pub-5238575981085443 CONTEXTO POLÍTICO.
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sexta-feira, 22 de janeiro de 2021

Entrevista do Diretor Ken Loach sobre capital e o futuro da sociedade (0...

Editorial: Não verás país nenhum ou o "dedo" do senador.


Algumas coisas simplesmente não dão certo ou não se resolvem no Brasil. A democracia não dá certo no país; as profundas desigualdades jamais serão superadas; uma reforma política substantiva constitui-se numa grande utopia; continuaremos com milhões de analfabetos; as terras concentradas em grandes latifúndios; as instituições continuarão refletindo os maus costumes trazidos de casa; as ameaças de golpe serão uma constante, mesmo nos poucos interregnos de respeito às regras do jogo, sob um ambiente político supostamente democrático.  Fizemos uma transição capenga para a democracia em 1988, mantendo entulhos autoritários na Carta Constitucional, assim como não conseguimos punir contumazes violadores dos direitos humanos. Confirma-se, neste caso, a tese do historiador Sérgio Buarque de Holanda, ao afirmar que a democracia sempre foi um grande mal-entendido entre nós, raciocínio estabelecido a partir dos vícios herdados pelo processo de colonização imposto ao país pelos portugueses.  

O sociólogo Gilberto Freyre levanta outras possibilidades para explicar tal inviabilidade, mas, a rigor, pelo menos neste aspecto, também concordaria com o desafeto paulista, que não resistiu ao seu licor de pitangas, oferecido no Solar de Apipucos, quando de uma visita ao Recife, corroborando com a assertiva de outro ilustre intérprete do Brasil, que afirmava que, aqui, tudo se resolve com um tapinha nas costas. Ou seja, rigorosamente, nunca se resolve. Empurra-se com a barriga. Numa "década" - como diria aquele jornal paulista, que não gostaria de dar os créditos aos governos da Coalizão Petista - tiramos 35 milhões de brasilerios da extrema pobreza. Num país minimamente sério, esses brasileiros jamais deveriam voltar a essa condição. Eles não só voltaram, mas as estatísticas de miseráveis estão se espandindo, elevando os números acima. 

Aquele "dedão' do senador, exibido para todo o país, durante a transmissão de uma entrevista ao vivo, em que o repórter havia perguntado sobre um colega internado em Sâo Paulo, com Covid-19, é uma síntese do comportamento de nossa classe política, com honrosas exceções. Aquele dedo diz muito mais do que uma eventual indisposição do senador com o colega internado. É mais ou menos assim que eles se comportam depois de eleitos, maximizando seus interesses pessoais e pouco se lixando para as demandas dos seus eleitores. Agora, por ocasião da campanha de vacinação em massa, tivemos uma nova versão da Lei de Gerson ou da velha carteirada: "Você sabe com quem está falando?" A casta de privilegiados querem furar a fila da vacinação, que, neste primeiro momento, está sendo facultada apenas aos  profissionais da área de saúde que trabalham na linha de frente de combate a pandemia do coronavírus. 

Centenas de fura-filas já foram denunciados por todo o país, alguns exagerando no uso do expediente do jeitinho brasileiro, destravando a burocracia com nomeações macabriadas, feita às pressas, apenas para assegurar seus privilégios de classe. Outro dia comentei por aqui que esta pandemia constituiu-se numa excelente oportunidade para políticos  e agentes públicos inescrupulosos aproveitarem o momento para desviarem recursos  destinados ao combate do vírus. Pessoas sem espírito público e desprovidas de qualquer sentimento humanitário. Nunca li nenhuma estimativa sobre o montante de recursos desviados, mas a soma deve ser absurdamente alta. Apenas um governador de Estado encontra-se afastado do cargo e com seus direitos políticos ameaçados em razão de ter participado dessas maracutais macabras, mancumunados com agentes privados, superfaturando insumos destinados ao tratamento dos doentes do coronavírus.  


Charge! Duke via O Tempo

 


quinta-feira, 21 de janeiro de 2021

Tijolaço: Você sabe qual é o estoque de oxigênio da cidade do Recife?



