Há
algum tempo os partidos políticos passam por uma grande crise, que,
aliás, e por razões óbvias, pode ser estendida à própria democracia
representativa. Não se trata de um fenômeno exclusivamente brasileiro, uma vez que ocorre em escala mundial. Aqui no Brasil, naturalmente, com alguns
componentes específicos, como era de se esperar, como reflexo de nossa formação cultural. A profunda decomposição
ideológica dos nossos grêmios partidários é algo sem precedentes, por
exemplo. Os ditos partidos comunistas se descaracterizaram de tal modo que
perderam completamente sua identidade, tornando-se mais do
mesmo, no mesmo balaio de gatos das letrinhas que não nos informam quase nada
hoje em dia.
Daí não ser surpresa as chamadas candidaturas ou coligações
esdrúxulas, como a que une PSOL e PSL e Democratas em algumas praças. Um dos maiores
estudiosos desse fenômeno é o sociólogo espanhol Manuel Castellls, que
alertou-nos para o problema um pouco antes desse descarrilamento absoluto,
apontando as dificuldades cada vez maiores dessa estrutura partidária, de fato,
representar as demandas da sociedade. Muito mais do que os partidos, o
que conta hoje são os grandes grupos de interesse, com seus lobbies
poderosíssimos, como a bancada dos bancos, do boi, da bala, da
Bíblia ou mesmo a bancada da berlinda, que exerceu papel importante nas
tessituras que culminaram com o golpe institucional de 2016.
Esses
grupos corporativos de interesse conseguem tudo do Poder Executivo, como concessões
de vantagens, liberação de dívidas altíssimas com a União e coisas do gênero. Um outro fator,
alertado ontem pelo professor Michel Zaidan, através das redes sociais,
refere-se ao que ele denomina de economia institucional das eleições
municipais, ou seja, um conjunto de constrangimentos de natureza
econômica que subvertem um debate republicano sobre a cidade que
queremos, enfatizando como os principais problemas urbanos serão enfrentados, definindo linhas
de ações para o exercício de um governo com a participação da sociedade civil, expedientes galvanizadores da opinião do eleitor, assumindo
compromissos efetivos, para muito além das promessas de campanha, que quase sempre não são cumpridas.
O que
se vê, no entanto, é outra coisa bem diferente. Compra de cabos
eleitorais, cooptação de lideranças de bairros, pesquisas de intenção de voto de resultados duvidosos - com todos
os ingredientes que suscitam a possibilidade de tratar-se de pesquisas sob encomenda - compromisso com grandes lobbistas, em
detrimento do eleitor comum, financiamentos paralelos, apoio de setores
estratégicos, embalados por essas pesquisas duvidosas. Assim, o debate
que realmente importa, aquele que poderia dizer sobre a cidade que queremos, fica de fora.O #OcupeEstelita é um bom exemplo
disso. Tudo parece indicar que havia acordos prévios entre entes
públicos e privados mesmo antes dos resultados das urnas. Não fosse a
mobilização de setores organizados da sociedade civil, e a cidade - que
deveria ser um direito de todos - seria ocupada por alguns poucos
privilegiados.
Há
um consenso entre os críticos literários no sentido de aceitar a tese
de que o romance o Moleque Ricardo, do escritor paraibano José Lins do
Rego, seja um dos mais importantes de sua carreira literária - até mais
importante mesmo do que os romances que se inscrevem, diria que mais organicamente, no chamado ciclo da
cana-de-açúcar, caso de Fogo Morto - considerado por alguns analistas como sua obra-prima - uma vez que o escritor estaria mais solto, mais
desvinculado dos escritos memorialistas, ambientados na bagaceira. De fato, Ricardo abandona o
engenho para conhecer de perto, movido pelas circunstâncias, as agruras
do povo pobre do Recife, principalmente das periferias dos bairros
alagados. Cumpre pena em Fernando de Noronha, tendo uma passagem pela
Companhia de Tecidos Paulista.
Em sua volta ao Engenho Santa Rosa, já transformado em usina -Ricardo passa a romancear o passado
idílico - tão exaltado pelo autor, inspirado em Gilberto Freyre, seu grande amigo e inspirador -
concluindo que o advento das usinas estava destruindo aquelas relações ,
antes tão cordiais, entre senhores e ex-escravos. Ricardo era um moleque alfabetizado, um dado
inusitado entre os descendentes das senzalas. Aprendera a ler em razão
do esforço de sua mãe. Faço essas considerações iniciais para fazer
algumas observações, por ocasião do dia nacional de alfabetização,
comemorado recentemente.
O país atravessa um momento delicado no campo
político, econômico, institucional e de saúde pública, o que justifica em parte a
apatia do transcurso dessa data. Na realidade, não há muito o que comemorar
mas haveria, sim, muitos motivos para preocupações. Principalmente na
região de Ricardo, o Nordeste, que ostenta os maiores índices de analfabetismo do
país. Nunca houve um esforço sério para erradicar o
analfabetismo, que ainda atinge 11 milhões de brasileiros, colocando o
país num escore internacional vergonhoso.
Exceto, talvez, nos idos da
década de 60, quando havia um propósito de enfrentar o problema adotando o
metido de alfabetização de adulto do educador pernambucano Paulo
Freire, um pensador que produziu uma material teórico não apenas importante para pensar o país, mas o próprio continente latino-americano. Como se sabe,
as reformas de base foram abortadas por um golpe de Estado.
Sintomaticamente, num país de passado escravagista e machista,
estabelece-se uma relação consequente entre o perfil do analfabeto
brasileiro: nordestino, mulher, negro, idoso, pobre. O Moleque Ricardo
aprendeu a ler por uma dessas circunstâncias furtuitas, coisa rara entre a molecada da senzala, conforme já afirmamos.Esse não era um
direito reconhecido aos ocupantes da senzala.
Antes como hoje, a julgar
pela ausência de esforços do Estado, através de políticas públicas
dirigidas, nossa conclusão é que se trata de um direito de cidadania
ainda não reconhecido no país, trazendo, em sua essência, como não poderia ser diferente, o seu componente racista, de classe, de gênero, sem deixar de mencionar o dado relevante das desigualdades regionais. O Moleque Ricardo teve uma biografia marcada por grandes desajustes, conhecendo as dificuldades da vida no Engenho Santa Rosa, assim como no Recife e sua periferia. Em muitos aspectos, é também um pouco as vivências do autor, na condição de estudante de direito na Faculdade de Direito do Recife, período em que conheceu o sociólogo Gilberto Freyre, que se orgulhava bastante de tê-lo encaminhado na vida literária.
Embora com uma narrativa imbricada dos valores da Casa Grande, reconheço em José Lins do Rego alguns lampejos de sensibilidade ao drama daqueles ocupantes da senzala. Dá voz à bela Maria Alice, em Banguê, que se queixava da exploração dos cabras do eito do coronel José Paulino.O caso do Moleque Ricardo é um outro desses momentos. Nos tempos áureos do Santa Rosa, observa ele, contava-se nos dedos os moleques que tiveram acesso a um banco escolar. O descaso é histórico. 520 anos depois, ainda somos um país de analfabetos, caracterizado pela ausência de um esforço sério para debelar essa chaga. Que arremedo de país é este?
O escritor Ailton Krenak Neto Gonçalves/Divulgação
Krenak, Ailton A vida não é útil
Companhia das Letras • 128 pp • R$ 29,90
Mais
uma vez o filósofo e líder indígena Ailton Krenak encontra as palavras
certas e as ideias precisas para definir aquilo por que passamos hoje,
analisando as causas de nossa crise ambiental e sanitária e oferecendo
caminhos para transformarmos a pandemia em uma experiência renovadora.
A vida não é útil dá seguimento às discussões do sucesso editorial Ideias para adiar o fim do mundo,
que começa a ser traduzido em outros países. Os cinco capítulos que o
constituem são amálgamas de palestras, entrevistas e lives de Krenak,
brilhantemente organizadas por Rita Carelli, que as transformou em um
texto fluido, claro, e que consegue, mesmo assim, manter a vivacidade do
discurso oral. A impressão que se tem na leitura é que já nasceu como
livro, naquela exata sequência de capítulos, o que revela um trabalho
editorial de altíssima qualidade, que não deve ser colocado em segundo
plano, e que nos faz lembrar o de Bruce Albert na organização das falas
do xamã yanomami Davi Kopenawa em A queda do céu.
Em sua maioria, as falas que estão na origem do
livro foram proferidas em diferentes momentos da pandemia, de abril a
junho, a partir da casa do autor na aldeia Krenak, no vale do rio Doce,
onde ele faz quarentena junto com o seu povo. A situação, evidentemente,
exacerbou a preocupação com os destinos da humanidade e do planeta, que
constituem o tema central de Ideias para adiar o fim do mundo.
