pub-5238575981085443 CONTEXTO POLÍTICO.
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terça-feira, 14 de abril de 2020

Poderes obscuros


Biografia narra a ascensão de Mussolini, morto há 75 anos, a líder do fascismo e faz refletir sobre a ameaça presente da tirania
Manuel da Costa Pinto 01abr2020 01h12
 
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Benito Mussolini, 40º primeiro-ministro da Itália, em 1922 Topical Press Agency/Wikimedia Commons
Scurati, Antonio M, o filho do século
TRAD. Marcello Lino
Intrínseca • 816 pp • R$ 79,90
Em 1981, o ensaísta e crítico literário George Steiner — que morreu em fevereiro deste ano — publicou o romance The portage to San Cristobal of A.H. (“O  transporte para San Cristobal de A.H.”). As iniciais do título correspondem a Adolf Hitler — que teria sobrevivido à Segunda Guerra e, localizado na América do Sul por caçadores de nazistas, é perseguido e capturado na selva amazônica, sendo julgado ali mesmo devido a seu estado de saúde precário. O romance causou furor e protestos, redobrados quando, no ano seguinte, uma adaptação teatral deu corpo e voz ao Führer. Há inúmeras obras ficcionais que encenam a vida de Hitler, na literatura e no cinema. Mas a narrativa de Steiner, além de inserir Hitler no mainstream artístico-intelectual, desafiava o mandamento formulado por Emil Fackenheim, conhecido como “teólogo do Holocausto”, de “não conceder a Hitler nenhuma vitória póstuma”, uma vez que o livro de Steiner termina dando a última palavra ao ditador, no discurso em que se defende diante do tribunal.
Agora, outro romance traz no título a inicial de um ditador sobre o qual pesam interditos éticos semelhantes: M, o filho do século, de Antonio Scurati. O “M”, como fica claro de saída, refere-se a Benito Mussolini, o líder fascista que ascendeu ao poder em 1922, aliou-se a Hitler, levou a Itália à Segunda Guerra Mundial e, melancolicamente destituído em 1943, ficou  acuado na República de Salò (Estado fantoche sob proteção nazista) até ser morto por membros da resistência em 28 de abril de 1945. Vencedor do prêmio Strega de 2019 com o romance, Scurati declarou, em entrevistas, que só foi possível escrever essa narrativa por causa da queda de um tabu sobre o qual se fundou a República italiana. Durante quase setenta anos, diz o escritor, qualquer discussão ou ação política teria como premissa uma tomada de posição antifascista.
Organizações inspiradas na extrema direita de Mussolini nunca deixaram de existir, mesmo no imediato pós-guerra. E vários partidos, a partir dos anos  1980 e 90, retomaram seus valores sob a máscara do nacionalismo e de uma xenofobia “legitimadas” pela globalização e por um sistema político que, em vários momentos, usou o escudo do antifascismo como salvo-conduto para a corrupção.
Cinismo despudorado
Tudo isso é arquiconhecido e está na gênese de partidos separatistas como a Liga Norte. O tabu a que se refere Scurati diz respeito menos a questões políticas e institucionais do que a um clima de cinismo despudorado. Um clima que hoje permite a Matteo Salvini — político da Liga que alcançou o papel mais relevante no Executivo entre 2018 e 2019 — fazer pronunciamentos em que parafraseia Mussolini. Ou que o movimento estudantil seja dominado por extremistas de direita, tendo como referência a CasaPound — agremiação social que se apropria de métodos de esquerda e do éthos anarquista: nasceu com a ocupação ilegal de um imóvel em 2003, tem como presidente o líder da ZetaZeroAlfa, uma banda de rac (Rock against communism, ou “Rock contra o comunismo”), e hoje se espalha por mais de cem sedes com paredes cobertas por lemas e imagens do Duce (além, obviamente, de portar um nome em homenagem a Ezra Pound, poeta norte-americano que viveu no país e foi entusiasta do fascismo). Enfim, se no século passado era tolerável se declarar nostálgico do fascismo, só na Itália deste milênio é possível cultuar Mussolini em praça pública e escarnecer dos antifascistas. 

Só na Itália deste milênio é possível cultuar Mussolini em praça pública e escarnecer dos antifascistas