Muito bem-vinda a iniciativa do TCE no sentido de solicitar à Prefeitura da Cidade do Recife informações sobre o estoque de oxigênio disponível, depois dos incidentes verificados em Manaus. Mesmo diante das providências emergenciais tomadas - que contou com o apoio fundamental de países como a Venezuela - o quadro ainda é muito complicado, com filas enormes de pessoas à procura de abstecer cilindros de oxigênio, algumas delas, possivelmente, como medida preventiva por terem entrado em pânico. Em casos de internamento por Covid-19, além da papeleta, os parentes levam um cilindro para atender às necessidades dos seus familiares. O pior, no caso de Manaus, é que as autoridades públicas sabiam das dificuldades com os estoques e não tomaram providências para evitar aqueles fatos desumanos, de pessoas morrendo pela falta de oxigênio. Situação mais grave é saber que os fatos que estão ocorrendo em Manaus possam se estender para outras capitais da região Norte, principalmente em razão do agravamento dos casos registrados de contágio pelo coronavírus.

Salvo melhor juízo, o TCE também estaria exigindo apuração e explicações das autoridades públicas no que concerne ao vandalismo e roubo de peças de autoria do artista plástico Francisco Brennand, expostas no Parque das Esculturas, no Recife antigo. Bom que seja assim, porque, a rigor, a única providência pensada até o momento é torrar mais seis milhões de reais para recuperar o Parque, depois das portas arrombadas, algo que poderia ter sido evitado pelo poder público. Os órgaos de fiscalização e controle exercem um papel fundamental numa democracia, ao acompanhar, com o rigor necessário, a aplicação correta dos recursos públicos. Infelizmente, como estamos no Brasil, o componente político acaba atrapalhando bastante esse trabalho, uma vez que aquela independência desejável raramente é alcançada. Trata-se de um problema cultural, de baixa institucionalização desses órgãos. Aqui faço uma análise genérica, não me referindo a este ou aquele órgão especificamente.

Muito importante que a população recifense seja informada sobre os estoques de oxigênio disponíveis e, mais ainda, sobre algum plano de contingenciamento, em caso de agravamento dos problemas relativos ao coronavírus. Como informamos no editorial do último domingo, especialistas como o médico Miguel Nicolelis já recomenda um lockdown para a região metropolitana do Recife. Hoje,  Governo do Estado resolveu apertar o torniquete, proibindo eventos públicos e privados. Esta medida soma-se às restrições impostas ao uso de espaços públicos como as praias, onde ficam vetados o som e as aglomerações. Pensa-se em ampliar essas restrições aos parques públicos. Convém sempre lembrar que um lockdown chegou a ser decretado em Manaus, mas o governador voltou atrás diante das pressões dos insanos, através das redes sociais. Deu no que deu. 

Editorial:"É preciso derrotar as mentiras e defender a verdade".



Nos últimos anos, alguns fatos curiosos ocorreram com a experiência democrática americana. Até então, apenas na ficção produzida pela mente fértil dos escritores, seria possível conceber aquele aparato de segurança gigantesco montado para garantir que a posse de um presidente eleito ocorresse sem incidentes. Completa o enredo a invasão dos insanos ao Capitólio - com o propósito explícito de golpearem as instituições - assim como a descortesia de Donald Trump em não cumprimentar o seu sucessor, um ritual nunca quebrado antes por um ex-presidente. Mas isso é apenas a ponta do iceberg das fragilidades democráticas - ainda no campo de suas formalidades - talvez como reflexo de problemas mais profundos, produzidos nos estertores, de matriz autoritária, que estão minando aquela experiência democrática em suas bases. O fato concreto - e igualmente preocupante - é que o conjunto de forças que se apossaram do poder naquele país tinham planos de não abondoná-lo e implantar um projeto de sociedade, cujos preceitos democráticos seriam absolutamente irrelevantes, uma vez que o componente econônico seria determinante. 