No presente contexto de medo e morte, a fala anterior soa premonitória,
e o presente livro faz o seu discurso ainda mais relevante e repleto de
sentido.
O livro se inicia por uma crítica à nossa visão
restrita de humanidade, que deixa de fora outros seres e entidades que
povoam o mundo e exila em suas bordas povos minoritários, dentre eles os
“caiçaras, índios, quilombolas, aborígenes”. Esse etnocentrismo é
justamente o que nos conduz às ações que vêm levando à destruição
progressiva da Terra, que teimamos em acelerar, com “a ilusão de que
vamos continuar existindo”, acreditando que saberemos transformar “a
crise em oportunidade”. A pandemia seria um aviso, um grito da Terra nos
dizendo que “não estamos com nada” e nos mostrando que “essa tal de
humanidade” pode se extinguir “com a mesma facilidade que os mosquitos
de uma sala depois de aplicado um aerossol”.
Civilização viral
“Somos a praga do planeta, uma espécie de ameba
gigante”, “muito piores do que esse vírus que está sendo demonizado como
a praga que veio para comer o mundo. Somos nós a praga que veio devorar
o mundo.” As conclusões de Ailton ressoam aquelas do antropólogo
francês Claude Lévi-Strauss, em suas reflexões sobre o modo de ser da
chamada “civilização ocidental”, caracterizada como uma “civilização
viral”, alertando para um aspecto do vírus que me parece central, e que
diz respeito à especificidade do potencial destruidor de que fala
Ailton.
Trata-se justamente do modo de ação muito peculiar
desse invasor: incapaz de se autorreproduzir, o vírus impõe a sua
fórmula aos hospedeiros, forçando-os a produzirem réplicas dele, na
contramão de seu próprio código genético. Como os vírus, a nossa
civilização atua impondo às outras civilizações os seus códigos,
destruindo os seus suportes materiais e as suas bases culturais,
forçando-as a se tornarem iguais a ela.
Até o momento, pelo menos, o nosso movimento em meio
à crise não tem sido a revisão drástica de nossa forma de estar no
mundo, com a atenção aos povos indígenas que nos ensinam como se deve
habitá-lo, mas vem sendo dominado por uma ânsia pelo retorno à
“normalidade”, que se alia a propostas delirantes de colonizar novos
planetas. Será que não se dão conta de que “a possibilidade de
sobrevivermos com esse corpo em Marte [...] vai depender de um aparato
tão complexo que será mais fácil arrumarmos máscaras e respiradores e
continuarmos aqui?”, pergunta Ailton. Isso mostra que a porção doente da
humanidade, que infelizmente vem ditando o seu caminho e carregando
junto os que não compactuam com suas escolhas, não aprendeu “nada com a
experiência aqui na Terra. Eu me pergunto quantas Terras a gente precisa
consumir até entender que está no caminho errado”.
Ailton nos deixa o seu recado claro: quem quiser ir
embora, já vai tarde. “Vão logo, esqueçam a gente aqui! Deveríamos dar
um passe livre para eles, para os donos da Tesla, da Amazon. Podem
deixar o endereço que depois a gente manda os suprimentos.” Que
permaneçam aqueles capazes de fazer pontes entre a cidade e a floresta, o
povo da agroecologia e da permacultura, os que fazem buracos no asfalto
para plantar as suas hortas urbanas, os que contam histórias, os que
levam a sério os sonhos.
Para Ailton, os sonhos seriam uma espécie de
“instituição que prepara as pessoas para se relacionarem com o
cotidiano”. Entre diversos povos, dentre eles os Guarani Mbya, todos os
dias, de manhã bem cedo, a família reúne-se em torno do fogo e de uma
cuia de mate, para contarem os seus sonhos uns aos outros e, só a partir
daí, decidirem as suas atividades e os melhores caminhos a percorrer.
Como lembra Ailton, a partilha dos sonhos é ocasião de troca de afetos,
sentimentos e impressões, do exercício da capacidade de ouvir,
permitindo assim “trazer conexões do mundo dos sonhos para o amanhecer”.
Isso tem implicações diretas para o bem viver e para a extensão da
vida, a “duração da pessoa”, como nos mostrou a antropóloga Elizabeth
Pissolato para os Mbya.
Como os sonhos, os mitos indígenas, narrados
geralmente no anoitecer, por pais e avós aos seus netos e a quem mais
queira ouvir, são igualmente repletos de fios de conexão, que tornam
possível a comunicação das pessoas entre si e dos povos uns com os
outros, pois os mitos circulam entre eles. Conectam ainda os humanos aos
outros seres, animais, espíritos e ancestrais, que povoam os mitos e
que, por meio da narrativa, se tornam acessíveis no mundo presente. “São
histórias de antes de esse mundo existir [...]. A proximidade com essas
narrativas expande muito o nosso modo de ser, nos tira o medo e também o
preconceito contra os outros seres. Os outros seres são junto conosco, e
a recriação do mundo é um evento possível o tempo inteiro.”
Donna Haraway, filósofa norte-americana, em seu livro Staying With The Trouble
(2016), esforço criativo para pensar a crise ambiental e propor
soluções, também menciona as histórias contadas, especialmente as mais
longas, que parecem não ter fim. Cheias de pontas, conectam uma
infinidade de pessoas e de seres, revelando-os como “holoentes”, seres
complexos, formados por um aglomerado de espécies, como o são os recifes
de coral. Somente ao entendermos que estamos todos ligados feito nós em
uma cama-de-gato, em que a mudança da posição de um ponto qualquer
implica a reordenação de todo o sistema, poderemos estabelecer outro
tipo de relação com aqueles com os quais compartilhamos o planeta.
“Ainda há ilhas no planeta que se lembram do que estão fazendo aqui”,
escreve Krenak. “Estão protegidas por essa memória de outras
perspectivas de mundo. Essa gente é a cura para a febre do planeta, e
acredito que pode nos contagiar positivamente com uma percepção
diferente da vida. Ou você ouve a voz de todos os outros seres que
habitam o planeta junto com você, ou faz guerra contra a vida na Terra.”
Covid-19
Impressionam-me a paciência e a persistência de
Ailton — assim como a de Davi Kopenawa, de Raoni Metuktire e de tantos
outros — em nos ensinar, em permanecer ao nosso lado mesmo sabendo que
vimos traçando caminhos opostos ao seu e de seus parentes indígenas,
suprimindo as bases de sua existência, desrespeitando-os de todos os
modos possíveis ao longo de cinco séculos.
Enquanto escrevo, há 26 mil indígenas contaminados pela Covid-19,
pertencentes a 150 povos diferentes. Setecentos dentre eles morreram,
sendo a maioria pessoas maduras e idosas, que constituíam repositórios
das tradições e da memória de seus povos. É como se bibliotecas tivessem
sido queimadas, daquelas repletas de manuscritos que não podem ser
repostos.
Esses anciãos guardavam conhecimentos científicos
sobre plantas, animais, remédios, eram mestres em filosofias complexas e
narradores respeitados das histórias de conexão. Esses conhecimentos,
longe de constituírem uma lista enciclopédica a ser recuperada, eram
indissociáveis de seus corpos, revelando-se em seus gestos, seu jeito de
falar, narrar e andar. Diante de tal complexidade, a sua transmissão
aos mais jovens requer um longo processo, baseado em intensa convivência
e observação atenta, até que se sintam prontos para tomar a sua
posição. Para muitos dos povos afetados, esse caminho foi abruptamente
interrompido.
“Para o meu povo, perder uma pessoa mais velha é
perder a memória da nossa existência enquanto povo. É como o Museu
Nacional pegando fogo. Tem sido um desespero muito grande para nós, mais
jovens. De um dia para outro, uma parte significativa do nosso
conhecimento, das nossas vidas, se vai de uma forma violenta”, escreveu
Angela Kaxuyana.
Abandonados pelo governo, sofrendo invasões de
garimpeiros, madeireiros, grileiros e missionários em seus territórios,
vetores dessa e de outras doenças, e longe de locais onde possam receber
tratamentos adequados, vêm sofrendo mortes dolorosas, precedidas de
longas esperas em filas de todos os tipos e da separação abrupta de seus
parentes.
Abandonados pelo governo, os indígenas vêm sofrendo mortes dolorosas
O líder e ativista Amâncio Ikõ Munduruku foi levado
doente para Itaituba, cidade mais próxima de sua comunidade, onde os
únicos quatro leitos de uti disponíveis estavam ocupados. Dias se
passaram até que conseguisse ser transportado para Belém, onde morreu.
