pub-5238575981085443 CONTEXTO POLÍTICO.
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sábado, 15 de fevereiro de 2020

Saiba mais sobre os autores quase censurados em Rondônia

De Machado de Assis a Franz Kafka, passando por várias obras de Rubem Fonseca
Redação Quatro Cinco Um 07fev2020 15h08
 
"Memórias de Brás Cubas", de Machado de Assis, foi uma das obras quase censuradas Joaquim Insley Pacheco/Coleção Gilberto Ferrez/Acervo Instituto Moreira Salles
Nesta quinta-feira (6) circulou uma ordem do secretário de Educação de Rondônia, Suamy Vivecananda, determinando o recolhimento de 43 livros da rede publica de ensino. O motivo seria que as obras teriam “conteúdos inadequados a crianças e adolescentes”.
O secretário, em um primeiro momento, declarou que o ofício era falso, mas depois confirmou a informação, classificando o documento como sigiloso. Diante da polêmica, a secretaria recuou da medida.
Entre os autores a serem censurados estão grandes nomes da literatura, como Machado de Assis e Franz Kafka, além de um observação de que “todos os livros de Rubem Alves devem ser recolhidos”.
Saiba mais sobre os autores quase censurados em Rondônia
Clássicos brasileiros, que inclusive são leitura obrigatória em alguns vestibulares país afora, como Memórias póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis, e Macunaíma, de Mário de Andrade, estão entre os títulos a serem censurados, assim como dezoito obras de Rubem Fonseca , poemas de Ferreira Gullar e uma coletânea de contos de Caio Fernando Abreu. Carlos Heitor Cony também aparece com vários títulos a serem recolhidos, inclusive sua versão infantojuvenil da história de Aladim e O mistério da moto de cristal, escrito junto a Ana Lee.
Os sertões – A luta, de Euclides da Cunha, que foi o homenageado da Flip no ano passado, e títulos de Nelson Rodrigues (inclusive uma versão em graphic novel de Vestido de noiva, um dos grandes nomes do teatro brasileiro. O acesso à toda a obra do educador Rubem Alves também deveria proibida. Entre autoras mulheres, além de Ana Lee, estão mais dois nomes: Rosa Amanda Strausz (organizadora do livro 13 dos melhores contos de amor, que traz contos de autores como Luis Fernando Verissimo, Lygia Fagundes Telles e Carlos Drummond de Andrade) e Sonia Rodrigues (Estrangeira).
Entre os autores estrangeiros estão o clássico O castelo, de Franz Kafka, um retrato crítico sobre a burocracia, e Contos de terror de mistério e de morte, de Edgar Allan Poe. Carlos Nascimento da Silva, com o livro de contos A menina de cá; Ivan Rubino Fernandes, com seu Guia Millôr da história do Brasil, e Aurélio Buarque de Holanda Ferreira com todos os volumes de Mar de histórias completam a lista.
Veja a lista completa dos autores que foram quase censurados:
Ana Lee: O mistério da moto de cristal (com Carlos Heitor Cony)
Aurélio Buarque de Holanda Ferreira: Mar de Histórias
Caio Fernando Abreu: O Melhor De Caio Fernando Abreu – Contos e Crônicas
Carlos Heitor ConyA volta por cima, O irmão que tu me deste, O ventre, Rosa vegetal de sangue, O mistério da moto de cristal (com Ana Lee), Mil e uma noites, O ato e o fato, O harém das bananeiras
Carlos Nascimento da Silva: A menina de cá
Edgar Allan PoeContos de terror de mistério e de morte
Euclides da CunhaOs sertões da luta (sic)
Ferreira Gullar: Poemas escolhidos
Franz KafkaO castelo
Ivan Rubino Fernandes: Guia Millôr da história do Brasil
Machado de AssisMemórias póstumas de Brás Cubas
Mário de AndradeMacunaíma, o herói sem nenhum caráter
Nelson Rodrigues: Beijo no asfaltoO melhor de Nelson RodriguesVestido de noiva (graphic novel), A vida como ela é
Rosa Amanda Strausz: 13 dos melhores contos de amor
Rubem Alves: todas as obras
Rubem Fonseca: Diário de um fescenino, Bufo & Spallanzani, O melhor de Rubem Fonseca; Secreções, excreções e desatinos; Os prisioneiros, Agosto, Amálgama, O doente Molière, A coleira do cão, O seminarista, Histórias curtas, História de amor, O buraco na parede, Feliz ano novo, Calibre 22; Mandrake, a Bíblia e a bengala; Lúcia Mccartney, Romance negro e outras histórias
Sonia Rodrigues: Estrangeira

(Publicado originalmente na Quatro Cinco Um, a Revista dos Livros) 

Charge! Via Folha de São Paulo

https://f.i.uol.com.br/fotografia/2020/02/14/15817284055e474295202a4_1581728405_3x2_th.jpg

quarta-feira, 12 de fevereiro de 2020

Editorial: Fios desencapados





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No jargão policial, a expressão acima é utilizada para identificar os atores que, por algum motivo - intencional ou não - acabam oferecendo os elementos para a polícia desvendar determinados crimes,desmontar esquemas de desvio de recursos da administração pública além, claro, de outros delitos. Uma das pistas mais importantes para se chegar aos envolvidos no grande assalto ao Banco Central de Fortaleza foi  uma folhinha de papel, deixada por uma desses descuidados, no túnel escavado, onde estava anotado um número de telefone celular. Hoje, de alguma forma, os chamados “delatores premiados” bem que poderiam entrar nessa categoria de “fios desencapados”. 

Voltando de João Pessoa recentemente - onde acompanho com o comendador a edição do Guia Histórico e Sentimental de Jampa - tivemos a oportunidade de acompanhar todo o desdobramento da “Operação Calvário”, um grande esquema de desvio de recursos públicos ocorridos naquele Estado da Federação, envolvendo agentes públicos e privados, que colocou em mãos indevidas milhões de verbas destinadas à saúde e à educação. Neste caso específico, a ex-Secretária de Administração do Estado, Livânia Farias, assume a condição de "fio desencapado" ao revelar toda a engrenagem de desvio de recursos públicos implantados na máquina do Estado, oferecendo pormenores da operacionalização do esquema, identificando seus beneficiários, com uma riqueza de detalhes ao mesmo tempo hilária e impressionante.