Um projeto de extrema-direita, de racionalidade ultraliberal, condicionados aos interesses geopolíticos dos Estados Unidos, o que implica, naturalmente, em reflexos profundos no continente latino-americano.É preciso ficar atento sobre até onde vai a margem de manobra do presidente Joe Biden, num cenário de forças ultraliberais centrífugas, disposta a transpor todos os obstáculos para impor sua "racionalidade". Algumas diretrizes da política exterior norte-americana, por exemplo, são ditadas por um mainstream com forte influência sobre o presidente. Alguém observou que, neste sentido, Joe Biden assumiria posições até mesmo mais radicais do que Donald Trump. Não vejo como possamos comemorar a derrota desse projeto, mesmo com a saída de cena de um dos seus mais ilustres representantes. Melhor ainda seria que os dois processos de impeachment em andamento fossem a aprovados, impedindo o ressurgimento do monstro da lagoa, para usarmos uma expressão do compositor Chico Buarque de Holanda, quando fazia referência às possiveis manobras no sentido de fazer ressurgir entre nós a ditatura militar. Afasta de nós esse cálice, Chico. 

Como recomenda o compositor naquela música, já não dá mais para ficar apenas atento na arquibancada, mas descer à arenas de luta, às ruas, como indicam alguns movimentos, inclusive aqui no Brasil, motivados por aquelas cenas desumanas e anticivilizatórias de pessoas morrendo por falta de oxigênio, quando se expõe o descaso do poder público - não faço referência à esfera específica - que tinha conhecimento da iminente tragédia que se aproximava, a partir, inclusive, dos relatórios produzidos pela força tarefa do SUS. Convém deixar registrado aqui que tal tragédia está longe de ser superada, a julgar pelas cenas de filas enormes de pessoas com o objetivo de comprar ou abastecer seus cilindros de oxigênio. A população entrou em pânico e eu acredito que muita gente está à procura do equipamento talvez como medida preventiva. Isso apenas agrava o problema. Notícia ainda pior é a possibilidade de o drama de Manaus se repetir em outras capitais da região Norte do país, com o aumento sensível de casos de contaminados e doentes. 

Em todo caso - e para não parecer pessimista aos nossos leitores, logo no inicio desta manhã de Quinta-Feira - Pode-se dizer que Joe Biden é um bom camarada, sobretudo em relação às suas afinidades com as regras do jogo da democracia procedimental. Como acabara de enfrentar um jogo sujo, baseado na disseminação "profissional" de mentiras, a sua vitória é a vitória também daqueles que buscam a vardade dos fatos. Esta estratégia abjeta - concebida incluisve por assessores que receberam o perdão presidencial - tem produzido muitos danos, como a condenação de inocentes, linchamentos morais e a formaçao de "opinião pública" sem qualquer lastro de amparo nos fatos. Como disse o novo presidente, "É preciso derrotar as mentiras e defender a verdade". Fake News é uma prática fascista, torpe, desprezível, onde não há argumentos convincentes, transparência, ou autoria autêntica. Seus autores se escondem no anonimato. Não há adversários, mas inimigos a serem destruídos a todo custo, simplesmente porque advogam teses opostas. Destila-se o ódio, conduz-se rebanhos ensandecidos. É urgente que essa onda de ultradireita seja contida, sob pena de continuarmos nesse retrocesso civilizatório. 


Sobre a vivência concreta do sexual


Sobre a vivência concreta do sexual
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'Heart face', Joy Hester, 1949, Austrália (Foto: Reprodução)

 

Nesta quarta (13), Eduardo Leal Cunha publicou uma réplica a artigo que publiquei nesta revista e que tinha por título: “Não há heterossexuais”. Inicialmente, gostaria de agradecê-lo por sistematizar, em seu artigo, críticas pertinentes ao que escrevi. Creio ser este um debate muitas vezes vítima de caricaturas ruins de ambos os lados e a oportunidade de tratá-lo de forma clara só pode ser saudado.

Começaria dizendo que Eduardo tem razão. Há homossexuais. Se não escolhi esse título para meu artigo, se em momento algum tentei derivar como consequência da inexistência de heterossexuais a pretensa inexistência similar de homossexuais, é por uma razão deveras simples: não acredito nessa equivalência. Não acho politicamente correto operar com tal simetria. Acho importante deixar claro que aqueles que, como eu, fazem há anos a crítica do inflacionamento da identidade como operador político – a ponto de acreditar ser importante denunciar o risco de certo monolinguismo da gramática das lutas sociais que tal inflacionamento tende a produzir -, não desconsideram o recurso estratégico à identidade.