Outros indígenas não quiseram nem mesmo lutar pela internação, cientes
do destino trágico que os esperava, e optaram por morrer em suas
aldeias, entre os seus.
Com Amâncio partiram Feliciano Lana, do povo Desana,
autor e artista plástico mundialmente conhecido; o líder e ativista
Kayapó Bep’kororoti, conhecido como Paulo Payakã, que, como Ailton, teve
importante papel nas negociações dos direitos indígenas da Constituição
de 1988; o renomado chefe xinguano Aritana Yawalapiti; os professores e
sabedores indígenas Higino Pimentel Tenório, do povo Tuyuka, Fausto
Silva Mandulão, do povo Macuxi, Otávio dos Santos, do povo Sateré-Mawé;
dentre muitos de uma longa lista que não tenho como reproduzir aqui.
“Faz algum tempo que nós da aldeia Krenak já
estávamos de luto pelo nosso rio Doce. Não imaginava que o mundo nos
traria esse outro luto.”
Nós aqui também estamos de luto com você, Ailton.
(Publicado originalmente no site da Revista dos Livros Quatro Cinco Um)
O filósofo francês Michel Foucault (Foto Martine Franck/ Latinsrock)
É em muito boa hora que o Brasil recebe, pelas mãos da Paz & Terra, selo da Editora Record, o inédito livro de Michel Foucault, As confissões da carne, o quarto volume de sua série História da sexualidade. Os três primeiros foram publicados no país, em momentos outros. Porém, o último veio a lume somente em 2018, na França.
Com arte assinada por Letícia Quintilhano, as capas são preenchidas
com cores chamativas. Na apresentação, o quarto volume traz a
“Advertência” do filósofo Frédéric Gros,
organizador da obra. Nela, o francês explica o trabalho de pesquisa e
organização dos textos de Foucault, espalhados entre versões
datilografadas e manuscritas depositadas na Biblioteca Nacional da
França. Roberto Machado
assina a orelha, com uma brevíssima apresentação do autor. A tradução
ficou por conta de Heliana de Barros Conde Rodrigues e Vera Maria
Portocarrero.
O quarto volume de História da sexualidade é coerente com os
que lhe precederam. Destaco, em especial, a atenção dada ao mecanismo
de vigília permanente desenvolvido, como uma tecnologia, no interior do
cristianismo. Aliás, Foucault sublinha que a religião predominante do
mundo ocidental não deve ser reconhecida somente por seu poder cerceador.
Ela guarda, em suas origens, possibilidades de vivência sexuais outrora
negadas. Trata-se de uma perspectiva polêmica em um tema
desnecessariamente polêmico. O importante é observar como esse mecanismo
de eterna vigília é algo bem mais complexo do que se imagina.
Seguindo o fio delineado por suas antecessoras, a obra propõe uma
compreensão da sexualidade como categoria social-político-científica,
atentando para os códigos morais construídos progressivamente, ao longo
da formação da sociedade ocidental. Ela, então, sinaliza para um
entendimento do todo social levando em conta detalhes obscurecidos pelo
discurso moral, mas, que, definitivamente, revelam-se como bastante
significativos no que diz respeito à construção e organização da
estrutura social. As conclusões ecoam na contemporaneidade.
Os três primeiros volumes, A vontade de saber, O uso dos prazeres e O cuidado de si,
já populares e disseminados, incitam uma atenção ao potencial da
sexualidade na organização social, em clara aversão a um entendimento
patológico do tema. A repressão dos atos, impulsos sexuais,
identificados com a natureza humana, é o que conduz toda a postura do
sujeito em seu mundo. Técnicas inúmeras de controle da consciência são
progressivamente desenvolvidas nesse sentido.
Por exemplo, ao nos remetermos aos volumes precedentes de História da sexualidade,
percebemos que não é o código vitoriano quem delineia o modo de ser no
século 19. Ao invés disso, devemos tomar o “ser vitoriano” como algo
disseminado, uma referência. O discurso é apenas replicado nessa
identificação, revelando a estrutura social vigente.
É de maneira desconfiada que Foucault observa o discurso científico e
toda a autoridade filosófica em seu processo de afirmação de uma
verdade. Em meio a isso, prevalece a insistência no poder do discurso,
geminado à estrutura social. O sujeito, nesse caso, tem tanta
responsabilidade quanto a autoridade detentora do discurso que, no
fundo, seria como um especialista, tradutor daquilo que ocorre no mundo.
E, como há traços comuns entre o que se profere e quem o ouve, a
influência é praticamente inevitável.
Logo, o discurso vitoriano é nada mais nada menos do que a tradução, a
versão oficial, normatizada – e, portanto, reforçada pelo seu poder de
organização –, de condutas sociais já presentes entre os sujeitos. É
como se fosse a forma válida, hegemônica, no todo social. O poder está
disperso, ainda que possa ser personificado, institucionalizado.
As primeira proibições
As confissões da carne leva isso em conta. Nele, Foucault
tenta se aproximar da genealogia da constituição do sujeito ao longo do
tempo, buscando vestígios do conservadorismo – para usar termos atuais –
natural dos seres humanos. E, nesse caso, seguindo a sua premissa
filosófica, não se contenta em atribuir ao cristianismo a culpa pelo
significado da sexualidade hoje.
Seguindo esses propósitos, Foucault retorna a filósofos e pensadores
cristãos e não cristãos dos primeiros séculos de nossa era, como Sêneca,
Clemente de Alexandria, Tertuliano, Gregório de Nissa, João Crisóstomo,
Santo Agostinho, entre outros. E o faz abordando temas que se tornaram
caros ao cristianismo, como batismo, confissões, sexo, virgindade e
matrimônio, por exemplo. Em seu norte, está a maneira como essas
matérias foram incorporados pela sociedade e como os filósofos as
traduziram, isto é, como lidaram com o discurso em que se encontravam
envoltos, aprimorando as concepções e entendimentos em relação a
questões que inevitavelmente se faziam presentes na constituição social
de seu tempo.
O livro demonstra que não foi o cristianismo quem criou a tese da
importância da virgindade, uma vez que ela já estava presente entre os
chamados moralistas pagãos, dando o tom da formação da sociedade naquele
tempo. Inicialmente, ser casto era muito mais do que uma virtude,
significando uma condição essencial para que, através do exercício
intelectual, fosse proporcionada uma negação do corpo e,
consequentemente, dos impulsos naturais, relacionados ao sexo, de modo a
se atingir a pureza do pensamento filosófico, da razão. Foucault, ao
longo de todo o livro, não se reporta à metafísica para se orientar.
Mas, de fato, apresenta ao leitor todo o esforço intelectual da
filosofia daquele tempo para que se chegasse à forma suprema de
conhecimento. Eis a negação de qualquer imersão a ser feita com o corpo.
O autor de As confissões da carne nos apresenta como, nesse
escopo, a virgindade adquire contornos negativos, qual seja, um produto
da negação dos atos sexuais, corpóreos. O cristianismo primitivo apenas
reproduz essa postura, presente no discurso, na forma de pensamento de
então. Contudo, uma particularidade deve ser observada nesse caso, pois,
por meio de uma leitura atenta da obra de Clemente de Alexandria,
Foucault percebe as mudanças quanto à compreensão da virgindade. À
medida em que a ideia do Deus cristão prevalece, toma-se o exercício de
castidade como uma espécie de valorização da própria pureza e,
consequentemente, da experiência divina.
O filósofo francês Michel Foucault em seu escritório (Bruno de Monès/ Latinstock)
Para essa primeira forma de cristianismo, assimila-se a premissa de
que o corpo é impuro – algo exacerbado pela moral pagã, cuja forma
final, acabada, de discurso em torno desse princípio encontra-se na
filosofia pagã. O cristianismo, por meio de seus artifícios, trabalha
ativamente no convencimento do sujeito quanto às impurezas do corpo,
exigindo-lhe uma superação à medida em que reforçava constantemente a
validade de sua qualidade enquanto ser humano, enquanto obra de Deus.
Portanto, fazer-se virgem não era mais uma questão de negar o corpo,
mas, sobretudo, de afirmar-se enquanto Criatura.
Assim é que a virgindade torna-se um modo de se relacionar com Deus,
reforçando a premissa da Criação. Portanto, a continência, contenção dos
impulsos, torna-se positiva. A isso, tem-se o desenvolvimento da ascese
e a organização do monaquismo como rota para o reforço do cristianismo
que, então, passa a ser compreendido como forma de organização do mundo e
técnica do sujeito para o governo de si mesmo. A orientação do olhar é
alterada, deixando claramente de ser algo voltado para o mundo abjeto
para, em seu lugar, buscar a verdade da alma, forma única de se
aproximar de Deus dentro do ascetismo.
