pub-5238575981085443 CONTEXTO POLÍTICO.
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quinta-feira, 8 de outubro de 2020

Editorial: Um debate franco sobre o Recife que queremos.

 

 Recife: passeios, roteiros, onde ficar, onde comer e mais | Viagem e Turismo

Há algum tempo os partidos políticos passam por uma grande crise, que, aliás, e por razões óbvias, pode ser estendida à própria democracia representativa. Não se trata de um fenômeno exclusivamente brasileiro, uma vez que ocorre em escala mundial. Aqui no Brasil, naturalmente, com alguns componentes específicos, como era de se esperar, como reflexo de nossa formação cultural. A profunda decomposição ideológica dos nossos grêmios partidários é algo sem precedentes, por exemplo. Os ditos partidos comunistas se descaracterizaram de tal modo que perderam completamente sua identidade, tornando-se mais do mesmo, no mesmo balaio de gatos das letrinhas que não nos informam quase nada hoje em dia. 

Daí não ser surpresa as chamadas candidaturas ou coligações esdrúxulas, como a que une PSOL e PSL e Democratas em algumas praças. Um dos maiores estudiosos desse fenômeno é o sociólogo espanhol Manuel Castellls, que alertou-nos para o problema um pouco antes desse descarrilamento absoluto, apontando as dificuldades cada vez maiores dessa estrutura partidária, de fato, representar as demandas da sociedade. Muito mais do que os partidos, o que conta hoje são os grandes grupos de interesse, com seus lobbies poderosíssimos, como a bancada dos bancos, do boi,  da bala, da  Bíblia ou mesmo a bancada da berlinda, que exerceu papel importante nas tessituras que culminaram com o golpe institucional de 2016. 

Esses grupos corporativos de interesse conseguem tudo do Poder Executivo, como concessões de vantagens, liberação de dívidas altíssimas com a União e coisas do gênero. Um outro fator, alertado ontem pelo professor Michel Zaidan, através das redes sociais, refere-se ao que ele denomina de economia institucional das eleições municipais, ou seja, um conjunto de constrangimentos de natureza econômica que subvertem um debate republicano sobre a cidade que queremos, enfatizando como os principais problemas urbanos serão enfrentados, definindo linhas de ações para o exercício de um governo com a participação da sociedade civil, expedientes galvanizadores da opinião do eleitor, assumindo compromissos efetivos, para muito além das promessas de campanha, que quase sempre não são cumpridas.

O que se vê, no entanto, é outra coisa bem diferente. Compra de cabos eleitorais, cooptação de lideranças de bairros, pesquisas de intenção de voto de resultados duvidosos - com todos os ingredientes que suscitam a possibilidade de tratar-se de pesquisas sob encomenda - compromisso com grandes lobbistas, em detrimento do eleitor comum, financiamentos paralelos, apoio de setores estratégicos, embalados por essas pesquisas duvidosas. Assim, o debate que realmente importa, aquele que poderia dizer sobre a cidade que queremos, fica de fora.O #OcupeEstelita é um bom exemplo disso. Tudo parece indicar que havia acordos prévios entre entes públicos e privados mesmo antes dos resultados das urnas. Não fosse a mobilização de setores organizados da sociedade civil, e a cidade - que deveria ser um direito de todos - seria ocupada por alguns poucos privilegiados. 

 

 


sábado, 3 de outubro de 2020

Editorial: O moleque Ricardo era alfabetizado

Livros encontrados sobre jose lins do rego o moleque ricardo jose lins do  rego 9 edicao | Estante Virtual

Há um consenso entre os críticos literários no sentido de aceitar a tese de que o romance o Moleque Ricardo, do escritor paraibano José Lins do Rego, seja um dos mais importantes de sua carreira literária - até mais importante mesmo do que os romances que se inscrevem, diria que mais organicamente, no chamado ciclo da cana-de-açúcar, caso de Fogo Morto - considerado por alguns analistas como sua obra-prima - uma vez que o escritor estaria mais solto, mais desvinculado dos escritos memorialistas, ambientados na bagaceira. De fato, Ricardo abandona o engenho para conhecer de perto, movido pelas circunstâncias, as agruras do povo pobre do Recife, principalmente das periferias dos bairros alagados. Cumpre pena em Fernando de Noronha, tendo uma passagem pela Companhia de Tecidos Paulista. 

Em sua volta ao Engenho Santa Rosa, já transformado em usina -Ricardo passa a romancear o passado idílico - tão exaltado pelo autor, inspirado em Gilberto Freyre, seu grande amigo e inspirador - concluindo que o advento das usinas estava destruindo aquelas relações , antes tão cordiais, entre senhores e ex-escravos. Ricardo era um moleque alfabetizado, um dado inusitado entre os descendentes das senzalas. Aprendera a ler em razão do esforço de sua mãe. Faço essas considerações iniciais para fazer algumas observações, por ocasião do dia nacional de alfabetização, comemorado recentemente. 

O país atravessa um momento delicado no campo político, econômico, institucional e de saúde pública, o que justifica em parte a apatia do transcurso dessa data. Na realidade, não há muito o que comemorar mas haveria, sim, muitos motivos para preocupações. Principalmente na região de Ricardo, o Nordeste, que ostenta os maiores índices de analfabetismo do país. Nunca houve um esforço sério para erradicar o analfabetismo, que ainda atinge 11 milhões de brasileiros, colocando o país num escore internacional vergonhoso. 

Exceto, talvez, nos idos da década de 60, quando havia um propósito de enfrentar o problema adotando o metido de alfabetização de adulto do educador pernambucano Paulo Freire, um pensador que produziu uma material teórico não apenas importante para pensar o país, mas o próprio continente latino-americano. Como se sabe, as reformas de base foram abortadas por um golpe de Estado. Sintomaticamente, num país de passado escravagista e machista, estabelece-se uma relação consequente entre o perfil do analfabeto brasileiro: nordestino, mulher, negro, idoso, pobre. O Moleque Ricardo aprendeu a ler por uma dessas circunstâncias furtuitas, coisa rara entre a molecada da senzala, conforme já afirmamos.Esse não era um direito reconhecido aos ocupantes da senzala. 

Antes como hoje, a julgar pela ausência de esforços do Estado, através de políticas públicas dirigidas, nossa conclusão é que se trata de um direito de cidadania ainda não reconhecido no país, trazendo, em sua essência, como não poderia ser diferente, o seu componente racista, de classe, de gênero, sem deixar de mencionar o dado relevante das desigualdades regionais. O Moleque Ricardo teve uma biografia marcada por grandes desajustes, conhecendo as dificuldades da vida no Engenho Santa Rosa, assim como no Recife e sua periferia. Em muitos aspectos, é também um pouco as vivências do autor, na condição de estudante de direito na Faculdade de Direito do Recife, período em que conheceu o sociólogo Gilberto Freyre, que se orgulhava bastante de tê-lo encaminhado na vida literária.

Embora com uma narrativa imbricada dos valores da Casa Grande, reconheço em José Lins do Rego alguns lampejos de sensibilidade ao drama daqueles ocupantes da senzala. Dá voz à bela Maria Alice, em Banguê, que se queixava da exploração dos cabras do eito do coronel José Paulino.O caso do Moleque Ricardo é um outro desses momentos. Nos tempos áureos do Santa Rosa, observa ele, contava-se nos dedos os moleques que tiveram acesso a um banco escolar. O descaso é histórico. 520 anos depois, ainda somos um país de analfabetos, caracterizado pela ausência de um esforço sério para debelar essa chaga. Que arremedo de país é este?



quinta-feira, 10 de setembro de 2020

Sonhos partilhados

 

Reflexões de Ailton Krenak produzidas durante a pandemia convidam a repensar o nosso modo de vida e a recordar as vítimas da Covid-19

Aparecida Vilaça
01set2020 01h00 (02set2020 17h55)

 
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O escritor Ailton Krenak Neto Gonçalves/Divulgação
Krenak, Ailton
A vida não é útil
Companhia das Letras • 128 pp • R$ 29,90

Mais uma vez o filósofo e líder indígena Ailton Krenak encontra as palavras certas e as ideias precisas para definir aquilo por que passamos hoje, analisando as causas de nossa crise ambiental e sanitária e oferecendo caminhos para transformarmos a pandemia em uma experiência renovadora.  