Paradoxalmente, foi esse ambiente que rima neofascismo com cultura pop, a calva de Mussolini com skinheads, que propiciou o surgimento de um livro claramente antifascista como M, o filho do século. A nota introdutória diz: “Fatos e personagens deste romance documental não são fruto da imaginação do autor. Cada acontecimento, personagem, diálogo ou discurso aqui narrado é, ao contrário, historicamente documentado e/ou fidedignamente testemunhado por mais de uma fonte”. Ao longo de mais de oitocentas páginas, temos uma sucessão de momentos-chave da história da Itália sob Mussolini descritos por um narrador que, a cada capítulo, se coloca do ponto de vista de uma personagem, com indicação de data e localidade do episódio. Importante: o volume começa em março de 1919, com a fundação dos Fasci di Combattimento (grupos paramilitares que estão na origem do movimento fascista), e termina em janeiro de 1925, com um discurso de Mussolini como primeiro-ministro para o plenário do Montecitório (sede da Câmara dos Deputados). Os períodos sucessivos serão abordados em outros dois volumes já anunciados pela editora italiana Bompiani.
A imensa maioria dos capítulos, como era de se esperar, é narrada do ponto de vista de Mussolini. Vários outros partem da perspectiva de asseclas de expressão local ou de personagens célebres, como o socialista Giacomo Matteotti e o poeta decadentista Gabriele D’Annunzio — que, antes mesmo da ascensão do Duce, chegou a liderar um delirante governo de feição fascista em Fiume (atual Rijeka), cidade da Croácia então reivindicada pela Itália. E, reforçando o caráter de “romance documental” de M, o filho do século, Scurati insere, entre cada capítulo, a transcrição de trechos de notícias de jornal, manifestos partidários, discursos e cartas. 
O narrador de Scurati se coloca em cena com cada personagem, mas nunca em seu lugar. E adota o presente do indicativo como tempo verbal dominante — procedimento semelhante, por exemplo, ao usado por Emmanuel Carrère em Limonov (livro que, aliás, acompanha a trajetória de um ativista russo com muitas afinidades com o “fascismo eterno” de que fala o célebre ensaio de Umberto Eco). Com isso, a escrita ganha um sentido de imediatez teatral ou cinematográfica. 
Romances narrados retrospectivamente, nos quais predominam verbos no pretérito, em geral conduzem o enredo para um fim que nós, leitores, ignoramos, mas que o narrador parece dominar desde o início. Aqui, a situação se inverte: todos, inclusive o autor, já sabem onde a história vai dar, mas o narrador, imerso no tempo presentificado, abdicando da plausível onisciência, se limita ao puro acontecimento, dramaticamente encerrado em si mesmo. 
Esse procedimento formal, mais do que simples opção estilística, dá espessura linguística à incerteza permanente que caracteriza o nascimento do fascismo e realça os momentos em que o movimento parece liquidado, mas consegue se reerguer, no momento seguinte, de modo tão inacreditável para seus protagonistas quanto para os leitores. Dito isso, existe uma tese que atravessa a encenada falta de onisciência do narrador: para Scurati, o fascismo nasce da aliança entre a vontade de potência de Mussolini e as pulsões de morte de uma legião mítica de ex-combatentes da Primeira Guerra Mundial, os Arditi, que durante o conflito puseram seu apetite pela violência a serviço do Exército italiano — mas que, ao fim da guerra, voltaram a ser o que sempre foram: delinquentes e assassinos.
É o caso de Ferruccio Vecchi: “A seu respeito, circulam relatos inverossímeis e extraordinários: ferido mais de vinte vezes, diz-se que tomou de assalto sozinho, lançando granadas, uma trincheira austríaca, e trepou com a mulher do coronel enquanto ela dormia ao lado do marido”. Ou de Albino Volpi, um dos “jacarés do Piave” especializados em atravessar esse rio a nado para apunhalar sentinelas na outra margem; mais tarde, ele seria responsável por jogar uma granada sobre a multidão que comemorava o triunfo socialista após o fiasco na primeira eleição disputada pelos fascistas, em 1919 (quando nomes ilustres como o poeta futurista Marinetti e o maestro Toscanini foram candidatos da extrema direita). Ou ainda Domenico Ghetti: “Anarquista, exilado na Suíça com Mussolini durante a juventude, assassinou padres, é desonesto, violento, conspirador, desvalido”.  
Em um dos mais sinistros capítulos do romance, esses Arditi estão reunidos numa trattoria com o futuro Duce, que tem de conter os impulsos homicidas de seus recrutados quando, na sala ao lado, um grupo de trabalhadores do jornal socialista Avanti! entoa o hino Bandiera rossa trionferà! (“A bandeira vermelha triunfará”) e chama Mussolini de traidor. 
Ex-diretor do Avanti!, Mussolini fora expulso justamente por discordar da postura pacifista dos socialistas na Primeira Guerra Mundial e fundara o Il Popolo d’Italia, periódico no qual, além de se mostrar “apóstolo sincero e apaixonado pela intervenção bélica” (segundo relatório policial transcrito por Scurati), conclama a “multidão de desajustados” dos Arditi, que vagam pelas ruas como “minas errantes”, para formar os Fasci di Combattimento.
Mas as milícias fascistas só terão seu triunfo em 1922, quando, após incontáveis episódios de vandalismo e durante uma crise na formação do gabinete de governo no sempre tumultuado sistema político italiano, acontece a “marcha sobre Roma”. É o momento que sintetiza o livro. Mussolini, com sua tática de “dosar, diluir, dilatar e, por fim, negociar em uma posição de força”, prega em público uma solução parlamentar para o impasse. Em surdina, porém, insufla o ímpeto golpista dos Fasci di Combattimento, que haviam se transformado nas temidas esquadras de camisas negras, disseminando o terror. Na iminência da chegada dos socialistas ao poder por via institucional, eles precipitam, em 27 de outubro de 1922, uma mobilização que, partindo de Florença e Cremona, arrasta milicianos de outras cidades e atinge Roma no dia seguinte.
Enquanto isso, Mussolini estava no teatro Manzoni, de Milão, assistindo ao drama O Cisne, de Ferenc Molnár, com a amante Margherita Sarfatti — sofisticada crítica de arte, judia da alta burguesia casada com um advogado socialista, única mulher com quem Mussolini não manteve as tantas relações sexualmente predatórias e misóginas descritas no livro. É só quando a marcha sobre Roma se torna um putsch irreversível que ele parte para a capital, onde o rei Vittorio Emanuele 3º, acuado pelos camisas negras, lhe entrega o cargo de primeiro-ministro.
Mas ainda não é a ditadura. Em seu primeiro pronunciamento diante da Câmara dos Deputados, em novembro de 1922, Mussolini faz o célebre discorso del bivacco (“discurso do acampamento”) diante de parlamentares apavorados: “Eu poderia ter obtido uma vitória acachapante. Impus limites a mim mesmo. […] Com trezentos mil jovens impecavelmente armados, prontos para tudo e esperando quase misticamente uma ordem minha, eu poderia castigar todos aqueles que difamaram e tentaram jogar o fascismo na lama. Eu poderia fazer deste plenário surdo e cinza um acampamento exíguo” — e aqui, infelizmente, a ótima tradução de Marcello Lino põe a perder a força metafórica do original, pois Mussolini ameaça fazer do plenário um “acampamento de legionários” (bivacco di manipoli). 
Chefe do crime
A ocasião não tardará. Em 1924, em represália a acusações de corrupção e fraude eleitoral feitas pelo deputado socialista Giacomo Matteotti, sicários fascistas o sequestram e assassinam com conhecimento do primeiro-ministro. Em vez de assinalar o fim do regime, a reação ao famigerado “Delitto Matteotti” leva o Duce a desafiar o Parlamento a processá-lo: “Se o fascismo foi uma organização criminosa, eu sou o chefe dessa associação criminosa!”. Ninguém ousa levantar a voz. Estava aberto o caminho para a ditadura plena, que certamente será tema do próximo volume de Scurati. 
Nesse primeiro volume da trilogia, o ex-socialista Mussolini funda o fascismo menos como um projeto ideológico distinto e inovador do que como pura e simples ideologia do poder: ele mesmo se proclama “o homem do depois”, que reina sobre o caos que fomentou, mobilizando primeiramente os instintos degenerados de criminosos de guerra e, em seguida, a insatisfação de italianos “enjoados de si mesmos”, fartos de “verem seus defeitos representados no Parlamento”.
Para leitores brasileiros, é inevitável pensar na semelhança com o que acontece hoje. De um lado, o populista que afirma que os fascistas são um “antipartido” que faz “antipolítica” para salvar a Itália do bolchevismo, mas negocia astuciosamente nos bastidores enquanto mantém à espreita uma guarda pretoriana pronta para transformar o Parlamento numa caserna. De outro, o capitão e deputado do baixo clero que, em meio à salvaguarda para milicianos e um clã que ameaça enviar um soldado e um cabo para fechar a Suprema Corte, se apresenta como o messias antissistema que salvará o Brasil do comunismo. 