Como afirmamos, acompanhamos alguns desses interrogatórios, sendo muito pouco provável que ela não esteja dizendo a verdade. Livânia aponta, inclusive, os locais onde as caixas com o dinheiro da propina eram destribuídas, precedidas de senhas, como, por exemplo, “chegaram as mangas de Santa Rita”. Morto recentemente numa operação policial no Estado da Bahia, um ex-capitão do BOPE - Batalhão de Operação Policiais Especiais - RJ - , cujo nome estaria associado ao assassinato da vereadora Marielle Franco, é um desses “fios desencapados”. Pela "experiência” adquirida - depois que foi afastado do BOPE sob a acusação de envolvimento com o Jogo do Bicho - era um arquivo vivo sobre as nuances que envolvem a atuação das milícias no Estado do Rio de Janeiro, notadamente suas ramificações com o poder público, especialmente o aparelho policial. Não à toa, pouco antes de morrer, ele havia informado à sua família e ao seu advogado que poderia ser vítima de uma “queima de arquivo”.

O mundo político pernambucano foi sacudido por um tsunami, logo após a publicação de uma extensa matéria na revista Época, sobre as intrigas na família Campos/Arraes depois da morte do ex-governador Eduardo Campos. Não vou aqui entrar nos “detalhes” dessa contenda, deixando que os órgãos competentes apurem o que está sendo denunciado, de forma sigilosa, pelo advogado e escritor Antonio Campos. Em tese, a julgar pelo ocorrido quando de sua candidatura à Prefeitura da Cidade de Olinda no último pleito, já se sabia que o clima era de grande animosidade entre os herdeiros políticos do espólio do clã familiar. O escritor não contou com o apoio do Palácio do Campo das Princesas ao seu projeto político, sendo claramente sabotado. 

Não desejo a ninguém um “linchamento” ou uma exposição à execração pública, através do expediente de fake news, prática recorrente nesses tempos bicudos de instabilidade democrática, insegurança jurídica e pós-verdade. A tarefa de enfrentar os interesses - nada republicanos - dessas oligarquias locais constitui-se num árduo esforço, de inevitáveis e nefastas consequências. Ao lado das oligarquias paulista e mineira, a oligarquia pernambucana é uma das mais infames, torpes, abjetas e perversas, forjada em séculos de exploração do regime de trabalho escravo, cevada nos vícios perniciosos da colonização portuguesa. Como diria o conselheiro Rosa e Silva, em tempos idos, aqui ou se é Cavalcanti ou se é cavalgado. 

Os princípios que deveriam nortear a administração pública são solenemente abandonados em razão da prevalência do poder oligárquico, dos interesses comezinhos, de grupelhos, da ocupação de espaços na máquina, do familismo amoral, tendo como uma das consequências o não atendimento às demandas da população mais socialmente fragilizada.   O mais surpreendente é que as chamadas "forças do campo progressista" sucumbiram a esse projeto, num arranjo unicamente orientado pelo pragmatismo de seus principais atores, ávidos pelo exercício do poder, pelas benesses ofertados pelo cargo na máquina e coisas assim. Lamento informar isso, mas a dita esquerda pernambucana - tão aguerrida no passado - hoje é uma vergonha. O que não diriam sobre ela um Paulo Cavalcanti, um Cristiano Cordeiro, um Gregório Bezerra e até mesmo o cronista Rubem Braga, que viveu aqui na província o seu período mais fértil de ativismo político?   


domingo, 9 de fevereiro de 2020

Michel Zaidan Filho: O que nos tem a dizer "A Origem do Drama Barroco Alemão?"

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    Por sugestão do meu amigo e blogueiro José Luiz, fui reler a tese de livre-docência de Walter Benjamin, "Origem do Drama Barroco Alemão". Texto reconhecidamente difícil de ler e entender, até mesmo para a banca que tentou examiná-lo. Mas a importância  e a atualidade do livro estão muito presentes hoje no debate sobre a crise da democracia brasileira; mais ainda depois da indicação ao Oscar de melhor filme estrangeiro do documentário de Petra Costa. Sabe-se  que o autor buscou, na época, um diálogo com o teórico conservador  Carl Schmidt, teórico do "estado de Exceção e do decisionismo político". O que a obra tematiza com bastante clareza é a relação  estreita  entre o estilo barroco e o absolutismo, como produto da Contrarreforma. As alegorias barrocas (para não dizer " a razão política barroca") referem-se  ao poder incontrastado dos monarcas e tiranos absolutistas, como já tinha assinalado uma das grandes autoridades da história da arte, Henrich Wolfflin, numa interpretação que se tornou clássica e que reabilitou o barroco, como escola artística de igual dignidade a do classicismo.
     
    O que chama a atenção no livro de Benjamin   é  que o Barroco alemão(e o geral) está associado à ocorrência de regimes políticos autocráticos, como em sua época estava por acontecer com o advento do regime nazista na Alemanha, com o fim da República Weimar. A terrível alegoria da obra, em sua aparente distância do momento presente vivido pelo autor, falava de sua época, da  crise política dos anos 20 e o advento de um regime de terror. Segundo  Benjamin,  a concepção barroca da História se caracteriza por um estado de exceção, onde o príncipe ou o monarca tem a história nas mãos e  sua finalidade  é  estabilizar politicamente a sociedade, combatendo as revoltas e a  oposição. O ideal do déspota absolutista é a naturalização da História e a estabilização da sociedade. Naturalmente que ele fará isso em nome da prosperidade econômica, cultural e científica da comunidade; mas à custa de um poder desmedido e da eliminação do contraditório e da oposição. Nisso, a concepção  absolutista do poder se identifica com a visão barroca  da própria natureza, representada pelas etapas de sua decadência e morte. A visão barroca do mundo é um amontoado de ruínas, de sofrimento e  tristeza.
    Tudo isso pareceria muito religioso e medieval se não fosse pelo fato de que nossa país ter sido acometido de um retrocesso  medieval na política,  na arte, na ciência e   nos costumes. É como se uma impostação do ascético Savonarola aparecesse, de saias, para purificar moralmente  a sociedade brasileira, enquanto  o simulacro de déspota vai fazendo o trabalho de sapa das instituições, dos direitos  e do patrimônio publico  do povo brasileiro. Estaríamos diante de um estado (caricato) de um tirano - moralmente conservador -  mas instrumentalizado pelo fundamentalismo do mercado internacional? - Deparamo-nos com um asceta a serviço de interesses econômicos antinacionais, antipopular es e antidemocráticos? - Neste aspecto, a benção e a sagração das igrejas pentecostais e neopentecostais viriam a calhar (em troca de favores) na beatificação desse ensaio de bonapartismo de direita.
     
