pub-5238575981085443 CONTEXTO POLÍTICO.
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quinta-feira, 6 de outubro de 2016

Michel Zaidan Filho: Em nome de Jesus

                                      

Fui submetido a uma bateria de questões, por um amigo-editor, sobre o resultado das últimas eleições municipais no Brasil. Essas eleições ocorreram num ambiente de profunda insegurança jurídica, de impunidade (em relação aos políticos “ficha suja”), de um monopólio “partidário” dos meios de comunicação, do desgaste político do PT e da esquerda, do crescimento do voto evangélico e, porque não dizer, de um Estado de Exceção, capitaneado pelo  Polícia Federal e o ativismo da Magistratura. 

Como apurou a mídia, as candidaturas mais bem aquinhoadas financeiramente venceram ou foram para o segundo turno das eleições. Os grandes partidos, sobretudo da centro-direita, aumentaram suas bancadas. Os candidatos da igreja reformada chegaram ao segundo turno. De forma que, pelo andar da carruagem, teremos legislaturas e executivos municipais mais á direita, mais conservadores. Diria um pescador (não de almas ou de águas turvas), o mar não está para peixe. Retrocedemos à época em que a nossa política de sobrevivência é a defesa dos mínimos sociais, numa frente de massas, diante das ameaças desse governo temerário, composta de aposentados, trabalhadores, estudantes, funcionários públicos, donas de casa,  pessoas sem-teto, sem emprego, sem escola etc.

Não fosse a ida de Marcelo Freixo (PSOL) para o segundo turno, no Rio de janeiro, contra o bispo da igreja universal, e a ida de João Paulo, no Recife, contra o representante local da oligarquia política que tanto nos infelicita aqui, dir-se-ia que a catástrofe política teria se abatido de uma vez sobre o país, com  ou sem a benção do nosso senhor Jesus Cristo. Já o reflexo disso sobre as eleições presidenciais e estaduais, daqui a dois anos, não prenunciam boas novas. A depender do curso da economia (e da crise internacional), base fisiológica de sustentação do atual mandatário presidencial, e da conspiração dos partidos que o colocaram na cadeira da Presidente Dilma pode-se ter ainda muitas surpresas desagradáveis nesse ínterim eleitoral. Fala-se em eleição indireta, em 2017, já com pretensos candidatos.

Afirmei que o ciclo político de centro-esquerda tinha se esgotado no Brasil, e que não tinha aparecido alternativas fortes, consistentes, que pudessem se apresentar à exaustão do ciclo político. O nome de Lula não pode ser essa única alternativa. Sobretudo, em face das manobras e escaramuças do juiz Sérgio  Morro, destinado como está a criminalizar o PT e suas lideranças políticas. O PSOL ainda não tem a musculatura suficiente para oferecer um nome e granjear alianças necessárias para tornar viável uma candidatura presidencial. Tem um longo caminho a percorrer. Não acredito também na viabilidade eleitoral de qualquer um dos  caciques do PSDB, apesar da vitória do empresário e marqueteiro João Dória, eterno adulador dos tucanos.

Assim, se a crise  econômica perdurar,  a  solerte invasão religiosa continuar, se uma certa classe media reproduzir o noticiário venenosa da mídia golpista desse país e a ditadura do Judiciário  se manter, fora de toda e qualquer controle constitucional, a porta estará aberta a todos os aventureiros, messias, salvadores da pátria de todas as igrejas existentes. Nem sempre a crise política e econômica, num ambiente de perda de confiança nas instituições republicanas, é uma janela de oportunidade para candidaturas progressistas e mais avançadas. Pode ser o atalho perigoso para o discurso da frustração política, dos “outsiders”, dos que se proclamam não-políticos, mas portadores da eficiência, da competência gerencial, da honestidade a toda prova etc.


Se  fosse religioso e frequentasse algum templo, rezaria muito  para que este tipo de messias não aparecesse tão cedo. E que o apocalipse da democracia fosse evitado.

Michel Zaidan Filho é filósofo, historiador, cientista político, professor titular da Universidade Federal de Pernambuco e coordenador do Núcleo de Estudos Eleitorais, Partidários e da Democracia - NEEPD-UFPE

terça-feira, 4 de outubro de 2016

O xadrez político das eleições de 2016, no Recife: Divorciado da classe média, a alternativa petista é concentrar esforços na periferia.


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José Luiz Gomes



A julgar pelo que ocorreu com as forças do campo progressista nestas eleições municipais, notadamente o PT, João Paulo ter conseguido levar as eleições do Recife para um segundo turno já pode ser contabilizado como uma grande vitória. Hoje, quando lançamos os olhares para o cenário político de Brasília, a unidade de análise se concentra quase que exclusivamente sobre o que poderá ocorrer entre "eles", posto que estamos bem próximo àquele cenário imposto pela Ditadura Militar de 1964, ou seja o de uma oposição consentida, sem chances efetivas de ocupar determinados níveis de poder. Estava ali apenas para salvar as aparências, bem ao estilo daquela atipicidade brasileira, que até os militares desejavam preservar. Neste contexto, aguardamos o lance de uma briga de foice entre o PMDB e o PSDB, travada nos estertores, sem participação popular. 

João Paulo não fez feio nessas eleições. Jogou limpo, defendeu o seu legado administrativo durante os dois mandatos que ocupou no Palácio Antonio Farias, trouxe Lula para participar da campanha e disse como poderia cuidar ainda melhor do recifense. Passou o recado das forças progressistas para milhões de eleitores, mesmo diante das adversidades; o menor espaço nas mídias e até diante de hostilidades, como aquela da qual foi vitima durante um almoço com correligionários em um shopping center da capital. Como ele mesmo afirmou, a luta foi muito desigual. Geraldo tinha a máquina, centenas de candidatos a vereador, um tempo de televisão bem superior ao seu e um eleitorado anti-petista consolidado, forjado na intensa campanha midiática com o propósito de promover o "assassinato simbólico" de uma legenda. Uma ajuda e tanto com que as forças conservadores contaram nessas eleições municipais. 

Já nas eleições de 2012, segundo soube, um ex-governador teria dado alguns murros na mesa, irritado pelo fato de que aquelas eleições estavam indo para um segundo turno, provocada pela performance do então candidato Daniel Coelho. Sobrou para o marqueteiro da campanha socialista à época, Diego Brandy. Vivo fosse, sua reação poderia ser a mesma nessas últimas eleições. Embora não tenha nenhum problema em admitir meus equívocos - e me expor também - é difícil apontar erros e acertos por aqui e de como eles poderiam ter sido decisivos no resultado dessas eleições, que ainda não estão definidos. Creio ter publicado, num dos artigos, algumas observações a esse respeito, a partir de algumas hipóteses levantadas pelo cientista político Roberto Numeriano. Incrível como os nossos analistas políticos andam ausentes desse debate, por vezes, construindo frases enigmáticas e apenas isso.

Agora, então, é que eles não vão arriscar nenhum prognóstico. Os candidatos Priscila Krause(DEM) e Daniel Coelho(PSDB) se mostraram reticentes em manifestar apoio ao nome o prefeito Geraldo Júlio(PSB) agora no segundo turno das eleições. Entende-se. Foram ferrenhos críticos da gestão de Geraldo Júlio, muito antes mesmo das eleições. As lideranças desses partidos, no entanto, já se anteciparam em anunciar que deverão apoiar o nome de Geraldo neste segundo turno, apesar das arestas com o governador Paulo Câmara, que rompeu com ambos. Mas, como diria o ex-governador Paulo Guerra, em política não existem nunca nem jamais, o que nos parece que está em jogo é a situação de alguns caciques dessas legendas na composição da chapa ao senado em 2018. 

O ministro da educação, Mendonça Filho(DEM), disputaria uma das vagas, assim como o ministro das Cidades, Bruno Araújo(PSDB), também teria interesse na outra vaga. No caso de Bruno, seria necessário, antes, combinar isso com o ex-prefeito de Jaboatão dos Guararapes, Elias Gomes, mas este sai com o seu prestígio arranhado depois das refregas sofridas no Cabo e no seu reduto eleitoral, Jaboatão, com a derrota de Heraldo Selva. Como se vê, a luta continua muito desigual. Na gestão do executivo municipal e estadual, os "socialistas" teriam muito maior poder de barganha.   

A última inserção de TV que vi da campanha do candidato Geraldo Júlio, ele aparecia nos morros do Recife, subindo escadarias e muros de arrimo com os moradores, conversando com populares e, depois, reunindo-se, na Prefeitura, com os seus secretários, para a cobrança de ações com o objetivo de resolver problemas enfrentados por aquela população. Bem ao estilo, creio, daquela observação que fizemos no sentido de que ganharia essas eleições aquele candidato que demonstrasse que poderia cuidar melhor do recifense. Nos últimos dias de campanha, também observamos uma intensa movimentação do candidato João Paulo junto aos bairros de periferia. No sábado último, ele ainda convidaria os eleitores para uma caminhada no bairro do Ibura. 

Há quem diga que um dos erros de João Paulo teria sido a tentativa de reaproximação do eleitorado de classe média, que o apoiou nas duas vezes em que ele foi eleito para dirigir os destinos do Recife. De fato, por razões bem conhecidas, essa parcela do eleitorado se mostrou bastante reticente a esse reatamento. Parece-nos aqui que estamos tratando de um divórcio litigioso. O esforço concentrado, portanto, deve ser mesmo nos bairros de periferia, onde o eleitorado é mais sensível ao PT. A tese da polarização dos "golpistas e não-golpistas", a julgar como procedente a avaliação da candidata derrotada nas eleições de Olinda, Luciana Santos, de que perdeu as eleições por defender a presidente Dilma Rousseff, parece que também fica enfraquecida, sobretudo em função desse clima de aparente normalidade em que estamos vivendo, artificialmente criado e matreiramente alimentado. 

domingo, 2 de outubro de 2016

Tijolinho: Lula e Temer em tempo de votação


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O senhor presidente Michel Temer passou a tomar muito cuidado com as suas aparições públicas. A rigor, esse cuidado seria natural a qualquer político, até mesmo entre aqueles que gozavam de grande popularidade, como o ex-governador Miguel Arraes de Alencar, que calculava muito bem suas aparições públicas. O grande problema relacionado ao presidente Michel Temer é que, em razão da função que ocupa, essas aparições são frequentes e inevitáveis. E, todas as vezes em que ele precisa sair da redoma do Jaburu, as hostilidades são inevitáveis. No caso dele, não existe este ou aquele momento mais favoráveis. Todos os momentos são desfavoráveis.  