Para leitores brasileiros, é inevitável pensar na semelhança com o que acontece hoje

Mussolini, entretanto, é uma personagem arquetípica — tanto pela envergadura intelectual (inexistente em sua contrafação) quanto pela capacidade de produzir o mal. Nesse sentido, só é mesmo comparável a Hitler. Scurati correu o risco de incorrer na mesma infração ética apontada por intérpretes do Holocausto e do ditador alemão: inserir Mussolini na ordem natural das coisas, produzir alguma forma de empatia pela compreensão do caráter patológico de sua obsessão pelo poder. Mas sua minuciosa reconstituição de cada gesto do ditador italiano, de cada brutalidade ou traição cometidas contra adversários, aliados e mulheres pode ter outra conotação. 
O teólogo Emil Fackenheim, citado no início deste texto, dizia haver uma “desconexão radical entre a natureza humana e a natureza de Hitler”. Com isso, talvez tenha nos obrigado, involuntariamente, a colocar genocidas como Hitler e Mussolini não numa espécie de santuário maligno, apartado do gênero humano, mas como núcleo obscuro de nossa natureza. É, aliás, o que propôs o próprio Steiner em Linguagem e silêncio. E é o que faz Antonio Scurati nesse magnífico M, o filho do século.

(Publicado originalmente no site da Quatro Cinco Um, a revista dos livros)

Charge! Laerte via Folha de São Paulo

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Charge! Montanaro via Folha de São Paulo

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segunda-feira, 6 de abril de 2020

Ricardo Antunes e o proletariado em tempos de pandemia

  Tarso de Melo

Ricardo Antunes e o proletariado em tempos de pandemia

O sociólogo e professor da Unicamp Ricardo Antunes (Foto: Unicamp/Divulgação)