    De  toda maneira, as sugestões do livro são muito eloquentes, comparando-as com as características fascistas, autoritárias e ultraliberais desse regime que  ora  nos desgoverna. Não deixa de ser tentador aplicar os elementos dessa concepção barroca da Política e da História ao  caso  brasileiro. Quem escreverá com êxito - este novo livro sobre o drama barroco brasileiro?                                            
    Michel Zaidan Filho é filósofo, historiador, cientista político, professor titular da Universidade Federal de Pernambuco e coordenador do Núcleo de Estudos Eleitorais, Partidários e da Democracia - NEEPD-UFPE


Regina Duarte e o marxismo cultural

 

Regina Duarte e o marxismo cultural
Regina Duarte, atriz e nova Secretária Especial de Cultura do governo federal (Foto: Governo do Estado de São Paulo)

A propósito do vídeo compartilhado pela atriz Regina Duarte, recentemente convidada pelo presidente Jair Bolsonaro para assumir a Secretaria Especial da Cultura, em que um ex-BBB faz declarações críticas contra o que ele (e muitos no atual governo) chama de “marxismo cultural”, me ocorreu, até para entender melhor esse depoimento que a atriz achou “bacana, profundo, super real”, perguntar: o que é o marxismo cultural?
No vídeo, o ex-BBB dá sua própria definição da expressão: o marxismo cultural, segundo ele, “coloca negros contra brancos, mulheres contra homens, homossexuais contra heterossexuais”. Segundo ele ainda, a esquerda identitária, aquela que trata de questões relativas a raça e gênero, seria uma exemplo clássico de marxismo cultural. Em suas palavras, como “o comunismo acabou”, “o proletariado contra a burguesia não existe”. O marxismo cultural teria assim surgido em uma mudança dentro do próprio marxismo, substituindo o “divisionismo” entre classes sociais, pelo divisionismo entre “classes étnicas, sexuais”. Ele conclui o seu depoimento dizendo que as pessoas que constituem o “marxismo cultural” são “pessoas que se colocam no lugar de vítima para massacrar as outras”. 
Eu gostaria de me deter no depoimento do ex-BBB porque creio que há muitos elementos importantes no modo como ele caracteriza o “marxismo cultural”. Como vimos, ele afirma que o “marxismo cultural” coloca “negros contra brancos, mulheres contra homens, homossexuais contra heterossexuais”. A frase tem a sua verdade, desde que possamos reescrevê-la assim: o marxismo cultural coloca oprimidos contra opressores, as vítimas contra os algozes. Negros foram e continuam a ser oprimidos pelos brancos, mulheres foram e continuam a ser oprimidas pelos homens, homossexuais foram e continuam a ser oprimidos pelos heterossexuais. Negros, mulheres e homossexuais foram historicamente objeto de violência por parte de seus opressores, os brancos, os homens e os heterossexuais, e continuam a sê-lo nos dias de hoje. Ao defender que essa violência deve cessar, o “marxismo cultural” estaria colocando esses grupos oprimidos contra seus opressores, o que, para o ex-BBB e a sua admiradora, a atriz Regina Duarte, seria inaceitável. Essas pessoas, os negros, as mulheres e os homossexuais, seriam, segundo eles, “pessoas que se colocam no lugar de vítima para massacrar as outras”, ou seja, elas não são vítimas de verdade. As pessoas que são brancas, homens e heterossexuais, essas pessoas sim é que são as verdadeiras vítimas, as vítimas do “marxismo cultural”. O “marxismo cultural” seria, então, esse massacre perpetrado pelas falsas vítimas contra os falsos opressores, as verdadeiras vítimas.
Aqui caberia perguntar: o ex-BBB, e sua admiradora, a atriz Regina Duarte, que acha seu depoimento “bacana, profundo, super real”,  estão dizendo que os negros, as mulheres e os homossexuais não são vítimas de violência por parte dos brancos, dos homens e dos heterossexuais? Ou estão dizendo que não há nada de errado no fato de que essas pessoas sejam objeto de tal violência e opressão?  A fala do ex-BBB parece ir na direção da primeira possibilidade ao afirmar que essas “pessoas se colocam no lugar vítimas”. Ou seja, para ele, essas pessoas não de fato são vítimas. Elas não sofrem qualquer tipo de violência ou opressão. Elas apenas se colocam nesse lugar para massacrar as outras, que elas consideram como opressores, mas que na verdade não o são. 
Mas eu diria que a verdade sobre a sua fala está muito mais na direção da segunda possibilidade: pessoas como o ex-BBB e como Regina Duarte não creem que os negros, as mulheres e o homossexuais sejam vítimas porque, para eles, não há nada demais no fato de que eles sejam tratados como são tratados. Já que, desde sempre, eles foram tratados assim. E que mal haveria nisso? A própria Regina Duarte, dois dias antes do segundo turno das últimas eleições, após encontrar o então candidato Jair Bolsonaro, deu o seguinte depoimento para o jornal O Estado de São Paulo: “Quando conheci o Bolsonaro pessoalmente, encontrei um cara doce, um homem dos anos 1950, como meu pai, e que faz brincadeiras homofóbicas, mas é da boca pra fora, um jeito masculino que vem desde Monteiro Lobato, que chamava o brasileiro de preguiçoso e que dizia que lugar de negro é na cozinha”. O depoimento da atriz desmente que Bolsonaro seja homofóbico e racista, assim como, ao corroborar o depoimento do ex-BBB sobre marxismo cultural, desmente que haja violência e opressão contra os negros, as mulheres e os homossexuais.
O marxismo cultural consistiria então em ver algo errado onde não há nada de errado e em convencer os negros, as mulheres e os homossexuais de que eles são vítimas, de que não devem aceitar o tratamento que lhes foi dado até hoje embora esse tratamento seja totalmente normal aos olhos do ex-BBB e da atriz e atual Secretária de Cultura. Nesse sentido, o que o “marxismo cultural” faria seria o que o ex-BBB entende por “colocar negros contra brancos, mulheres contra homens, homossexuais contra heterossexuais”, sem nenhuma razão real para isso. Dizer, portanto, que o “marxismo cultural” coloca negros contra brancos, mulheres contra homens e homossexuais contra heterossexuais é desmentir o fato de que existe violência contra negros, mulheres e homossexuais. O desmentido seria, assim, a característica fundamental do atual governo, o que mostra seu traço perverso. Não haveria, segundo eles, violência contra negros, mulheres e homossexuais, do mesmo modo como não há desmatamento na amazônia  e do mesmo modo como a terra não é redonda. 
Um outro elemento interessante na fala do ex-BBB é o fato de ele ver o marxismo cultural como o modo como o marxismo sobrevive em nossos dias. Segundo ele, como “o comunismo acabou” e como ““o proletariado contra a burguesia não existe” mais, então é preciso criar um “divisionismo” não entre classes sociais, no “antigo marxismo”, mas entre “classes étnicas, sexuais”. É o que ele chama de “esquerda identitária”.
Também aqui, creio que há algo de verdadeiro em sua fala. O fato de que o marxismo atual, sem dúvida alguma, vem denunciar, e muito, não só a exploração do proletariado, da classe trabalhadora, pela classe burguesa, detentora do capital e dos meios de produção, mas também todo e qualquer tipo de opressão, é uma grande verdade: não apenas a exploração dos pobres pelos ricos, mas a opressão dos negros (e índios) pelos brancos, das mulheres pelo homens, do homossexuais (e transexuais) pelos heterosexuais deve ser condenada. Talvez essa faceta do marxismo atual, essa que o ex-BBB chama de “marxismo cultural” e de “esquerda identitária”, tenha ganhado tal força nos últimos tempos que tenha obscurecido a luta original dos pobres contra os ricos, da classe trabalhadora contra a burguesia. Uma luta não pode, no entanto, ser dissociada da outra, e é por isso que, em nosso país, foram os partidos de esquerda que avançaram nas pautas chamadas de identitárias, contra o racismo, o sexismo e a homofobia, porque entenderam que esse era um desdobramento natural do movimento civilizatório e da perspectiva marxista.
