “E a ESMA é tudo”.
Haverá um cuidado com o rigor? “Nós nos baseamos em documentos, fontes judiciais, acadêmicas, artísticas, jornalísticas e audiovisuais e também no testemunho de vítimas e de familiares”, diz a curadora. “Esses testemunhos são os únicos porque os oficiais nunca falaram. Não contaram a verdade. O que os visitantes escutarão são as vozes dos familiares e dos sobreviventes nos julgamentos”.
Ao redor do mundo, durante os últimos 30 anos, floresceram muitos centros dedicados ao exercício da memória. Os campos de Dachau e Auschwitz, por exemplo. Ou o de Buchenwald, que Jorge Semprún descreveu tantas vezes e onde os diretores do memorial quiseram mostrar como a sociedade alemã sabia que havia um campo a apenas 15 minutos de Weimar. E também o memorial do desembarque na Normandia, França, onde uma sala provoca com a seguinte pergunta: “França, um milhão de resistentes ou um milhão de colaboracionistas?”.
Para Naftal, os lugares para preservação da memória “tem sim que ser diferentes de um artigo, de um livro ou de um filme, porque são os lugares da verdade ‘autorizada’, que para as pessoas é 'a' verdade”, analisa. “É discutível porque é a verdade, não? Mas, para nós, existe a tenacidade de respaldar o que sabemos com fontes documentais. O que usamos são os testemunhos diante da Justiça. O julgamento das Juntas em 1985 e os diferentes julgamentos da causa ESMA dos últimos anos.”
Respondendo sobre a memória, Alejandra Naftal esclarece primeiro que “hoje há um Estado com convicção sobre essa problemática, porque leva adiante os julgamentos e porque transcorreu tempo suficiente, o que permite articular as relações entre história e memória”. E define: “A memória é um músculo muito elástico e seleciona o que lembrar, o que esquecer e como recordar”. Para ela, “é tão elástica que cria ferramentes novas a cada momento”.
Um músculo nas mãos do Estado não pode trazer conflitos? “Pode. Mas os conflitos podem se resolver, e o debate sempre estará aberto. Em contrapartida, com um Estado ausente, não há nada”.
Agustín Di Toffino, chefe de Gabinete da Secretaria de Direitos Humanos e filho de um dirigente sindical cordobense do Sindicato Luz y Fuerza, que foi companheiro de Agustín Tosco e está desaparecido, disse que “o Estado adotou a versão dos sobreviventes e a impulsiona”.
Daniel Tarnopolsky é membro de uma das famílias mais destruídas pela ditadura: foram sequestrados seus pais, Hugo e Blanca, seu irmão Sergio, sua cunhada Laura e sua irmã Betina. Membro da diretoria do Instituto Espaço da Memória, diz que “o projeto é plural e o governo não se intrometeu nos conteúdos”. Acrescentou: “Dá todas as ferramentas e as instituições são as zeladoras, sem interferências”.
Di Toffino, que também milita na organização HIJOS, disse não ter medo do duplo papel desempenhado pelas instituições e pela gestão pública. “Antes construíamos memória marginalizados. Para nós, era mais fácil. Mas, atualmente, com a memória enquanto política de Estado, existe uma tensão. Não temos medo das tensões. Por isso, apoiamos o espaço para o relato dos sobreviventes. É uma questão de acúmulo histórico, de legitimidade de relatos totalmente subestimados, sem governos que processaram o passado com teorias que não tinham a ver com o que aconteceu conosco, como a dos dois demônios, ou o monumento da reconciliação . Agora o Estado encara o relato das vítimas como política de Estado”.
Naftal defende que “uma coisa é ser das instituições e outra é o compromisso com o presente”. A curadora afirma que “pretende-se, nestes lugares, dissolver a política nacional. Não é assim. Isso se dissolve nas eleições, nas lutas partidárias. O museu tem que ser aberto e prolongado no tempo. Um marco que precisa ser estendido. Há muito por investigar, por descobrir, por saber. Por exemplo, quais foram os meios políticos da ditadura nos âmbitos cívico, econômico e militar. Continuamente é preciso discutir. Essa intervenção vai permitir novos olhares”.
Tarnopolsky destaca que o fato de a estrutura do projeto ser móvel dá conta de que é fácil mudar. Naftal recorda que seu desenho não altera o edifício. “É prova material nos julgamentos. Além disso, não tocamos nele para que depois outros possam fazer outras coisas. Virão novas gerações com novos olhares”.