As medidas econômicas necessárias para lidar com os efeitos da pandemia, em qualquer país, não são simples. E há apenas uma certeza quanto a elas: a sua eficiência, a sua chance de dar bons frutos – salvar a vida da maioria da população não apenas do vírus, mas da fome – vai depender profundamente do terreno com que se deparar. É o que éramos até aqui que vai definir o que poderemos ser durante e depois da pandemia.
Nos países em que a maior parte dos trabalhadores vivia ainda num ambiente de formalidade, resguardado por direitos e contratos, tais medidas serão mais eficientes, porque o socorro do Estado se dará dentro de estruturas mais consolidadas. No entanto, quando o vírus se depara com uma realidade em que metade dos trabalhadores se divide entre a informalidade e o desemprego, seus efeitos certamente serão mais devastadores e, consequentemente, as medidas contra a pandemia serão mais difíceis.
É assim que o Brasil vai enfrentar o coronavírus: com 50 milhões de pessoas que não estão protegidas por um contrato de trabalho. E ainda mais: com uma outra parcela, provavelmente de igual tamanho, de trabalhadores formais em condições absolutamente precárias, porque o movimento das “reformas” nos últimos anos foi no sentido de deixar o emprego formal cada vez mais parecido com a informalidade, “flexibilizando” direitos e, assim, deixando os trabalhadores mais vulneráveis às crises.
Portanto, para entender como os trabalhadores vão enfrentar a pandemia e, mais ainda, como estarão ao final dessa jornada trágica, é muito importante entender o que vinha sendo gestado, em termos de precarização das condições de trabalho, nos últimos anos. Passa por aí, obviamente, grande parte da angústia que tantos de nós sentimos neste momento, diante do risco de demissão, do corte de salários, da impossibilidade de buscar emprego, da paralisação das atividades informais e do sorriso cretino dos piores patrões que aproveitam o momento para demitir trabalhadores.
Poucos autores podem nos ajudar a entender o arco dessas questões, do ponto de vista dos trabalhadores, como o sociólogo Ricardo Antunes, professor da Unicamp. Sua obra, há quatro décadas, cumpre, com densidade teórica e compromisso de classe, a função importantíssima de pensar a nossa realidade à quente, no meio do furacão de transformações que a classe trabalhadora, não apenas no Brasil, tem enfrentado nas últimas décadas. Mobilizando em seus textos conhecimentos de diversas áreas, Antunes atravessa os debates da economia política, da filosofia, da sociologia, da história, do direito, da saúde, da política, na melhor tradição marxista, para criticar e esclarecer as formas assumidas pelo enfrentamento entre capital e trabalho.
Com livros como Classe operária, sindicatos e partidos no Brasil (1982), A rebeldia do trabalho (1988), Adeus ao trabalho? (1995), Os sentidos do trabalho (1999), A desertificação neoliberal do Brasil (2004), O caracol e sua concha (2005) e O continente do labor (2011), entre diversos outros, individuais e coletivos, traduzidos para outras línguas, frutos a um só tempo de atividade docente, pesquisa e militância política, que têm influenciado diferentes gerações de pesquisadores, a obra de Antunes é indispensável para entender como chegamos a esse quadro de profunda vulnerabilidade dos trabalhadores diante das decisões de um governo e das investidas de um vírus. Digo isso para destacar, aqui, seu livro mais recente, O privilégio da servidão: o novo proletariado de serviços na era digital, lançado pela Boitempo em 2018, e também a série Riqueza e miséria do trabalho no Brasil, coordenada por Antunes para a mesma editora, que teve seu quarto volume lançado recentemente.
O primeiro volume de Riqueza e miséria do trabalho no Brasil foi lançado em 2006, reunindo textos que logo se tornariam referência para os debates sobre os rumos do mundo do trabalho entre nós. De nomes como István Mészáros, Luciano Vasapollo e Márcio Pochmann aos de jovens pesquisadores brasileiros, os autores reunidos por Ricardo Antunes se empenham em municiar não apenas outros pesquisadores, mas os próprios trabalhadores na luta contra o capital, explicando as transformações, refletindo sobre suas consequências e também apontando os caminhos para a resistência, inclusive com pesquisas específicas sobre determinadas empresas e categorias. O segundo (de 2013) e o terceiro (de 2015) volumes ampliaram essa rede, trazendo sempre mais contribuições densas, precisas e combativas para a compreensão dos desafios de nossa época. No conjunto, entre suas muitas qualidades, tais coletâneas cumprem a tarefa de levar a um público mais amplo o resultado de pesquisas acadêmicas, além de antecipar reflexões urgentes sobre os direitos e a organização dos trabalhadores.
O quarto volume da série, lançado em 2019, seguindo essa trilha, é dedicado à reflexão sobre as transformações que o “trabalho digital” impõe aos trabalhadores, que agora, em grande parte, passam a compor uma espécie de “infoproletariado” (ou “ciberproletariado”) em todo o mundo. Os artigos exploram os mais diversos aspectos dessas transformações em curso, passando por temas como a expropriação do tempo de trabalho e de vida por empresas globais, a explosão do trabalho intermitente, as relações de gênero e classe, as novas formas de adoecimento dos trabalhadores, os desafios para a juventude que trabalha, o mito do “empreendedorismo”, as greves e outras formas de luta da classe trabalhadora. A cada novo volume (e a série deve continuar), Riqueza e miséria do trabalho no Brasil se consolida como uma enciclopédia viva e indispensável dos embates entre capital e trabalho em nossa época. Confiram.