A vida não é útil dá seguimento às discussões do sucesso editorial Ideias para adiar o fim do mundo, que começa a ser traduzido em outros países. Os cinco capítulos que o constituem são amálgamas de palestras, entrevistas e lives de Krenak, brilhantemente organizadas por Rita Carelli, que as transformou em um texto fluido, claro, e que consegue, mesmo assim, manter a vivacidade do discurso oral. A impressão que se tem na leitura é  que já nasceu como livro, naquela exata sequência de capítulos, o que revela um trabalho editorial de altíssima qualidade, que não deve ser colocado em segundo plano, e que nos faz lembrar o de Bruce Albert na organização das falas do xamã yanomami Davi Kopenawa em A queda do céu

Em sua maioria, as falas que estão na origem do livro foram proferidas em diferentes momentos da pandemia, de abril a junho, a partir da casa do autor na aldeia Krenak, no vale do rio Doce, onde ele faz quarentena junto com o seu povo. A situação, evidentemente, exacerbou a preocupação com os destinos da humanidade e do planeta, que constituem o tema central de Ideias para adiar o fim do mundo. No presente contexto de medo e morte, a fala anterior soa premonitória, e o presente livro faz o seu discurso ainda mais relevante e repleto de sentido. 

O livro se inicia por uma crítica à nossa visão restrita de humanidade, que deixa de fora outros seres e entidades que povoam o mundo e exila em suas bordas povos minoritários, dentre eles os “caiçaras, índios, quilombolas, aborígenes”. Esse etnocentrismo é justamente o que nos conduz às ações que vêm levando à destruição progressiva da Terra, que teimamos em acelerar, com “a ilusão de que vamos continuar existindo”, acreditando que saberemos transformar “a crise em oportunidade”. A pandemia seria um aviso, um grito da Terra nos dizendo que “não estamos com nada” e nos mostrando que “essa tal de humanidade” pode se extinguir “com a mesma facilidade que os mosquitos de uma sala depois de aplicado um aerossol”. 

Civilização viral

“Somos a praga do planeta, uma espécie de ameba gigante”, “muito piores do que esse vírus que está sendo demonizado como a praga que veio para comer o mundo. Somos nós a praga que veio devorar o mundo.” As conclusões de Ailton ressoam aquelas do antropólogo francês Claude Lévi-Strauss, em suas reflexões sobre o modo de ser da chamada “civilização ocidental”, caracterizada como uma “civilização viral”, alertando para um aspecto do vírus que me parece central, e que diz respeito à especificidade do potencial destruidor de que fala Ailton. 

Trata-se justamente do modo de ação muito peculiar desse invasor: incapaz de se autorreproduzir, o vírus impõe a sua fórmula aos hospedeiros, forçando-os a produzirem réplicas dele, na contramão de seu próprio código genético. Como os vírus, a nossa civilização atua impondo às outras civilizações os seus códigos, destruindo os seus suportes materiais e as suas bases culturais, forçando-as a se tornarem iguais a ela. 

Até o momento, pelo menos, o nosso movimento em meio à crise não tem sido a revisão drástica de nossa forma de estar no mundo, com a atenção aos povos indígenas que nos ensinam como se deve habitá-lo, mas vem sendo dominado por uma ânsia pelo retorno à “normalidade”, que se alia a propostas delirantes de colonizar novos planetas. Será que não se dão conta de que “a possibilidade de sobrevivermos com esse corpo em Marte [...] vai depender de um aparato tão complexo que será mais fácil arrumarmos máscaras e respiradores e continuarmos aqui?”, pergunta Ailton. Isso mostra que a porção doente da humanidade, que infelizmente vem ditando o seu caminho e carregando junto os que não compactuam com suas escolhas, não aprendeu “nada com a experiência aqui na Terra. Eu me pergunto quantas Terras a gente precisa consumir até entender que está no caminho errado”. 

Ailton nos deixa o seu recado claro: quem quiser ir embora, já vai tarde. “Vão logo, esqueçam a gente aqui! Deveríamos dar um passe livre para eles, para os donos da Tesla, da Amazon. Podem deixar o endereço que depois a gente manda os suprimentos.” Que permaneçam aqueles capazes de fazer pontes entre a cidade e a floresta, o povo da agroecologia e da permacultura, os que fazem buracos no asfalto para plantar as suas hortas urbanas, os que contam histórias, os que levam a sério os sonhos.

Para Ailton, os sonhos seriam uma espécie de “instituição que prepara as pessoas para se relacionarem com o cotidiano”. Entre diversos povos, dentre eles os Guarani Mbya, todos os dias, de manhã bem cedo, a família reúne-se em torno do fogo e de uma cuia de mate, para contarem os seus sonhos uns aos outros e, só a partir daí, decidirem as suas atividades e os melhores caminhos a percorrer. Como lembra Ailton, a partilha dos sonhos é ocasião de troca de afetos, sentimentos e impressões, do exercício da capacidade de ouvir, permitindo assim “trazer conexões do mundo dos sonhos para o amanhecer”. Isso tem implicações diretas para o bem viver e para a extensão da vida, a “duração da pessoa”, como nos mostrou a antropóloga Elizabeth Pissolato para os Mbya. 

Como os sonhos, os mitos indígenas, narrados geralmente no anoitecer, por pais e avós aos seus netos e a quem mais queira ouvir, são igualmente repletos de fios de conexão, que tornam possível a comunicação das pessoas entre si e dos povos uns com os outros, pois os mitos circulam entre eles. Conectam ainda os humanos aos outros seres, animais, espíritos e ancestrais, que povoam os mitos e que, por meio da narrativa, se tornam acessíveis no mundo presente. “São histórias de antes de esse mundo existir [...]. A proximidade com essas narrativas expande muito o nosso modo de ser, nos tira o medo e também o preconceito contra os outros seres. Os outros seres são junto conosco, e a recriação do mundo é um evento possível o tempo inteiro.”

Donna Haraway, filósofa norte-americana, em seu livro Staying With The Trouble (2016), esforço criativo para pensar a crise ambiental e propor soluções, também menciona as histórias contadas, especialmente as mais longas, que parecem não ter fim. Cheias de pontas, conectam uma infinidade de pessoas e de seres, revelando-os como “holoentes”, seres complexos, formados por um aglomerado de espécies, como o são os recifes de coral. Somente ao entendermos que estamos todos ligados feito nós em uma cama-de-gato, em que a mudança da posição de um ponto qualquer implica a reordenação de todo o sistema, poderemos estabelecer outro tipo de relação com aqueles com os quais compartilhamos o planeta. “Ainda há ilhas no planeta que se lembram do que estão fazendo aqui”, escreve Krenak. “Estão protegidas por essa memória de outras perspectivas de mundo. Essa gente é a cura para a febre do planeta, e acredito que pode nos contagiar positivamente com uma percepção diferente da vida. Ou você ouve a voz de todos os outros seres que habitam o planeta junto com você, ou faz guerra contra a vida na Terra.”

Covid-19

Impressionam-me a paciência e a persistência de Ailton — assim como a de Davi Kopenawa, de Raoni Metuktire e de tantos outros — em nos ensinar, em permanecer ao nosso lado mesmo sabendo que vimos traçando caminhos opostos ao seu e de seus parentes indígenas, suprimindo as bases de sua existência, desrespeitando-os de todos os modos possíveis ao longo de cinco séculos. 
Enquanto escrevo, há 26 mil indígenas contaminados pela Covid-19, pertencentes a 150 povos diferentes. Setecentos dentre eles morreram, sendo a maioria pessoas maduras e idosas, que constituíam repositórios das tradições e da memória de seus povos. É como se bibliotecas tivessem sido queimadas, daquelas repletas de manuscritos que não podem ser repostos. 

Esses anciãos guardavam conhecimentos científicos sobre plantas, animais, remédios, eram mestres em filosofias complexas e narradores respeitados das histórias de conexão. Esses conhecimentos, longe de constituírem uma lista enciclopédica a ser recuperada, eram indissociáveis de seus corpos, revelando-se em seus gestos, seu jeito de falar, narrar e andar. Diante de tal complexidade, a sua transmissão aos mais jovens requer um longo processo, baseado em intensa convivência e observação atenta, até que se sintam prontos para tomar a sua posição. Para muitos dos povos afetados, esse caminho foi abruptamente interrompido.

“Para o meu povo, perder uma pessoa mais velha é perder a memória da nossa existência enquanto povo. É como o Museu Nacional pegando fogo. Tem sido um desespero muito grande para nós, mais jovens. De um dia para outro, uma parte significativa do nosso conhecimento, das nossas vidas, se vai de uma forma violenta”, escreveu Angela Kaxuyana.

Abandonados pelo governo, sofrendo invasões de garimpeiros, madeireiros, grileiros e missionários em seus territórios, vetores dessa e de outras doenças, e longe de locais onde possam receber tratamentos adequados, vêm sofrendo mortes dolorosas, precedidas de longas esperas em filas de todos os tipos e da separação abrupta de seus parentes. 