Talvez, hoje, a força do capitalismo seja tão dominante que ninguém acredite mais na força da luta da classe trabalhadora contra a opressão do capital, como fica evidente na fala do ex-BBB; talvez hoje a luta só seja possível no campo chamado de identitário, na medida em que talvez alguns, dentro do capitalismo, almejem um capitalismo sem opressão dos negros, das mulheres e dos gays. Mas, no caso do ex-BBB, nem mesmo essa concessão poderia ser feita. A vitória dos ricos contra os pobres (a ideia de que os ricos têm o direito de explorar os pobres) seria também a vitória dos brancos contra os negros, dos homens contra as mulheres e dos heterossexuais contra o homossexuais. Essa talvez seja a diferença entre uma certa direita e a extrema direita. A direita, mesmo que defendendo a exploração da classe trabalhadora pelos detentores do capital, mesmo que defendo o capitalismo na sua forma atual, neoliberal, é capaz de aceitar as pautas do marxismo cultural. Por isso, até mesmo um político do PSDB poderia defender a parada gay de São Paulo, ou condenar o feminicídio ou apoiar uma política de cotas nas universidades. Ou seja, a direita tradicional seria crítica apenas em relação ao marxismo tradicional, aquele que representa um questionamento do capitalismo. Quanto ao marxismo cultural, não haveria nele nada que políticos de direita não possam aceitar. O passo para a extrema direita seria dado apenas quando nem mesmo as teses do marxismo cultural podem ser aceitas. O governo atual, de extrema direita, é, nesse sentido, não apenas anti-marxista no sentido tradicional, como contrário também ao “marxismo cultural”. O que gera problemas para alguns meios de comunicação, como a Rede Globo e a Folha de São Paulo, que defendem algumas ideias do marxismo cultural, mas são igualmente defensoras do neoliberalismo na política econômica.
É interessante a esse respeito ver como jornalistas nesses meios de comunicação apoiam abertamente a política econômica do governo Bolsonaro sem nem se pronunciar sobre questões relativas à cultura, à educação e aos direitos humanos. Recentemente a Fiesp, através de seu presidente, Paulo Skaf, afirmou: “Apoiamos Bolsonaro, que pôs o país no rumo certo”. 
Ora, será que é tão difícil ver que se trata da mesma mesma coisa? Que não se pode criticar a violência contra as mulheres, os negros e os gays sem se criticar ao mesmo tempo a violência contra os pobres, os explorados, os oprimidos, os proletários? Nesse sentido, o depoimento do ex-BBB é mais coerente do que o desses jornalistas: para ele, poderíamos supor, pobres são falsas vítimas, tanto quanto negros, mulheres e homossexuais. Essa é uma verdade que vem da boca do atual ministro da economia, Paulo Guedes: pobres são pobres não por causa de um sistema econômico que os explora, eles são pobres porque gastam muito, porque não sabem poupar. O ministro foi ainda mais longe em recente declaração dada em Davos e culpou os pobres não apenas pela própria pobreza mas também pela destruição do meio ambiente. Ou seja: o ministro é o complemente econômico das palavras do ex-BBB que tanto comovem a atriz Regina Duarte. O ministro da economia e a secretária de cultura fazem parte de uma mesmo princípio fundamental que está presente em todos os níveis e áreas do atual governo e da sociedade que o elegeu e que ele representa.
Em outras palavras, os que defendem o atual governo são supremacistas que advogam abertamente a superioridade dos ricos em relação ao pobres, dos brancos em relação aos negros, dos homens em relação às mulheres, dos heterossexuais em relação aos homossexuais. É preciso que entendamos esse ponto: é o mesmo mecanismo que está em jogo na opressão dos pobres, dos negros, dos índios, das mulheres, dos homossexuais. Esse ponto é fundamental na discussão atual sobre o que está em curso no Brasil. Isto é, o que está em curso no Brasil é um capitalismo sem direitos humanos, sem feminismos, sem política de gênero, sem cotas raciais. Um capitalismo, portanto, que estende a opressão contra os pobres, para as mulheres, os negros e os homossexuais. Se você é pobre, mulher, negra e homossexual, então você terá todas as forças contra você. 
Mas há ainda um outro ponto quanto à expressão “marxismo cultural” para o qual eu gostaria de chamar atenção. Por que as lutas dos negros, das mulheres e dos homossexuais está associada à cultura? 
Na fala do ex-BBB que comove a atriz Regina Duarte, parece-me implícita a ideia de que o meio cultural é marxista. Ou seja, pessoas que lidam com arte e educação, artistas, intelectuais, cientistas e professores, são em geral “marxistas”. É claro que o ex-BBB acredita que eles sejam de fato marxistas, isto é, que sejam pessoas orientadas pelas teorias de Karl Marx. Mas podemos considerar que “marxistas” aqui indica apenas que são pessoas que lutam por relações de igualdade entre todos, entre negros e brancos, mulheres e homens, homossexuais e heterossexuais. Isso porque todo relacionamento com a cultura, com a arte, com a educação traz a ideia de que as pessoas devem ter direitos iguais, oportunidades iguais, para desenvolverem suas próprias singularidades. Ou seja, por trás da denominação “marxismo cultural” está presente a ideia não só de que o marxismo se torna cultural, portanto ligado às lutas de gênero e de raça, mas também a ideia de que a cultura se torna marxista, na medida em que é a cultura, enquanto processo civilizatório, que nos leva a condenar qualquer tipo de desigualdade e de violência, seja contra pobres, negros, índios, mulheres ou homossexuais. A ideia de que possa existir uma Secretária Especial de Cultura que ache “bacana, profundo, super real” o depoimento do ex-BBB sobre o marxismo cultural nos assusta, pois nos mostra uma Secretária de Cultura que não tem Cultura, que não partilha de princípios civilizatórios mínimos. Trata-se, portanto, como muitos já apontaram, de um retrocesso civilizatória em curso no país.
Em O Mal-estar na Civilização, Freud nos mostrou que o processo civilizatório implica várias formas de frustração para as pulsões de morte, ou seja, para os impulsos de violência, destruição e agressividade que constituem todos os seres humanos. Para ele, “é necessário levar em conta o fato de que em todos os seres humanos se acham tendências destrutivas, ou seja, antissociais e anticulturais, e de que estas, em grande número de pessoas, são fortes o bastante para determinar sua conduta na sociedade humana”. Como essas tendências não são totalmente elimináveis pelo processo civilizatório, suas esperanças em uma civilização completamente livre delas são pequenas, mas ele acredita que “se for possível converter em minoria a maioria que hoje é hostil à cultura, muito se terá alcançado, talvez tudo o que se pode alcançar”.
No Brasil de hoje, vemos um movimento contrário ao que Freud defende, em que a maioria se tornou hostil à cultura, e em que a Secretária de Cultura é contra a cultura e o “marxismo cultural”. No Brasil de hoje, as tendências destrutivas, agressivas, violentas, em suma, anticulturais, se encontram no poder. A namoradinha do Brasil, que acaba de assumir a Secretaria Especial de Cultura, é, na verdade, a namoradinha do Brasil da extrema direita. Mas isso, todos nós sempre soubemos, pelo menos desde que ela veio a público dizer que tinha medo diante da possibilidade de eleição para presidente de um representante da classe trabalhadora, a classe oprimida por excelência.