A partir daí, o casamento passa a ser compreendido como uma maneira
de se conseguir a tranquilidade da alma – diferentemente da moral pagã,
dos primeiros filósofos do ocidente, que pregavam a vida independente,
incluindo a sua interpretação quanto à castidade. A lógica é
completamente invertida no cristianismo que, em grande medida, posiciona
a virgindade como uma escolha, exaltando a volição da comunhão com
Deus, não mais como uma lei. O peso, no sujeito, é ainda maior. A
sexualidade, obviamente, adquire um novo status, demarca um novo terreno
para a compreensão do sujeito em seu lugar no mundo e em sua conexão
com Deus, através da alma, ditada pela capacidade de escolher o caminho
correto.
“Trata-se, ao sublinhar alguns traços importantes da mística da
virgindade no século IV, de mostrar que a valorização muito intensa de
uma abstenção total, originária e definitiva das relações sexuais não
tinha uma estrutura de interdição, não representa o simples
prolongamento de uma economia restritiva dos prazeres do corpo. A
virgindade cristã é bem diferente da forma radical ou exasperada de um
preceito de continência que a moral filosófica bem conhecida da
Antiguidade, e que os primeiros séculos cristãos herdaram”, escreve.
A escolha pelo casamento
Não seria exagero dizer que, a partir da leitura de As confissões da carne,
a moral da Antiguidade Clássica mostrava-se bem mais rígida do que a
moral cristã. Valorizar a virgindade, conforme faz o cristianismo
primitivo, é bastante diferente, sendo mais significativa, do que fazer
uma pura desqualificação ou proibição simples das relações sexuais. A
consequência da inversão promovida pelo cristianismo, no entendimento de
Foucault, é a de uma valorização da relação do indivíduo com sua
própria conduta sexual, ressaltando uma experiência positiva.
Em suma, não há a desvalorização progressiva da relação sexual. Ao
posicionar a castidade enquanto objeto de análise, há a flexão para que
se observe o desenvolvimento do pensamento – o pensamento ocidental. O
objetivo de Foucault, nesse caso, é demonstrar como tudo isso incide na
construção do sujeito ao longo da história, determinando o seu
posicionamento no mundo. Como bem diz o autor: “O que está em jogo,
então, não é um código de atos permitidos ou proibidos, é toda uma
técnica para vigiar […]”.
Aqui está a maneira como o casamento passa a deixar de ser uma
alternativa para a continência absoluta. Em sua constante procura,
Foucault perscruta, também, a maneira como as relações sexuais devem ser
compreendidas no interior do próprio matrimônio, avaliando a sua função
reprodutiva – negada como fundamento da união, por exemplo, por São
João Crisóstomo –, e sua posição ante o dilema da concupiscência.
Ao adquirir contornos positivos, o casamento é tomado como
pressuposto para a existência de uma necessidade do sujeito de
vigilância sobre si mesmo, reforçado pela tecnologia da confissão e seus
equivalentes. O filósofo debruça-se sobre a maneira como devem ser
concebidos os desejos do corpo dentro do matrimônio.
Algo curioso é observado aqui. Em vista dos princípios trabalhados
anteriormente, levando em conta que a queda do paraíso acentua o corpo
como lugar dos excessos e da concupiscência, o matrimônio passa a ser
tomado como a salvação de cada um por meio do outro, através de um
sistema de vigilância mútua. Isto é, o sujeito agora depende de seu par
para conseguir a salvação: a realização do desejo sexual, a finalidade
reprodutiva e a concupiscência entram na conta da conduta do sujeito.
Essa reflexão é observada justamente em Santo Agostinho, desnudando uma
angústia evidente no interior daquela sociedade de seu tempo.
Jean-Paul Sartre (à esq.) ao lado de Foucault durante uma manifestação em 1971 (Reprodução)
A salvação com ajuda do outro
A partir de Agostinho, o cristianismo interpreta o casamento como
obrigação de um para com o outro. Desse modo, cria-se um pressuposto
relacional e jurídico para a compreensão da vida conjugal sob o prisma
político. Isso é fundamental para o ocidente como um todo, pois abre
espaço para o entendimento quanto à origem das leis e dos mecanismos
sociais que regulam a vida, sendo o matrimônio e, consequentemente, a
família, a unidade mínima para a formação dessa sociedade.
No cômputo geral, Michel Foucault mostra a evolução da questão da
sexualidade no cristianismo, visível sobretudo ao se tomar a castidade
um elemento fundamental para a salvação, inclusive quando executada no
interior do casamento, até o propósito da societas, da formação
de uma sociedade cristã, unida a Deus, cuja forma final está expressa
nas teses de Agostinho e seu reforço da premissa do sujeito como oriundo
da queda. Nesse caso, nota-se a comunidade cristã em formação, tomando
por referência a contenção dos impulsos como forma de justificar a união
com Cristo. O mecanismo de organização da sociedade e seu eco em sua
forma moderna, se fazem presentes à medida em que se compreende a
progressiva lógica de contenção dos desejos.
“Não se trata mais, no caso, do fim natural do casamento, mas da
consequência do laço pessoal que ele estabelece e da ordem das
obrigações em que compromete. Esta consideração da concupiscência do
outro, da ajuda que é preciso fornecer-lhe para a sua salvação, funda o
dever conjugal”.
Eis a evolução da moralidade cristã que, notavelmente, permeia toda a
nossa sociedade. Construir uma sociedade com essa obrigação moral
colaborativa exige um olhar para o lugar ocupado pela sexualidade. Ela
foi fundamental na determinação dos laços sociais e dos compromissos
entre os indivíduos.
Foucault deixa dois pontos que, creio, são dignos de consideração: em
primeiro lugar, não é o cristianismo quem cria os freios para o
movimento do sujeito em direção à sua natureza e a consequente
valorização dos desejos sexuais. Ele não realiza apenas a negação de
quaisquer elementos que se encontram fora da lógica superior de Deus.
Pelo contrário, em determinado momento, conforme vimos, toma
pressupostos, nas palavras de hoje, conservadores da moral pagã,
colocando-as em um outro patamar, de positividade, ao mesmo tempo em que
lhe confere um novo significado que se torna fundamental para a
constituição do sujeito ocidental.
Em segundo lugar, a sexualidade ocupa um lugar especial na
organização da sociedade ocidental. Se por um lado é possível observar
movimentos positivos do cristianismo, por outro, nota-se também como
toda uma nova lógica moral é constituída e pode ser tomada como
responsável para o controle do sujeito
quanto aos desejos e impulsos, em uma impressionante técnica de
vigília. Isso fica ainda mais claro ao se notar a formação da família e
como ela se torna a unidade mínima, o núcleo, de toda a organização
social em questão.
As confissões da carne é a conclusão de um projeto que foi
se tornando cada vez mais curioso à medida que era escrito, ao longo das
décadas de 1970 e 1980, período em que a discussão sobre a liberdade
sexual marcava presença para nunca mais sair da agenda de debate
público. Atual, o livro nos mostra vigor do tema ao enfatizar a potência
de seus desdobramentos na organização de nosso mundo.
Em História da sexualidade compreendemos melhor, hoje, como
por exemplo o inaceitável e injustificável estupro cotidiano de uma
menina de dez anos é visto não como um ato de violência, mas, sobretudo,
como escândalo sexual. Obscurecer o aspecto violento de um crime desse
porte é omitir a vítima, conferindo a ela unicamente a responsabilidade em se vigiar,
obrigando-a a conceber o “sagrado fruto” da imposição que lhe foi
feita. Tudo isso decorre de um discurso machista proeminente, derivado
de uma complexa moral de contenção dos impulsos, de uma tecnologia de
vigília, desenvolvida progressivamente em nossa história.
O trabalho de Michel Foucault deixa suas marcas ao mesmo tempo em que
exige uma reconsideração quanto ao posicionamento humano na atualidade.
A sua reedição, contemplada com a publicação de um inédito, vem a
contento. Talvez, neste momento em que estamos trancados em casa, em que
a vigília se faz ainda mais necessária, e dolorosa, por conta dos
códigos morais, esteja na hora de retomar a discussão como ponto de
partida para um olhar mais atento ao nosso mundo.
As confissões da carne Michel Foucault
Paz & Terra
Tradução: Heliana de Barros Conde Rodrigues; Vera Maria Portocarrero
528 páginas – R$79,90
Faustino Rodrigues é jornalista, doutor em Ciências Sociais e professor de Sociologia na Universidade do Estado de Minas Gerais (UEMG).