Seria fácil dizer que críticos do inflacionamento do uso político da identidade ignoram que homossexuais, negros e mulheres “são discriminados desde cedo na escola, no trabalho e nas sociedades de formação em psicanálise, e não me refiro apenas à tradicional e sabidamente conservadora Associação Psicanalítica Internacional”, como menciona Eduardo. Seria fácil dizer que eles falam de entidades abstratas e são incapazes de levar em conta a concretude da violência social. Seria fácil, mas seria simplesmente incorreto e injusto. Creio ter expressado várias vezes no decorrer desses anos que considero absolutamente legítimo e necessário o uso provisório do conceito de identidade como marcador de violência social, exatamente por levar em conta fenômenos como esses que Eduardo descreve.

A história conhece várias situações concretas nas quais termos construídos anteriormente por marcadores de exclusão e opressão (homossexual, queer, judeu) são recuperados no interior das lutas sociais a fim de dar visibilidade a processos de violência muito claramente direcionados e repetidos de forma insistente. Essa é uma estratégia que já demonstrou sua eficácia, não se trata de questioná-la, e simplesmente nunca a questionei em momento algum. A meu ver, a questão é outra. Na verdade, há de se perguntar se essa é a única estratégia política que temos à nossa disposição. O que advogo é que ela deve operar acoplada a outras, e que há riscos sérios que devem ser levados em conta se acabarmos por operar apenas com ela.

Exatamente por colocar o problema nesse nível, não posso em absoluto concordar que “o raciocínio de Vladimir em seu artigo é muito próximo daquele que já fez tantos psicanalistas afirmarem, repetidas vezes, que não há brancos nem pretos, mas sim sujeitos”, até porque acho que quem disse algo dessa natureza deveria parar de clinicar. As formas de sofrimento psíquico estão amplamente enraizadas nas dinâmicas de sofrimento social, e o racismo é uma forma de sofrimento social estruturante. Não ser capaz de escutar esta imbricação no interior da clínica é simplesmente ignorância a respeito do sujeito que um analista tem à sua frente.

Acho que a colocação de Eduardo expressa o tipo de equívoco que resulta em acreditar que as múltiplas formas de opressão e sujeição que compõem o tecido social devam ser tratadas a partir das mesmas estratégias políticas, como se estivéssemos a falar de categorias dispostas no mesmo nível. No entanto, classe, raça e sexualidade (só para ficar nessas três) não tecem relações de equivalência sequer do ponto de vista de suas dinâmicas de opressão. Há de se saber operar com suas singularidades. O que é da ordem da sexualidade, por exemplo, se constitui a partir de uma disjunção profunda entre práticas e normas. Aquilo que Eduardo chama de “vivência concreta do sexual” (fantasias, circuitos de afetos, dinâmicas de gozo) não se confunde, em sujeito algum, com as normatividades sociais constituídas. Cada sujeito tratará tal disjunção à sua maneira, mas ela não cessará de assombrá-lo.

Essa disjunção, que pode ser uma arma política importante (e talvez uma questão política central seja exatamente como fazer dela uma força), não é o elemento estruturante, por exemplo, das questões de raça, ao menos não dessa forma. Por isso, do ponto de vista de sua performatividade, ou seja, do ponto de vista daquilo que eles são capazes de produzir, enunciados como “não sou heterossexual”, enunciado por alguém socialmente colocado nessa categoria, e “não sou branco”, enunciado por alguém que a sociedade reconhece como tal, produzem efeitos radicalmente contrários. Não é à toa que o segundo faz parte das estratégias clássicas de sociedades que tentam mascarar seu racismo através do discurso torpe da miscigenação. Já o primeiro merece uma discussão de outra natureza porque estamos diante de um fenômeno de outra natureza. Há de saber melhor distinguir para melhor operar.