Abandonados pelo governo, os indígenas vêm sofrendo mortes dolorosas

O líder e ativista Amâncio Ikõ Munduruku foi levado doente para Itaituba, cidade mais próxima de sua comunidade, onde os únicos quatro leitos de uti disponíveis estavam ocupados. Dias se passaram até que conseguisse ser transportado para Belém, onde morreu. Outros indígenas não quiseram nem mesmo lutar pela internação, cientes do destino trágico que os esperava, e optaram por morrer em suas aldeias, entre os seus.

Com Amâncio partiram Feliciano Lana, do povo Desana, autor e artista plástico mundialmente conhecido; o líder e ativista Kayapó Bep’kororoti, conhecido como Paulo Payakã, que, como Ailton, teve importante papel nas negociações dos direitos indígenas da Constituição de 1988; o renomado chefe xinguano Aritana Yawalapiti; os professores e sabedores indígenas Higino Pimentel Tenório, do povo Tuyuka, Fausto Silva Mandulão, do povo Macuxi, Otávio dos Santos, do povo Sateré-Mawé; dentre muitos de uma longa lista que não tenho como reproduzir aqui. 

“Faz algum tempo que nós da aldeia Krenak já estávamos de luto pelo nosso rio Doce. Não imaginava que o mundo nos traria esse outro luto.” 

Nós aqui também estamos de luto com você, Ailton.

(Publicado originalmente no site da Revista dos Livros Quatro Cinco Um)

Eternos vigilantes: sobre "as confissões da carne", de Michel Foucault

 

Eternos vigilantes: sobre ‘As confissões da carne’, de Michel Foucault

O filósofo francês Michel Foucault (Foto Martine Franck/ Latinsrock)

 

 

É em muito boa hora que o Brasil recebe, pelas mãos da Paz & Terra, selo da Editora Record, o inédito livro de Michel Foucault, As confissões da carne, o quarto volume de sua série História da sexualidade. Os três primeiros foram publicados no país, em momentos outros. Porém, o último veio a lume somente em 2018, na França.

Com arte assinada por Letícia Quintilhano, as capas são preenchidas com cores chamativas. Na apresentação, o quarto volume traz a “Advertência” do filósofo Frédéric Gros, organizador da obra. Nela, o francês explica o trabalho de pesquisa e organização dos textos de Foucault, espalhados entre versões datilografadas e manuscritas depositadas na Biblioteca Nacional da França. Roberto Machado assina a orelha, com uma brevíssima apresentação do autor. A tradução ficou por conta de Heliana de Barros Conde Rodrigues e Vera Maria Portocarrero.

O quarto volume de História da sexualidade é coerente com os que lhe precederam. Destaco, em especial, a atenção dada ao mecanismo de vigília permanente desenvolvido, como uma tecnologia, no interior do cristianismo. Aliás, Foucault sublinha que a religião predominante do mundo ocidental não deve ser reconhecida somente por seu poder cerceador. Ela guarda, em suas origens, possibilidades de vivência sexuais outrora negadas. Trata-se de uma perspectiva polêmica em um tema desnecessariamente polêmico. O importante é observar como esse mecanismo de eterna vigília é algo bem mais complexo do que se imagina.

Seguindo o fio delineado por suas antecessoras, a obra propõe uma compreensão da sexualidade como categoria social-político-científica, atentando para os códigos morais construídos progressivamente, ao longo da formação da sociedade ocidental. Ela, então, sinaliza para um entendimento do todo social levando em conta detalhes obscurecidos pelo discurso moral, mas, que, definitivamente, revelam-se como bastante significativos no que diz respeito à construção e organização da estrutura social. As conclusões ecoam na contemporaneidade.

Os três primeiros volumes, A vontade de saber, O uso dos prazeres e O cuidado de si, já populares e disseminados, incitam uma atenção ao potencial da sexualidade na organização social, em clara aversão a um entendimento patológico do tema. A repressão dos atos, impulsos sexuais, identificados com a natureza humana, é o que conduz toda a postura do sujeito em seu mundo. Técnicas inúmeras de controle da consciência são progressivamente desenvolvidas nesse sentido.

Por exemplo, ao nos remetermos aos volumes precedentes de História da sexualidade, percebemos que não é o código vitoriano quem delineia o modo de ser no século 19. Ao invés disso, devemos tomar o “ser vitoriano” como algo disseminado, uma referência. O discurso é apenas replicado nessa identificação, revelando a estrutura social vigente.

É de maneira desconfiada que Foucault observa o discurso científico e toda a autoridade filosófica em seu processo de afirmação de uma verdade. Em meio a isso, prevalece a insistência no poder do discurso, geminado à estrutura social. O sujeito, nesse caso, tem tanta responsabilidade quanto a autoridade detentora do discurso que, no fundo, seria como um especialista, tradutor daquilo que ocorre no mundo. E, como há traços comuns entre o que se profere e quem o ouve, a influência é praticamente inevitável.

Logo, o discurso vitoriano é nada mais nada menos do que a tradução, a versão oficial, normatizada – e, portanto, reforçada pelo seu poder de organização –, de condutas sociais já presentes entre os sujeitos. É como se fosse a forma válida, hegemônica, no todo social. O poder está disperso, ainda que possa ser personificado, institucionalizado.

As primeira proibições

As confissões da carne leva isso em conta. Nele, Foucault tenta se aproximar da genealogia da constituição do sujeito ao longo do tempo, buscando vestígios do conservadorismo – para usar termos atuais – natural dos seres humanos. E, nesse caso, seguindo a sua premissa filosófica, não se contenta em atribuir ao cristianismo a culpa pelo significado da sexualidade hoje.

Seguindo esses propósitos, Foucault retorna a filósofos e pensadores cristãos e não cristãos dos primeiros séculos de nossa era, como Sêneca, Clemente de Alexandria, Tertuliano, Gregório de Nissa, João Crisóstomo, Santo Agostinho, entre outros. E o faz abordando temas que se tornaram caros ao cristianismo, como batismo, confissões, sexo, virgindade e matrimônio, por exemplo. Em seu norte, está a maneira como essas matérias foram incorporados pela sociedade e como os filósofos as traduziram, isto é, como lidaram com o discurso em que se encontravam envoltos, aprimorando as concepções e entendimentos em relação a questões que inevitavelmente se faziam presentes na constituição social de seu tempo.

O livro demonstra que não foi o cristianismo quem criou a tese da importância da virgindade, uma vez que ela já estava presente entre os chamados moralistas pagãos, dando o tom da formação da sociedade naquele tempo. Inicialmente, ser casto era muito mais do que uma virtude, significando uma condição essencial para que, através do exercício intelectual, fosse proporcionada uma negação do corpo e, consequentemente, dos impulsos naturais, relacionados ao sexo, de modo a se atingir a pureza do pensamento filosófico, da razão. Foucault, ao longo de todo o livro, não se reporta à metafísica para se orientar. Mas, de fato, apresenta ao leitor todo o esforço intelectual da filosofia daquele tempo para que se chegasse à forma suprema de conhecimento. Eis a negação de qualquer imersão a ser feita com o corpo.

O autor de As confissões da carne nos apresenta como, nesse escopo, a virgindade adquire contornos negativos, qual seja, um produto da negação dos atos sexuais, corpóreos. O cristianismo primitivo apenas reproduz essa postura, presente no discurso, na forma de pensamento de então. Contudo, uma particularidade deve ser observada nesse caso, pois, por meio de uma leitura atenta da obra de Clemente de Alexandria, Foucault percebe as mudanças quanto à compreensão da virgindade. À medida em que a ideia do Deus cristão prevalece, toma-se o exercício de castidade como uma espécie de valorização da própria pureza e, consequentemente, da experiência divina.

O filósofo francês Michel Foucault em seu escritório (Bruno de Monès/ Latinstock)
O filósofo francês Michel Foucault em seu escritório (Bruno de Monès/ Latinstock)

Para essa primeira forma de cristianismo, assimila-se a premissa de que o corpo é impuro – algo exacerbado pela moral pagã, cuja forma final, acabada, de discurso em torno desse princípio encontra-se na filosofia pagã. O cristianismo, por meio de seus artifícios, trabalha ativamente no convencimento do sujeito quanto às impurezas do corpo, exigindo-lhe uma superação à medida em que reforçava constantemente a validade de sua qualidade enquanto ser humano, enquanto obra de Deus. Portanto, fazer-se virgem não era mais uma questão de negar o corpo, mas, sobretudo, de afirmar-se enquanto Criatura.

