O soldado antropofágico fica além do universo de obras que se pode resenhar. Não se resume, não se conclui nem se define. Uma obra do tamanho de nossa complexidade e de nossa permanente crise, nossa, de “brasileiros” e “brasileiras”, seja lá o que for isso. Conjunto de reflexões diante do espelho. Conseguimos nos enxergar nesses reflexos? Corre no vulgo que o Brasil não é para amadores – frase que reiteramos enigmaticamente para os gringos. O fundo moral disso rebate nossa complexidade como povo. Hoje, nomeadamente desde o golpe de 2016, vivemos a vertigem da imensa dificuldade – para muitos, como eu, da absoluta incapacidade – de compreensão desse estado de coisas a que chegamos. Ataques cotidianos, inclusive por parte do Estado, aos mais básicos parâmetros de humanidade, urbanidade, civilidade e respeito. Desprezo generalizado à vida, à dignidade, ao outro – “outro” não branco, não macho, não hetero, não rico.
“Como chegamos a isso?” Essa indagação vem a calhar, pois remete aos fundamentos do problema e ao tratamento dado a ele na obra. “Chegamos aqui” no tempo; não se faz sentido desse presente agônico sem observá-lo, mais que no tempo, na longa duração. “Fazer sentido”, exercício hermenêutico, interpretação, como o exegeta interpreta o texto, o jurista a lei face ao caso, o psicanalista o trauma pela narração de si.
Aqui já outra imensa contribuição dessa obra cifrada, que abre questões mais do que as pretende resolver: interpretar o “sujeito Brasil”, atitude intelectual que se insere numa tradição tão importante, hoje abertamente desprezada e atacada por muitos – a do ensaio crítico de interpretação, que produziu a linhagem do “pensamento social brasileiro” ao longo do século 20. Só por essa contribuição, a obra já deve ser bem-vinda. Ab’Sáber, professor e psicanalista, mobiliza no seu ensaio de crítica cultural um patrimônio gigantesco de sonhos e pesadelos, inscritos na história, no direito, na literatura, na música e na cultura em geral.
A profundidade do buraco em que nos encontramos estava a exigir um exercício de pensamento que as abordagens disciplinares convencionais não dão conta. Isoladamente, antropologia, sociologia, estudos literários, a própria psicanálise, tampouco a disciplina histórica, conseguem mobilizar tantos e tão diversos elementos numa mesma equação para tentar fazer sentido do nosso tempo, do não lugar a que chegamos. A história talvez guarde a chave mais importante da decifração de nossa esfinge, mas tampouco ela seria capaz de montar a equação sozinha. Embora Tales tenha sacado e nos ofereça no livro a importância da persistência, da quase invariância de algumas estruturas sociais e mentais de longa duração, forjadas historicamente na própria constituição da sociedade escravocrata que ainda somos. Isso por um lado. Por outro, nossa insistente prática do veto à enunciação, a persistência do não dizer, a sublimação do outro, a não presença em seu silenciamento, humus da subjetivação biopolítica do Brasil.
A exegese do paciente Brasil no divã de Tales põe em revista conceitos que aqui perderam – ou ganharam – sentidos outros, como, em especial, o de “modernidade”, produtor, desde os turvos inícios da nação-Estado, do autorretrato distorcido da elite escravocrata brasileira, que se via europeia e civilizada ao promover a recusa simbólica de ativamente não dizer a realidade que a sustentava, não enunciar a escravidão. Elite que, na primeira metade do século 19, conseguiu produzir uma não literatura, ou uma literatura de formas vazias, desconectas do tempo. A escravidão e os escravizados, por essa época, só ponteavam nos códigos legais, criminais. Foi como se o final da Guerra do Paraguai tivesse despertado o escritor brasileiro para o fenômeno da escravidão, que, no entanto, era quase toda a vida ao redor.
Elite – precisamos falar de nossas elites, passadas e presentes! – que, encampando as abstrações das fórmulas do amor romântico importadas, se esmerou desde o início a recalcar o erotismo criativo da cultura popular. A polícia foi braço forte e mão nem um pouco amiga para perseguir fados e lundus, capoeiras e candomblés, quaisquer sinais de vida criativa que brotasse nas ruas pretas das cidades brasileiras. Reprimindo o erótico e o alegre, essa classe “civilizada” foi-se fazendo pobre, triste, casmurra, doente. Talvez a realidade da escravidão, sustentáculo de sua riqueza, prestígio e poder, fosse-lhe tão insuportável, que essa elite adotou o dispositivo de não ver ou, ao menos, não dizer a própria realidade – ou ao menos mantê-la na distância contemplativa, sem qualquer vínculo de empatia real.