A saída tem sido encurtar essas aparições, criar barreiras de proteção, aumentar o som do ambiente para que os apupos não sejam captados pelas redes de TV. No dia de hoje, por exemplo, havia uma programação de que ele chegasse no local de votação por volta das 11:00 horas. Ele resolveu antecipar este horário, até mesmo para antes das 8:00 horas, com o objetivo de evitar possíveis hostilidades. O índice de desaprovação do governo Temer é altíssimo. Apenas 13% da população brasileira aprova o seu governo. E olha que isso foi bem antes dele anunciar algumas medidas do seu pacote de maldades. Votei num grupo escolar de minha cidade e tive a curiosidade de observar alguns cartazes expostos pelos alunos: todos contestavam as recentes medidas previstas para a reforma do ensino médio. 

O inverso disso é o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, que votou por volta das 11:30 horas, na região de São Bernardo, reduto tradicional do PT. Uma festa de recepção, com direito a fotos, abraços e afagos do público, numa grande demonstração de popularidade. Ao contrário de Temer, Lula deve sentir tesão em ir às ruas, encontrar-se com o seu povo. Há uma semana atrás, num esforço derradeiro para alavancar o nome de Fernando Haddad na disputa da capital paulista, ele realizou o mesmo feito. Pelas pesquisas de boca de urna, tudo indica que ele deve colher os resultados satisfatórios: É quase certo um segundo turno em São Paulo, entre Fernando Haddad(PT) e João Dória(PSDB). Haddad pode atingir um índice superior a 20% do eleitorado. 

Tijolinho: Datafolha confirma Haddad no segundo turno em São Paulo.




O Partido dos Trabalhadores enfrenta dificuldades em todo o país. Setores conservadores desenvolvem ações conjunta no sentido de promoverem uma espécie de linchamento moral do partido. Isso não teria como não ter reflexos nessas eleições municipais e o PT, certamente, acusará esse golpe. Numa estimativa até otimista, acredita-se que o partido deverá perder a metade das prefeituras conquistadas nas últimas eleições. A prisão preventiva do ex-ministro Antonio Palloci ocorreu praticamente às vésperas das eleições, num claro indício da manobra denunciada como "Boca de Urna". A batalha das batalhas, como sempre será São Paulo, a maior capital do país, reduto tradicionalíssimo dos tucanos. 

Mesmo com o possível fraco desempenho da legenda em outras praças do país, infligir uma derrota ao candidato tucano em São Paulo, João Dória, lavaria a alma da legenda. Não é uma tarefa fácil, mas também não é impossível. A vitória de Haddad nas eleições de 2012 já representou uma grande conquista para o PT no ninho mais emplumado dos tucanos. Este ano tem alguns ingredientes novos, como o afastamento da presidente Dilma Rousseff da presidência da República, num processo jurídico nebuloso, que alguns juristas tentam "justificar" através de expedientes ainda pouco convincentes, como assinalou, em artigo publicado aqui no blog, o cientista político Michel Zaidan Filho. 

A última pesquisa do Instituto Datafolha confirma um segundo turno em São Paulo. João Dória(PSDB) aparece com 44% das intenções de voto, Russomanno(PRB) com 16%, Haddad(PT) com 16% e Marta Suplicy(PMDB) com 14%. Não há qualquer dúvida de que teremos um segundo turno. Entre outras coisas, será mais uma oportunidade para acompanharmos a degenerescência ideológica da senhora Marta Suplicy, que deverá compor com os golpistas sem a menor cerimônia. Para ela, definitivamente, não há mais caminho de volta. Na reta final da campanha, o ex-presidente Lula acompanhou Haddad em tradicionais redutos eleitorais responsáveis pelas históricas "viradas" do partido nas eleições municipais da capital. Nas últimas horas, parece que o eleitorado reagiu bem a uma frase utilizada pelo ex-presidente durante as incursões pelos bairros periféricos: Sim. Eu montei uma quadrilha para tirar 36 milhões de brasileiros da extrema pobreza.

P.S.: Do Realpolitik: Se, por um lado, a pesquisa do Datafolha indicava um crescimento do candidato do PSDB, João Dória Junior, por outro lado, esta mesma pesquisa previa a possibilidade concreta de um segundo turno entre o candidato tucano e o petista Fernando Haddad(PT), o que acabou não ocorrendo. Em alguns casos, Haddad, aparecia com 20% das intenções de voto. Aqui também contou um pouco da torcida do editor do blog.

Charge! Renato Aroeira via Facebook

sábado, 1 de outubro de 2016

Tijolinho: Olinda: 20 anos de gestão comunista?



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O eleitorado é sempre soberano e a sua vontade deve ser respeitada num regime democrático. Embora os exemplos no plano federal não sejam dos melhores - "impeachment" da presidente Dilma - os verdadeiros democratas devem se empenhar por eleições livres e limpas, guindando ao poder atores políticos que respeitem essas regras e se conduzam de forma correta na gestão dos negócios públicos. O PCdoB está há 16 anos na gestão da cidade histórica de Olinda. O desgaste seria natural e, para a saúde de um dos pilares da democracia - o rodízio do poder - seria salutar que houvesse uma "oxigenação" na gestão da cidade. Tudo leva a crer, no entanto, que isso não passa de raciocínios de sábados à noite, de algum cientista político utópico. O quadro que se apresenta no cenário de 02 de outubro é o de que a candidata Luciana Santos(PCdoB), estará num possível segundo turno daquelas eleições municipais, contrariando alguns diagnósticos iniciais.

Conheço a candidata Luciana Santos desde a época da militância estudantil, na UFPE. Trata-se de uma candidata carismática, com um excelente nível de organicidade ou capilaridade política no município, o suficiente para "descolá-la" da figura do ex-prefeito Renildo Calheiro, cuja popularidade não é das melhores. Matreira, a candidata também deu uma forcinha a essa descolamento de imagem, não permitindo que ele empurrasse o andor. Poderia levá-la ao precipício. A grande disputa em Olinda, amanhã, é, na realidade, sobre quem vai para o segundo turno com a candidata do PCdoB. Há três nomes cotados pra este embate: Antonio Campos(PSB), Izabel Urquiza(PSDB) e, assim como um "azarão", o professor Lupércio, do Solidariedade. O professor é bom de urna. Pode ter fôlego para chegar a um segundo turno. Tereza Leitão, infelizmente, não conseguiu lidar com o "travamento" petista, mas, do ponto de vista republicano, seria um bom nome.

Como candidato, o senhor Antonio Campos continua sendo um literato. No caso dele, essa transição de um "campo" parece outro para que não será uma tarefa assim tão simples. Acrescente-se o fato de ele ter sido abandonado pela família Campos, que não teria sido consultada sobre os seus projetos políticos. Os Campos se abstiveram de participar de atos de campanha na cidade, sob o "argumento" de o Palácio apoiar mais de um nome na cidade. O que nos parece que está em jogo, na realidade, é um problema mal resolvido de sucessão familiar. Embora seja difícil precisar o potencial apoio dos Campos ao seu projeto político, o "não apoio", por outro lado, pode ser metido por uma fala de uma popular, no dia de ontem, aqui na praia de Casa Caiada: nem a família o apoiou. Sabe-se o que significa isso no "imaginário popular". Em todo caso, a despeito das dificuldades iniciais, ele é hoje o nome com maiores chances de ir a um segundo turno com a comunista Luciana Santos. 

P.S.:Do Realpolitik: Aqui em Olinda, todas as pesquisas sobre a intenção de voto dos olindenses indicavam que a candidata comunista, Luciana Santos, apesar do desgaste da gestão de Renildo Calheiro, iria para o segundo turno com um dos postulantes, com maior probabilidade de ser Antonio Campos(PSB) ou Izabel Urquiza. A probabilidade do professor Lupércio ir ao segundo turno era menor, mas nós aqui do blog alertamos para o fato de o candidato, bom de urna, surpreender. De fato isso ocorreu e o professor Lupércio está no segundo turno das eleições em Olinda.  


Tijolinho: O imbróglio socialista-tucano em Jaboatão dos Guararapes.


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Segundo colégio eleitoral do Estado, território de disputas políticas renhidas, a cidade de Jaboatão dos Guararapes tornou-se o palco de uma grande dor de cabeça para socialistas e tucanos nessas eleições municipais. Tucanos de alta plumagem defendiam a tese de que o prefeito Elias Gomes(PSDB) comandasse o seu processo sucessório, não permitindo ingerência demasiada do Palácio do Campo das Princesas. Com alguns nomes de sua estrita confiança como pré-candidatos, Elias esticou o cabo de guerra com o Campo das Princesas até às últimas consequências, cedendo, já no final, ao aceitar a indicação de Heraldo Selva(PSB) como cabeça de chapa, indicando a vice. Heraldo é parente de Renata Campos, esposa do ex-governador Eduardo Campos.

Muitas coisas estavam em jogo no arranjo que tornou possível a candidatura de Heraldo Selva, inclusive um possível apoio do Palácio do Campo das Princesas ao nome de Elias Gomes para a disputa do Senado Federal nas eleições majoritárias de 2018. O acordo previa empenho do governador na eleição de Heraldo Selva, retirada de candidaturas, apoio de deputados com base eleitoral no município, "isolamento" de candidatos etc. Tudo isso estava previsto com o objetivo de alavancar o nome de Heraldo Selva na disputa. O que seguiu, na prática, foi uma sucessão de erros - alguns primários - que culminaram com o fraco desempenho do candidato socialista na disputa. A situação complicou-se a tal ponto de o ex-prefeito agendar uma reunião de "emergência" com o governador Paulo Câmara. Segundo ele, alguns acordos não teriam sido cumpridos.