É também sobre o trabalho na era digital que escreve Ricardo Antunes em O privilégio da servidão. Num momento tão negativo para a classe trabalhadora, é um grande alento saber que esse livro, cuja segunda edição saiu da gráfica quando a pandemia já se espalhava pelo Brasil, teve sua primeira edição e duas reimpressões esgotadas em menos de dois anos, desde o lançamento em 2018. A meu ver, esses dados, além de confirmarem a importância do livro e da obra de Ricardo Antunes para o debate sobre o trabalho entre nós, é sinal da urgência de sua reflexão.
O privilégio da servidão se divide em quatro partes, que, juntas, cobrem os principais eixos da questão: começa pela investigação do perfil assumido pelo proletariado na era digital; debate o impacto da precarização, da terceirização e da crise do sindicalismo; a dinâmica de conciliações, rebeliões e contrarrevoluções; e conclui questionando o futuro dos sindicatos e do socialismo na América Latina. Em cada um desses eixos, sem fugir do debate teórico de cada ponto, Antunes estuda em detalhes a complexa teia de fatores que afetam – de modo novo, mas igualmente destrutivo – os trabalhadores nessa época em que a servidão é um privilégio.
O título do livro remete justamente ao aspecto mais assustador do trabalho em nossa época de “uberização”, de “contratos de zero hora”, de “intermitência”, em que os trabalhadores são obrigados a oscilar “entre o desemprego completo e, na melhor das hipóteses, a disponibilidade para tentar obter o privilégio da servidão”, porque, nesse quadro de absoluta desproteção, receber a notificação do aplicativo para trabalhar por algumas horas converteu-se num privilégio, numa espécie de sorte para o trabalhador que assume todos os riscos da atividade econômica, mas nada decide sobre ela. Quando seus direitos são derrubados quase por completo, é um privilegiado esse trabalhador que consegue se encaixar nos padrões da “economia dos bicos”, porque nem todos estão aptos a fazer tais “bicos”, seja em razão da qualificação exigida ou da necessidade de ter um carro. (Recomendo, aqui, o filme de Ken Loach, “Você não estava aqui”.)
É claro que ler o livro de Ricardo Antunes e pensar sobre essas questões enquanto o noticiário fala das medidas que o governo está apresentando para “salvar empregos e socorrer informais” durante a quarentena – reduções de salário para uns, benefícios abaixo do salário mínimo para outros – deixa tudo ainda mais dramático, porque os exemplos que saltam à cabeça somam-se aos do livro (e o autor não podia prever que ele circularia junto com o coronavírus!) para não deixar dúvida de que estamos diante de um momento crítico para os trabalhadores e, consequentemente, para toda a sociedade, porque as consequências da precarização transcendem a relação de cada trabalhador com o aplicativo-patrão. Num momento em que a economia do país é obrigada a parar para salvar vidas, isso é ainda mais evidente, porque as autoridades – em especial o presidente e seu ministro da Economia – não escondem que a vida dos trabalhadores e suas famílias será garantida na medida em que o capital permita!
Numa entrevista recente (a Helena Dias, do site Marco Zero), Antunes chamou atenção para uma distinção importantíssima: “essa tragédia [“os trabalhadores cheguem aos hospitais e não tenham atendimento mesmo se contaminando com o coronavírus e contaminando seus parentes”] não é causada pelo coronavírus, ela é amplificada exponencialmente pela pandemia. Porque a tragédia antecede a atual situação”. Sim, o coronavírus aqui se depara com uma situação que vinha sendo gestada há muito tempo, e justamente por isso que as melhores leituras desse momento serão aquelas capazes de entender os movimentos que trouxeram os trabalhadores e toda a sociedade a esse nível de vulnerabilidade. E serão as melhores não pelo que podem dizer a respeito das raízes da nossa tragédia, mas porque é aí que encontraremos uma saída para essa crise que interesse aos trabalhadores, imediatamente – e também para o futuro.
Ninguém sabia que, em 2020, além do enfrentamento com o pior governo da história deste país, teríamos ainda uma pandemia das mais violentas no nosso caminho. Entretanto, de alguma maneira, quem sempre resistiu a essas palavrinhas que prometiam a “modernização” tirando direitos dos trabalhadores – flexibilização, terceirização, pejotização, colaboradores, empreendedorismo etc. – sabia que a luta não seria fácil para as próximas gerações. E nunca foi. Mas talvez venha dessa pandemia, além de tanta tristeza, uma lição: se os trabalhadores não quiserem morrer de vírus ou de fome, devem se dedicar, como classe, em qualquer momento, ao desafio da emancipação e não aceitar nada menos que um novo modo de vida, em que o trabalho faça sentido dentro da vida, e não que a vida perca seu sentido dentro do trabalho.