Assim é que a virgindade torna-se um modo de se relacionar com Deus, reforçando a premissa da Criação. Portanto, a continência, contenção dos impulsos, torna-se positiva. A isso, tem-se o desenvolvimento da ascese e a organização do monaquismo como rota para o reforço do cristianismo que, então, passa a ser compreendido como forma de organização do mundo e técnica do sujeito para o governo de si mesmo. A orientação do olhar é alterada, deixando claramente de ser algo voltado para o mundo abjeto para, em seu lugar, buscar a verdade da alma, forma única de se aproximar de Deus dentro do ascetismo.

A partir daí, o casamento passa a ser compreendido como uma maneira de se conseguir a tranquilidade da alma – diferentemente da moral pagã, dos primeiros filósofos do ocidente, que pregavam a vida independente, incluindo a sua interpretação quanto à castidade. A lógica é completamente invertida no cristianismo que, em grande medida, posiciona a virgindade como uma escolha, exaltando a volição da comunhão com Deus, não mais como uma lei. O peso, no sujeito, é ainda maior. A sexualidade, obviamente, adquire um novo status, demarca um novo terreno para a compreensão do sujeito em seu lugar no mundo e em sua conexão com Deus, através da alma, ditada pela capacidade de escolher o caminho correto.

“Trata-se, ao sublinhar alguns traços importantes da mística da virgindade no século IV, de mostrar que a valorização muito intensa de uma abstenção total, originária e definitiva das relações sexuais não tinha uma estrutura de interdição, não representa o simples prolongamento de uma economia restritiva dos prazeres do corpo. A virgindade cristã é bem diferente da forma radical ou exasperada de um preceito de continência que a moral filosófica bem conhecida da Antiguidade, e que os primeiros séculos cristãos herdaram”, escreve.

A escolha pelo casamento

Não seria exagero dizer que, a partir da leitura de As confissões da carne, a moral da Antiguidade Clássica mostrava-se bem mais rígida do que a moral cristã. Valorizar a virgindade, conforme faz o cristianismo primitivo, é bastante diferente, sendo mais significativa, do que fazer uma pura desqualificação ou proibição simples das relações sexuais. A consequência da inversão promovida pelo cristianismo, no entendimento de Foucault, é a de uma valorização da relação do indivíduo com sua própria conduta sexual, ressaltando uma experiência positiva.

Em suma, não há a desvalorização progressiva da relação sexual. Ao posicionar a castidade enquanto objeto de análise, há a flexão para que se observe o desenvolvimento do pensamento – o pensamento ocidental. O objetivo de Foucault, nesse caso, é demonstrar como tudo isso incide na construção do sujeito ao longo da história, determinando o seu posicionamento no mundo. Como bem diz o autor: “O que está em jogo, então, não é um código de atos permitidos ou proibidos, é toda uma técnica para vigiar […]”.

Aqui está a maneira como o casamento passa a deixar de ser uma alternativa para a continência absoluta. Em sua constante procura, Foucault perscruta, também, a maneira como as relações sexuais devem ser compreendidas no interior do próprio matrimônio, avaliando a sua função reprodutiva – negada como fundamento da união, por exemplo, por São João Crisóstomo –, e sua posição ante o dilema da concupiscência.

Ao adquirir contornos positivos, o casamento é tomado como pressuposto para a existência de uma necessidade do sujeito de vigilância sobre si mesmo, reforçado pela tecnologia da confissão e seus equivalentes. O filósofo debruça-se sobre a maneira como devem ser concebidos os desejos do corpo dentro do matrimônio.

Algo curioso é observado aqui. Em vista dos princípios trabalhados anteriormente, levando em conta que a queda do paraíso acentua o corpo como lugar dos excessos e da concupiscência, o matrimônio passa a ser tomado como a salvação de cada um por meio do outro, através de um sistema de vigilância mútua. Isto é, o sujeito agora depende de seu par para conseguir a salvação: a realização do desejo sexual, a finalidade reprodutiva e a concupiscência entram na conta da conduta do sujeito. Essa reflexão é observada justamente em Santo Agostinho, desnudando uma angústia evidente no interior daquela sociedade de seu tempo.

Jean-Paul Sartre (à esq.) ao lado de Foucault durante uma manifestação em 1971 (Reprodução)
Jean-Paul Sartre (à esq.) ao lado de Foucault durante uma manifestação em 1971 (Reprodução)

A salvação com ajuda do outro

A partir de Agostinho, o cristianismo interpreta o casamento como obrigação de um para com o outro. Desse modo, cria-se um pressuposto relacional e jurídico para a compreensão da vida conjugal sob o prisma político. Isso é fundamental para o ocidente como um todo, pois abre espaço para o entendimento quanto à origem das leis e dos mecanismos sociais que regulam a vida, sendo o matrimônio e, consequentemente, a família, a unidade mínima para a formação dessa sociedade.

No cômputo geral, Michel Foucault mostra a evolução da questão da sexualidade no cristianismo, visível sobretudo ao se tomar a castidade um elemento fundamental para a salvação, inclusive quando executada no interior do casamento, até o propósito da societas, da formação de uma sociedade cristã, unida a Deus, cuja forma final está expressa nas teses de Agostinho e seu reforço da premissa do sujeito como oriundo da queda. Nesse caso, nota-se a comunidade cristã em formação, tomando por referência a contenção dos impulsos como forma de justificar a união com Cristo. O mecanismo de organização da sociedade e seu eco em sua forma moderna, se fazem presentes à medida em que se compreende a progressiva lógica de contenção dos desejos.

“Não se trata mais, no caso, do fim natural do casamento, mas da consequência do laço pessoal que ele estabelece e da ordem das obrigações em que compromete. Esta consideração da concupiscência do outro, da ajuda que é preciso fornecer-lhe para a sua salvação, funda o dever conjugal”.

Eis a evolução da moralidade cristã que, notavelmente, permeia toda a nossa sociedade. Construir uma sociedade com essa obrigação moral colaborativa exige um olhar para o lugar ocupado pela sexualidade. Ela foi fundamental na determinação dos laços sociais e dos compromissos entre os indivíduos.

Foucault deixa dois pontos que, creio, são dignos de consideração: em primeiro lugar, não é o cristianismo quem cria os freios para o movimento do sujeito em direção à sua natureza e a consequente valorização dos desejos sexuais. Ele não realiza apenas a negação de quaisquer elementos que se encontram fora da lógica superior de Deus. Pelo contrário, em determinado momento, conforme vimos, toma pressupostos, nas palavras de hoje, conservadores da moral pagã, colocando-as em um outro patamar, de positividade, ao mesmo tempo em que lhe confere um novo significado que se torna fundamental para a constituição do sujeito ocidental.

Em segundo lugar, a sexualidade ocupa um lugar especial na organização da sociedade ocidental. Se por um lado é possível observar movimentos positivos do cristianismo, por outro, nota-se também como toda uma nova lógica moral é constituída e pode ser tomada como responsável para o controle do sujeito quanto aos desejos e impulsos, em uma impressionante técnica de vigília. Isso fica ainda mais claro ao se notar a formação da família e como ela se torna a unidade mínima, o núcleo, de toda a organização social em questão.

As confissões da carne é a conclusão de um projeto que foi se tornando cada vez mais curioso à medida que era escrito, ao longo das décadas de 1970 e 1980, período em que a discussão sobre a liberdade sexual marcava presença para nunca mais sair da agenda de debate público. Atual, o livro nos mostra vigor do tema ao enfatizar a potência de seus desdobramentos na organização de nosso mundo.

Em História da sexualidade compreendemos melhor, hoje, como por exemplo o inaceitável e injustificável estupro cotidiano de uma menina de dez anos é visto não como um ato de violência, mas, sobretudo, como escândalo sexual. Obscurecer o aspecto violento de um crime desse porte é omitir a vítima, conferindo a ela unicamente a responsabilidade em se vigiar, obrigando-a a conceber o “sagrado fruto” da imposição que lhe foi feita. Tudo isso decorre de um discurso machista proeminente, derivado de uma complexa moral de contenção dos impulsos, de uma tecnologia de vigília, desenvolvida progressivamente em nossa história.

O trabalho de Michel Foucault deixa suas marcas ao mesmo tempo em que exige uma reconsideração quanto ao posicionamento humano na atualidade. A sua reedição, contemplada com a publicação de um inédito, vem a contento. Talvez, neste momento em que estamos trancados em casa, em que a vigília se faz ainda mais necessária, e dolorosa, por conta dos códigos morais, esteja na hora de retomar a discussão como ponto de partida para um olhar mais atento ao nosso mundo.

As confissões da carne
Michel Foucault
Paz & Terra
Tradução: Heliana de Barros Conde Rodrigues; Vera Maria Portocarrero
528 páginas – R$79,90

Faustino Rodrigues é jornalista, doutor em Ciências Sociais e professor de Sociologia na Universidade do Estado de Minas Gerais (UEMG).
 