Eduardo não pensa da mesma forma, o que o leva a dizer: “Assim, não dá para reconhecer a força da heteronormatividade e ao mesmo tempo supor que heterossexuais não existem. Essas duas existências se determinam e se produzem mutuamente e um dos seus efeitos está no fato de que se desejamos ‘objetos que circulam ou se fixam entre os corpos, em corpos’, esses corpos são situados hierarquicamente em relação à heteronorma, e assim acabam por definir limites para os sujeitos que os habitam”.

Eu diria que, ao contrário, essas duas existências não se determinam e não se produzem mutuamente. Para isso seria necessário que a vivência concreta do sexual fosse ou especularmente constituída pela norma ou que operasse mutuamente como um fator com o qual a norma deveria negociar, flexibilizando-a, retirando seu caráter coercitivo e brutal. Mas nenhum dos dois fenômenos ocorre. A vivência corrói continuamente a norma porque a vivência não é apenas fruto do sistema de deliberações e decisões de indivíduos. Ela é uma dinâmica desamparadora do inconsciente e de seus fluxos libidinais. Por isso, a relação entre vivência e norma é uma relação de disparidade, e aqueles engajados em processo de emancipação social devem usar tal disparidade a seu favor.

 

 

O que não implica, de forma
alguma, ignorar que há uma
hierarquia de corpos em
nossa sociedade. Hierarquia
apresentada como “prêmio”
àqueles que conseguem melhor
massacrar a multiplicidade de
suas vivências do sexual.

 

 

Creio que a diferença com a posição de Eduardo vem, em larga medida, de colocações como: “Para afirmar que heterossexuais não existem, nem tampouco a relação sexual, talvez seja necessário colocar também em questão o binarismo de gênero, o que não poderia ser feito sem interrogar minimamente a diferença sexual e seu estatuto de invariante antropológico”. Se há uma potencialidade política interessante na psicanálise, ela está exatamente no fato de lembrar que a diferença sexual não é da ordem de uma realidade antropológica. Pois tal diferença, tal como ela opera na vida concreta do desejo, não é uma diferença opositiva entre gêneros.

A função lacaniana de afirmar que “a mulher não existe” está em dizer que a única ordem que produz existência social é aquela que organiza todas as formas de gozo a partir de um regime fálico, seja ele presente em “homens” ou “mulheres”. Por isso, esse gozo deve ser derrubado com os lugares que ele sustenta. Logo, a verdadeira diferença não está aí. A diferença é interna a todo sujeito, e se encontra entre as condições de existência e aquilo que se afirma como inexistente. Faz parte da nossa força política fazer do inexistente algo com mais realidade do que o existente, como sempre ocorreu em todo processo revolucionário efetivo. A meu ver, a questão central é saber como.

Insisto no que inicialmente havia chamado de “risco” produzido por um uso inflacionado do conceito de identidade. Em dado momento de seu texto, Eduardo diz o seguinte: “Vladimir é sim heterossexual e mais uma prova viva de que eles existem. O que, aliás, é testemunhado por muitos, já que os supostamente não existentes heterossexuais podem sair nas ruas de mãos dadas com seus objetos parciais, sem o risco de sofrer algum tipo de violência. Eu não”.

Gostaria de chamar atenção para a operação feita aqui, para seu caráter problemático, algo próximo de uma espécie de “interpelação subjetiva forçada”. Eduardo viu por bem definir por mim o que eu próprio seria sem levar em conta o que eu mesmo havia dito, ou sem ter acesso algum ao que seria a singular “vivência concreta do sexual” do qual ele mesmo fala. O que o legitimaria a tanto é a diferença na exposição à violência social. Contra uma violência social, ele opera outra, que consiste em definir e em determinar um lugar ao outro simplesmente sem levar em conta a fala de quem foi definido ou a natureza efetiva de sua vivência.

Creio que isso ocorre porque há uma limitação de estratégia política sintomática aqui. Ela consiste em preservar o binarismo que se quer criticar, preservando, por consequência, a gramática que deveria ter sido abandonada, na esperança de operar uma espécie de transvaloração de valores e lugares. Isso ocorre, a meu ver, porque elimina-se de entrada a possibilidade de trabalhar a força política da desidentificação generalizada. Desconfia-se da disparidade no sexual e, de quebra, não passa sequer pela cabeça de que impulsionar processos de desidentificação seria uma dinâmica importante para a queda de ordens que queremos combater. Seria a condição para caminhar em direção a outra gramática social. Se a urgência exige a mobilização provisória da identidade, a práxis política se degrada quando mede apenas a urgência (da mesma forma que ela se atrofia se não leva em conta a urgência). Mais dialética nesse ponto seria bom.