No máximo, a arrogância do pietismo patriarcal, tão bem expressa em autores escravistas que saíram do armário depois dos anos 1870, como José de Alencar, para quem a massa miserável de escravizados não fazia jus à benevolência paternal que lhes devotava a beata classe branca proprietária – nossa voluntariamente alienada elite, criticada na literatura por Antonio Candido e no cinema por Paulo Emílio; elite que se ufana da própria ignorância, da boçalidade do mal, em seu total descompromisso com a inteligência.
Tales percorre esse vasto menu de iniquidades e recalques mobilizando com equilíbrio e sensibilidade a melhor e a pior expressão da cultura nacional, ou de estrangeiros que experimentaram desse caldo, de Schlichthorst e Fernand Denis a Tom Jobim e os tropicalistas, de Tomás Antônio Gonzaga e Santa Rita Durão a Mário de Andrade, de Debret a Glauber Rocha, de Januário da Cunha Barbosa a Paulo Emílio Salles Gomes e Anna Muylaert, e por aí afora e adentro. Isso em fino diálogo com os mestres de nossa crítica cultural e exegetas do Brasil, como Joaquim Nabuco, Faoro, Florestan, Freyre, Sérgio, Prado Jr, Veríssimo, Antonio Candido, Bosi, Wisnik, Paulo Arantes, Saffioti, Beatriz Nascimento, Sueli Carneiro, Lélia Gonzales, Leda Martins e, o interlocutor entre interlocutores, Roberto Schwarz. A referência à melhor historiografia, outro traço marcante da obra, vem de braços dados com um seleto escol de pensadores, dos clássicos como Weber, Marx e Foucault aos pós-coloniais como Mbembe a Angela Davis.
Nesse itinerário de longa duração, Tales inscreve questões centrais como nossa histórica e proverbial dificuldade de simbolização da escravidão e seus males, nosso recalcitrante negacionismo, o “pacto do silêncio estrutural” a respeito da escravidão, nosso insuperável anti-intelectualismo, sexismos, racismos, tão evidentes nestes dias de paupéria. Esse livro não se escreveria em outra forma que o ensaio. Como aqui forma e conteúdo se fundiram tão bem! Vem-me imediatamente “O ensaio como forma”, de Adorno. Busca da liberdade. Tudo aquilo que é do ser humano, do espírito, da vida, não cabe em qualquer fórmula, nem na rigidez artificial do raciocínio dedutivo. É preciso desejar a liberdade. E o caminho da redenção está na forma de expressão libertária do ensaio. Monsieur de Montaigne é persona non grata no círculo apolíneo da ciência. É preciso inocular a irresponsabilidade do livre pensamento pulsional no quartel general da doxa, nessa empresa produtora e reprodutora de lugares comuns que se perpetua na observação escrupulosa de suas regras internas de legitimação, com um toque retrógrado de corporativismo, rendida e vendida à cultura oficial. O ensaio se realiza plenamente nessa obra.
Poucos capítulos da história intelectual brasileira conseguiram extrair tanto sentido de um acontecimento fortuito, o encontro de uma beldade escravizada cheia de bossa, vendedora de doces nas ruas do Rio de Janeiro, com o viajante estrangeiro arguto e encantado, que deixou desse encontro o precioso registro, matéria prima trabalhada por Tales.
Depois de O soldado antropofágico, o que faltará ser dito para que nós, brasileiros de hoje, despertemos do sono letárgico das fabulações escravocratas da docilidade paternalista, da candura cristã, da dignidade concedida, da afabilidade superior, para conseguirmos enxergar enfim que o pesadelo não acabou, de que a escravidão não é passada, mas viva e presentemente reiterada na exploração dos corpos, na privação dos direitos, na violência cotidiana do Estado e da minoria branca privilegiada contra esse outro que grita e chora, mas que não se ouve, que gesticula e sangra, mas que não se vê? Faltava dizer-se aquilo que se não dizia, sobretudo das elites escravocratas de ontem e de hoje. Não falta mais. Tales o enunciou, afinal.
Jurandir Malerba é historiador, professor titular livre na UFRGS, autor de, entre outros, A corte no exílio: civilização e poder no Brasil às vésperas da independência (1808–1821).
(Publicado originalmente no site da revista Cult)