(Publicado originalmente no site da Revista Cult)

O "novo ruim": sobre uma máxima brechtiana

O “novo ruim”: sobre uma máxima brechtiana

 

 Artur de Vargas Giorgi 

O dramaturgo e poeta alemão Bertolt Brecht, de quem Benjamin extrai a ideia de "novo ruim" (Foto: Fred Stein / Divulgação)

 

1. No ano de 1938, Walter Benjamin visita pela terceira vez o amigo Bertolt Brecht, que então vivia exilado em Svendborg, Dinamarca, um dos muitos lugares por onde o dramaturgo alemão passaria ao longo dos seus quinze anos de desterro, transitando entre a hospitalidade e a hostilidade.

Benjamin em breve seria, como sabemos, o autor das teses “Sobre o conceito de história”, últimos e incontornáveis escritos antes da sua opção pelo suicídio, em 1940, como forma de escapar da violência da Gestapo hitlerista. Não obstante, naquele ano de 1938, mais precisamente em 25 de agosto, o que o filósofo anota em seu diário íntimo é algo muito conciso, em certo sentido, algo mínimo.

Nessas páginas, onde Benjamin registra os debates, os confrontos, as partidas de xadrez que, ao longo dos dias, mantém com Brecht, encontramos lapidada, com efeito, em pouquíssimas palavras, “uma máxima brechtiana”; máxima que propõe o seguinte: “não partir do antigo bom, mas do novo ruim” (em Ensaios sobre Brecht).

Em tamanha concisão, hoje nada seria mais preciso e urgente. É como se fôssemos tomados por um eco do passado dirigido às emergências do nosso presente. Quer dizer, somos interpelados por uma exigência cifrada há mais de 80 anos, sob a ameaça do nazifascismo, exigência que permanece neste nosso presente destemperado e pungente, ameaçado pelas formas contemporâneas do autoritarismo.

2. O novo ruim: eis de onde devemos partir, para que não seja normalizada, sem mais, a catástrofe do “novo normal”. Esta seria a posição crítica a ser adotada nestes tempos que, imagino, teriam colocado Benjamin diante de impasses inauditos a respeito da amplitude assumida pela reprodutibilidade técnica; tempos que, nesse sentido, ainda, parecem pedir o reforço não só de nossas capacidades de compreensão das técnicas, mas, sobretudo, de um gesto caro a seu amigo e parceiro de xadrez: um gesto que muitas vezes é chamado de distanciamento, ou estranhamento.

Sabemos que Benjamin não recuava perante as mais avançadas tecnologias do seu tempo. Além de postular que um posicionamento político e estético antifascista deveria ser alcançado não com o rechaço, mas sim, justamente, por meio das técnicas modernas de reprodução (principalmente o cinema), Benjamin foi, ele mesmo, entre o final dos anos 1920 e o início da década de 1930, um speaker em rádios alemãs, falando a crianças e jovens sobre assuntos nada distantes dos seus ensaios mais exigentes.

Brecht não destoava dessa posição em seu pensamento crítico sobre o teatro. Palavras de Benjamin: “As formas do teatro épico correspondem às novas formas técnicas, o cinema e o rádio. Ele está situado no ponto mais alto da técnica”.

Com efeito, o dramaturgo propunha que a superação da identidade emocional entre o público e as ações encenadas, ou ainda, que a interrupção das prescrições miméticas e catárticas do teatro clássico “naturalista” deveria ser alcançada não fora ou para além do teatro, mas pela mobilização radical dos seus próprios recursos e artifícios. Assim, o teatro deveria interpelar o público ao expor o mundo humano como uma construção contingente, portanto passível de transformação, ao mesmo tempo em que deveria se expor, ele mesmo, como construto, como técnica de exposição.

3. O título de um poema de Brecht sintetiza bem essa operação – “O mostrar tem que ser mostrado” – e seus versos dão contorno ao programa do teatro épico:

[…]
Eis o exercício: antes de mostrarem como
Alguém comete traição, ou é tomado pelo ciúme
Ou conclui um negócio, lancem um olhar
À plateia, como se quisessem dizer:
Agora prestem atenção, agora ele trai, e o faz deste modo.
Assim ele fica quando o ciúme o toma, assim ele age
Quando faz negócio. Desta maneira
O seu mostrar conservará a atitude de mostrar
De pôr a nu o já disposto, de concluir
De sempre prosseguir. […]

Assim como Benjamin, Brecht sabia que na modernidade o problema da arte confina com o problema da política porque, para ambas, a exposição mediada pelas técnicas é decisiva. Obras de arte, artistas, públicos e políticos – todos compartilham, desde então, os mesmos espaços de exposição; todos se medem, cada vez mais, com as técnicas de reprodução, isto é, com as mediações que montam e desmontam, que modulam, compõem e recompõem o mundo que eles compartilham e disputam.

E se, a priori, o teatro pareceria escapar a esse destino, pelo fato de se valer de atores que confrontam o público diretamente e de cenas – por assim dizer – sempre originárias, desempenhadas sem edição, o que o teatro épico de Brecht propõe se aproxima, sim, da transformação causada pelo cinema na exposição de atores e políticos, igualmente. Pois vale para o teatro épico o que Benjamin escreveu a respeito da técnica cinematográfica: “Seu objetivo é tornar ‘mostráveis’, sob certas condições sociais, determinadas ações de modo que todos possam controlá-las e compreendê-las”.

Ao romper com o ilusionismo da cena, com seu andamento supostamente natural, Brecht faz intervir o teatral, vale dizer, o caráter artificial, não só do teatro, mas também das condições sociais, dessa nossa “realidade”, que tantas vezes é vista como necessária e inegociável. E com isso seu teatro afirma que, na arte como na política – nos modos da representação e nos meios da representatividade –, se o objetivo é a transformação da vida em comum, é preciso, então, não apenas mostrar; na mesma medida é necessário mostrar que se mostra, mostrar-se. Expor as formas de exposição: o que está em jogo com esse gesto é, não a reprodução do que já é vivido, mas a produção de formas de vida ainda possíveis.

4. As fundamentais medidas de preservação da vida – de toda vida – deveriam ser, estas sim, absolutamente inegociáveis. Mas, para muito além dessa conduta de fato ética, o chamado “novo normal”, entre outros aspectos muito problemáticos, apresenta-se, notadamente, como normalização da vida virtual. E se tampouco em nossos dias as respostas devem ser buscadas na recusa das técnicas mais avançadas, essa normalização definitivamente é algo que deveria ser submetido a uma crítica severa e constante.

Respostas políticas e estéticas afirmativas de uma vida comunitária somente serão possíveis com a exposição e o exame da realidade produzida pelas técnicas. Nesse sentido, é preciso mostrar que, em geral, a atual naturalização da virtualidade parece não reforçar a compreensão da contingência do mundo humano, ou seja, da possibilidade de transformá-lo. Ao contrário, parece cristalizar uma suposta certeza, sem dúvida arrogante: a certeza de que tudo que se dá é necessário, obrigatório, inevitável. Trata-se de uma lógica conservadora que, não raro, é perversamente associada ao discurso do progresso, do avanço, da evolução etc.

Afinal, conhecemos bem o elogio dos fluxos desimpedidos; o elogio da comunidade global sem hierarquias; da revolução dos conteúdos, dos afetos e das identidades; o elogio das novas formas de intimidade; do acesso e da autonomia usuária a qualquer hora e da entrega em casa just in time. Conhecemos, em suma, essa forma de apropriação que capitaliza a energia transformadora do mundo e limita nossas ações à escolha entre produtos e serviços (zoom, meet, facebook, instagram…), evitando assim as questões mais urgentes, que na verdade são as mais básicas.

O mundo virtual não reforça formas de exclusão? Que tipo de trabalho o sustenta? Quem gerencia as informações das plataformas e redes sociais? O que fazem com esses dados? A vida nos espaços públicos se intensifica? As demandas coletivas se reforçam? Essa estranha intimidade distanciada e exposta produz novos sujeitos? Em que medida essas formas de subjetivação nos interessam? É um problema a exposição da intimidade de muitos gerar lucro para pouquíssimos? E, para além da exposição, a virtualidade de fato intervém nas partilhas do mundo? Ela favorece, efetivamente, a produção de novas condições sociais, de realidades alternativas mais igualitárias?

As respostas devem ser matizadas: às vezes sim, às vezes não, em outras vezes, parcialmente. Seja como for, são perguntas como essas que, a meu ver, devem orientar, por exemplo, o debate sobre o uso na educação – e sobretudo na educação pública – de plataformas privadas ligadas ao mercado do chamado big data, assim como devem orientar a discussão sobre o fato de, hoje, cada usuário online ser “automaticamente” um produtor e, ao mesmo tempo, um consumidor de conteúdos.