Cláudio Oliveira é filósofo, tradutor e professor associado do Departamento de Filosofia da Universidade Federal Fluminense (UFF)
(Publicado originalmente no site da Revista Cult)

Revisitando a cidade letrada latino-americana do sonho de ordem à subversão das misturas

 

Revisitando a cidade letrada latino-americana: do sonho de ordem à subversão das misturas
O crítico literário uruguaio Ángel Rama, que propôs o conceito de transculturação (Foto: Divulgação)

Antes dos governos de Evo Morales na Bolívia, sobretudo nas duas últimas décadas do século 20 e no primeiro lustro do século 21, as organizações de base indígena do país (o que não deixa de incluir, apesar das marcas históricas específicas, as organizações de mineiros), quando queriam alçar seus protestos de modo mais contundente, lançavam mão de um recurso tático de fato impressionante para a realidade dos demais países latino-americanos: realizavam, por alguns dias (ou, no caso da derrubada do governo neoliberal de Gonzalo Sánchez de Lozada em 2003, por várias semanas), um “bloqueo general de caminos”: simplesmente fechavam todas as estradas do país. E então a Bolívia se mostrava como realmente é: um esquálido arquipélago de hispanidade em meio a um denso mar indígena. Para ir de uma cidade a outra, só de avião. Claro que a Bolívia é um caso especial. Trata-se do único país das Américas com população de maioria indígena (6,2 milhões, representando 62,2% do total; seguido da Guatemala, com 41%) ― mesmo que a maior população indígena se concentre no México (17 milhões). Mas talvez, por isso mesmo, ela nos sugira uma aproximação genética a uma imagem ancestral da conformação histórico-social do continente. Essa figura de cidades plantadas como enclaves adventícios ― e pretensamente dominantes ― em um espaço de outra natureza nos remete a uma elaboração interpretativa do crítico literário uruguaio Ángel Rama.
Este, que foi um dos mais intensos pensadores e agitadores culturais latino-americanos da segunda metade do século 20, interlocutor próximo e constante de Antonio Candido em seu “projeto latino-americano” comum, tragicamente falecido em um acidente de avião em Madri em 1983, junto com o poeta e romancista peruano Manuel Scorza, partiu, assim como Candido, de uma inspiração marxista genérica (a precedência lógica do contexto, e não do ator ― ou, nesse caso, do autor literário), para sugerir uma interpretação estrutural da produção cultural do subcontinente, em que a ênfase explicativa recai sobre os processos antes que sobre os produtos. Nesse sentido, uma de suas contribuições mais relevantes foi a de retomar, para o campo da produção literária, a ferramenta conceitual proposta em 1940 pelo antropólogo cubano Fernando Ortiz, em oposição à ideia norte-americana de “aculturação” (qual seja, da mera “substituição” cultural, medida pelos produtos, ou, diria hoje seu reloaded pós-moderno ― coisificador e utilitarista ―, pelos “híbridos”), para assinalar um processo sempre tenso, heteróclito e incompleto de apropriações de signos e referentes ― que nem por isso instauram um novo, autonômico e determinante sistema de significação ―; processo que valeria o apodo de “transculturação”.
Sua síntese (Transculturación narrativa en América Latina), a partir de ensaios dispersos, foi publicada um ano antes da morte de Rama. A essa edição seguiu-se, postumamente (em 1984), a revisão das conferências dessa mesma época, intitulada La ciudad letrada (em português: A cidade das letras; São Paulo: Boitempo, 2015). É exatamente essa cidade letrada (ou antes, talvez ― se acrescentarmos o regime excludente da lógica do privilégio ―, essa cidadela) que parece traduzir em conceito aquela imagem boliviana das cidades-enclave. No entanto ― e isso é o que aqui se defende ―, esse termo capital da colonialidade precisa ser sopesado por aquele outro, da “transculturação”.
Historicamente, a colonização hispânica da América caracterizou-se como um processo de plantar centros urbanos. Estes poderiam oscilar da função tática imediata de praça forte à função institucional de sede administrativa. Na América hispânica a consolidação da grande propriedade rural é sucedânea da irradiação da ordem e da autoridade urbana. Em 1521 Alonso García Bravo projeta, por sobre as formas monumentais da capital asteca Tenochtitlan, um plano ortogonal de arruamentos e quadras para moradias e centros administrativos que viria a ser o núcleo da atual cidade do México. Dois anos depois, o rei Carlos I (e primeiro dos Áustrias) emite uma ordenança, determinando que, na América, as novas povoações obedeceriam a uma planta regular, “a cordel y regla” (em linhas retas), expandida a partir de uma praça central vazia, em torno da qual se assentariam as instituições do poder, “dexando tanto compás abierto, que aunque la población vaya en gran crecimiento, se pueda siempre proseguir y dilatar en la misma forma”. É o grande sonho inclusivo da Monarquia Católica: hierarquia, centralismo e ordem.
A ideia de uma planta urbana ortogonal, por oposição à organicidade topográfica e tortuosa da cidade medieval, evoca tanto modelos clássicos da antiguidade romana, quanto as novas cidades espanholas dos Reis Católicos do final do século 15, quanto, até mesmo, os espaços cerimoniais das próprias cidades mesoamericanas. No entanto, a ideia de um projeto prévio, medido e equilibrado enquanto desenho, é obra renascentista. Cinquenta anos depois daquela primeira ordenança real, uma outra, de Felipe II, será tão minuciosa que jamais viria a ser aplicada integralmente em cidade alguma.
Em 1535, a fundação de Lima inaugura o desenho da malha expansiva rigorosamente quadriculada ― na cidade do México e em Puebla, as quadras ainda eram retangulares. A “traza en cuadrícula” (posteriormente consagrada como “quadrícula espanhola”) era um modelo até então desconhecido na Europa. Hoje para nós, é absolutamente familiar, a ponto de reconhecê-lo como “natural” quando pensamos em cidades. Mesmo cidades limitadas por muralhas, como São Domingos, Montevidéu, Trujillo e até mesmo a “irregular” Cartagena de Índias, seguiriam o mesmo princípio estruturante. Para as novas urbes hispano-americanas, a partir de então, o protocolo de autorização da sua fundação incluía seu traçado prévio, seguindo aquele modelo regular, outorgado diretamente pela Coroa.
O tipo ideal, evidentemente, não tem estatuto de universalidade. E aqui já começam as “transculturações”. O mesmo plano ortogonal de Alonso García Bravo para o Zócalo e seus arredores, na cidade do México, sucumbia ao emaranhado indígena na sua imediata periferia. Ao longo de toda a América hispânica, mesmo nos bairros de índios e nos povoados reducionais (ou seja, aqueles em que os índios eram concentrados para ser melhor evangelizados) estabelecidos em concordância com a “traza en cuadrícula”, o valor simbólico dos espaços assumia, para seus ocupantes, a lógica indígena das organizações dualistas e da sacralização cerimonial dos espaços abertos. A razão planificadora e centralista do Renascimento parece encontrar, na estranheza do Outro, o limite da sua presumida suficiência, ainda que, aparentemente, ordene a “infraestrutura” da morfologia.