O fato concreto hoje é que há uma possibilidade real do nome de Heraldo Selva(PSB) não disputar o segundo turno daquelas eleições, o que representaria uma grande derrota para o ex-prefeito Elias Gomes(PSDB). Até pesquisas falsas andaram divulgando nas redes sociais no sentido de inflar o nome do socialista no pleito. Saindo um pouco da fantasia e dos possíveis acordos não cumpridos, as verdadeiras pesquisas de intenção de voto indicam uma disputa acirrada entre os candidatos Anderson Ferreira(PR), Manuel Neco(PDT) e Cleiton Collins(PP). A partir de amanhã deveremos saber quem deve ir para o segundo turno daquelas eleições. Assim como ocorre com a cidade de Abreu e Lima, na região metropolitana do Recife, os votos dos evangélicos são decisivos na definição do pleito. Tanto Anderson quanto Collins possuem base evangélica. Neco, um pouco menos, mas, por outro lado, penetra firme numa parcela do eleitorado, digamos assim, mais "popular", que já deu vitórias históricas ao ex-prefeito Nilton Carneiro. É esperar para ver. 

P.S.:Do Realpolitik: Aqui, erros mesmo podem ser apontados na estratégia adotada pela cúpula socialista e tucana na definição do nome que iria para disputa. Havia, de acordo com o ex-prefeito Elias Gomes, uma série de medidas que precisariam ser adotadas pelo Campo das Princesas, evitando, assim, a pulverização dos votos do candidato governista, Heraldo Selva. Algumas "insatisfações" das hostes socialistas locais também foram muito mal-administradas, gerando o famoso "corpo mole" entre alguns atores políticos. Um pouco mais calmo, depois da ressaca eleitoral que o vitimou em Jaboatão dos Guararapes e Cabo de Santo Agostinho, Elias admite seus erros pessoais na condução do processo sucessório, como a demora em bater o martelo sobre o candidato que teria seu apoio no pleito deste ano. O erro desse timing teria sido determinante e de sua inteira responsabilidade. 


Michel Zaidan Filho: Ainda sobre o Estado de Exceção no Brasil




A publicação do artigo sobre o “Impeachment” da Presidenta Dilma Vania Rousseff, de autoria do professor de Filosofia do Direito, João Maurício Adeodato teve o mérito de mobilizar a “inteligenzia” jurídica do país em torno da argumentação filosófica e jurídica empregada pelo autor para justificar o ato impeditivo, com base nas teorias de Nico Luhmman e Karl Schimdt. Do primeiro, ele toma de empréstimo a teoria da “legitimação pelo procedimento”, sobretudo quando aclamado por uma maioria ativa. Do segundo, a tese muito apreciada pelos nazistas do chamado “decisionismo político”. É desse jurista conservador alemão a obra tão lida e discutida, nos dias de hoje, sobre o “Estado de Exceção”. Antes de qualquer coisa, acrescente-se que o professor pernambucano já se disse, mais de uma vez, adepto das doutrinas neo-nominalistas e relativistas da Ética, do Direito e da Política. 

Certamente, influenciado pela teoria dos “atos retóricos”, de nítida inspiração wittgensteiniana e sua filosofia sobre “os jogos de linguagem”, onde o Direito é apenas uma modalidade de um jogo de linguagem. A chamada “virada linguística” do Direito, no pensamento deste autor, não leva a uma legitimação do discurso jurídico pelas pretensões de validade do operador do direito, no processo argumentativo (provas e contraprovas), mas a uma legitimação pelo procedimento discursivo, seguir as regras do discurso. E ponto.

Feito esse introito, cabe agora perguntar: estamos ou não diante de um “Estado de Exceção” mal disfarçado de democracia no Brasil? O funcionamento formal e ritual das instituições prova que vivemos num regime democrático, ainda que de baixa intensidade? – Essa é a questão.O professor João Maurício Adeodato  apoiado nesses autores alemães  já mencionados, afirma categoricamente que sim. Afinal, o processo de impedimento da Presidenta eleita seguiu o ritual previsto pela Constituição (legitimação pelo procedimento), e os atos juridicamente discutíveis que levaram tanto a magistratura, como os políticos do Congresso Nacional a tirarem-na da cadeira presidencial, mesmo admitindo  a inexistência de crime de responsabilidade (pelas operações de crédito, ou pedidos de créditos suplementar, sem a autorização da Comissão de orçamento do Senado federal) poderiam ser explicados pela doutrina schmditiana do “decisionismo político”. 

Se isso pode ser aceito, então temos de admitir que  estaríamos, sim, num “Estado de exceção”, não mais episódico, como diz Liana Cirne, mas declarado e permanente. Onde para os inimigos, a classe trabalhadora e o povo, a lei é a lei penal, os tipos penais. Não preciso lembrar que a uma lei antiterror em vigência no Brasil, usada recorrentemente para criminalizar os movimentos de protesto social. Os atos recentes do juiz Sérgio Morro, suas pregações cívico-religiosas em Igrejas reformadas, justificando suas ações, as declarações do procurador Deltran Dallagnol,  os anúncios antecipados de prisões, conduções coercitivas e intimações pelo “Ministro” da Justiça, a atitude de passividade e cumplicidade do CNJ, das Corregedorias de Justiça e do próprio STF, sobre os abusos cometidos  contra cidadãos e cidadãs,  pela discricionariedade de certos magistrados e procuradores colocam o nosso país decididamente no marco da vigência de um Estado Exceção declarado, a serviço de interesses não republicanos, não nacionais, não de interesse público ou da maioria do povo brasileiro.

É deveras lamentável que juristas tão preparados e conceituados nos meios forenses e acadêmicos se prestem  a legitimar, com base em seus conhecimentos filosóficos, uma ditadura com o verniz de legalidade a serviço de interesses inconfessáveis que só esse breve tempo social vai revelando aos poucos (destruição do SUS, destruição da educação pública, destruição das políticas de transferência de renda, alienação do patrimônio nacional, ataque generalizado à Universidade Pública, aos direitos trabalhistas, previdenciários etc.)

Pensávamos que a época em que ditadores e generais convocavam juristas a escrever ou refazer as Constituições, ao sabor de seus interesses, já tinha passado no mundo e no Brasil. Enganamo-nos, e  aqui bem pertinho de nós.

Michel Zaidan Filho é filósofo, historiador, cientista político, professor titular da Universidade Federal de Pernambuco e coordenador do Núcleo de Estudos Eleitorais, Partidários e da Democracia - NEEPD-UFPE

Editorial: O Pacto pela Vida acabou?




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Já faz algum tempo que não tratamos do problema da violência aqui no nosso blog, menos ainda num editorial. Em certa medida porque ocorre conosco o mesmo fenômeno que vem ocorrendo com a mídia em geral, hoje bastante concentrada nas novas fases da Operação Lava Jato. Até mesmo a cobertura das próximas eleições municipais foi prejudicada por essa razão. Um outro fato inibidor é a absoluta ausência em acrescentar algo sobre o que já fora dito sobre o assunto, sobretudo quando se trata dos graves problemas do sistema penitenciário brasileiro, hoje metido num atoleiro de proporções gigantescas. Penso que não há mais nada a dizer sobre as nossas masmorras prisionais, geridas em parceria com os próprios detentos; antro de consumo de drogas e prostituição; escritórios do crime organizado; sem assegurar ao apenado as condições mínimas de cumprirem suas penas sob um regime onde os direitos humanos fossem respeitados.

Nada ali funciona, o que nos remete à conclusão de que não foram mesmo concebidos para funcionar. Um grave equívoco intencional, movido em razão do preconceito sobre os atores a quem se destinam essas medidas.Terminologias como "ressocialização", neste contexto, soam como uma grande utopia. Aqui no Estado, por exemplo, a organização Human Rights Watch produziu um relatório devastador sobre o nosso sistema prisional. Outro dia,li por aqui, mesmo diante do "engajamento" de nossa imprensa local-, que o Governo do Estado havia retirado das receitas estaduais um montante de recursos orçados para a ampliação do numero de vagas nos presídios e destinados para "assuntos estratégicos". Creio que, no raciocínio dos nossos gestores, não há nada de estratégico em cuidar dignamente de milhões de apenados, entregues à própria sorte, cujas "soluções" são encontradas pelos próprios detentos, através de um código específico, onde estão previstas, inclusive, as eliminações físicas, que ocorrem com certa frequência nas unidades prisionais.

Numa entrevista recente, o mentor do Pacto pela Vida, o sociólogo José Luiz Ratton, declarou que o Pacto pela Vida havia acabado, no que teria sido contestado pelo atual gestor do município e candidato à reeleição, Geraldo Júlio(PSB). Na condição de assessor especial para assuntos de segurança pública do ex-governador Eduardo Campos, com um trabalho dedicado, creio, exclusivamente para esta área específica, difícil não atribuir ao sociólogo a paternidade do Pacto pela Vida. Como homem forte dos quadros "técnicos" do ex-governador, também é creditado a Geraldo Júlio, durante um certo período - o gerenciamento dessa política pública de segurança - o que faz dele um ator relevante nessa discussão.

Primeiro é preciso esclarecer, antes de mais nada, como temos afirmado acima, consoante as observações do próprio  Ratton, que o Pacto pela Vida é uma política publica de segurança. E, como tal, é sempre assim que ele deve ser analisado. Há quem se refira a ele como um "programa", mas o PPV deve ser sempre analisado como uma política pública de segurança, envolvendo inúmeros atores públicos, como membros da sociedade civil, do Poder Judiciário, Ministério Público, do Sistema Penitenciário, do aparelho repressor do Estado, como as polícias militar e civil, lidando com a questão da segurança pública em suas diversas dimensões. Aqui já começa a ser delineado os possíveis problemas do PPV: uma possível desarticulação desses atores, num sentido desenvolvimento de um trabalho em conjunto, com a preocupação de se atingir determinados objetivos.  