Tarso de Melo (1976) é escritor e advogado, doutor em Filosofia do Direito pela USP. Autor de Rastros (martelo, 2019), entre outros livros.

(Publicado originalmente no site da Revista Cult)

segunda-feira, 23 de março de 2020

O que é, afinal, um cinema de minorias?

  


O que é, afinal, um cinema de minorias?

Cena de "Temporada", de André Novais Oliveira (Foto: Divulgação)

“Você não vai fazer filme para agradar a minoria com dinheiro público. Todos estão livres para se expressar, contanto que busquem seus patrocínios na sociedade civil”. A frase foi proferida pela nova Secretária da Cultura, Regina Duarte, em entrevista a um canal de televisão. A ideia despertou repulsa ou aplausos, dependendo do grupo social. Mesmo assim, está longe de representar uma ideia única da ex-atriz global. Em 2017, Jair Bolsonaro afirmou na Paraíba: “Deus acima de tudo. Não tem essa historinha de Estado laico não. O Estado é cristão e a minoria que for contra, que se mude. As minorias têm que se curvar para as maiorias”. Ora, quem são, afinal, as minorias e as maiorias no Brasil? De que maneira este conceito pode ser aplicado ao cinema e à produção artística em geral? O que indicam as falas da Secretária e do Presidente, no atual contexto?
A histeria vigente nos meios de comunicação tem criado tamanho ruído na compreensão que talvez valha a pena dar um passo atrás e tentar esmiuçar estes conceitos. Primeiro: quem são os grupos minoritários? Uma resposta comum se encontra na análise quantitativa. As minorias seriam aquelas existentes em menor quantidade, caso em que negros, mulheres e pobres se converteriam em maioria, ao contrário dos homens brancos, privilegiados, os empresários, os CEOs, os grandes diretores de cinema, os produtores que controlam blockbusters. A noção numérica de minoria costuma ser utilizada por grupos conservadores na tentativa de desqualificar a luta pela representatividade. Afinal, se há mais mulheres de acordo com os estudos demográficos, como ousam os levantes femininos se considerarem desprivilegiados? Se há mais negros, por que reivindicariam mais direitos? A sua própria existência em maior quantidade constituiria uma prova darwinista de sobrevivência social, certo?
O argumento pode ser facilmente desmontado pela noção de maioria enquanto aquela detentora do poder – fator que, em qualquer sociedade capitalista ou desigual, concentra-se na mão de poucos. Minorias seriam, então, aquelas cujos direitos não são aplicados, sejam eles os direitos à moradia, à cidadania, ao estudo, à segurança, à cultura e à arte. Minoria seria todo grupo social fragilizado, perseguido por demais grupos organizados, financeiramente estruturados e capazes de impor suas vontades aos demais. Trata-se das mulheres, dos negros, dos indivíduos LGBTQI+, dos indígenas, dos deficientes físicos e mentais etc., ou seja, aqueles que raramente conquistam cargos públicos, cujas vozes não são representadas pelas leis (ou cujas leis protegendo-os não são aplicadas corretamente), cujos corpos não transitam livremente pelas ruas, e cujos rostos não aparecem nos filmes. A minoria seria aquela que, mesmo em grande quantidade, permanece invisível em meio à distribuição de riquezas. Ao mesmo tempo, torna-se indispensável socialmente enquanto minoria: sua força de trabalho, barata e vulnerável, serve a quem quiser explorá-la.
Aplicadas ao cinema, estas noções transmitiriam primeiro a ideia de que o filme minoritário corresponde ao produto de nicho, que agrada a poucas pessoas. É sempre melhor agradar mais pessoas do que agradar menos pessoas, certo? No entanto, este raciocínio constitui uma falácia em si. Os motivos pelos quais um filme agrada mais do que outro dependem tanto de suas qualidades intrínsecas quanto de circunstâncias externas à obra, a exemplo do número de salas em que se encontra, o aparato de marketing de que dispõe, a quantidade de semanas que permanece em cartaz, o elenco, as críticas, a adequação aos temas do momento. O fato de uma comédia popular atingir dois milhões de espectadores, por exemplo, não significa que ela agrade à maioria, ao contrário de um filme que conquistou dez mil pessoas. Esta quantia mede o número de ingressos vendidos, não a taxa de satisfação pós-sessão.
A minoria poderia ser proporcional, de acordo com a média de espectadores por sala: enquanto alguns filmes brasileiros adaptados de programas de televisão estreiam em 400 salas, filmes ditos “de arte” chegam a 20, 30 salas. Quando se observa a média de espectadores por sala, ou seja, a ocupação em cada cinema – dados levantados por empresas como Filme B e Rentrak – percebe-se com frequência uma lotação maior nos cinemas de rua, aqueles que exibem as produções de mostras e festivais de cinema. Além disso, o que se considerava consensualmente como cinema de maiorias – produções leves estreladas por humoristas famosos do star system televisivo – sofreram uma queda brutal nas bilheterias recentemente. Não se aceitam devoluções, comédia adaptada de uma fórmula de sucesso e estrelada por Leandro Hassum, registrou 300 mil espectadores, enquanto Bacurau superou os 700 mil espectadores. Seria o filme de Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles, então, o real merecedor de dinheiro público, segundo Regina Duarte?
Aplicada a noção de minoria enquanto detentora de poder, chegaríamos a um cinema de (ou sobre) mulheres, negros, LGBTQI+, indígenas etc. De acordo com as vozes conservadores, que pregam a submissão da mulher ao homem, dos negros aos brancos, dos gays aos heterossexuais, o cinema retratando estes grupos sociais seria “dispensável”, ou irrelevante em tempos de austeridade fiscal. Regina Duarte, Jair Bolsonaro, Damares Alves e Osmar Terra foram alguns dos nomes do governo a pregar um cinema funcional, cuja responsabilidade seria transmitir valores cristãos e ensinar as palavras da Bíblia aos espectadores. No entanto, documentários de pouco alcance numérico, em festivais e, portanto, em público e mensagem, como as produções de Josias Teófilo, são encorajados por Olavo de Carvalho, guru intelectual da direita. A produção independente do MBL visando defender o golpe contra Dilma tampouco atingiu número expressivo de pessoas, nem mesmo provocou debate fora de sua bolha. Produções bíblicas independentes como O filho de Deus ou Barrabás fracassaram em termos de público e crítica. Não seriam estes filmes uma representação do cinema de nicho, alternativo – um cinema de minorias?