O dramaturgo e poeta alemão Bertolt Brecht, de quem Benjamin extrai a ideia de "novo ruim" (Foto: Fred Stein / Divulgação)
1. No ano de 1938, Walter Benjamin
visita pela terceira vez o amigo Bertolt Brecht, que então vivia
exilado em Svendborg, Dinamarca, um dos muitos lugares por onde o
dramaturgo alemão passaria ao longo dos seus quinze anos de desterro,
transitando entre a hospitalidade e a hostilidade.
Benjamin em breve seria, como sabemos, o autor das teses “Sobre o
conceito de história”, últimos e incontornáveis escritos antes da sua
opção pelo suicídio, em 1940, como forma de escapar da violência da
Gestapo hitlerista. Não obstante, naquele ano de 1938, mais precisamente
em 25 de agosto, o que o filósofo anota em seu diário íntimo é algo
muito conciso, em certo sentido, algo mínimo.
Nessas páginas, onde Benjamin registra os debates, os confrontos, as
partidas de xadrez que, ao longo dos dias, mantém com Brecht,
encontramos lapidada, com efeito, em pouquíssimas palavras, “uma máxima
brechtiana”; máxima que propõe o seguinte: “não partir do antigo bom,
mas do novo ruim” (em Ensaios sobre Brecht).
Em tamanha concisão, hoje nada seria mais preciso e urgente. É como
se fôssemos tomados por um eco do passado dirigido às emergências do
nosso presente. Quer dizer, somos interpelados por uma exigência cifrada
há mais de 80 anos, sob a ameaça do nazifascismo, exigência que
permanece neste nosso presente destemperado e pungente, ameaçado pelas
formas contemporâneas do autoritarismo.
2. O novo ruim: eis de onde devemos partir,
para que não seja normalizada, sem mais, a catástrofe do “novo normal”.
Esta seria a posição crítica a ser adotada nestes tempos que, imagino,
teriam colocado Benjamin diante de impasses inauditos a respeito da
amplitude assumida pela reprodutibilidade técnica; tempos que, nesse
sentido, ainda, parecem pedir o reforço não só de nossas capacidades de
compreensão das técnicas, mas, sobretudo, de um gesto caro a seu amigo e
parceiro de xadrez: um gesto que muitas vezes é chamado de
distanciamento, ou estranhamento.
Sabemos que Benjamin não recuava perante as mais avançadas
tecnologias do seu tempo. Além de postular que um posicionamento
político e estético antifascista deveria ser alcançado não com o
rechaço, mas sim, justamente, por meio das técnicas modernas de
reprodução (principalmente o cinema), Benjamin foi, ele mesmo, entre o
final dos anos 1920 e o início da década de 1930, um speaker em rádios alemãs, falando a crianças e jovens sobre assuntos nada distantes dos seus ensaios mais exigentes.
Brecht não destoava dessa posição em seu pensamento crítico sobre o
teatro. Palavras de Benjamin: “As formas do teatro épico correspondem às
novas formas técnicas, o cinema e o rádio. Ele está situado no ponto
mais alto da técnica”.
Com efeito, o dramaturgo propunha que a superação da identidade
emocional entre o público e as ações encenadas, ou ainda, que a
interrupção das prescrições miméticas e catárticas do teatro clássico
“naturalista” deveria ser alcançada não fora ou para além do teatro, mas
pela mobilização radical dos seus próprios recursos e artifícios.
Assim, o teatro deveria interpelar o público ao expor o mundo humano
como uma construção contingente, portanto passível de transformação, ao
mesmo tempo em que deveria se expor, ele mesmo, como construto, como
técnica de exposição.
3. O título de um poema de Brecht sintetiza bem essa
operação – “O mostrar tem que ser mostrado” – e seus versos dão
contorno ao programa do teatro épico:
[…] Eis o exercício: antes de mostrarem como Alguém comete traição, ou é tomado pelo ciúme Ou conclui um negócio, lancem um olhar À plateia, como se quisessem dizer: Agora prestem atenção, agora ele trai, e o faz deste modo. Assim ele fica quando o ciúme o toma, assim ele age Quando faz negócio. Desta maneira O seu mostrar conservará a atitude de mostrar De pôr a nu o já disposto, de concluir De sempre prosseguir.[…]
Assim como Benjamin, Brecht sabia que na modernidade o problema da
arte confina com o problema da política porque, para ambas, a exposição
mediada pelas técnicas é decisiva. Obras de arte, artistas, públicos e
políticos – todos compartilham, desde então, os mesmos espaços de
exposição; todos se medem, cada vez mais, com as técnicas de reprodução,
isto é, com as mediações que montam e desmontam, que modulam, compõem e
recompõem o mundo que eles compartilham e disputam.
E se, a priori, o teatro pareceria escapar a esse destino,
pelo fato de se valer de atores que confrontam o público diretamente e
de cenas – por assim dizer – sempre originárias, desempenhadas sem
edição, o que o teatro épico de Brecht propõe se aproxima, sim, da
transformação causada pelo cinema na exposição de atores e políticos,
igualmente. Pois vale para o teatro épico o que Benjamin escreveu a
respeito da técnica cinematográfica: “Seu objetivo é tornar
‘mostráveis’, sob certas condições sociais, determinadas ações de modo
que todos possam controlá-las e compreendê-las”.
Ao romper com o ilusionismo da cena, com seu andamento supostamente natural, Brecht faz intervir o teatral,
vale dizer, o caráter artificial, não só do teatro, mas também das
condições sociais, dessa nossa “realidade”, que tantas vezes é vista
como necessária e inegociável. E com isso seu teatro afirma que, na arte
como na política – nos modos da representação e nos meios da
representatividade –, se o objetivo é a transformação da vida em comum, é
preciso, então, não apenas mostrar; na mesma medida é necessário
mostrar que se mostra, mostrar-se. Expor as formas de exposição: o que
está em jogo com esse gesto é, não a reprodução do que já é vivido, mas a
produção de formas de vida ainda possíveis.
4. As fundamentais medidas de preservação da vida –
de toda vida – deveriam ser, estas sim, absolutamente inegociáveis. Mas,
para muito além dessa conduta de fato ética, o chamado “novo normal”,
entre outros aspectos muito problemáticos, apresenta-se, notadamente,
como normalização da vida virtual. E se tampouco em nossos dias as
respostas devem ser buscadas na recusa das técnicas mais avançadas, essa
normalização definitivamente é algo que deveria ser submetido a uma
crítica severa e constante.
Respostas políticas e estéticas afirmativas de uma vida comunitária
somente serão possíveis com a exposição e o exame da realidade produzida
pelas técnicas. Nesse sentido, é preciso mostrar que, em geral, a atual
naturalização da virtualidade parece não reforçar a compreensão da
contingência do mundo humano, ou seja, da possibilidade de
transformá-lo. Ao contrário, parece cristalizar uma suposta certeza, sem
dúvida arrogante: a certeza de que tudo que se dá é necessário,
obrigatório, inevitável. Trata-se de uma lógica conservadora que, não
raro, é perversamente associada ao discurso do progresso, do avanço, da
evolução etc.
Afinal, conhecemos bem o elogio dos fluxos desimpedidos; o elogio da
comunidade global sem hierarquias; da revolução dos conteúdos, dos
afetos e das identidades; o elogio das novas formas de intimidade; do
acesso e da autonomia usuária a qualquer hora e da entrega em casa just in time. Conhecemos,
em suma, essa forma de apropriação que capitaliza a energia
transformadora do mundo e limita nossas ações à escolha entre produtos e
serviços (zoom, meet, facebook, instagram…), evitando assim as questões mais urgentes, que na verdade são as mais básicas.
O mundo virtual não reforça formas de exclusão? Que tipo de trabalho o
sustenta? Quem gerencia as informações das plataformas e redes sociais?
O que fazem com esses dados? A vida nos espaços públicos se
intensifica? As demandas coletivas se reforçam? Essa estranha intimidade
distanciada e exposta produz novos sujeitos? Em que medida essas formas
de subjetivação nos interessam? É um problema a exposição da intimidade
de muitos gerar lucro para pouquíssimos? E, para além da exposição, a
virtualidade de fato intervém nas partilhas do mundo? Ela favorece,
efetivamente, a produção de novas condições sociais, de realidades
alternativas mais igualitárias?
As respostas devem ser matizadas: às vezes sim, às vezes não, em
outras vezes, parcialmente. Seja como for, são perguntas como essas que,
a meu ver, devem orientar, por exemplo, o debate sobre o uso na
educação – e sobretudo na educação pública – de plataformas privadas
ligadas ao mercado do chamado big data, assim como devem orientar a discussão sobre o fato de, hoje, cada usuário online ser “automaticamente” um produtor e, ao mesmo tempo, um consumidor de conteúdos.