Uma coisa é preciso ser dita. O ex-governador Eduardo Campos, na condição de maior autoridade política, coordenava pessoalmente as reuniões do PPV, cobrando dos seus subordinados os resultados a serem alcançados, consoante as metas previamente traçadas. Por vezes, as cobranças iam além de um simples diálogo e acabava com alguns murrões na mesa, gerando um clima de muita tensão na equipe. Aborrecimentos a parte, existia um planejamento dessas ações, um acompanhamento de suas execução, a cobrança pelo alcance dos resultados determinados, prazos definidos, tudo que se insere no contexto de um planejamento estatal. 

Nos primeiros meses, assim que o governador assumiu, essas reuniões ocorriam, salvo algum engano, à média de uma por semana. O fato de o governador se envolver diretamente com o PPV, segundo um chefe de polícia civil à época, podia ser creditado parte do êxito do PPV. Pernambuco era um dos Estados mais violentos do Brasil no momento em que Eduardo Campos assumiu e, para o bem de sua gestão - e das promessas de campanha - era importante a reversão desses índices de violência. Depois, com o seu projeto de tornar-se presidente da República, o PPV era uma espécie de "trunfo" com o qual ele contaria em sua campanha presidencial. 

Meses depois de implantado, diante dos primeiros resultados positivos alcançados - e a quase absoluta ausência de uma política publica de segurança desenvolvido por outros entes federados - o PPV tornou-se uma "grife" de segurança pública, provocando a "romaria" de vários governadores a Pernambuco para acompanharem os seus passos, além de receber reconhecimentos até internacionais. Por aquela época, em razão de políticas públicas sistemáticas para o setor, Estados até então muito violentos como São Paulo, Rio de Janeiro e Pernambuco, começavam a apresentar uma curva descendente nos índices de violência. Planejamento das ações tornara-se uma expressão mágica. O bom senso nos informa que atores "desarticulados", muito provavelmente, não conseguiriam coordenar suas ações com chances de êxito, o que aqui pode ser apontado como mais um problema do PPV.  

A morte do governador Eduardo Campos provocou uma espécie de solução de continuidade no programa. Esse sentimento de "orfandade" nunca foi negado pelo seu sucessor Paulo Câmara - que, afirmou, mais de uma vez, que gostaria de governar com ele. Como "desarticulação" pouca é bobagem, o processo começou a contaminar o próprio núcleo duro do aparato de Estado diretamente envolvido com a questão, como é o caso das secretarias de Defesa Social, Direitos Humanos,Secretaria de Ressocialização, Polícia Civil. Não raro, os secretários à frente dessas secretarias entram em rota de colisão em razão de suas atribuições. Com relação às entidades de classe, A ADEPPE lançou nota pedindo a extinção da Secretaria de Defesa Social, no que foi acompanhada pelo SINPOL, o Sindicato dos Policiais Civis do Estado de Pernambuco. 

Agora mesmo, por ocasião da morte do empresário Paulo César, num motel em Olinda, no curso da Operação Turbulência, a verdadeira turbulência se daria em clamorosas falhas de comunicação(?) entre os diversos atores envolvidos na elucidação daquela morte, num claro indicador de que eles não estavam se entendo muito bem. Isso reforça a tese levantada pelo mentor do PPV, o sociólogo José Luiz Ratton, de que, de fato, o PPV parece mesmo que acabou e entramos naquela fase do "salve-se quem puder" ou a "culpa não foi minha". É cada um por si e o PPV que se dane futebol clube. 

A motivação do prefeito e candidato à reeleição Geraldo Júlio(PSB) em contestar o sociólogo, creio, deve-se a duas razões: a sua ligação pessoal, do seu padrinho político e do próprio PSB com o PPV; além das políticas públicas congêneres, na área de segurança, implantadas pelo município do Recife, onde ele disputa a reeleição. No município se aplica o modelo do COMPAZ, idealizado pelo vice-governador Raul Henry. É preciso dizer, a princípio, que uma coisa não pode ser cotejada com outra. O COMPAZ é interessante, sim, sobretudo quando se toma como referência ao que ocorreu com as UPPs, adotadas em Estados como o Rio de Janeiro. Ali, a Human Rights tomou a iniciativa de comparar os gastos para a montar aquelas UPPs e os gastos do Estado em políticas educativas e culturais nas zonas onde elas foram implantadas. O resultado é desolador. Investiu-se muito mais em armamentos, equipamentos, treinamentos de pessoal do que nas políticas públicas destinadas às áreas de educação e cultura. Isso explica o fracasso dessas UPPs, uma ocupação de caráter apenas militar, com denúncias de violações de direitos, como ocorreu com a prisão ilegal, tortura, assassinato e desaparecimento do corpo do pedreiro Amarildo. 

O sociólogo José Luiz Ratton é um crítico do COMPAZ. Talvez por isso a resposta do gestor Geraldo Júlio tenha sido no sentido de se perguntar a opinião da população sobre o Centro Comunitário da Paz do Alto Santa Terezinha, num bairro da periferia do Recife. O que o Ratton critica é que o COMPAZ não tem ações destinadas exclusivamente àquela população que já foi vítima ou encontram-se vulneráveis à violência. Discordo dele, na medida em que o COMPAZ desenvolve uma série de atividades que, a princípio, poderiam funcionar como vetores da violência, como atividades culturais, esportivas, educativas, recreativas. Aqui a gente poderia entrar no mérito sobre que população vulnerável é esta, à qual se refere Ratton, que não seria necessariamente atendida pelo COMPAZ. Para mim, Ratton, é meio complexo definir essa população "vulnerável". 

A leitura de Ratton sobre o fim do PPV está relacionado a não manutenção e ampliação dos mecanismos de governança do Pacto; a diminuição dos investimentos estatais em segurança pública, dentro de uma perspectiva bem ampla, envolvendo capacitação de pessoal, tecnologias no manejo dos dados da violência, ações estratégicas no combate ao crime, notadamente o crime organizado etc. De acordo com o SINPOL, melhorar as condições de trabalho do pessoal, assim como contratar novos agentes seriam medidas bem-vindas, uma vez que o déficit cresceu bastante nos últimos anos.

P.S.: do Realpolitik: Hoje, dia 06 de outubro, foi anunciada a exoneração do secretário de Defesa Social, Alessandro de Carvalho. Nas coxias comenta-se que a sua exoneração se deu em razão dos problemas enfrentados pelo Pacto pela Vida. Para substituí-lo, foi nomeado um ex-delegado aposentado da Polícia Federal. Os problemas do Pacto pela Vida, como informa o texto, não é bem uma questão apenas de nomes. Há, dentro e fora dos meios acadêmicos, muitas vaidades e ciumeiras em torno da paternidade desta ou daquela política de segurança pública, donde se deve dar o devido desconto das críticas de Ratton ao COMPAZ.   
   