“Há muitos segredos, muitos silêncios, muito material exclusivo, mas se tivermos informações novas, será preciso mudar ou agregar ao conteúdo”, disse Tarnopolsky ao comentar este aspecto do projeto instalado em um lugar de 5300 quadrados como a ESMA. Quer dizer que pode crescer.
Para quem é o museu?
Naftal diz: “Para muitos. Para milhões. Para os de fora. Para jovens, para idosos, para crianças, para argentinos, para estrangeiros. O rabino Daniel Goldman nos contou o que o rabino Marshall Meyer dizia sobre a sinagoga: deve ser o lugar onde o cômodo se sinta incômodo e o incômodo se sinta cômodo. Que o indiferente ou o que não se identificou com a temática dos direitos humanos, quando vier, se sinta um pouco incômodo. Mas que venha. E quem está comprometido ou é um familiar, possa ter um lugar de autocrítica”.
A curadora conta que, entre os museólogos, existe um verbo: to shake. Sacudir. “Sempre discutimos sobre qual é a margem. Claro que é preciso informar o visitante, comunicar, transmitir. Mas, em alguns momentos, também sacudi-lo”.
Graciela Lois, com familiares e um marido sequestrado que passaram pela ESMA, diz que o terrorismo de Estado existiu, e não é uma categoria abstrata e menos ainda uma invenção. “E dentro do terrorismo de Estado houve lugares em que a desumanização foi cruel. Mas também houve estratégias de vida e de resistência daqueles que estiveram presos. Laços de solidariedade. Nasciam crianças”.
“Ela não quer recordar isso porque é modesta, só foi possível transformar toda a ESMA em um espaço de memória e concretizar este projeto possível porque Graciela e Laura Bonaparte, em 1998, apresentaram e ganharam um apoio quando o governo de Carlos Menem queria acabar com tudo”, conta Tarnopolsky. Vocês pensam em reconstruir um campo de concentração? A resposta é negativa. “Em alguns lugares se fez. Villa Grimaldi, no Chile. Para nós, apesar dos relatos, recebemos o edifício vazio. Vazio e 20 anos depois. Não vamos fabricar uma picana elétrica. Não vamos “construir” um campo de concentração. A reconstrução era a tendência dos museus no século XIX. Até colocavam as cores supostamente originais. Hoje isso está malvisto. Existem algumas coisas, como as fotos tiradas pelo Víctor Basterra quando esteve sequestrado na ESMA, e veremos onde as colocaremos. Mas fabricar, nada. Vamos mostrar os originais do acordo das Forças Armadas argentinas com o governo da França para o aprendizado de procedimentos antiguerrilheiros. O Ministério da Defesa nos deu o organograma de como a ESMA entrava no organograma da Marinha. O nosso é clássico: texto, foto, vídeo, e um objeto quase real, se o tivermos”.
A pessoa que entrar na ESMA pode fazer vários percursos com diferentes opções. Poderá fazer o mesmo trajeto que cada um dos milhares de sequestrados fazia – a maioria com o final no lugar onde era levado à morte. Poderá percorrê-la em 15 minutos ou em 4 horas. Dar uma olhada no telão ou se informar mais e tornar a visita mais complexa. Haverá audioguias e as visitas guiadas serão optativas, não obrigatórias, como são hoje.
“A ESMA é o centro emblemático da América Latina e teve ter padrões internacionais de exibição”, opina Naftal. “Há uma necessidade regional de fazer isso na ESMA”. Di Toffino relata que, quando o secretário de Direitos Humanos Martín Fresneda participa de fóruns regionais, sempre lhe perguntam sobre a ESMA.
“A ESMA é Auschwitz da ditadura”, diz Tarnopolsky.
Na entrada, será possível ver uma película de vidro com fotos dos desaparecidos, que não estarão dentro do museu porque os familiares não chegaram a um consenso.
“Há familiares que disseram que não suportariam ver as fotos dos seus ali, por conta do sofrimento”, conta Tarnopolsky, que queria as fotos ali, assim como Lois: “Por que eu disse sim? Porque esse é o último destino do meu marido. Dele e dos meus companheiros. Mas eu quero que ninguém mais sofra e aceito o consenso. Não posso exigir que outros façam o que não conseguem”.
Di Toffino recorda que, em Córdoba, o tema foi muito debatido para os locais em La Perla e na Direção de Inteligência. “As instituições de Córdoba disseram que as fotos ficassem dentro. Combinamos que fossem fotos vivenciais. E o que saiu foi impressionante. Encheram a foto do meu pai de coisas, de mensagens, de homenagens. Somos respeitosos, porque cada um processa a dor de maneira diferente”.