Esse trabalho imaterial, segundo Peter Pál Pelbart, é uma das definições do mundo virtual. E responder criticamente a ele não é uma tarefa simples, já que através desses fluxos virtuais formatamos nossos gostos, condutas, sonhos, opiniões – nossos afetos. Como escreveu o autor em A vertigem por um fio, produzimos e consumimos “cada vez mais maneiras de ver e de sentir, de pensar e de perceber, de morar e de vestir, ou seja, formas de vida”. Daí a complexidade da situação.

5. Apesar das diferenças sobre os modos do posicionamento político-partidário (bem sinalizadas em Quando as imagens tomam posição, de Georges Didi-Huberman), Benjamin e Brecht demarcaram em torno das técnicas de reprodução e exposição o ponto da crise, da crítica e da criação.

No teatro épico, o público deixa de ser um espectador: ele é chamado a atuar, pois deve avaliar e tomar decisões sobre o que é mostrado. O homem e a sociedade são confrontados pela investigação que os afasta do conhecido, do que seria “natural”. Nada mais próximo de Benjamin, que afirmava que através do cinema a realidade podia ser vista como uma segunda natureza: produzida como uma flor azul no jardim da técnica.

Claro, somos desde o início criaturas prometeicas, ou seja, fomos e somos algo como deuses, mas com próteses, como sugeriu Freud em O mal-estar na civilização. Por isso, diante desse nosso mal-estar, diante do novo ruim, talvez a estratégia seja reforçar a exposição da nossa natureza de segunda ordem: nossa natureza técnica.

O mundo virtual não deixa de ser um imenso palco, uma cena montada, produtora de inúmeros efeitos reais. Não podemos naturalizar essa condição. Se não conseguirmos expor os artifícios que criamos e que também nos criam, não conseguiremos criticá-los, compreendê-los e controlá-los.

Benjamin escreveu que, no teatro de Brecht, o palco ainda ocupa uma posição elevada. Mas com uma diferença fundamental: em sua elevação, o palco já não tem nada de sublime, mágico ou extático. O que nele se desempenha é o estranhamento do mundo que até agora construímos. Quem sabe desse estranhamento resulte uma tomada de posição que coincida com a interrupção dos acontecimentos e com a sua leitura a contrapelo. Afinal, esse mundo estranho é o mundo ordinário, o nosso mundo humano de todos os dias. Um mundo de próteses e técnicas, artes e artifícios que é, sim, contingente. Modificar esse mundo profundamente é o papel dos atores de hoje.

Artur de Vargas Giorgi é doutor em Literatura pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e professor de Teoria Literária da mesma instituição.

(Publicado originalmente no site da Revista Cult)

Charge! Benett via Folha de São Paulo

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quarta-feira, 5 de agosto de 2020

Uma dominação a ser combatida

Uma dominação a ser combatida
Em nossa sociedade patriarcal, o desprezo é destinado às mulheres inclusive nos espaços intelectuais (Foto: Andre Hunter/Unsplash)

 

Faz parte da visão falo-narcísica e da cosmologia androcêntrica manter uma barreira entre a mulher e a vagina como umas das estratégias de dominação masculina, conforme nos ensina Pierre Bourdieu.

A vagina precisa ser dissociada da mulher para que ela possa ser considerada virtuosa, digna do respeito e da consideração de um homem.

Aí está a dificuldade de ser mulher e de ser aceita como intelectual e política. Construído em uma sociedade machista, o olhar masculino está carregado de uma violência simbólica que afasta as mulheres desses espaços.

Se for sexualmente livre e não reprimir seus desejos, a mulher será etiquetada como objeto – e o contrário não a livra dessa objetificação, que sustenta a divisão sexual do trabalho e corrobora para manter a mulher no “lugar de mulher” e o homem no “lugar de homem”.

Feministas francesas como Danièle Kergoat nos ensinam a respeito da luta das mulheres contra a divisão sexual do trabalho. No livro Divisão sexual do trabalho e relações sociais de sexo (Editora Unesp), Kergoat escreve:

“A divisão sexual do trabalho é a forma de divisão do trabalho social decorrente das relações sociais de sexo; essa forma é historicamente adaptada a cada sociedade. Tem por característica a destinação prioritária dos homens à esfera produtiva e das mulheres à esfera reprodutiva e, simultaneamente, a ocupação pelos homens das funções de forte valor social agregado (políticas, religiosas, militares…)”.

No seio dos ambientes intelectuais, a mulher que não reprimir seus desejos e que não for “recatada”, atrairá homens que não veem nela humanidade o suficiente para escutá-la, pois só conseguem enxergá-la como objeto.

Isso pode ser evidenciado nas relações de amizade entre homens e mulheres nos espaços intelectuais e políticos. As amigas dos homens, que dominam esses campos, são lidas quase imediatamente como “amantes”. Na lógica do pensamento machista, um homem não pode compartilhar nada além de sexo com uma mulher.

A construção desse pensamento envolve acreditar que mulheres não merecem a amizade de um homem a não ser que, em troca, ofereçam a vagina. Na cabeça de um machista, de um misógino, o amor amigo e a troca de impressões intelectuais não são permitidos entre homens e mulheres.

O capitalismo precisa ser derrubado e uma nova forma de sociabilidade humana precisa ser construída, mas não sem que essas questões sejam resolvidas. Estamos falando de violência.

Não é possível continuar mantendo mulheres em um patamar de meros objetos, até porque, pelo menos no Brasil, a maioria da população é composta por elas. Pensar novas formas de sociabilidade humana deverá passar pelo crivo das mulheres – que, pasmem, são seres humanos.

Importante lembrar que a cada dia mais e mais mulheres rejeitam a etiqueta da objetificação. Com isso, o mais próximo de um consenso sobre a transição que precisamos não será possível sem que o pensamento machista ceda. Estamos falando de uma forma de pensar, de ser e existir muito violenta, já introjetada, que não se exaure com o fim da opressão econômica.

As barreiras impostas às mulheres pelos homens extrapolam as situações expostas neste texto. Situações que também se relacionam com a divisão sexual do trabalho, ligada a imagens de controle que afastam as mulheres, por exemplo, do campo político, dominado por homens brancos.

Como nos ensina bell hooks em O feminismo é para todo mundo: políticas arrebatadoras (Record): “Desafiar o pensamento sexista em relação ao corpo da mulher foi uma das intervenções mais poderosas feitas pelo movimento feminista contemporâneo. Antes da libertação das mulheres, todas as mulheres, mais jovens ou mais velhas, foram socializadas pelo pensamento sexista para acreditar que nosso valor estava somente na imagem e em ser ou não notada como pessoa de boa aparência, principalmente por homens”.

A teoria política que critica o neoliberalismo e sua forma de tratar pessoas como objetos indesejáveis quando não possuem poder de compra, não pode se omitir quando o assunto é “mulheres como objetos que só prestam para oferecer sexo”, ou seja, quando tiverem capital sexual para oferecer. Esse pensamento é misógino e desumanizante.

Sobre o neoliberalismo e sua característica desumanizante, Márcio Felippe Sotelo escreveu, na Cult de Maio: “O neoliberalismo nos tornou indivíduos competitivos. Se a isso juntarmos a meritocracia econômica, criamos um sistema de vencedores e perdedores, em termos individuais. O passo em direção à solidão, ansiedade e depressão é muito pequeno nesse sistema binário. Em termos gerais, faz-nos sentir infelizes, pois somos animais sociais, precisamos do outro, prosperamos em grupo. Este sistema econômico anula este aspecto crucial da natureza humana”.

Seguindo essa lógica, devemos apontar para a forma violenta como homens competem com mulheres nos espaços que ocupam e como o mérito masculino é forjado no falocentrismo, fazendo das mulheres seres inferiores no “sistema de oposições homólogas” ainda naturalizado.

Isso também é violento, causa infelicidade e depressão. E se precisamos uns dos outros para prosperar em grupo, mulheres não podem estar do lado de fora.

No livro Políticas da realidade: ensaios sobre Teoria Feminista, a filósofa Marilyn Frye escreve que o amor dos homens é homossexual, uma vez que eles parecem incapazes de direcionar às mulheres o mesmo amor amigo – que une, compartilha saberes, ideais, lutas, estratégias e espaços – que direcionam aos seus pares masculinos.

O filósofo Axel Honneth fala do amor – as relações eróticas, as amizades e a relação entre pais e filhos – como um padrão de reconhecimento intersubjetivo, ao lado do direito e da solidariedade. Segundo ele, o direito considera todas as pessoas iguais, enquanto a solidariedade está relacionada à maneira como os indivíduos se sentem valorizados e reconhecidos.