A verdade tropical de Jorge Amado


Uma homenagem ao menino grapiúna
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Texto publicado em setembro de 2001, na edição 50 da Revista CULT
por José Arrabal e Eduardo Maretti
Jorge Amado era filho de Ferradas, um distrito de Itabuna, terra do cacau baiano. Nascido a 10 de agosto de 1912, numa fazenda do pai, cedinho foi para Ilhéus, onde viveu a infância junto de sua família. Lá, aprendeu a ler, por artifícios da mãe que mostrava para o filho as palavras nos jornais. Conta a história ou a lenda que, mais tarde, aos 11 anos, numa escola em Salvador, Jorge ouviu de um padre amigo que ele haveria de ser, com certeza, um escritor. Isso porque esse padre lera uma redação que o aluno escrevera sobre o mar, numa de suas aulas. Se profecia ou praga, o justo é que tais palavras do Padre Luiz Gonzaga, no Colégio Antônio Vieira, se cumpriram.
O que ouviu o garoto na escola dos jesuítas não foi, contudo, o bastante para prendê-lo ao estudo. Jorge fugiu do colégio. Indo aos trancos e barrancos pelo sertão baiano, como quem procura mundo, chegou à casa do avô, no interior de Sergipe. De lá, voltou para os pais: “Eu vim certo que ia levar uma surra, mas quando cheguei em casa ele só perguntou por que tinha fugido. Eu disse que não queria mais estudar. Pois muito bem, ele respondeu, você vai para a fazenda”. (declaração publicada no volume dedicado a Jorge Amado na coleção “Literatura Comentada”, da editora Abril)
Carnaval, cacau e sour
Tempos depois, Jorge Amado retorna a Salvador, onde passa a trabalhar nos mais diversos jornais. Liga-se a uns boêmios, todos jovens literatos de uma certa Academia que chamavam “dos Rebeldes”. Com dois desses companheiros – Dias da Costa, mais o Edison Carneiro – publica a novela “Lenita”. Tem 17 anos. Aproxima-se do candomblé. Frequenta, constantemente, os terreiros da Bahia, onde é bem recebido, sempre participando dos rituais com respeito. Consciente dos problemas e das dificuldades vividas pelos trabalhadores nas lavouras de cacau, agora também se torna valoroso anti-racista. Jornalista, ele vive defendendo pais de santo que são presos por somente praticarem suas crenças. Com 18 anos, Jorge Amado se instala na Capital Federal, à época o Rio de Janeiro, para estudar Direito e prosseguir escrevendo. Traz consigo “Lenita”, mais um primeiro romance que já vai além do esboço. Exigências de mudanças tomam conta do país, indicando que é tempo de grande transformação. A Revolução de 1930. No Rio, ele conhece quem já tem nome na praça. Dentre outros, convive com Otávio de Faria e Vinícius de Morais. Além dos dois, Raul Bopp, Carlos Lacerda e, também, Jorge de Lima, Jacobina Lacombe, Aurélio Buarque de Holanda, Santiago Dantas e o primo, Gilson Amado. Aproxima-se, igualmente, de Augusto Frederico Schmidt, poeta e editor, que publica, em 1931, O país do Carnaval, seu primeiro romance. O livro é um sucesso. Recebe apoio da crítica e aceitação do público. Com 19 anos, o estudante de Direito já é escritor respeitado, no rol dos regionalistas, uma literatura que parece perguntar qual a cara do Brasil – não apenas de um Brasil, mas dos Brasis mais diversos, com as suas diferenças e seu povo variado, seus problemas sociais do Oiapoque ao Chuí, Brasil de Gilberto Freyre, deCasa-grande e senzala, de Sobrados e mocambos. Brasil que tinha nas letras José Américo de Almeida, autor de A bagaceira, o pioneiro da moda que vinha lá do nordeste. Mais Rachel de Queiroz e, também, Zé Lins do Rego. Escritores que surgiram, espalhados no país – como Érico Veríssimo e Graciliano Ramos –, indo além do modernismo que nascera desvairado, contudo, meio elegante, na São Paulo da indústria e do café.
Pelo jeito do romance O país do Carnaval, Jorge Amado é levado a se meter na política. Logo vira comunista, desses de carteirinha. Um comunista, porém, que traz em seu coração os amigos e os santos do candomblé da Bahia. Quem leva Jorge ao Partido é Rachel de Queiroz. Em 1933, chega a vez de publicar Cacau. A obra, bem ilustrada, tem destaque bem maior do que o livro anterior. Trata das dificuldades vividas por quem trabalha nas fazendas de Itabuna. O romance é apreendido pela polícia política. Sem demora, é liberado, sendo o seu primeiro livro traduzido no estrangeiro. No mesmo ano se casa com Matilde Garcia Rosa, sua parceira no livro para crianças e jovens, Descoberta do mundo. Ela será mãe de Eulália, primeira filha de Jorge. Após essas duas obras, chega a vez de Suor, no ano seguinte. Agora, é pai e trabalha em jornais e editora, tornando-se tradutor de importantes autores da América Latina.
Jubiabá e prisão
O escritor considera que os três primeiros romances são obras de pouco fôlego, seus “cadernos de aprendiz”. Entende que, na verdade, o salto veio em seguida, ao lançar Jubiabá, em que o confronto social se mescla a outros problemas do dia a dia do povo, à questão do racismo e ao preconceito existente contra as crenças populares. Seu personagem maior, o épico Balduíno, valente líder grevista em Salvador, é o primeiro herói negro do romance brasileiro. Vale a pena ler o livro, ainda que seja a obra um romance de cartilha do realismo chinfrim do Partido Comunista. Jorge, amado, macumbeiro e grapiúna assanhado, mulherengo arretado, é, contudo, um escritor por demais disciplinado às ideias literárias exportadas por Moscou. Ainda que valoroso, na sua dignidade, o seu herói não tem mancha, nem vive contradição, sendo um perfeito panfleto. Um careta, meio chato. Sisudo propagandista das ideias do Partido.
Vale notar, porém, aspectos de gestos largos e alegrias presentes nos modos de nosso povo, já prenunciando seus futuros romances com bem mais sabor de vida, grande sensualidade, gosto de cravo e canela. Mas, para isso, primeiro precisa sair de cena a tragédia stalinista. E, enquanto está presente esse ralo realismo sem virtudes literárias, Jorge Amado se debate, acerta aqui, erra ali, para de novo acertar, nos livros que há de escrever, procurando seu caminho de escritor gigantesco com a cara do Brasil. O que há de encontrar, nos deixando de presente vasta obra preciosa, antes de partir para o céu.
Em 1936, o escritor tem mais um livro na praça. Dessa vez é Mar morto. Neste mesmo ano, Jorge Amado é detido, por causa da insurreição que ocorrera em novembro do ano anterior, o levante comunista denominado Intentona. Sua primeira prisão, dentre tantas outras vezes que foi levado ao xadrez por conta de seus princípios e de suas ideias sociais.  Libertado, ele viaja pela América Latina. Vai aos Estados Unidos. Conhece mil escritores e inicia a amizade que vai durar toda a vida com o chileno Pablo Neruda, companheiro comunista, chileno de fortes versos e futuro Prêmio Nobel. Enquanto está viajando, no Brasil tem publicado o seu sexto romance. É Capitães da areia, a história de Pedro Bala, livro de extrema grandeza, por sinal, atualíssimo. Jamais alguém escreveu outra aventura tão pungente defendendo com tal força, vivacidade e coragem os meninos de rua, menores abandonados, uma tragédia presente ainda nos nossos dias.
Em 1937, participa da campanha para eleger José Américo de Almeida, o autor de A bagaceira, presidente da República. Mas Getúlio dá o golpe e implanta a ditadura do Estado Novo. E, outra vez, Jorge Amado é preso pela polícia. Seus livros, considerados obras subversivas, são queimados pelo exército. Quase dois mil exemplares viram fogueira medonha da sanha obscurantista do fascismo tropical, numa praça em Salvador.
Liberto, em 1938, passa a trabalhar nos mais diversos jornais de São Paulo e do Rio. Ocupa-se plenamente com a atividade política, combatendo a ditadura, denunciando o fascismo, defendendo a anistia dos que ainda estão presos. Se empenha de corpo inteiro para reorganizar o Partido Comunista, um tanto esfacelado pela polícia de Vargas. Contudo, encontra tempo para A estrada do mar, um livrinho de poemas que edita por sua conta e distribui aos amigos. Enquanto vê seus romances traduzidos e editados nos mais diversos países da América, Europa e Ásia, no Brasil tem menos chance, sendo muito censurado. Com Dorival Caymmi e, também, Carlos Lacerda, companheiros de Partido, compõe “Beijos pela noite”, uma bela serenata. Já estamos em 1939.
De comunista a ministro de Xangô
Em 1940, principia ABC de Castro Alves, que será editado logo no ano seguinte, quando, em Montevidéu, e também em Buenos Aires, Jorge Amado já escreve O cavaleiro da esperança, vida de Luís Carlos Prestes, dirigente comunista que se encontra prisioneiro do Estado Novo de Vargas. A obra deve servir à campanha da anistia para libertar o líder. O livro é publicado na Argentina e vendido aos milhares nas cidades brasileiras, através do contrabando. Verdadeira coqueluche. No Brasil, a edição será em 1945.
Mal retorna, Jorge Amado já é preso em Porto Alegre e confinado na Bahia. Mal é solto, prossegue a atuar na imprensa e escreve outro romance, Terras do sem fim. Depois, São Jorge dos Ilhéus. Nesse tempo, se separa de sua primeira esposa. Chega 1945, com a ditadura e o fascismo em frangalhos. Em janeiro, Jorge Amado participa com destaque do Congresso de Escritores que acontece em São Paulo. Um arranjo de notáveis para abrir fogo cerrado contra o Estado Novo. O encontro é um sucesso. E o melhor lhe acontece. Conhece Zélia Gattai, que será sua companheira desde então e para sempre.
Mas, de novo, Jorge é preso. Solto, ele permanece na cidade de São Paulo, onde trabalha na imprensa. Dirige o jornal do Partido. Enquanto, também, publica Bahia de Todos os Santos. Com o fim da ditadura, é eleito deputado. Tem votação estrondosa. Darci Ribeiro tenta uma explicação: “Jorge é o romancista mais fértil do Brasil, entre os bons. É até o melhor deles, por sua invejável capacidade de sintonizar seus textos com o gosto das mulheres das classes médias, que formam a maioria dos leitores brasileiros. Teve, por isso, imensa influência.” (declaração publicada no volume dedicado a Jorge Amado na série Cadernos de Literatura Brasileira, do Instituto Moreira Salles). Agora, parlamentar da bancada comunista na Assembléia Constituinte, tem projetos relevantes. Defende e faz aprovar a liberdade de culto. Por causa de Jorge Amado, ninguém mais seria preso por ser filho de Xangô ou fiel a Iansã.