Esse trabalho imaterial, segundo Peter Pál Pelbart, é uma
das definições do mundo virtual. E responder criticamente a ele não é
uma tarefa simples, já que através desses fluxos virtuais formatamos
nossos gostos, condutas, sonhos, opiniões – nossos afetos. Como escreveu
o autor em A vertigem por um fio, produzimos e consumimos “cada vez mais maneiras de ver e de sentir, de pensar e de perceber, de morar e de vestir, ou seja, formas de vida”. Daí a complexidade da situação.
5. Apesar das diferenças sobre os modos do posicionamento político-partidário (bem sinalizadas em Quando as imagens tomam posição,
de Georges Didi-Huberman), Benjamin e Brecht demarcaram em torno das
técnicas de reprodução e exposição o ponto da crise, da crítica e da
criação.
No teatro épico, o público deixa de ser um espectador: ele é chamado a
atuar, pois deve avaliar e tomar decisões sobre o que é mostrado. O
homem e a sociedade são confrontados pela investigação que os afasta do
conhecido, do que seria “natural”. Nada mais próximo de Benjamin, que
afirmava que através do cinema a realidade podia ser vista como uma
segunda natureza: produzida como uma flor azul no jardim da técnica.
Claro, somos desde o início criaturas prometeicas, ou seja, fomos e somos algo como deuses, mas com próteses, como sugeriu Freud em O mal-estar na civilização. Por isso, diante desse nosso mal-estar, diante do novo ruim, talvez a estratégia seja reforçar a exposição da nossa natureza de segunda ordem: nossa natureza técnica.
O mundo virtual não deixa de ser um imenso palco, uma cena montada,
produtora de inúmeros efeitos reais. Não podemos naturalizar essa
condição. Se não conseguirmos expor os artifícios que criamos e que
também nos criam, não conseguiremos criticá-los, compreendê-los e
controlá-los.
Benjamin escreveu que, no teatro de Brecht, o palco ainda ocupa uma
posição elevada. Mas com uma diferença fundamental: em sua elevação, o
palco já não tem nada de sublime, mágico ou extático. O que nele se
desempenha é o estranhamento do mundo que até agora construímos. Quem
sabe desse estranhamento resulte uma tomada de posição que coincida com a
interrupção dos acontecimentos e com a sua leitura a contrapelo.
Afinal, esse mundo estranho é o mundo ordinário, o nosso mundo humano de
todos os dias. Um mundo de próteses e técnicas, artes e artifícios que
é, sim, contingente. Modificar esse mundo profundamente é o papel dos
atores de hoje.
Artur de Vargas Giorgi é doutor em Literatura pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e professor de Teoria Literária da mesma instituição.
Em nossa sociedade
patriarcal, o desprezo é destinado às mulheres inclusive nos espaços
intelectuais (Foto: Andre Hunter/Unsplash)
Faz parte da visão falo-narcísica e da cosmologia androcêntrica
manter uma barreira entre a mulher e a vagina como umas das estratégias
de dominação masculina, conforme nos ensina Pierre Bourdieu.
A vagina precisa ser dissociada da mulher para que ela possa ser
considerada virtuosa, digna do respeito e da consideração de um homem.
Aí está a dificuldade de ser mulher e de ser aceita como intelectual e
política. Construído em uma sociedade machista, o olhar masculino está
carregado de uma violência simbólica que afasta as mulheres desses
espaços.
Se for sexualmente livre e não reprimir seus desejos, a mulher será
etiquetada como objeto – e o contrário não a livra dessa objetificação,
que sustenta a divisão sexual do trabalho e corrobora para manter a
mulher no “lugar de mulher” e o homem no “lugar de homem”.
Feministas francesas como Danièle Kergoat nos ensinam a respeito da
luta das mulheres contra a divisão sexual do trabalho. No livro Divisão sexual do trabalho e relações sociais de sexo (Editora Unesp), Kergoat escreve:
“A divisão sexual do trabalho é a forma de divisão do trabalho social
decorrente das relações sociais de sexo; essa forma é historicamente
adaptada a cada sociedade. Tem por característica a destinação
prioritária dos homens à esfera produtiva e das mulheres à esfera
reprodutiva e, simultaneamente, a ocupação pelos homens das funções de
forte valor social agregado (políticas, religiosas, militares…)”.
No seio dos ambientes intelectuais, a mulher que não reprimir seus
desejos e que não for “recatada”, atrairá homens que não veem nela
humanidade o suficiente para escutá-la, pois só conseguem enxergá-la
como objeto.
Isso pode ser evidenciado nas relações de amizade entre homens e
mulheres nos espaços intelectuais e políticos. As amigas dos homens, que
dominam esses campos, são lidas quase imediatamente como “amantes”. Na
lógica do pensamento machista, um homem não pode compartilhar nada além
de sexo com uma mulher.
A construção desse pensamento envolve acreditar que mulheres não
merecem a amizade de um homem a não ser que, em troca, ofereçam a
vagina. Na cabeça de um machista, de um misógino, o amor amigo e a troca
de impressões intelectuais não são permitidos entre homens e mulheres.
O capitalismo precisa ser derrubado e uma nova forma de sociabilidade
humana precisa ser construída, mas não sem que essas questões sejam
resolvidas. Estamos falando de violência.
Não é possível continuar mantendo mulheres em um patamar de meros
objetos, até porque, pelo menos no Brasil, a maioria da população é
composta por elas. Pensar novas formas de sociabilidade humana deverá
passar pelo crivo das mulheres – que, pasmem, são seres humanos.
Importante lembrar que a cada dia mais e mais mulheres rejeitam a
etiqueta da objetificação. Com isso, o mais próximo de um consenso sobre
a transição que precisamos não será possível sem que o pensamento
machista ceda. Estamos falando de uma forma de pensar, de ser e existir
muito violenta, já introjetada, que não se exaure com o fim da opressão
econômica.
As barreiras impostas às mulheres pelos homens extrapolam as
situações expostas neste texto. Situações que também se relacionam com a
divisão sexual do trabalho, ligada a imagens de controle que afastam as
mulheres, por exemplo, do campo político, dominado por homens brancos.
Como nos ensina bell hooks em O feminismo é para todo mundo: políticas arrebatadoras
(Record): “Desafiar o pensamento sexista em relação ao corpo da mulher
foi uma das intervenções mais poderosas feitas pelo movimento feminista
contemporâneo. Antes da libertação das mulheres, todas as mulheres, mais
jovens ou mais velhas, foram socializadas pelo pensamento sexista para
acreditar que nosso valor estava somente na imagem e em ser ou não
notada como pessoa de boa aparência, principalmente por homens”.
A teoria política que critica o neoliberalismo e sua forma de tratar
pessoas como objetos indesejáveis quando não possuem poder de compra,
não pode se omitir quando o assunto é “mulheres como objetos que só
prestam para oferecer sexo”, ou seja, quando tiverem capital sexual para
oferecer. Esse pensamento é misógino e desumanizante.
Sobre o neoliberalismo e sua característica desumanizante, Márcio Felippe Sotelo escreveu, na Cult de Maio:
“O neoliberalismo nos tornou indivíduos competitivos. Se a isso
juntarmos a meritocracia econômica, criamos um sistema de vencedores e
perdedores, em termos individuais. O passo em direção à solidão,
ansiedade e depressão é muito pequeno nesse sistema binário. Em termos
gerais, faz-nos sentir infelizes, pois somos animais sociais, precisamos
do outro, prosperamos em grupo. Este sistema econômico anula este
aspecto crucial da natureza humana”.
Seguindo essa lógica, devemos apontar para a forma violenta como
homens competem com mulheres nos espaços que ocupam e como o mérito
masculino é forjado no falocentrismo, fazendo das mulheres seres
inferiores no “sistema de oposições homólogas” ainda naturalizado.
Isso também é violento, causa infelicidade e depressão. E se
precisamos uns dos outros para prosperar em grupo, mulheres não podem
estar do lado de fora.
No livro Políticas da realidade: ensaios sobre Teoria Feminista,
a filósofa Marilyn Frye escreve que o amor dos homens é homossexual,
uma vez que eles parecem incapazes de direcionar às mulheres o mesmo
amor amigo – que une, compartilha saberes, ideais, lutas, estratégias e
espaços – que direcionam aos seus pares masculinos.
O filósofo Axel Honneth fala do amor – as relações eróticas, as
amizades e a relação entre pais e filhos – como um padrão de
reconhecimento intersubjetivo, ao lado do direito e da solidariedade.