Em que pese a famosa distinção interpretativa cunhada por Sérgio Buarque de Holanda no capítulo IV de Raízes do Brasil entre semeadores e ladrilhadores, para caracterizar, respectivamente, portugueses e espanhóis quanto ao estilo das suas empresas coloniais, cabendo aos primeiros uma índole mais desorganizada (Sérgio Buarque prefere mesmo a qualificação “desleixada”), francamente não planificadora, Ángel Rama, de sua parte, insiste que o projeto ibérico na América Latina expressa, como essência da colonialidade, o “sonho de ordem” encarnado na abstração retilínea do plano urbano. Essa cidade latino-americana seria, antes que tudo, um “parto da inteligência” (A cidade das letras, 2015: p. 21) e não, como no mundo português de Sérgio Buarque, resultado casual de um acordo prudente com a contingência.
Mais do que isso, a cidade americana (também irônica e curiosamente categorizada, a partir da metrópole, como cidade indiana) expressaria, dessa forma, para Rama a independência da ordem dos signos, o primado do plano, do traçado da ordem manipulatória do centralismo monárquico, de modo que Rama chega a sintetizar que, nessa perspectiva, a ordem existe antes da cidade existir. Nessa quimera da razão e do poder, as formas do signo e do discurso assumem uma função normativa. A partir de então, a escritura e o tabelião passam a ser suas figuras culturais chave. “Dar fé”, que corresponderia a trazer um fato da ordem do cogito para a ordem da efetividade das relações, significava, antes de mais nada, registrar em documento. Todo rito fundacional de lugar, território e propriedade era regido pela fé dada na (e por meio da) palavra escrita. Tal tecnologia do intelecto, elevada à condição de regente das coisas, ambicionará a condição de perpetuidade:
“(…) o signo ostenta uma perenidade que é alheia à duração da coisa. Enquanto o signo existe, está assegurada sua própria permanência. (…) Fica consagrada a inalterabilidade do universo dos signos, pois eles não estão submetidos ao decaimento físico, mas somente à hermenêutica” (A cidade das letras: 28).
A cidade colonial (e seu intrínseco aparato escriturário) se assentaria e se reproduziria, assim, sobre um corpo de operadores que fazia funcionar aquele sonho de ordem que produziu, na América, essa característica experiência burocrática, irmã siamesa do exercício do poder. Tal poder, operado e mediado pelos artífices do logos (clérigos, juristas, advogados, escrivães, cronistas, escreventes…), dispensados da “servidão das circunstâncias” (:38), outorgará à cidade a condição tanto de sede administrativa quanto de lugar da produção de discurso, ambos entrelaçados, e de onde, por meio de ordenanças, cédulas e provisões, se repartirão mercês e privilégios, já que conformado um “cordão umbilical escriturário” (:53) com a sede metropolitana. Essa é a cidade letrada de Ángel Rama, seus instrumentos e seus agentes. A partir daí, Rama lançará suas explorações históricas sobre as especificidades da produção intelectual e literária na América Latina. Cabe, no entanto, se perguntar se essa chave dispositiva dá conta da ordem geral dos fenômenos ou se é preciso, como já foi aventado, ponderar o Rama da cidade letrada com o Rama da transculturação.
Aqui nos afastamos mais decididamente da terminologia do crítico uruguaio. Rama não faz muita distinção entre as ideias político-administrativas dos dois primeiros Habsburgos (a casa dos Áustrias, da Espanha) ― em especial no que viemos nos referindo como um projeto renascentista ― e o ambiente intelectual que se consolidou na metrópole e se espraiou com outras reverberações para a colônia a partir do período final do “siglo de oro”, ou seja, a partir do reinado de Felipe III, que se iniciou na virada do século 16 para o 17. À diferença da terminologia que vínhamos utilizando, para Rama o reconhecimento da cidade letrada leva a rubrica genérica de “cidade barroca”. E aqui lançamos mão de outras interpretações latino-americanas, exatamente para tratar de uma certa especificidade cultural, mesmo que ela continue comportando as linhas mestras até agora insinuadas da mentalidade da Monarquia Católica: o barroco.
Num dos seus polêmicos vaticínios, o escritor e crítico cubano José Lezama Lima afirma que “depois do Renascimento, a história da Espanha passa para a América, e o barroco americano se ergue com superioridade” (“La curiosidad barroca”. In: La expresión americana: 79-106. México D. F.: Fondo de Cultura Económica, 1993, p. 100 ― o ensaio é, originalmente, de 1957). Para Lezama, o que primeiro propicia esse protagonismo, constituído ao longo do século 17, é a exuberância da natureza americana e da sua diversidade, que, contrariamente ao ascetismo de recursos da Península Ibérica, dispõe para o uso arquitetônico, mobiliário e imagético uma pletora de materiais tanto quanto de referentes. Se o barroco americano comporta um “impulso voltado para a forma, na busca da finalidade do seu símbolo” (idem: 83), tal impulso será regido por uma tensão, na qual o hispânico (ou, genericamente, o ibérico) tem de se confrontar com o nativo e com o africano diaspórico, a quem cabem, mais intimamente, dar forma àqueles materiais e lançar mão daqueles referentes. Mais que apenas escritural, a cidade barroca se contaminará com uma profusão imagética.
Mesmo o estrito âmbito das letras parece então se contagiar com um outro gesto, que, nesse caso, Lezama encontra exemplarmente manifesto em El divino Narciso, de 1689, de Sor Juana Inés de la Cruz, em que a irremediavelmente “mal resolvida” freira mexicana (verbi gratia Octavio Paz e suas armadilhas da fé) justapõe o rito asteca de Huitzilopochtli ao rito católico da comunhão. Nessa perspectiva, o barroco ― designação a princípio pejorativa, e que só vai receber uma valoração positiva no final do século 19 ― acaba sendo aquilo que distorce o equilíbrio ordenado renascentista, para fazer caber dentro da forma a polissemia das misturas. Se a aposta renascentista instaurara idealmente a independência da ordem dos signos, o barroco irá inflacionar o signo com a desmesura abundante do significado. Antes que uma estética do império do logos, ele expressará, para evocar o título do ensaio de Lezama, uma “estética da curiosidade”, na qual o logos passa a conviver com o mythos ― tanto o de uma mística católica quanto o nativo.
Ángel Rama (Foto: Divulgação)
Ángel Rama (Foto: Divulgação)
Assim, por oposição ao barroco europeu, caracterizado por Werner Weisbach (1921) como a arte da Contrarreforma, o barroco americano será, na interpretação de Lezama, uma arte da Contraconquista (:80). Estamos aqui, plenamente, no horizonte da transculturação. Mesmo que Lezama pareça sucumbir a uma tentação senhorial, análoga àquela de ver o mundo a partir da cidadela letrada, quando atribui ao “senhor barroco” (“detentor de suas riquezas” ― :81) a condição de figura referencial (quase que sujeito sociológico) dessa nova sensibilidade, a capacidade de ação desse “senhor barroco” já parece, desde o princípio, limitada pela contingência de se ver em um mundo onde acaba sendo impossível impor alguma univocidade, pelo simples império daquela abundância semântica. Assim, até mesmo o espanhol Luís de Góngora, “senhor barroco arquetípico” (:90), encontraria no poeta colombiano Hernando Domínguez Camargo, seguidor do cânone gongoriano, “um excesso ainda mais excessivo” (:87).