Essa forma de reconhecer o valor do outro pode fazer surgir o que Guilherme Assis Almeida e Eduardo Bittar revelam como “relações solidárias que são caracterizadas pela igual intensidade no sentido de estima mútua e pela possibilidade de compartilhamento de valores comuns significativos e engrandecedores para a vida de cada um. Compartilhamento esse que ocorre sem nenhuma espécie de pressão social”, escrevem em Curso de filosofia do direito (Atlas).

Os autores, que trazem o pensamento de Honneth, ainda nos ensinam que “é essa solidariedade que será capaz de estabelecer uma comunidade de valores ensejadora de relações sociais caracterizadas pela troca e desenvolvimento recíproco nas quais a violência não ocupa lugar algum e a peculiaridade de cada um é fruto da admiração de todos. Relações nas quais a competição não encontra nenhum espaço, já que o crescimento do indivíduo no âmbito do grupo é princípio. Entendida essa palavra no seu sentido de dar início, como também na sua perspectiva ética”.

É importante lembrar também do que nos ensinou Audre Lorde em Irmã outsider (Autêntica), quando escreveu que “a menos que alguém viva e ame dentro das trincheiras, é difícil se lembrar que a guerra contra a desumanização é interminável”.

O desprezo é o contrário da solidariedade. Numa sociedade patriarcal, machista e misógina inclusive nos espaços intelectuais e políticos, essa prática é destinada às mulheres e a outros grupos subalternizados.

Como é possível pensar em novas formas de sociabilidade fora do capitalismo, tão baseado no individualismo, egoísmo e no desprezo dos indesejáveis, sem atacar a raiz dessa construção social que despreza mulheres? Um desprezo que é incapaz de oferecer – para além da teoria – a solidariedade para esse grupo social?

É importante que deixemos de gastar energia fingindo que essas barreiras são intransponíveis ou até mesmo que elas não existem, nos ensina Audre Lorde. Negar a existência desse pensamento binário que coloca mulheres como merecedoras de desprezo não fará com que isso deixe de acontecer.

E como falar em democracia e justiça sem observar, por exemplo, a prática da valorização recíproca entre grupos sociais? O amor, o direito e a solidariedade são determinantes para a vida do indivíduo, escrevem Guilherme Assis Almeida e Eduardo Bittar, e a sua ausência, além de perturbar o espaço coletivo, tem consequências diretas para o convívio social.

A teoria crítica de Honneth, de 1992, nos desafia a experimentar novas práticas sociais – práticas que já têm sido propostas por teóricas feministas há décadas.

Ao considerarmos a interseccionalidade como ferramenta analítica, deixamos de entender a categoria mulher como universal e passamos a falar, por exemplo, de mulheres negras. E essas mulheres, como nos ensina Patricia Hill Collins, são atingidas por “imagens de controle”, ou seja, imagens negativas, como a da “gostosa”, para usar apenas um exemplo. São imagens que ajudam a justificar a opressão sobre elas.

Em Pensamento feminista negro (Boitempo), Collins demonstra como essas imagens de controle atuam como uma ideologia de dominação. “Dado que a autoridade para definir valores sociais é importante instrumento de poder, grupos de elite no exercício do poder manipulam ideias sobre a condição de mulher negra. Para tal exploram símbolos já existentes, ou criam novos”.

Ao tratar da objetificação da mulher negra, Collins aborda o pensamento binário que dialoga com o que Bourdieu chama de sistema de oposições homólogas, chamando a nossa atenção para o fato de que o binarismo retarda o pensamento e seus valores fazem com que os fatos se apresentem de forma obscura.

Essas imagens de controle – que colocam como “amante” a mulher negra intelectual amiga de homens intelectuais, como aquela que precisa oferecer capital sexual em troca de reconhecimento e valorização – estão no âmbito do desprezo, que é o contrário da solidariedade que precisamos para a construção da nova sociabilidade que nos interessa.

Da mesma forma, quando falamos da mulher trans que é desprezada porque não permitiu ser domesticada pelos seus pares, estamos diante do uso de imagens de controle que “justificam” a transfobia no campo político. A mulher trans que não se permite domesticar acaba sendo etiquetada como selvagem primitiva que não merece reconhecimento e valorização, apenas o desprezo.

A interseccionalidade é uma categoria de análise das opressões de raça, gênero e classe, sem hierarquia entre elas, como ressalta Audre Lorde.

No sistema binário de pensamento, mulheres são lidas e tratadas pelos homens como inferiores, assim como negros são tratados e lidos como inferiores pelos brancos. Não devemos reproduzir esse sistema dentro do espectro ideológico progressista. É preciso se educar, refletir e pensar no outro como alguém diferente, porém não menos importante ou que mereça desprezo.

É preciso coragem e honestidade intelectual para realizar uma autocrítica e se aliar na derrubada do pensamento binário desumanizante, mas sem acreditar que o grupo oprimido tem a responsabilidade de educar seus opressores.

A derrubada da arrogância intelectual – que faz com que aqueles que não tiveram acesso à educação sejam vistos como parte inferior do binarismo fato/opinião – está no âmbito da prática da solidariedade, inserida na teoria crítica social de Honneth.

Derrubar a arrogância intelectual não é sobre ser anti-intelectual, mas é se permitir escutar e refletir sobre o que dizem e sentem aqueles que não tiveram as mesmas condições objetivas para alcançar certos espaços, que inclusive não foram feitos para que esses corpos fossem recebidos.

É sobre exercitar a solidariedade intelectual e não fazer com que o outro se sinta um outsider compulsório nos debates que impactam diretamente as suas vidas.

Em Pensamento feminista negro, Patricia Hill Collins apresenta a fala de Ruth Shays, mulher negra e pobre. Uma fala impactante que nos faz refletir sobre o pensamento binário que desumaniza e afasta o princípio da solidariedade, além de nos distanciar das possibilidades de garantir nosso direito ao futuro e o direito daqueles e daquelas por quem dizemos lutar:

“Ouvir a verdade não mata ninguém, mas as pessoas não gostam da verdade e preferem ouvi-la de alguém de seu próprio grupo que de um estranho. Ora, para os brancos (para uma análise mais ampliada, insira aqui a categoria homem também), uma pessoa de cor (insira aqui a categoria mulher para uma reflexão mais ampliada) é sempre um estranho. E mais, acreditam que somos estranhos e estúpidos, por isso não podemos dizer nada para eles!”

Que não sejamos essas pessoas que colocam aqueles por quem dizemos lutar no patamar da infantilização, da objetificação e do desprezo. Talvez deva ser uma grande prioridade praticar os aspectos da luta pelo reconhecimento do outro enquanto sujeito de direitos, sujeito digno de receber amor e solidariedade.

Laura Astrolabio é advogada especialista latu sensu em Direito Público, mestranda em Políticas Públicas em Direitos Humanos na UFRJ e articuladora política no movimento Mulheres Negras Decidem.

(Publicado originalmente no site da revista Cult)

segunda-feira, 20 de julho de 2020

Michel Zaidan Filho: A tutela multinível dos direitos humanos e o Brasil

 
 
O sistema internacional de proteção aos direitos humanos, a jurisdição internacional e as cortes se constitui no fim da Segunda Guerra Mundial, com a criação da ONU e a carta sobre os Direitos Humanos, assinada por todos os países-membros originários do ato de fundação da Organização das Nações Unidas, entre os quais, o Brasil (representado por Oswaldo Aranha.
Esse sistema é uma cadeia complexa que envolve órgãos e tribunais que vão desde a esfera municipal, estadual, federal, regional até chegar no Tribunal Penal Internacional. Entre essas esferas estão A Corte interamericana, a Carta da OEA, o Alto Comissariado para os Direitos Humanos e o Tribunal de Haia. Estas instâncias são reconhecidas e respeitadas por todos os países signatários dessas convenções internacionais. Aqueles governos que não não reconhecem ou respeitam esses princípios e comandos trans- constitucionais, são chamados de "párias", e estão à margem da comunidade política das nações.
 
Esta jurisdição e os poderes que ela confere às autoridades internacionais (regionais e internacionais) já atuou em várias ocasiões, dentro e fora do Brasil. Dentro do nosso país, temos a responsabilização penal do Estado brasileiro pela chacina dos militantes políticos da "Guerra do Araguaia" (caso Gomes Lund). Fora daqui, Há o rumoroso caso do julgamento e condenação do ex-ditador chileno General Augusto Pinochet, através da intervenção do juiz espanhol Baltazhar Garcon, pelo assassinato de cidadãos de seu país, durante a ditadura chilena. O mesmo magistrado ainda chegou a notificar o ex-secretário Henri Kissenger para que ele se apresentasse perante a corte européia e fosse julgado, mas Kissenger se saiu com uma"boutade": pior que a ditadura dos generais, era a dos juízes. E não compareceu.
 