Igualmente, cria lei defendendo os direitos do escritor brasileiro. Mais político que escritor, publica Seara vermelha, um romance panfletário que é dedicado a Prestes. Nele, a salvação é tão somente o Partido. Edita, também, na época, Homens e coisas do Partido Comunista, mais obra de propaganda. De qualquer jeito, um registro que merece atenção, por conter, delineado, o modo de ver a vida para os então comunistas. Ainda que deputado, militante combativo, em 1947, Jorge Amado encontra tempo para se aproximar do cinema nacional, uma de suas paixões. Trabalha em argumentos e até escreve roteiro. Vende para a Atlântida os direitos de filmagem do livro Terras do sem fim, que depois chegou às telas como Terras violentas. Escreve para o teatro O amor de Castro Alves. Mas o melhor desse ano é o nascimento, no Rio, de seu filho João Jorge.
Exílio, Jean-Paul Sartre, Picasso
Por sua vez, 1948 será um ano sombrio, com viradas violentas na vida do escritor. Por força da guerra fria e da farsa democrática que vivia o Brasil, naqueles anos de Dutra, o Partido Comunista, expulso do parlamento, volta à clandestinidade. Não sendo mais deputado por força das contingências, Jorge Amado vai embora, exilado em Paris. Na França, vive com Zélia e com o filho João Jorge. Tem os melhores amigos. Jean-Paul Sartre e Simone de Beauvoir, Pablo Picasso e Camus. Se, no Brasil, o governo difama e até proíbe a obra do escritor, no exterior Jorge Amado recebe o justo reconhecimento dos nomes mais importantes da cultura mundial. Viaja por toda a Europa. Visita Moscou. Quando o filho João Jorge completa seu primeiro ano de idade, o escritor exilado escreve o infantil O gato Malhado e a andorinha Sinhá. E, ainda exilado, Jorge Amado não assiste ao enterro de Eulália, a sua filha mais velha, que morre jovem, no Rio. Por pressões da Guerra Fria entre Washington e Moscou, o escritor, em 1950, vê-se expulso da França, por mais que muitos amigos protestem contra a medida. Vai residir em Dobris, no castelo onde funciona a União de Escritores da Tchecoslováquia. Escreve O mundo da paz, um livro de propaganda dos países que estão sob a batuta da Rússia e se dizem socialistas. A obra até faz sucesso. No Brasil, é proibida e seu autor processado. Mais tarde, em 1953, um tanto contrariado com a política de Moscou nessas nações satélites da Europa Oriental, Jorge resolve que nunca mais haverá de publicá-la. Morando ainda em Dobris, escreve, em 1951, uma grande trilogia sobre a dura tragédia que foi o Estado Novo. Três volumes valorosos (.Os ásperos tempos., .Agonia da noite. e .A luz no túnel.) reunidos sob o título de Os subterrâneos da liberdade. Junto a Memórias do cárcere, de Graciliano Ramos, é o que melhor existe, na nossa literatura, sobre a violência da ditadura de Vargas. Também em 1951, em Praga, nasce Paloma, sua filha com Zélia. E, em Moscou, Jorge Amado recebe o Prêmio Stalin, o Nobel dos soviéticos. Retorna em 1952, vindo para o Brasil, depois de breve viagem pela China e Mongólia. Passa a morar no Rio. Traz em seu coração a amizade daqueles que conheceu no exílio. Escritores renomados e gente simples da rua, mais humanistas brilhantes de colorações diversas. Comunistas, democratas e até religiosos. Alguns são até compadres, como Pablo Neruda e Nicolás Guillén.
Mudança de rumo
No Brasil, ele trabalha na Editora Vitória, ligada ao Partido. Dirige a coleção .Romances para o Povo.. Preside a Associa ção de Escritores Brasileiros. É chefe de redação da revista Para Todos. E prossegue publicando seus romances com sucesso. Entre os intelectuais e milhares de leitores, enfim, já é Jorge, amado! Eis que em 1956 abandona o Partido. Quem sabe muito abalado com as denúncias que Krushev faz contra Stalin, em Moscou, no XX Congresso do Partido soviético. Publicamente, garante que deixou a militância porque esse engajamento estava lhe impedindo de ser um escritor mais pleno, mais amplo no seu alcance: .Eu não senti a mesma reação violenta dos outros porque eu já sabia de tudo aquilo que veio à tona em 56. Eu soube de tudo em 54, logo depois da morte de Stalin. Numa das viagens que fiz à URSS, fiquei sabendo de tudo… tinha começado a haver o .degelo. na União Soviética. Ehrenburg tinha escrito seu livro O degelo… (…) Daí em diante, eu passei a pensar com minha própria cabeça. Eu era um homem que tinha vivido o stalinismo, que tinha sofrido o stalinismo.(…) Voltei a fazer minha vida de escritor. Hoje, eu sou político somente como escritor. Não abandonei a trincheira, faço política escrevendo, opinando cada vez que isso me parece necessário e útil…. (Jorge Amado . .Literatura Comentada.) Não se pode negar que abandonar o Partido foi controvérsia difícil, no mínimo complicada. Vale lembrar, inclusive, que, no princípio do ano, Jorge, ao escrever a letra de uma bela melodia do músico Cláudio Santoro, sem dúvida, não em vão, irá chamar a canção de. Não te digo adeus!.. Mas disse adeus ao Partido. Seus romances nunca mais serão os mesmos. Em 1957, trava amizade com a santa Menininha, mãe de santo do terreiro de Gantois, na Bahia. E, sem demora, recebe uma das honrarias mais altas do candomblé. Vira Obá Orolu, um ministro de Xangô.  
Tempo de Gabriela, tempo de morrer
Grande mudança desponta em 1958, com romance vigoroso, obra das mais emblemáticas de nossa literatura e jeito de nossa gente. É a hora e a vez de ampliar o tratamento das relações de poder, indo além de um olhar estreito para as classes sociais. Aliando a liberdade à felicidade, ao carnaval sensual da satisfação da vida. Tempo de Gabriela, cravo e canela e outros perfis de mulheres e de muitos oprimidos, gente marginalizada ao longo da eterna história de um país que mais parece uma grande transação de perversos poderosos, sanguessugas sociais que, numa .tocaia grande ., só querem espoliar as riquezas, o humor e toda a grande alegria do dia a dia do povo. Amado diz: .Há uma mudança séria. Antes, eu buscava o herói, o líder, o dirigente político. Cada vez mais eu acredito menos nessa gente, cada vez estou mais perto do povo, do povo mais pobre, do povo miserável, explorado e oprimido. E das mulheres. Cada vez, eu procuro mais o anti-herói… os vagabundos, as prostitutas, os bêbados.. (Jorge Amado . .Literatura Comentada.) Talvez não haja na história do romance nacional obra mais premiada que a história de Gabriela. Duas vezes é novela de TV. Na Tupi e na Globo. Vai para as telas de cinema. Na maioria dos livros que ainda há de escrever, ele irá colocá-la no centro das atenções, sempre lhe sugerindo ousadias libertárias. Para Dona Flor? Dois maridos! Mais Tereza Batista cansada de guerra. E Tieta do agreste. Entre tantas mulheres que atravessam o mundão de histórias que nos contou. Se algumas infelizes, mal-amadas e perdidas ou beatas moralistas, outras, valentes, guerreiras e amantes fogosas de vasta sabedoria. Todas amadas por Jorge!
Tenda dos milagres
Consagrado, Jorge Amado é voz forte o bastante para impor ao governo o .Dia do Escritor., que é 25 de Julho. Entra para a Academia Brasileira de Letras sem a menor contestação de qualquer outro imortal. Foi várias vezes indicado ao Prêmio Nobel, até mesmo com o apoio de François Mitterrand, presidente da França. Quando vem a ditadura, não abaixa a cabeça. Se os militares pretendem censurar os romances, junto de Érico Veríssimo, protesta com força e coragem, se fazendo respeitar. Não defende só os nomes da grande literatura. Quer liberdade pra todos. E fica indignado, quando vê Cassandra Rios, escritora popular de histórias sensuais, sofrendo com a censura. Com Tenda dos milagres, a história de Pedro Anchanjo, chega a sua melhor obra, conforme ele mesmo: .Trata da questão da nacionalidade brasileira, a miscigenação, a luta contra o preconceito, principalmente o racial, e contra a pseudociência e pseudoerudição europeísta. (…) De meus livros, é o meu preferido, cuja temática mexe muito comigo. Talvez Pedro Archanjo seja, de todos os meus personagens, o mais completo.. (Cadernos de Literatura Brasileira . Jorge Amado)
Sem medo da morte
Se a velhice lhe pega, nem por isso Jorge Amado cessa de escrever. Nem se espanta com a morte, com a qual brincou certa vez, ao escrever a novela exemplar de ousadia e humor: A morte e a morte de Quincas Berro Dágua (1959). Prossegue no seu trabalho. Entre seus tantos livros, romances audaciosos (Tocaia Grande: A face obscura), outros mais bem humorados, ainda que não menos críticos (Farda fardão camisola de dormir), homenagens aos amigos (O capeta Carybé) e aos brasileiros de fora, sempre amados pelo povo (A descoberta da América pelos turcos), mais histórias infantis (A bola e o goleiro). E um livro de memórias (Navegação de cabotagem), uma homenagem à vida. Assim como já escrevera suas memórias de infância (O menino grapiúna). Sente a maior alegria ao ver Zélia, a companheira, também escrevendo livros, excelentes romances. E estimula Paloma, sua filha caçula, a escrever belas obras. Assim como se dispõe a fazer indicações, prefácios e contracapas para jovens escritores que se aproximam dele. Nunca nega seu apoio. Às vezes, ousa conselhos, com modesta consciência do que fez de sua vida: .O escritor brasileiro tem que ouvir o Brasil… (Cadernos de Literatura Brasileira . Jorge Amado) Não para de escrever. Tem projetos de romances que teme não terminar. Um é Boris, o Vermelho, sonho antigo, inacabado. Outro, A apostasia universal de Água Brusca. Sua obra sempre é tema de muita Escola de Samba. E, se não é senhor do Nobel, tem o Prêmio Camões, que recebeu em Lisboa em 1995. A maior das homenagens que se dá a um escritor do idioma Português. Agora que foi embora, sem dúvida, foi para o céu. Quem confirma é Vargas Llosa, o escritor peruano, em depoimento aos Cadernos de Literatura Brasileira: .Quando era jovem, junto com um amigo, brincávamos de adivinhar quais os escritores do nosso tempo iriam para o céu, caso ele existisse. Fazíamos umas listas muito rigorosas, o que nos dava um trabalho dos diabos para elaborar, e o pior era que, cedo ou tarde, os escolhidos encontravam uma forma para que os tirássemos dali. Na minha lista atual, feita há muito tempo, permanece só um nome. E ponho as minhas mãos no fogo de que haja uma só pessoa neste mundo que, tendo conhecido e lido Jorge Amado, lhe ocorra tirá-lo de lá… Nosso grande Jorge Amado! O menino grapiúna!