Ora, a lógica da minoria não se sustenta enquanto política devido à sua permeabilidade e sua conveniente indefinição – como cabe a qualquer discurso de fundo religioso. Minoria representa qualquer grupo diferente de mim. Minoria é o outro, meu inimigo, aquele que não me apoia. Certo, militares, evangélicos e a extrema-direita ocupam o poder hoje. No entanto, mesmo quando estavam distantes dos maiores cargos do governo, não reivindicavam direitos por constituírem uma minoria social, e sim por acreditarem que o Estado lhes devia isso – vide a crescente isenção de impostos concedida a Igrejas. Nada define melhor as classes privilegiadas do que a crença profunda no direito de ocupar esta posição, afirmavam os sociólogos Monique Pinçon-Charlot e Michel Pinçon. A maioria consiste, em primeiro lugar, numa crença de superioridade moral. Acredita-se ser mais merecedor de determinar como a sociedade deve ser, e que tipo de arte deve ser produzida. Neste sentido, o filme bom (ou o filme pertinente, digno de receber recursos públicos) não será aquele que agradar à maioria, nem o preferido dos críticos. Ele será qualquer um julgado apropriado pelas “instâncias legitimadoras do poder”, do blockbuster bíblico financiado pela Igreja preferida do presidente ao menor documentário caseiro.
A formulação segundo a qual os filmes minoritários não serão proibidos, cabendo a cada um buscar seus recursos na sociedade civil, revela-se particularmente perversa. Sabendo que a proibição simples das obras seria considerada censura – algo que o presidente já tentou aplicar, tanto para performances envolvendo nudez quanto na produção de séries de temática LGBTQI+ -, proíbe-se o financiamento público das obras, de modo que não sejam realizadas por falta de recursos. Ao invés de roubar o pão da boca, retira-se o dinheiro que permitiria comprar o pão. O resultado, em ambos os casos, é a fome. Obviamente, como ressaltou o pesquisador Marcelo Ikeda, especialista nos mecanismos de financiamento do audiovisual brasileiro, havia cinema antes da Ancine, e havia cinema antes da Lei Setorial do Audiovisual, e estes fatores precisam ser levados em consideração. As obras ousadas, progressistas, inovadoras, premiadas – aquelas selecionadas anualmente nos maiores festivais do mundo, como Cannes, Berlim e Veneza, e premiadas no Oscar, como Democracia em vertigem – continuarão a existir. Mas talvez elas aconteçam em menor quantidade, em tempo mais espaçado, e precisem se adequar à precariedade de condições.
O cinema brasileiro se encaminhava para um refinamento estético ímpar, que se estrangula devido à ausência de recursos. Certo, durante a ditadura militar, produziu-se obras excelentes que ou burlavam o governo autoritário, ou foram proibidas inicialmente, para eventualmente serem liberadas anos mais tarde. Muitos artistas se exilaram para continuar produzindo. O cinema brasileiro não parou, mas em que condições precisou se manter vivo? Não se pode romantizar a precariedade da produção. Os mecanismos de financiamento coletivo que permitiram a realização do Festival do Rio e do Anima Mundi em 2019, as doações generosas de mecenas para a reconstrução do Museu Nacional constituem atos isolados, com os quais não se podem contar para uma produção contínua. Outros mecanismos de fomento poderiam ser implementados no lugar daqueles existentes, mas este não parece ser o caminho adotado pelo governo federal, que prefere a morte por inanição.
Além disso, a ideia de que o presidente e a secretária da Cultura decidam por si próprios quais filmes merecem existir ou não – ou ainda, quais merecem o dinheiro público, e quais precisarão se virar sozinhos – constitui evidente ato de censura, além de filtro ideológico. Em nenhum país democrático a autoridade máxima decide as obras que lhe convém. Esta decisão caberia a organismos externos – papel desempenhado, até recentemente, pela Ancine. Ao mesmo tempo, o discurso de que não haverá financiamento público para certa forma de cinema corresponde à ideia de que o repasse de recursos representava um favor, uma generosidade dos governos anteriores, podendo ser suspenso em tempos de austeridade. Entretanto, o governo tem por dever financiar a cultura, e isso ocorre mesmo nas nações mais liberais e capitalistas, como os Estados Unidos, que concedem isenções de impostos para facilitar a produção de obras locais. O desprezo por certa forma de cinema constitui óbvia retaliação àqueles que se impuseram, e ainda se impõem, às ordens dos autocratas. O atual líder acredita que, sendo eleito pela maioria numérica, pode governar apenas para esta maioria entendida como como aquela detentora de uma superioridade moral. Ora, numa democracia representativa, o processo eleitoral determina o escolhido pela maioria, sendo encarregado então de governar para todos, aliados e opositores.
Na atual gestão cultural, opera-se como numa empresa extremamente vertical, uma família patriarcal ou mesmo uma igreja – modelos estruturais considerados exemplares pela (extrema-)direita, porém incompatíveis com o governo de uma nação múltipla e democrática. Um homem dá as ordens, e dele emana a verdade e a sabedoria. Cabe aos demais seguirem, acatarem e se calarem, porque o pai/marido/patrão/pastor sabe o que diz, e se hoje ocupa o alto cargo em que se encontra, certamente o fez por merecer. Acredita-se nas diretrizes adotadas pelo homem de poder – branco, heterossexual, reacionário –, acatando com as diretrizes por uma questão de fé. O presidente se reveste do manto simbólico de divindade, razão pela qual qualquer questionamento se torna heresia para os seguidores mais fiéis.
É uma questão de crença, afinal, e não apenas a crença cristã, bíblica, mas a crença na figura de uma pessoa salvadora, aquele que precisa de torcida a favor, precisa que deixem fazer seu trabalho à vontade, sem empecilhos de investigações, sem perguntas inquisidoras da imprensa, sem gente gritando pelo direito de ver mulheres negras no mercado de trabalho (e nas telas do cinema), povos indígenas em suas terras (e nas telas do cinema), homens gays em segurança nas ruas (e nas telas do cinema). A maioria sou eu, a minoria são vocês. A eleição presidencial, por mais que tenha prendido o principal candidato em processo bastante questionável, acrescenta certo verniz de meritocracia. Sendo o presidente o homem conservador, o restaurador da família e da moral, como não caberia a ele determinar que filmes podem ou não podem ser feitos?
No entanto, a minoria não pretende se curvar, apesar dos golpes da polícia, dos cortes no financiamento, das tentativas de censura. Será a oposição que lutará pela realização das séries de temática LGBTQI+, pela produção de uma série sobre Marielle Franco de autoria de diretoras negras, pelos filmes indígenas, pelos documentários políticos capazes de escancarar nossa política ao mundo. As vozes contrárias exigem e exigirão que o atual presidente governe também para elas – que tenham votado nele ou não. O papel da cidadania é cobrar de seu líder o cumprimento das regras mínimas da democracia. O cinema pode ter mudado das produções de Glauber Rocha aos filmes de André Novais Oliveira, do cinema marginal de Carlos Reichenbach à poesia livre de Grace Passô. Mudamos, mas continuamos sendo o outro, o diferente, os corpos que a direita desprezava e a extrema-direita combate. O cinema da minoria se torna aquele de difícil definição, porém de fácil reconhecimento. Basta ver para onde estão apontadas as armas.