Depois de entrar, haverá uma sala com sistema de projeção 360, em que uma produção do Canal Encontro explicará em sete minutos o que aconteceu entre 1930 e 1976. Na cozinha, será instalada uma sala de julgamentos com tudo sobre a ESMA, e telas para serem consultadas. Durante o trajeto, haverá mais de 100 depoimentos.
No terceiro andar, está o lugar conhecido como Capucha e o quarto das mulheres grávidas. Em uma parte, haverá um monitor, que projetará imagens e depoimentos. “Em Capucha, nada. Você e a sua alma. E não haverá saída. Terá que fazer o percurso de volta”.
Próxima ao tanque, uma equipe potencializará o barulho de lá de fora. O futebol. Os alunos das Escolas Raggio. Os aviões. Os automóveis. O trem. “Reforçará que a ESMA estava inserida em meio à cidade, e a cidade continuava com sua vida habitual, mas isso não será dito explicitamente”, diz Di Toffino.
Natal observa que “na Capuchita trabalhamos sobre os 30 nascimentos na ESMA e, por isso, haverá uma luz muito potente, sem sombras. A luz que dói. Uma luz muito potente. Não há sombra. Escuta-se o depoimento de Sara Solarz de Osatinsky, que acompanhou a metade dos partos e os narra um por um”.
La Pecera mostrará “como funcionava a exploração de mão de obra escrava e a estratégia de sobrevivência”, explica Naftal.
“Recuperar os centros clandestinos é recuperar a vida dos nossos, dar-lhes a vida outra vez”, diz Tarnopolsky. “Não deixá-los no terreno do inimigo, que é onde quiseram deixá-los”, diz Lois como em um sussurro.
A curadora do novo espaço é Alejandra Naftal, sequestrada aos 17 anos e sobrevivente do campo El Vesubio. Ela estudou museologia e foi uma das construtoras do arquivo oral do Memoria Aberta. Durante o kirchnerismo, trabalhou por seis anos com documentação no Ministério da Defesa. O co-curador é Hernán Bisman, responsável por questões visuais e de desenho – fundamentais, visto que o projeto é itinerante e não deve alterar nada do edifício. Naftal conta que escolheram o cassino dos oficiais porque foi “o lugar de alojamento dos presos e o epicentro da mecânica do prédio da ESMA”. E acrescenta sobre o próprio campo de concentração, como se estivesse tudo dito: “E a ESMA é tudo”.
Haverá um cuidado com o rigor? “Nós nos baseamos em documentos, fontes judiciais, acadêmicas, artísticas, jornalísticas e audiovisuais e também no testemunho de vítimas e de familiares”, diz a curadora. “Esses testemunhos são os únicos porque os oficiais nunca falaram. Não contaram a verdade. O que os visitantes escutarão são as vozes dos familiares e dos sobreviventes nos julgamentos”.
Ao redor do mundo, durante os últimos 30 anos, floresceram muitos centros dedicados ao exercício da memória. Os campos de Dachau e Auschwitz, por exemplo. Ou o de Buchenwald, que Jorge Semprún descreveu tantas vezes e onde os diretores do memorial quiseram mostrar como a sociedade alemã sabia que havia um campo a apenas 15 minutos de Weimar. E também o memorial do desembarque na Normandia, França, onde uma sala provoca com a seguinte pergunta: “França, um milhão de resistentes ou um milhão de colaboracionistas?”.
Para Naftal, os lugares para preservação da memória “tem sim que ser diferentes de um artigo, de um livro ou de um filme, porque são os lugares da verdade ‘autorizada’, que para as pessoas é 'a' verdade”, analisa. “É discutível porque é a verdade, não? Mas, para nós, existe a tenacidade de respaldar o que sabemos com fontes documentais. O que usamos são os testemunhos diante da Justiça. O julgamento das Juntas em 1985 e os diferentes julgamentos da causa ESMA dos últimos anos.”
Respondendo sobre a memória, Alejandra Naftal esclarece primeiro que “hoje há um Estado com convicção sobre essa problemática, porque leva adiante os julgamentos e porque transcorreu tempo suficiente, o que permite articular as relações entre história e memória”. E define: “A memória é um músculo muito elástico e seleciona o que lembrar, o que esquecer e como recordar”. Para ela, “é tão elástica que cria ferramentes novas a cada momento”.