Segundo ele, o direito considera todas as pessoas iguais, enquanto a
solidariedade está relacionada à maneira como os indivíduos se sentem
valorizados e reconhecidos.
Essa forma de reconhecer o valor do outro pode fazer surgir o que
Guilherme Assis Almeida e Eduardo Bittar revelam como “relações
solidárias que são caracterizadas pela igual intensidade no sentido de
estima mútua e pela possibilidade de compartilhamento de valores comuns
significativos e engrandecedores para a vida de cada um.
Compartilhamento esse que ocorre sem nenhuma espécie de pressão social”,
escrevem em Curso de filosofia do direito (Atlas).
Os autores, que trazem o pensamento de Honneth, ainda nos ensinam que
“é essa solidariedade que será capaz de estabelecer uma comunidade de
valores ensejadora de relações sociais caracterizadas pela troca e
desenvolvimento recíproco nas quais a violência não ocupa lugar algum e a
peculiaridade de cada um é fruto da admiração de todos. Relações nas
quais a competição não encontra nenhum espaço, já que o crescimento do
indivíduo no âmbito do grupo é princípio. Entendida essa palavra no seu
sentido de dar início, como também na sua perspectiva ética”.
É importante lembrar também do que nos ensinou Audre Lorde em Irmã outsider
(Autêntica), quando escreveu que “a menos que alguém viva e ame dentro
das trincheiras, é difícil se lembrar que a guerra contra a
desumanização é interminável”.
O desprezo é o contrário da solidariedade. Numa sociedade patriarcal,
machista e misógina inclusive nos espaços intelectuais e políticos,
essa prática é destinada às mulheres e a outros grupos subalternizados.
Como é possível pensar em novas formas de sociabilidade fora do
capitalismo, tão baseado no individualismo, egoísmo e no desprezo dos
indesejáveis, sem atacar a raiz dessa construção social que despreza
mulheres? Um desprezo que é incapaz de oferecer – para além da teoria – a
solidariedade para esse grupo social?
É importante que deixemos de gastar energia fingindo que essas
barreiras são intransponíveis ou até mesmo que elas não existem, nos
ensina Audre Lorde. Negar a existência desse pensamento binário que
coloca mulheres como merecedoras de desprezo não fará com que isso deixe
de acontecer.
E como falar em democracia e justiça sem observar, por exemplo, a
prática da valorização recíproca entre grupos sociais? O amor, o direito
e a solidariedade são determinantes para a vida do indivíduo, escrevem
Guilherme Assis Almeida e Eduardo Bittar, e a sua ausência, além de
perturbar o espaço coletivo, tem consequências diretas para o convívio
social.
A teoria crítica de Honneth, de 1992, nos desafia a experimentar
novas práticas sociais – práticas que já têm sido propostas por teóricas
feministas há décadas.
Ao considerarmos a interseccionalidade como ferramenta analítica,
deixamos de entender a categoria mulher como universal e passamos a
falar, por exemplo, de mulheres negras. E essas mulheres, como nos
ensina Patricia Hill Collins, são atingidas por “imagens de controle”,
ou seja, imagens negativas, como a da “gostosa”, para usar apenas um
exemplo. São imagens que ajudam a justificar a opressão sobre elas.
Em Pensamento feminista negro (Boitempo), Collins demonstra
como essas imagens de controle atuam como uma ideologia de dominação.
“Dado que a autoridade para definir valores sociais é importante
instrumento de poder, grupos de elite no exercício do poder manipulam
ideias sobre a condição de mulher negra. Para tal exploram símbolos já
existentes, ou criam novos”.
Ao tratar da objetificação da mulher negra, Collins aborda o
pensamento binário que dialoga com o que Bourdieu chama de sistema de
oposições homólogas, chamando a nossa atenção para o fato de que o
binarismo retarda o pensamento e seus valores fazem com que os fatos se
apresentem de forma obscura.
Essas imagens de controle – que colocam como “amante” a mulher negra
intelectual amiga de homens intelectuais, como aquela que precisa
oferecer capital sexual em troca de reconhecimento e valorização – estão
no âmbito do desprezo, que é o contrário da solidariedade que
precisamos para a construção da nova sociabilidade que nos interessa.
Da mesma forma, quando falamos da mulher trans que é desprezada
porque não permitiu ser domesticada pelos seus pares, estamos diante do
uso de imagens de controle que “justificam” a transfobia no campo
político. A mulher trans que não se permite domesticar acaba sendo
etiquetada como selvagem primitiva que não merece reconhecimento e
valorização, apenas o desprezo.
A interseccionalidade é uma categoria de análise das opressões de
raça, gênero e classe, sem hierarquia entre elas, como ressalta Audre
Lorde.
No sistema binário de pensamento, mulheres são lidas e tratadas pelos
homens como inferiores, assim como negros são tratados e lidos como
inferiores pelos brancos. Não devemos reproduzir esse sistema dentro do
espectro ideológico progressista. É preciso se educar, refletir e pensar
no outro como alguém diferente, porém não menos importante ou que
mereça desprezo.
É preciso coragem e honestidade intelectual para realizar uma
autocrítica e se aliar na derrubada do pensamento binário desumanizante,
mas sem acreditar que o grupo oprimido tem a responsabilidade de educar
seus opressores.
A derrubada da arrogância intelectual – que faz com que aqueles que
não tiveram acesso à educação sejam vistos como parte inferior do
binarismo fato/opinião – está no âmbito da prática da solidariedade,
inserida na teoria crítica social de Honneth.
Derrubar a arrogância intelectual não é sobre ser anti-intelectual,
mas é se permitir escutar e refletir sobre o que dizem e sentem aqueles
que não tiveram as mesmas condições objetivas para alcançar certos
espaços, que inclusive não foram feitos para que esses corpos fossem
recebidos.
É sobre exercitar a solidariedade intelectual e não fazer com que o
outro se sinta um outsider compulsório nos debates que impactam
diretamente as suas vidas.
Em Pensamento feminista negro, Patricia Hill Collins
apresenta a fala de Ruth Shays, mulher negra e pobre. Uma fala
impactante que nos faz refletir sobre o pensamento binário que
desumaniza e afasta o princípio da solidariedade, além de nos distanciar
das possibilidades de garantir nosso direito ao futuro e o direito
daqueles e daquelas por quem dizemos lutar:
“Ouvir a verdade não mata ninguém, mas as pessoas não gostam da
verdade e preferem ouvi-la de alguém de seu próprio grupo que de um
estranho. Ora, para os brancos (para uma análise mais ampliada, insira
aqui a categoria homem também), uma pessoa de cor (insira aqui a
categoria mulher para uma reflexão mais ampliada) é sempre um estranho. E
mais, acreditam que somos estranhos e estúpidos, por isso não podemos
dizer nada para eles!”
Que não sejamos essas pessoas que colocam aqueles por quem dizemos
lutar no patamar da infantilização, da objetificação e do desprezo.
Talvez deva ser uma grande prioridade praticar os aspectos da luta pelo
reconhecimento do outro enquanto sujeito de direitos, sujeito digno de
receber amor e solidariedade.
Laura Astrolabio é advogada especialista latu sensu
em Direito Público, mestranda em Políticas Públicas em Direitos Humanos
na UFRJ e articuladora política no movimento Mulheres Negras Decidem.
O sistema internacional de proteção aos direitos humanos, a jurisdição internacional e as cortes se constitui no fim da Segunda Guerra Mundial, com a criação da ONU e a carta sobre os Direitos Humanos, assinada por todos os países-membros originários do ato de fundação da Organização das Nações Unidas, entre os quais, o Brasil (representado por Oswaldo Aranha.
Esse sistema é uma cadeia complexa que envolve órgãos e tribunais que vão desde a esfera municipal, estadual, federal, regional até chegar no Tribunal Penal Internacional. Entre essas esferas estão A Corte interamericana, a Carta da OEA, o Alto Comissariado para os Direitos Humanos e o Tribunal de Haia. Estas instâncias são reconhecidas e respeitadas por todos os países signatários dessas convenções internacionais. Aqueles governos que não não reconhecem ou respeitam esses princípios e comandos trans- constitucionais, são chamados de "párias", e estão à margem da comunidade política das nações.