A “tensão barroca” é aquela que se conforma, então, sob o signo da mestiçagem, tendo-se em conta que “mestiçagem” aqui é o nome da relação, e não o nome da coisa. Para outro cubano, Alejo Carpentier que, à diferença de Lezama, preferia inspirar-se no catalão Eugeni d’Ors (1930) para defender que o barroco seria não um estilo, mas uma “constante humana” (“O barroco e o real maravilhoso”. In: A literatura do maravilhoso: 109-129. São Paulo: Vértice, 1987, p. 114), é a proposição anterior ao revés que assinala o termo do universal: “toda simbiose, toda mestiçagem, engendra um barroquismo” (idem: 121). Citemos Serge Gruzinski, ao reportar-se ao caso mexicano, para ilustrar a mestiçagem sob a clave da relação, e não da coisa:
“Os índios tratavam as novas imagens da mesma forma que as estátuas e as pinturas pré-hispânicas. O olhar que dirigiam aos cristos, madonas e santos refletiam um modo de ver solidamente enraizado havia séculos, e até mesmo milênios” (O pensamento mestiço. São Paulo: Companhia das Letras, 2001, p. 293).
O barroco latino-americano será, por excelência, o campo de exercício da expressão plástica, musical e arquitetônica em que sobretudo os mestres e artífices, gente, portanto, à margem da estrita cúpula da cidade letrada, ingressam para produzir um artesanato e um discurso voluptuoso, sensual, ambíguo e retorcido. É o espaço de mulatos e aleijadinhos, de índios ladinos como o cronista aymara Juan de Santa Cruz Pachacuti Yamqui Salcamaygua e o cronista quéchua Felipe Guamán Poma de Ayala, dos indígenas mestres pintores das escolas cusquenha, quitenha e potosina. O barroco é, antes que tudo, o espaço de indeterminação aberto pela mestiçagem, é o que subverte a própria ideia espanhola de “casta”, assentada sobre a “pureza de sangre”, para transformá-la em possibilidade combinatória aberta, como o expressam as pinturas mexicanas de castas que, a partir da segunda década do século 18, retratam, cada vez mais numerosamente, as muitas mestiçagens familiares das gentes. Em lugar do “castizo” espanhol, que se remete à marcação da origem, abundam agora as muitas “castas”, que instauram novas “origens”, tanto quanto, por sua própria inflação, as borram. O sonho de pureza só persistirá como cavalo de batalha simbólico para os que pretendem, obstinadamente, fazer valer, a seu modo (qual seja, em modo senhorial ― ou como seu simulacro), a lógica do privilégio. Em lugar da pureza identitária, nuestra América prova então a proliferação relacional dos entrecruzamentos, onde se conjugam tanto tensão quanto abertura.
Nesse mundo americano, as misturas são irremediavelmente frágeis e instáveis, mas ainda assim ― e isso talvez seja o mais relevante ―, incontroláveis por parte de uma razão soberanamente ordenadora, responda ela pelo nome de “dominação” (colonial) ou mesmo pelo nome de “identidade”. Esse é o espaço dinâmico da transculturação. Nesse mundo, só uma mistura supera outra mistura. E isso, como consequência, não garante a imposição do controle de uma significação unívoca, tanto quanto a validade inequívoca de um cânone: o misturado (ou o heterogêneo, para falar em termos mais precisos, como o defendeu o crítico peruano Antonio Cornejo Polar) não produz “tradição” ― “tradição” no sentido da autoridade do cânone. A única “tradição” que resta é a própria mistura reiterada como tal, como processo, e não como coisa. Mais uma vez Serge Gruzinski:
“As mestiçagens manobram, na verdade, com tal número de variáveis, que confundem o jogo habitual dos poderes e das tradições, (…) escapolem das mãos do historiador que as persegue ou são menosprezadas pelo antropólogo amante de arcaísmos” (:304).
O barroco, como metáfora da complexidade latino-americana, é, portanto, aquilo que subverte, diante do sonho de ordem da cidade letrada, tanto a suposição de uma dominação categórica quanto a racionalidade colonial das purezas, das marcas de origem e da identidade como atributo fundador da socialidade. Ao defrontar-se (antes que tão apenas confrontar-se) com a alteridade, seu espírito é inflectido pela relacionalidade e pela indeterminação do devir, olhando-se então no espelho daquele princípio regente da socialidade ameríndia que Lévi-Strauss caracterizara como o da “abertura ao outro” (História de lince. São Paulo: Companhia das Letras, 1993), para conformar o que Lezama chamara de “protoplasma incorporativo do americano” (“Sumas críticas del americano”. In: La expresión americana: 157-182, p. 177), e que, mais recentemente, Arturo Escobar, um analista do Projeto Modernidade-Colonialidade-Decolonialidade, adjudicou ao contexto das nossas (por que não?) ontologias relacionais (Territories of difference: place, movements, life, redes. Durham: Duke University Press, 2008), aquelas que têm como horizonte estratégico ver-se diante de outros, e não apenas diante de um si-mesmo. Relações, e não identidades.
A experiência decolonial de fato potencialmente subversiva na América Latina não é a experiência da emancipação do indivíduo, sob o pretexto de alguma pureza identitária e isolacionista do self (ou de um “étnico” transcrito como utilidade agregada ao ego individual liberal), mas a experiência muitas vezes imponderável do encontro e da mistura dos muitos. Claro, ela pode, ainda assim, pretender ser ordenada pelo código ibérico ― e igualmente inclusivo, como já nos sugeria Richard Morse ― da hierarquia e do privilégio. Mas pode também se insinuar sob o compromisso da solidariedade, de estar em relação, e a partir daí sugerir outra ordem para além da lógica do privilégio e das tenazes da hierarquia. É essa insinuação que abre caminho para uma utopia civilizacional ainda apenas esboçada, e que hoje parece repousar em silêncio, aguardando quem lhe retome os fios soltos de uma história não terminada, mas potente como grande impulso cultural.
A história latino-americana não começa naquele sonho de ordem, naquele fiat de descobrimentos e conquistadores. Se ela já estava antes ― não, necessariamente, como “consciência histórica” (no sentido que lhe precisou Hans-Georg Gadamer) para seus próprios povos originários ―, ela seguirá efetivamente seu curso no depois, para além dos sonhos de pureza, e já no transe dos encontros desencontrados. Recusar tal reconhecimento, em nome das grandes razões ordenadoras (sejam positivistas, sejam liberais-utilitárias), pode ser não mais que insistir num sonho um tanto distante das contingências.
O presente texto foi preparado como base para uma aula ministrada na 11ª Escola de Verão do Instituto Latino-Americano de Estudos Avançados (ILEA), da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, em 14 de janeiro de 2020.