Bruno Carmelo é crítico de cinema, mestre em Teoria de Cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle – Paris III, membro da Associação Brasileira de Críticos de Cinema (ABRACCINE ), professor de cursos sobre o audiovisual e editor do Papo de Cinema. Escreve às segundas.

(Publicado originalmente no site da revista Cult)

segunda-feira, 9 de março de 2020

Michel Zaidan Filho: A fraqueza da democracia


 
A frágil institucionalidade democrática no Brasil nunca esteve tão ameaçada de morte como hoje. Não é por  obra de nenhum agente externo. É em razão da falta de um consenso interno entre  seus cidadãos e cidadãs sobre o valor da democracia. Vilipendiada  por uns e outros como "burguesa" ou de "fachada", o fato é que parte da sociedade brasileira está decidida a ajudar a enterrar as instituições políticas brasileiras, sob o comando de um tresloucado chefe que brinca de ditador, confiando em seus eleitores em permanente estado de mobilização. É como se as eleições não tivessem se acabado e o "inimigo comum" ainda estivesse aí para ser esconjurado. Neste sentido, ele estaria escondido na oposição, nos movimentos sociais, na imprensa, nas universidades, na cultura etc. De certa forma, é uma cruzada religiosa-política, sob as  bençãos das igrejas pentecostais e neopentecostais, contra as liberdades e os avanços democráticos da Constituição de 1988.

Quando um Chefe de Estado estimula um ataque ao parlamento, confiado nos preconceitos e lugares-comuns  da população contra os políticos e a política, sob a alegação de que ele obstrui as medidas necessárias para salvar o país da crise, ele calcula o desprestígio de que goza a ação parlamentar no país, transformada no bode expiatório do baixo crescimento econômico, na   fuga de capitais, no enorme contingente de desempregados, na alta do dólar ou no preço da gasolina. Falta explicar - em bom economês - ao distinto público a razão de ser da política econômica do atual governo: a ancora fiscal que sobredetermina todas as outras políticas, saúde, educação, meio-ambiente , seguridade social, emprego etc.  Deve o atual mandatário da República explicar em bom e claro português, que que está sendo feito  para alcançar um superávit primário nas contas públicas que permita pagar as obrigações financeiras de uma dívida pública trilhonária que hoje chega a 80% do PIB, e que leva 40% do orçamento da União, todos os anos, com o pagamento dos serviços dessa dívida, sustentada com o suor e o sangue do povo brasileiro.

Enquanto isso, o Presidente da República se aplica a exercícios de histrionismo, escatologia verbal, ameaça a repórteres e a instituições. É preciso um grau de alienação social muito grande para permitir esse jogo de incitação popular, encoberto por uma retórica  anticomunista, que ver o inimigo em toda parte. É a velha estratégia de mobilização popular que elege um adversário comum e procura unificar parte da sociedade contra a imaginária ameaça, como se estivéssemos numa guerra permanente. E a âncora fiscal vai sendo viabilizada, goela abaixo, sem discussão, sem debates, sem transparência. Este governo  só deve obrigações ao mercado financeiro e as empresas multinacionais. E mais a ninguém. Seu nacionalismo vazio, oco, feito para engazopar os ingênuos, é uma mera cortina de fumaça para esconder a política rentista, especulativa a serviço do grande capital. Fica para os seguidores a "mise-en-scène" fascista das demonstrações de força, das agressões verbais e físicas, da adoração dos símbolos nacionais, Só isso. Enquanto a pátria e o patrimônio público é vendido na bacia das almas, a preço de banana, em "tenebrosas transações". É a pantomima coordenada pelos responsáveis da política econômica, jogo de cena, espetáculos circenses de atores baratos e mambembes  que vão entretendo a distinta plateia, com a conivência ou medo dos outros poderes e da grande imprensa. 

Michel Zaidan Filho é filósofo, historiador, cientista político, professor titular da Universidade Federal de Pernambuco e coordenador do Núcleo de Estudos Eleitorais, Partidários e da Democracia.