Um músculo nas mãos do Estado não pode trazer conflitos? “Pode. Mas os conflitos podem se resolver, e o debate sempre estará aberto. Em contrapartida, com um Estado ausente, não há nada”.
Agustín Di Toffino, chefe de Gabinete da Secretaria de Direitos Humanos e filho de um dirigente sindical cordobense do Sindicato Luz y Fuerza, que foi companheiro de Agustín Tosco e está desaparecido, disse que “o Estado adotou a versão dos sobreviventes e a impulsiona”.
Daniel Tarnopolsky é membro de uma das famílias mais destruídas pela ditadura: foram sequestrados seus pais, Hugo e Blanca, seu irmão Sergio, sua cunhada Laura e sua irmã Betina. Membro da diretoria do Instituto Espaço da Memória, diz que “o projeto é plural e o governo não se intrometeu nos conteúdos”. Acrescentou: “Dá todas as ferramentas e as instituições são as zeladoras, sem interferências”.
Di Toffino, que também milita na organização HIJOS, disse não ter medo do duplo papel desempenhado pelas instituições e pela gestão pública. “Antes construíamos memória marginalizados. Para nós, era mais fácil. Mas, atualmente, com a memória enquanto política de Estado, existe uma tensão. Não temos medo das tensões. Por isso, apoiamos o espaço para o relato dos sobreviventes. É uma questão de acúmulo histórico, de legitimidade de relatos totalmente subestimados, sem governos que processaram o passado com teorias que não tinham a ver com o que aconteceu conosco, como a dos dois demônios, ou o monumento da reconciliação . Agora o Estado encara o relato das vítimas como política de Estado”.
Naftal defende que “uma coisa é ser das instituições e outra é o compromisso com o presente”. A curadora afirma que “pretende-se, nestes lugares, dissolver a política nacional. Não é assim. Isso se dissolve nas eleições, nas lutas partidárias. O museu tem que ser aberto e prolongado no tempo. Um marco que precisa ser estendido. Há muito por investigar, por descobrir, por saber. Por exemplo, quais foram os meios políticos da ditadura nos âmbitos cívico, econômico e militar. Continuamente é preciso discutir. Essa intervenção vai permitir novos olhares”.
Tarnopolsky destaca que o fato de a estrutura do projeto ser móvel dá conta de que é fácil mudar. Naftal recorda que seu desenho não altera o edifício. “É prova material nos julgamentos. Além disso, não tocamos nele para que depois outros possam fazer outras coisas. Virão novas gerações com novos olhares”.
“Há muitos segredos, muitos silêncios, muito material exclusivo, mas se tivermos informações novas, será preciso mudar ou agregar ao conteúdo”, disse Tarnopolsky ao comentar este aspecto do projeto instalado em um lugar de 5300 quadrados como a ESMA. Quer dizer que pode crescer.
Para quem é o museu?
Naftal diz: “Para muitos. Para milhões. Para os de fora. Para jovens, para idosos, para crianças, para argentinos, para estrangeiros. O rabino Daniel Goldman nos contou o que o rabino Marshall Meyer dizia sobre a sinagoga: deve ser o lugar onde o cômodo se sinta incômodo e o incômodo se sinta cômodo. Que o indiferente ou o que não se identificou com a temática dos direitos humanos, quando vier, se sinta um pouco incômodo. Mas que venha. E quem está comprometido ou é um familiar, possa ter um lugar de autocrítica”.
A curadora conta que, entre os museólogos, existe um verbo: to shake. Sacudir. “Sempre discutimos sobre qual é a margem. Claro que é preciso informar o visitante, comunicar, transmitir. Mas, em alguns momentos, também sacudi-lo”.
Graciela Lois, com familiares e um marido sequestrado que passaram pela ESMA, diz que o terrorismo de Estado existiu, e não é uma categoria abstrata e menos ainda uma invenção. “E dentro do terrorismo de Estado houve lugares em que a desumanização foi cruel. Mas também houve estratégias de vida e de resistência daqueles que estiveram presos. Laços de solidariedade. Nasciam crianças”.