Ricardo Cavalcanti-Schiel é antropólogo, professor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul

(Publicado originalmente no site da Revista Cult)

Charge! Folha de São Paulo

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domingo, 12 de janeiro de 2020

Michel Zaidan Filho: Entre a utopia e a resignação






                                     O   volumoso e bem documentado livro de Rolf Wiggershaus sobre a "Escola de Frankfurt", enriquecido pelo acesso do autor à documentação pessoal dos principais membros dessa escola, põe em evidencia dois aspectos fundamentais da crítica cultural ao capitalismo tardio, feita pelos filósofos frankfurtianos: de um lado a impotência do pensamento sociológico e político diante da sociedade atual: do outro, a necessidade de pensar ou teorizar o "inteiramente o outro", o não-idêntico, o particular.

                                   O biógrafo mais recente desse movimento filosófico parece estabelecer uma certa divisão de trabalho entre especializações como: o filósofo, o administrador, o humanista e o revolucionário. Cada um dos nomes mais relevantes do núcleo duro da "Escola", como Marcuse, Adorno, Horkheimer e Fromm encarnaria um tipo específico dentro do movimento. O primeiro seria o revolucionário: o segundo o filósofo cultural e crítico: o terceiro, o eficiente e autoritário administrador. E o último, o humanista. Neste rico arco de especializações, relevam os dois aspectos supracitados: a recusa a reconhecer uma teoria adequada para o capitalismo tardio (Adorno): e a preservação    do impulso utópico, crítico e transformador   da   teoria crítica. (Marcuse).

                                    A menção desses dois polos da reflexão frankfurtiana tem, neste momento, a ver com o debate que então se impôs na universidade sobre o papel da ciência e da filosofia   em   torno da chamada em torno da "crise do mundo do trabalho". Aí, as posições se   diferenciam entre a mera descrição ou constatação, a título de uma fenomenologia do emprego ou subemprego ou desemprego estrutural (Ricardo Antunes) ou prescrevem um novo movimento social emancipatório ou contra hegemônico (Diego Nieto, Fernanda Lira), com a refuncionalização do movimento sindical, na sua tentativa de aproximação com as lutas pelo reconhecimento. A nova morfologia da força de trabalho, na era digital, que inclui tanto o trabalho "on demand" como os "crowdworker", ou seja os trabalhadores de aplicativos ou plataformas digitais ( os uberizados, os entregadores de comida a domicilio, os dos Call Center) constituiriam uma nova modalidade de "servidão" ou "escravatura" voluntária, à margem de regulamentação, direitos e proteção social, tornando-se um novo exército de operários informais que contribuíram muito para o nível de exploração selvagem da mão-de-obra nas grandes cidades do país. Em muitos casos, reforçados pela ideologia do "empreendedorismo" e a religião. A questão que se coloca é, então, o que fazer com essa massa heteróclita de trabalhadores? Seriam eles a base de um novo movimento de emancipação social, sobretudo em países periféricos, como pensam alguns? Ou esse quadro tornaria mais difícil o esforço da organização e politização desse tipo de obreiro, nas novas condições de fragmentação do exercício do trabalho e da própria identidade comum desses trabalhadores?

                                   Ante a impotência de uma nova teorização social   que dê conta dessa complexa morfologia e de suas virtualidades revolucionárias, para além da mera constatação ou descrição, o que resta ao filósofo ou pensador diante dessa triste realidade? -  A mera   aceitação do "fim do emprego" e a conformação a esse novo "paradigma" ou a busca de um novo projeto de luta social e de sociedade   que seja capaz de alargar o conceito de "sujeitos da transformação", para além da antiga classe operária fordista e as lutas redistributivas do velho movimento sindical? É aqui onde se dividem os analistas. Há os que, como Ricardo Antunes, são totalmente contrários a pensar a aproximação dos trabalhadores com os movimentos sociais identitários e o chamado "sindicalismo cidadão". Segundo ele, aproximação que desviaria o foco da luta de classes para outras questões não-revolucionárias e estranhas aos interesses dos trabalhadores. Acha Antunes que a morfologia do proletariado, na época digital, levaria a um nova tipologia de organização, tendo como base a enorme diversidade dos trabalhadores de aplicativos e plataformas digitais. Já outros acreditam na possibilidade de um diálogo com os novos movimentos identitários, para formar uma nova frente de lutas sociais anticapitalista. O fato é que estamos carentes de uma nova teoria que  a faça com que a nossa sociedade  tome consciência de si.

Michel Zaidan Filho é filósofo, historiador, cientista político, professor titular da Universidade Federal de Pernambuco e coordenador do Núcleo de Estudos Eleitorais, Partidários e da Democracia - NEEPD-UFPE