José Arrabal é jornalista e escritor
Eduardo Maretti é jornalista e escritor

(Publicado originalmente no site da Revista Cult)

Le Monde: A disputa pela cidade


O modelo político-eleitoral, que depende do financiamento empresarial de campanha, que por sua vez cobra a fatura desse financiamento por meio de contratação de obras e serviços, é o que tem ditado o centro da política urbana nos últimos anos...
por Silvio Caccia Bava


As eleições municipais deste ano ocorrem em um cenário de profunda crise política e econômica. Para debater as perspectivas que se abrem com o pleito e analisar os atores e modelos em disputa pela cidade, o Le Monde Diplomatique Brasil conversou com a urbanista Raquel Rolnik, professora da FAU-USP. Confira a entrevista a seguir



LE MONDE DIPLOMATIQUE BRASIL – Vamos ter eleições daqui a um mês e pouco e não estamos ouvindo muita discussão sobre programas, sobre conteúdo. E isso ocorre num cenário meio crítico. Como esses novos prefeitos vão governar sem dinheiro?
RAQUEL ROLNIK – Vai haver muito pouco espaço nesse debate eleitoral sobre o destino da cidade, sobre um projeto de cidade, já que o ambiente eleitoral está muito contaminado pela crise política e pela pauta da crise política. Por outro lado, os partidos que hoje estão concorrendo ao pleito, pelo menos as grandes coalizões, aquelas que têm mais tempo na TV, mais recurso para financiar campanha, justamente são os que se desenvolveram graças às práticas que levaram à crise política que estamos vivendo hoje. Enfim, o modelo político-eleitoral, que depende do financiamento empresarial de campanha, que por sua vez cobra a fatura desse financiamento por meio de contratação de obras e serviços, é o que tem ditado o centro da política urbana nos últimos anos... Portanto, a expectativa é muito baixa de uma discussão real sobre as questões da cidade e menor ainda de enfrentamento da crise fiscal. O fato é que os governos municipais não vão operar com o rio de dinheiro que operaram nos últimos anos.
Muito provavelmente vamos ver campanhas que vão falar ou ficar mostrando as obras que foram inauguradas ou prometer obras que serão feitas, quantos hospitais, quantas creches, quantos quilômetros... Isso evidentemente será menos possível, menos factível, em um contexto de crise fiscal. Mesmo assim, dificilmente o embate eleitoral vai fugir das “obras que fiz” ou “das obras que prometo fazer” e enfrentar, de fato, os nós do modelo de desenvolvimento urbano (muito tributário e conectado ao modelo político-eleitoral) que temos. Vai estar muito pouco presente a questão de que não vai haver dinheiro para as “obras” e que o modelo de financiamento do desenvolvimento urbano que temos é incapaz de “resolver” nosso déficit de urbanidade. Por outro lado, do ponto de vista dos efeitos da crise política, ao que parece, a indignação da sociedade não foi suficiente para superar esse modelo, já que hoje as forças políticas e as coalizões que articularam o golpe, que propuseram o impeachment, são as mesmas que vão disputar as eleições com força e estão umbilicalmente vinculadas ao tal modelo de desenvolvimento urbano falido a que me referi. Não há uma luz imediata no fim do túnel de que elas vão se desconstituir a curtíssimo prazo, ou seja, no prazo da próxima disputa eleitoral municipal.
Então o que vai acontecer diante da falta de dinheiro? Os prefeitos não terão alternativa senão tentar responder com alguma proposta de política inovadora. Quem viveu nos anos 1990 no Brasil sabe que esses foram períodos também de crise fiscal e falta de dinheiro, em que os governos se viraram e introduziram políticas muito baseadas em mobilização social, em participação. Por exemplo, no campo da moradia foi o momento em que se começou a urbanizar favelas, mobilizando mutirão dos próprios moradores para instalar o sistema de saneamento de esgoto e de melhorias; um momento em que se construiu também moradia por meio do mutirão, em que se propôs assistência técnica e jurídica para os moradores em processos de regularização fundiária e autoconstrução assistida. Essas são políticas com baixo custo e muita mobilização, que começavam a dar respostas naquele período para questões que estavam batendo na porta dos prefeitos, e estes tinham de dar uma resposta. Eles faziam isso por meio da participação popular, da cogestão com os próprios cidadãos.

Mas o neoliberalismo combina com democracia?
Então, enquanto uma parte da sociedade, uma parte minoritária eu diria, estava envolvida em projetos de radicalização democrática, de mobilização social, na direção da ampliação dos direitos, o neoliberalismo e a visão neoliberal estavam penetrando também em nosso país e em nossas cidades, em nossa política municipal. Os próprios governos democráticos e populares, quando chegaram ao governo federal, construíram todo o arcabouço jurídico e regulatório para, pelo menos no campo da política urbana, promover as parcerias público-privadas (PPPs) nos projetos urbanos. Acabamos de ver um ensaio geral disso muito claro no Rio de Janeiro, que utilizou exatamente esse tipo de marco regulatório.

O que aconteceu lá?
O projeto urbano ligado à transformação urbanística do Rio de Janeiro em razão da Copa do Mundo e das Olimpíadas é 100% neoliberal, pois foi introduzido por meio de parcerias e da privatização dos espaços e recursos. Além disso, foi modelado e definido em arenas que nada têm a ver com os espaços públicos de negociação e decisão acerca das políticas. E com um pequeno detalhe, mas muito relevante: 100% financiado pelo fundo público. Não há um tostão de empresa privada. Pega o Porto Maravilha: R$ 8 bilhões do FGTS! Para não dizer que é zero de participação privada, há aí uns US$ 20 milhões do Santander na construção do Museu do Amanhã. E é só, porque o resto ou é recurso de fundos públicos, ou renúncia fiscal, que é o quê? Dinheiro público, o dinheiro de imposto que não entra.

Eu não sou contra investimentos feitos pelo poder público.
Sim, só que esse foi um investimento público dirigido 100% para uma transformação urbanística pensada e modelada para beneficiar o privado, e não o público. Como foi no Porto Maravilha, o que se implantou sobre terras que eram públicas? Torres corporativas AAA, para gerarem o quê? Uma frente de expansão do capital financeiro global, que encontra mais uma fronteira, mais um terreno no qual pode investir para poder ser rentável a médio e longo prazo. Alguém vai falar: mas a Praça Mauá ficou linda, ficou superlegal, o Rio de Janeiro ganhou um espaço público de que a população se apropriou e o qual usa. É só fazer a conta: quanto custaria fazer uma Praça Mauá renovada? Não sou contra a Praça Mauá renovada, está linda mesmo, só que foram gastos R$ 8 bilhões de nosso FGTS para fazer algo que com alguns milhões se poderia fazer...

Você acha que isso é um anúncio do que vai ser a gestão municipal nas cidades aqui no Brasil?
É o que as gestões municipais hoje gostariam de ser quando crescer, esse é o modelo. E, de preferência, com um ator como a Globo por trás para ajudar a construir toda a base de apoio político e simbólico do projeto. Mas no Rio de Janeiro há uma grande resistência ao projeto de cidade introduzido sob o manto dos megaeventos, há uma grande contestação. Isso nos dá esperança de que esse modelo não vá ser absolutamente disseminado em todo o país. Ademais, esse projeto tem como ator/protagonista central, além do fundo público, as grandes empreiteiras. São estas que armaram e modelaram essas PPPs de projetos urbanos no Brasil e que, evidentemente, se beneficiam também da introdução das obras de infraestrutura ali contidas, que elas serão remuneradas para instalar. Mas, na atual conjuntura, em que o fundo público está diminuindo e os grandes empreiteiros estão envolvidos na Lava Jato, é difícil pensar que esse modelo possa ser amplamente reproduzido. Então a ideia de que todas as cidades brasileiras vão virar o Rio de Janeiro de Eduardo Paes não me parece ter nenhuma viabilidade econômica e política neste momento. Assim como foi nos anos 1990, algum espaço para experimentação democrática vai fatalmente acontecer. Como, onde e quais serão as forças políticas que vão protagonizar isso, não sabemos.

Mas dá para governar sem dinheiro?
Sem nenhum dinheiro não dá mesmo, claro que não, mas dá para governar com muito menos dinheiro do que se governou na última década.

Você está falando da prestação de serviços públicos ou só do desenvolvimento urbano?
Vamos falar dos custos da prestação de serviços públicos, como transporte e lixo, e de sua qualidade. Há uma falta de controle público efetivo, de controle social sobre esses custos e sua performance. Os instrumentos de controle dentro do Estado brasileiro estão muito contaminados pela lógica política partidária até dentro do próprio Ministério Público, infelizmente. Nós vemos quanto o Judiciário tem parte, não é independente, e quanto o Estado brasileiro, incluindo os órgãos de controle e fiscalização, está contaminado pela lógica política partidária: os tribunais de contas, por exemplo, cuja lógica são indicações políticas, uma coisa completamente dentro do mesmo esquema. Então não se introduziu um controle social efetivo sobre as empresas que prestam serviço público na cidade. Cada vez menos temos noção dos reais custos da operação. Dá para desconfiar muito quando se mencionou na investigação jornalística dos Panama Papers que um dos grandes investidores offshore do Brasil é um grande concessionário de ônibus. São milhões e milhões que eles ganharam da exploração dos serviços de ônibus, e vamos combinar que essa está longe de ser uma prestação de serviço de alta qualidade.

Sim, mas como você vai brigar com eles, se no caso de São Paulo, por exemplo, dois empresários têm 8 mil ônibus?
Está tudo cartelizado, muito cartelizado, e infelizmente também a relação empresas/sistemas políticos partidários está muito entranhada nas câmaras municipais, nas assembleias legislativas. Na gestão Luiza Erundina, quando se tentou romper o cartel do lixo, o governo foi quase a nocaute. Os empresários da coleta de lixo ameaçaram não realizar o serviço. “Eu deixo aí sua cidade um mês sem coletar o lixo, vai ter impeachment contra você, prefeito.” Eles realmente dominam, é verdade. Então como nós rompemos esses cartéis?
É incrível como na Lava Jato surgiu a história, mas não a história inteira, não a relação entre as empresas que prestam serviços ao setor público e o sistema partidário, político-eleitoral, o efeito disso sobre a gestão da cidade, sobre as escolhas, sobre a qualidade do serviço, sobre o destino da cidade. Isso ainda não se mostrou claramente, então vai ter que efeito?
Isso é o mais maluco da história, porque parece que o problema são os 10% que os partidos e os políticos levavam de corrupção, e não a política pública que existia para sustentar o negócio e não para atender ao interesse do cidadão. Veja, no neoliberalismo, em sua dimensão simbólica e cultural, quanto o imaginário neoliberal penetra em nosso país já há muito tempo. Enquanto o imaginário triunfa, porque é repetido nos meios de comunicação, é o que as pessoas falam, a ideia do mercado, do mérito, do cara que vai se fazer sozinho, por mérito próprio, toda essa ideologia é uma ideologia anti-Estado, anti-Estado com redistribuição. Esse pensamento foi entrando forte em nossa sociedade, e não é de hoje, e neste momento esse pensamento detém uma hegemonia cultural, desmontando o imaginário social dos direitos e da redistribuição. Mas isso não foi capaz de moldar a cabeça, por exemplo, de uma juventude secundarista, dos meninos que já nasceram bombardeados por esse imaginário e, no entanto, se organizam e resistem em cima de uma pauta de autonomia, autodeterminação, participação, respeito aos direitos. Há uma luz no fim do túnel no sentido de que o neoliberalismo, seus instrumentos e seus imaginários são dominantes, mas estão mortos do ponto de vista de sua possibilidade concreta de oferecer alternativas para a crise que estamos vivendo, crise de mobilidade, crise ambiental, crise de representatividade do Estado. Como diz Franco Berardi, pensador italiano, o neoliberalismo está morto e nós estamos vivendo dentro do cadáver.