“Ela não quer recordar isso porque é modesta, só foi possível transformar toda a ESMA em um espaço de memória e concretizar este projeto possível porque Graciela e Laura Bonaparte, em 1998, apresentaram e ganharam um apoio quando o governo de Carlos Menem queria acabar com tudo”, conta Tarnopolsky. Vocês pensam em reconstruir um campo de concentração? A resposta é negativa. “Em alguns lugares se fez. Villa Grimaldi, no Chile. Para nós, apesar dos relatos, recebemos o edifício vazio. Vazio e 20 anos depois. Não vamos fabricar uma picana elétrica. Não vamos “construir” um campo de concentração. A reconstrução era a tendência dos museus no século XIX. Até colocavam as cores supostamente originais. Hoje isso está malvisto. Existem algumas coisas, como as fotos tiradas pelo Víctor Basterra quando esteve sequestrado na ESMA, e veremos onde as colocaremos. Mas fabricar, nada. Vamos mostrar os originais do acordo das Forças Armadas argentinas com o governo da França para o aprendizado de procedimentos antiguerrilheiros. O Ministério da Defesa nos deu o organograma de como a ESMA entrava no organograma da Marinha. O nosso é clássico: texto, foto, vídeo, e um objeto quase real, se o tivermos”.
A pessoa que entrar na ESMA pode fazer vários percursos com diferentes opções. Poderá fazer o mesmo trajeto que cada um dos milhares de sequestrados fazia – a maioria com o final no lugar onde era levado à morte. Poderá percorrê-la em 15 minutos ou em 4 horas. Dar uma olhada no telão ou se informar mais e tornar a visita mais complexa. Haverá audioguias e as visitas guiadas serão optativas, não obrigatórias, como são hoje.
“A ESMA é o centro emblemático da América Latina e teve ter padrões internacionais de exibição”, opina Naftal. “Há uma necessidade regional de fazer isso na ESMA”. Di Toffino relata que, quando o secretário de Direitos Humanos Martín Fresneda participa de fóruns regionais, sempre lhe perguntam sobre a ESMA.
“A ESMA é Auschwitz da ditadura”, diz Tarnopolsky.
Na entrada, será possível ver uma película de vidro com fotos dos desaparecidos, que não estarão dentro do museu porque os familiares não chegaram a um consenso.
“Há familiares que disseram que não suportariam ver as fotos dos seus ali, por conta do sofrimento”, conta Tarnopolsky, que queria as fotos ali, assim como Lois: “Por que eu disse sim? Porque esse é o último destino do meu marido. Dele e dos meus companheiros. Mas eu quero que ninguém mais sofra e aceito o consenso. Não posso exigir que outros façam o que não conseguem”.
Di Toffino recorda que, em Córdoba, o tema foi muito debatido para os locais em La Perla e na Direção de Inteligência. “As instituições de Córdoba disseram que as fotos ficassem dentro. Combinamos que fossem fotos vivenciais. E o que saiu foi impressionante. Encheram a foto do meu pai de coisas, de mensagens, de homenagens. Somos respeitosos, porque cada um processa a dor de maneira diferente”.
Depois de entrar, haverá uma sala com sistema de projeção 360, em que uma produção do Canal Encontro explicará em sete minutos o que aconteceu entre 1930 e 1976. Na cozinha, será instalada uma sala de julgamentos com tudo sobre a ESMA, e telas para serem consultadas. Durante o trajeto, haverá mais de 100 depoimentos.
No terceiro andar, está o lugar conhecido como Capucha e o quarto das mulheres grávidas. Em uma parte, haverá um monitor, que projetará imagens e depoimentos. “Em Capucha, nada. Você e a sua alma. E não haverá saída. Terá que fazer o percurso de volta”.
Próxima ao tanque, uma equipe potencializará o barulho de lá de fora. O futebol. Os alunos das Escolas Raggio. Os aviões. Os automóveis. O trem. “Reforçará que a ESMA estava inserida em meio à cidade, e a cidade continuava com sua vida habitual, mas isso não será dito explicitamente”, diz Di Toffino.
Natal observa que “na Capuchita trabalhamos sobre os 30 nascimentos na ESMA e, por isso, haverá uma luz muito potente, sem sombras. A luz que dói. Uma luz muito potente. Não há sombra. Escuta-se o depoimento de Sara Solarz de Osatinsky, que acompanhou a metade dos partos e os narra um por um”.
La Pecera mostrará “como funcionava a exploração de mão de obra escrava e a estratégia de sobrevivência”, explica Naftal.
“Recuperar os centros clandestinos é recuperar a vida dos nossos, dar-lhes a vida outra vez”, diz Tarnopolsky. “Não deixá-los no terreno do inimigo, que é onde quiseram deixá-los”, diz Lois como em um sussurro.
(Publicado originalmente no Portal Carta Maior)
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