O primeiro tribunal internacional criado para julgar os crimes contra a humanidade foi formado "ad hoc" pelos vencedores da Segunda Guerra Mundial, o Tribunal de Nuremberg. Apesar da notória parcialidade da corte, composta de americanos e europeus, esta Corte foi a antecessora do Tribunal de Haia, da Tutela Internacional dos Direitos Humanos, e dos julgamentos de crimes cometidos por governos nacionais no mundo inteiro.Diga-se, de passagem, que nem o governo americano nem o do Estado de Israel reconhecem a jurisdição do TIP e não permitem que seus cidadãos e cidadãs sejam julgados por esse tribunal. Alegam razões de Estado e o direito de lutar pela sua sobrevivência. Isso sem falar no "buraco negro" jurídico das prisões de Guantânamo e a ocupação militar dos territórios palestinos pelo governo sionista.
 
O caso da discussão sobre a responsabilidade penal do atual governo brasileiro sobre a morte de milhões de civis, em razão do descumprimento das recomendações da Organização mundial da Saúde, e a ameaça de extinção das nações indígenas e sociedades quilombolas é francamente um daqueles que pode se tornar um processo internacional, pela acusação de genocídio ou crimes contra a humanidade. Caso seja aceita a denúncia pelo TIP, é possível que a denúncia prospere e o governo se torne réu num tribunal internacional. O dirigente brasileiro parece fazer pouco caso da imagem que a comunidade internacional tem do Brasil, sob a sua gestão e aposta no isolamento político como forma de convivência com os demais países americanos e europeus, com exceção dos E.U.A. e do Estado de Israel. Exatamente aqueles governos que não aceitam a jurisdição do TIP, em razão dos crimes que cometem contra os cidadãos e cidadãs estrangeiros.
 
De toda maneira, o julgamento e a condenação pela Corte de Haia implica sansões políticas, econômicas e o ônus de uma reputação internacional do país pelo desrespeito sistemático dos direitos humanos e as violências perpetradas contra os pobres, velhos, doentes e desassistidos. Além da perseguição ás minorias sociais. Um governo proscrito pela comunidade internacional - e que faz pouco caso das convenções e acordos políticos e humanitários - não só se arrisca a perder investimentos de longo prazo e receber turistas estrangeiros, mas sobretudo ser preso se sair do país.
 
Michel Zaidan Filho é filósofo, historiador, cientista político, professor titular da Universidade Federal de Pernambuco e coordenador do Núcleo de Estudos Eleitorais, Partidários e da Democracia - NEEPD-UFPE

quarta-feira, 17 de junho de 2020

Michel Zaidan Filho: Vocação de professora (resenha do livro Reforma Agrária no Papel)







Tem gente que nasceu para ganhar dinheiro. Outros nasceram para a Ciência e a Pesquisa. Mais os que são valiosos são que nasceram para o magistério e enorme capacidade de ajudar as pessoas a se instruírem e formarem uma opinião crítica sobre as coisas do mundo. Estes são os melhores. A professora Roseana Borges de Medeiros, docente do DLCH, da Universidade Rural de Pernambuco, vem mostrar através de seu ultimo livro – Reforma Agrária no Papel, a sua inegável vocação pedagógica, aliada à sua missão clínica e terapêutica junto a seus alunos e alunas.


Segunda a mestra, o livro foi elaborado para o seu magistério na disciplina Direito Agrário. Como inexistia na época uma publicação que abordasse de uma perspectiva jurídica e histórica a questão da regularização legal da terra no Brasil, desde o período colonial até a Nova República, ela tomou a si a tarefa de produzir esse livro, numa versão eminentemente didática. E conseguiu. Valendo-se de uma ampla pesquisa histórica da formação de Portugal, passando pela colonização lusitana do Brasil e chegando até a República, Roseana nos legou um estudo sistemático e lógico da questão agrária em nosso país, para além da hermenêutica jurídica e suas controvérsias entre os advogados e constitucionalistas. Diz ela que Portugal, uma das primeiras nações modernas da Europa, nunca teve originalmente um feudalismo, em razão da ocupação muçulmana na península ibérica. Os árabes nunca cuidaram de agricultura e sempre se dedicaram ao comércio e a conquista. Situação que provocou entre os portugueses uma crise crônica no cultivo dos campos, e sua gradual dependência da Inglaterra para o abastecimento de sua gente. Os lusitanos se entregaram sofregamente ao comercio e as grandes navegações. Dessa forma, a agricultura foi delegada a outros. Como nunca houve um feudalismo digno desse novo, falar de revolução burguesa na Lusitânia seria uma força de expressão, apesar do arremedo de uma frágil burguesia comercial associada à “revolução” de Avis, dando início á época das grandes navegações. Neste contexto, foi elaborada a lei das Sesmarias, como forma de regularização da posse da terra. O mérito dessa lei é que ela impedia a concentração fundiária, em tese. A lei das Sesmarias foi o texto legal que vigiu durante todo o período colonial e parte do Império brasileiro. Apesar das intenções, não impediu a concentração e privatização da terra no Brasil. Já que grandes proprietários e senhores de terra foram agraciados com as sesmarias.

Nesta altura, a autora introduz a questão da ausência de feudalismo na colônia brasileira. Discutindo com os autores marxistas, a mestra reafirma a inexistência desse modo de produção e diz que a história agrária brasileira foi desde o início a do latifúndio e da grande propriedade territorial. Confirmada pela agroindústria sucro-alcooleira e a mão-de-obra escrava.

O próximo passo seria o fim da escravidão, a crise da lavoura açucareira e a criação da Lei de Terras, de 1850. A abolição do trabalho escravo, sob pressão militar da Inglaterra, levou a uma reorientação da política agrária, no sentido de impedir que os ex-escravos e homens livres pudessem se beneficiar das terras devolutas e improdutivas e difundir o regime da pequena propriedade no Brasil. Antecipando a isso, os senhores de terra do oeste paulista e Rio de Janeiro, apressaram-se em aprovar uma lei que restringia a posse da terra, através da obrigação da venda e da compra. Mais uma vez, vinha o reforço da concentração fundiária, a serviço das fazendas de café e do trabalho livre dos imigrantes europeus. Esta lei perdurou em nosso país até o advento do Estatuto da Terra, aplicado já no regime militar. O Estatuto da Terra, coroava uma série de lutas, conflitos, reivindicações dos trabalhadores rurais, meeiros e parceiros que trabalhavam no campo, sem nenhum direito ou garantia. Esta lei, considerada a mais avançada nas circunstâncias brasileiras, previa expressamente a “função social da propriedade fundiária” e punia o latifúndio improdutivo. Na letra, seria um arremedo da revolução agrária que o Brasil nunca teve. Infelizmente, sob o tacão da ditadura militar, ele favoreceu aos grandes proprietários de terra, com a expulsão de muitos trabalhadores e camponeses de suas terras.

Roseana conclui sua pesquisa com uma análise muito crítica do Primeiro Plano nacional da Reforma Agrária, quando era vivo ainda o ministro Marcos Freire. Valendo-se das análises de José Graziano, ela menciona a expressão “modernização conservadora” ou “modernização dolorosa”, como o resultado prático desse Plano: a expansão do capitalismo moderno ao campo, através de grandes empresas nacionais e internacionais, com ajuda de incentivos fiscais, grandes obras de infra-estrutura e, sobretudo, “a militarização da questão agrária” no fronteira agrícola da Amazônia e no norte do país. Houve uma enorme concentração de terras, com a expulsão de imigrantes nordestinos, índios, camponeses, em benefício dos grandes proprietários e empresários rurais ligados ao agronegócio. Muita terra adquirida foi transformada em mera “reserva do valor”.

O livro confirma – através de uma boa pesquisa histórica – a tese arqueconhecida da concentração fundiária no país, através de uma dialética perversa da simbiose do novo com o velho, que faz do Brasil uma nação dotada de uma estrutura agrária arcaica, privada, concentrada e voltada para o exterior. A reforma agrária tantas vezes anunciada permaneceu no papel o tempo todo. E hoje é motivo de muita preocupação, em razão das opções macroeconomicas do atual governo.
 
Michel Zaidan Filho é filósofo, historiador, cientista político, professor titular da Universidade Federal de Pernambuco e coordenador do Núcleo de Estudos Eleitorais, Partidários e da Democracia - NEEPD/UFPE.