Quando você acena para a inovação, a experimentação como resposta a essa situação atual, isso pode ser possível em pequenas cidades, até talvez em médias, mas não nas regiões metropolitanas.
Há um paradoxo aí. Lembrando outro momento interessante de inovação político-social e de gestão local, por incrível que pareça, foi nas grandes cidades, nas regiões metropolitanas em que elas mais aconteceram – Porto Alegre, São Paulo e municípios de sua região metropolitana, como Diadema. Por que isso? Porque nas regiões metropolitanas é onde se concentra também um capital crítico, cultural, tecnológico, social e político muito forte. Não acho que seja um problema de escala; não foi nos pequenos municípios, nas pequenas cidades que tivemos, por exemplo, instrumentos como orçamento participativo em seus tempos de glória, não o que ele virou depois disso. Não acho que seja um problema de escala, que haja uma espécie de comunitarismo, que então dá para fazer uma gestão comunitária onde você tem um tête-à-tête, não. Acho absolutamente possível e necessário neste momento percebermos que os movimentos de experimentação reais já estão ocorrendo pela própria sociedade. O processo de apropriação dos espaços públicos na cidade de São Paulo não foi uma iniciativa da gestão, e sim uma iniciativa e um movimento da própria sociedade com que a gestão – no caso, a gestão Haddad – se relacionou, percebendo seu potencial e a fortalecendo.

Do que você está falando? Processos de ocupação dos espaços públicos são uma coisa supergenérica.
Nos anos 1990, os anos negros da crise e da miséria produtiva, de desemprego, o crescimento da cidade se deu por meio de muros, enclaves fortificados, shopping centers, condomínios e, assim, houve um esvaziamento dos espaços públicos, dos espaços de convívio. A cidade de São Paulo se transformou fisicamente com esse modelo, e começamos a ver nos últimos anos iniciativas dos próprios cidadãos, da própria sociedade, de retomar a cidade, a calçada, a praça, o lugar de convívio, de rejeitar esse modelo, embora ele ainda seja dominante. Foi graças a movimentos da própria sociedade que surgiu esse movimento pelo uso da bicicleta, pela humanização do trânsito. A gestão municipal precisa se ligar nesses movimentos de transformação ativados pela própria sociedade para extrair deles políticas públicas que consigam oferecer respostas a esses movimentos.
Dei um exemplo de um processo que parte de uma leitura de que está havendo uma transformação na própria sociedade que induz a políticas inovadoras, dá força a elas. Temos mil exemplos, até em questões como financiamento coletivo colaborativo, autogestão, autotransformação. Não é o do it yourself no urbanismo, tudo fragmentado, cada um faz a cidade do jeito que quiser, não é isso; mas temos outras formas de financiar iniciativas de projetos.

Se vier a ocorrer a aprovação da PEC 241, que limita o gasto social àquilo que foi despendido no ano anterior mais a inflação, vai haver um corte muito grande no repasse de recursos para os municípios nas áreas de educação, saúde, assistência social e várias políticas. Como esses novos prefeitos vão se virar com isso?
Uma questão não equacionada no Brasil é nosso modelo federativo, o tema do financiamento desse modelo. Hoje, na verdade, os municípios têm baixíssima autonomia e vivem basicamente de transferências federais e estaduais. Transferências obrigatórias e compulsórias com percentuais preestabelecidos para educação e saúde, e transferências voluntárias, muito mediadas politicamente.

Com a PEC 241 isso cairá, não será mais obrigatório.
Sim, mas o município vive dessas transferências ou de transferências voluntárias. O exemplo que posso dar é o que ocorreu nas cidades quando foi lançado o Minha Casa, Minha Vida. As poucas cidades que tinham políticas municipais locais pararam imediatamente de praticá-las por causa do Minha Casa, Minha Vida. A pergunta dos prefeitos nesses últimos anos, e isso foi péssimo, não era: “Do que minha cidade está precisando, quais são suas necessidades e como eu vou enfrentá-las?”. A pergunta era: “Que oferta eu tenho do governo federal, o que você pode me dar aí? Ah, um ginásio! Beleza, então vou fazer um ginásio. Ah, um equipamento para reciclar lixo! Ótimo, vou fazer. Umas casas das construtoras do Minha Casa, Minha Vida! Maravilhoso, eu passo a lista, vocês fazem a casa e eu inauguro”. É verdade que não havia tantas políticas municipais assim virtuosas para serem desmontadas, porque essa equação do financiamento é uma equação não resolvida já desde a Constituição.

Nós lutamos tanto pelos planos diretores municipais! Eles valem alguma coisa hoje?
Os planos diretores municipais são, como toda esfera da regulação e da legislação, arenas de conflito, e não projetos efetivos de cidade. Eles podem ser apropriados, e muitas vezes o são, nas lutas e nas resistências do cidadão para defender qualidade, inclusão etc., e também são utilizados para introduzir projetos, abrir frentes para o capital financeiro, para o complexo imobiliário financeiro. Em sua maioria, os planos diretores são verdadeiros frankensteins. São uma mistura porque tiveram de ser aprovados nas câmaras. Eles apostam e têm instrumentos em duas direções: uma para desmontar e bloquear tudo o que o outro faz, então são uma arena de conflito no momento da elaboração, e são uma arena de conflito também nos momentos subsequentes, que são de aplicação.

Esses famosos anos 1990 não desmontaram também a capacidade técnica de planejamento das prefeituras? Mesmo quando há uma oportunidade de financiamento, muitas vezes a cidade não tem um projeto para apresentar. Como você vê isso?
Essa foi a grande justificativa utilizada pelo governo federal, particularmente pelos governos Lula e Dilma, para lançar projetos e políticas que dispensam a capacidade de planejamento e gestão dos municípios, porque elas não existem. Então como é que construímos uma capacidade de planejamento e gestão se as políticas têm de dar resultado rápido, em quatro anos, e é no período eleitoral que tudo tem de dar resultado? Então não se faz nada que dê muito trabalho, como construir uma capacidade de planejamento e gestão. Em um momento mais complexo de crise, em que não vão existir essas ofertas, não existe uma saída fácil e rápida que garanta a reeleição. É preciso inventar de alguma forma e eventualmente reconstruir uma capacidade de planejamento.
O cenário hoje das prefeituras, principalmente das cidades grandes, é de tudo muito terceirizado, nada é o próprio município que faz. O município fica extremamente amarrado, porque a legislação toda que rege o Estado, no Brasil, não deixa quem está no Estado fazer nada. É muito difícil, muito difícil. Em nome do combate à corrupção, da fiscalização e do não desvio de recursos, engessou-se totalmente o Estado. E o paradoxo é que isso não acabou com a corrupção, pelo contrário! Isso matou a capacidade de ação do Estado e privatizou-o para que este funcionasse como um veículo de transferência de fundos públicos para as empresas privadas, que sustentam a reprodução política das coalizões e dos mandatos. Esse é o enrosco em que nos encontramos hoje.
É engraçado porque, no Brasil, o modelo demoniza o Estado, mas o fundo público pode ser largamente utilizado. Essa é uma diferença grande do modelo neoliberal, de como ele é aplicado no Brasil em relação a outros lugares do planeta, inclusive na área de desenvolvimento urbano. PPP 100% financiada pelo fundo público dos trabalhadores – quando apresentei isso num congresso internacional, com participantes do mundo inteiro, as pessoas falavam: “Não é possível, é mentira”. Aí perguntaram: “Como os trabalhadores deixam?”. Eu dei risada, porque no Brasil temos essa especificidade de privatização do Estado, do fundo público. O modelo afirma que o Estado é ineficiente, incapaz de gerir, então a resposta é justamente deixar isso tudo na mão do privado, sem nenhuma mediação. É a democracia direta do capital, como diz Carlos Vainer.
Eu acho que são ondas das chamadas best practices urbanas que vão vir, e não estamos dando a devida atenção política a elas.
A questão fundamental é universalizar. Você pode até criar um mercado disso ou daquilo, mas como você universaliza isso? Como isso é para todos? Não dá para ser para todos, há um limite. Então é sobre isso que as prefeituras e os governos vão ter de dar uma resposta para esses cidadãos que são vistos como descartáveis, cidadãos que não vão ter acesso a isso.
Estou vendo uma capacidade muito grande aqui no Brasil, diante de situações de crise, de inventar, mobilizar, criar, imaginar. É o país do puxadinho: uma improvisação que vai surgindo e se experimentando, e com coragem de fazer isso. Há um lado ruim, pois poderíamos planejar e fazer tudo direito, mas há o outro lado, que é o pragmatismo mesmo, a capacidade de as pessoas se engajarem, terem energia para isso. Eu vejo que a juventude hoje tem muito mais acesso à informação, à comida, a muita coisa que as juventudes das gerações anteriores não tiveram; ela tem uma capacidade enorme não só de reivindicar, mas também de fazer. Agora é dar tempo para que essa geração constitua lideranças novas, novos agrupamentos políticos e coalizões, e consiga promover transformações aqui no Brasil. De certa maneira, estamos em melhor condição do que outros países, até porque já conhecemos isso, já sabemos o que é viver sob a crise fiscal, o que é viver sem recurso etc. Isso dá certa esperança. Vão ser anos difíceis, anos duros, até conseguirmos sair do cadáver..., mas acho que temos uma perspectiva de longo prazo pela frente.

Silvio Caccia Bava
Diretor e editor-chefe do Le Monde Diplomatique Brasil


Ilustração: João Montanaro