Esta jurisdição e os poderes que ela confere às autoridades internacionais (regionais e internacionais) já atuou em várias ocasiões, dentro e fora do Brasil. Dentro do nosso país, temos a responsabilização penal do Estado brasileiro pela chacina dos militantes políticos da "Guerra do Araguaia" (caso Gomes Lund). Fora daqui, Há o rumoroso caso do julgamento e condenação do ex-ditador chileno General Augusto Pinochet, através da intervenção do juiz espanhol Baltazhar Garcon, pelo assassinato de cidadãos de seu país, durante a ditadura chilena. O mesmo magistrado ainda chegou a notificar o ex-secretário Henri Kissenger para que ele se apresentasse perante a corte européia e fosse julgado, mas Kissenger se saiu com uma"boutade": pior que a ditadura dos generais, era a dos juízes. E não compareceu.
O primeiro tribunal internacional criado para julgar os crimes contra a humanidade foi formado "ad hoc" pelos vencedores da Segunda Guerra Mundial, o Tribunal de Nuremberg. Apesar da notória parcialidade da corte, composta de americanos e europeus, esta Corte foi a antecessora do Tribunal de Haia, da Tutela Internacional dos Direitos Humanos, e dos julgamentos de crimes cometidos por governos nacionais no mundo inteiro.Diga-se, de passagem, que nem o governo americano nem o do Estado de Israel reconhecem a jurisdição do TIP e não permitem que seus cidadãos e cidadãs sejam julgados por esse tribunal. Alegam razões de Estado e o direito de lutar pela sua sobrevivência. Isso sem falar no "buraco negro" jurídico das prisões de Guantânamo e a ocupação militar dos territórios palestinos pelo governo sionista.
O caso da discussão sobre a responsabilidade penal do atual governo brasileiro sobre a morte de milhões de civis, em razão do descumprimento das recomendações da Organização mundial da Saúde, e a ameaça de extinção das nações indígenas e sociedades quilombolas é francamente um daqueles que pode se tornar um processo internacional, pela acusação de genocídio ou crimes contra a humanidade. Caso seja aceita a denúncia pelo TIP, é possível que a denúncia prospere e o governo se torne réu num tribunal internacional. O dirigente brasileiro parece fazer pouco caso da imagem que a comunidade internacional tem do Brasil, sob a sua gestão e aposta no isolamento político como forma de convivência com os demais países americanos e europeus, com exceção dos E.U.A. e do Estado de Israel. Exatamente aqueles governos que não aceitam a jurisdição do TIP, em razão dos crimes que cometem contra os cidadãos e cidadãs estrangeiros.
De toda maneira, o julgamento e a condenação pela Corte de Haia implica sansões políticas, econômicas e o ônus de uma reputação internacional do país pelo desrespeito sistemático dos direitos humanos e as violências perpetradas contra os pobres, velhos, doentes e desassistidos. Além da perseguição ás minorias sociais. Um governo proscrito pela comunidade internacional - e que faz pouco caso das convenções e acordos políticos e humanitários - não só se arrisca a perder investimentos de longo prazo e receber turistas estrangeiros, mas sobretudo ser preso se sair do país.
Michel Zaidan Filho é filósofo, historiador, cientista político, professor titular da Universidade Federal de Pernambuco e coordenador do Núcleo de Estudos Eleitorais, Partidários e da Democracia - NEEPD-UFPE
Tem gente que nasceu para ganhar dinheiro. Outros nasceram para a Ciência e a Pesquisa. Mais os que são valiosos são que nasceram para o magistério e enorme capacidade de ajudar as pessoas a se instruírem e formarem uma opinião crítica sobre as coisas do mundo. Estes são os melhores. A professora Roseana Borges de Medeiros, docente do DLCH, da Universidade Rural de Pernambuco, vem mostrar através de seu ultimo livro – Reforma Agrária no Papel, a sua inegável vocação pedagógica, aliada à sua missão clínica e terapêutica junto a seus alunos e alunas.
Segunda a mestra, o livro foi elaborado para o seu magistério na disciplina Direito Agrário. Como inexistia na época uma publicação que abordasse de uma perspectiva jurídica e histórica a questão da regularização legal da terra no Brasil, desde o período colonial até a Nova República, ela tomou a si a tarefa de produzir esse livro, numa versão eminentemente didática. E conseguiu. Valendo-se de uma ampla pesquisa histórica da formação de Portugal, passando pela colonização lusitana do Brasil e chegando até a República, Roseana nos legou um estudo sistemático e lógico da questão agrária em nosso país, para além da hermenêutica jurídica e suas controvérsias entre os advogados e constitucionalistas. Diz ela que Portugal, uma das primeiras nações modernas da Europa, nunca teve originalmente um feudalismo, em razão da ocupação muçulmana na península ibérica. Os árabes nunca cuidaram de agricultura e sempre se dedicaram ao comércio e a conquista. Situação que provocou entre os portugueses uma crise crônica no cultivo dos campos, e sua gradual dependência da Inglaterra para o abastecimento de sua gente. Os lusitanos se entregaram sofregamente ao comercio e as grandes navegações. Dessa forma, a agricultura foi delegada a outros. Como nunca houve um feudalismo digno desse novo, falar de revolução burguesa na Lusitânia seria uma força de expressão, apesar do arremedo de uma frágil burguesia comercial associada à “revolução” de Avis, dando início á época das grandes navegações. Neste contexto, foi elaborada a lei das Sesmarias, como forma de regularização da posse da terra. O mérito dessa lei é que ela impedia a concentração fundiária, em tese. A lei das Sesmarias foi o texto legal que vigiu durante todo o período colonial e parte do Império brasileiro. Apesar das intenções, não impediu a concentração e privatização da terra no Brasil. Já que grandes proprietários e senhores de terra foram agraciados com as sesmarias.
Nesta altura, a autora introduz a questão da ausência de feudalismo na colônia brasileira. Discutindo com os autores marxistas, a mestra reafirma a inexistência desse modo de produção e diz que a história agrária brasileira foi desde o início a do latifúndio e da grande propriedade territorial. Confirmada pela agroindústria sucro-alcooleira e a mão-de-obra escrava.
O próximo passo seria o fim da escravidão, a crise da lavoura açucareira e a criação da Lei de Terras, de 1850. A abolição do trabalho escravo, sob pressão militar da Inglaterra, levou a uma reorientação da política agrária, no sentido de impedir que os ex-escravos e homens livres pudessem se beneficiar das terras devolutas e improdutivas e difundir o regime da pequena propriedade no Brasil. Antecipando a isso, os senhores de terra do oeste paulista e Rio de Janeiro, apressaram-se em aprovar uma lei que restringia a posse da terra, através da obrigação da venda e da compra. Mais uma vez, vinha o reforço da concentração fundiária, a serviço das fazendas de café e do trabalho livre dos imigrantes europeus. Esta lei perdurou em nosso país até o advento do Estatuto da Terra, aplicado já no regime militar. O Estatuto da Terra, coroava uma série de lutas, conflitos, reivindicações dos trabalhadores rurais, meeiros e parceiros que trabalhavam no campo, sem nenhum direito ou garantia. Esta lei, considerada a mais avançada nas circunstâncias brasileiras, previa expressamente a “função social da propriedade fundiária” e punia o latifúndio improdutivo. Na letra, seria um arremedo da revolução agrária que o Brasil nunca teve. Infelizmente, sob o tacão da ditadura militar, ele favoreceu aos grandes proprietários de terra, com a expulsão de muitos trabalhadores e camponeses de suas terras.
Roseana conclui sua pesquisa com uma análise muito crítica do Primeiro Plano nacional da Reforma Agrária, quando era vivo ainda o ministro Marcos Freire. Valendo-se das análises de José Graziano, ela menciona a expressão “modernização conservadora” ou “modernização dolorosa”, como o resultado prático desse Plano: a expansão do capitalismo moderno ao campo, através de grandes empresas nacionais e internacionais, com ajuda de incentivos fiscais, grandes obras de infra-estrutura e, sobretudo, “a militarização da questão agrária” no fronteira agrícola da Amazônia e no norte do país. Houve uma enorme concentração de terras, com a expulsão de imigrantes nordestinos, índios, camponeses, em benefício dos grandes proprietários e empresários rurais ligados ao agronegócio. Muita terra adquirida foi transformada em mera “reserva do valor”.
O livro confirma – através de uma boa pesquisa histórica – a tese arqueconhecida da concentração fundiária no país, através de uma dialética perversa da simbiose do novo com o velho, que faz do Brasil uma nação dotada de uma estrutura agrária arcaica, privada, concentrada e voltada para o exterior. A reforma agrária tantas vezes anunciada permaneceu no papel o tempo todo. E hoje é motivo de muita preocupação, em razão das opções macroeconomicas do atual governo.
Michel Zaidan Filho é filósofo, historiador, cientista político, professor titular da Universidade Federal de Pernambuco e coordenador do Núcleo de Estudos Eleitorais, Partidários e da Democracia - NEEPD/UFPE.