Discordo de uma afirmação como: “Afinal toda a desordem no gênero que registramos nos últimos anos foi obra de pessoas engajadas em práticas sexuais e performances de gênero dissidentes”. A desordem de gênero é uma força bruta, talvez a única que possa dar sentido a uma totalidade verdadeira. Ela está lá a corroer cada passo de quem procura ignorá-la. Ela está lá a impulsionar criação a quem é capaz de ouvi-la. Historicamente, ela já explodiu muitos edifícios que se julgavam sólidos e já abriu muitas dinâmicas lá onde muitxs viam apenas paralisia.

Essa desordem se dá como proliferação, mas também como decomposição e desfazimento. Uma colocação como essa de Eduardo pode fazer sentido se temos em vista apenas os processos de lutas sociais e seus protagonistas. Mas as lutas sociais são alimentadas e impulsionadas também por instaurações estéticas, experiências clínicas, encontros afetivos. Não se ganha nada desqualificando isso. Quem esqueceu, que leia Grande Sertão: Veredas.

Vladimir Safatle é professor titular do departamento de filosofia e do instituto de psicologia da USP

(Publicado originalmente no site da Revista Cult)

quarta-feira, 20 de janeiro de 2021

Tijolinho: O imbróglio político de Paulista



Há alguns anos atrás, ainda muito movido pelo idealismo, criamos um grupo no Facebook para debater a cidade de Paulista,  localizada aqui na região metropolitana norte do Recife. Rebento de Vila Operária, passei os melhores momentos de minha vida naquela cidade. Banhos de açude; de bica nos dias chuvosos; pescarias de traíras e Maria Doce; peladas nos campos de várzea, com a galera do saudoso Monte Castelo Futebol Clube; corridas de patinetes; pau-de-sebo nos festejos de São João; pipas sem cerol; torradas com castanhas de caju; carne de charque ou Jia Pimenta no braseiro à lenha; dias de feira-livre, onde era possível assistir às performances de Mestiça. As dificuldades existiam, mas asseguro que foram os melhores dias da vida desse editor. Quando voltava àquela cidade - sempre encontrava um argumento para voltar, seja para discutir uma de nossas crônicas com os alunos locais, seja no período das eleições - ficava a relembrar daqueles verdes anos, debaixo das paineiras, felizmente, ainda preservadas. Dunda, o melhor amigo das travessuras de infância, a inesquecível professora primária, Dona Maria José Tavares de Lima, aquela que nos proporcionou o encantamento de decifrar as primeiras letras. 

Era muito triste para mim acompanhar aquele abandono da cidade, seja no tocante aos problemas com a administração pública, seja o completo descaso com o meio-ambiente, com o patrimônio histórico da cidade. Friso aqui que não faço referência à memória do drama produzido pela oligarquia industrial no município, marcado por grandes sofrimentos infringidos à classe operária. Como observa o professor Durval Muniz, essa é uma memória para ser esquecida mesmo. Muito triste ver o sangradouro da levada vazio, o rio Paratibe agonizando, a mata do frio sendo dizimada pela especulação imobiliária. Sempre que me dirigia ao centro, saindo ali da Torres Galvão, fazia aquele percurso por dentro da mata, para sentir sua temperatura amena, proporcionada pela cobertura vegetal, assim como recolher os frutos abundantes de suas árvores: cajus, inclusive os amarelos, aracás, macaíbas, manga espada - as preferidas - ingás, cajás, coquinhos. 

Durante algum tempo, mantive o grupo ativo, provocando sempre discussões importantes, de interesse da cidade. Mas, os tempos mudaram muito. Se, naquele momento, ainda era possível um debate civilizado de idéias, hoje isso não é mais possível. Houve um retrocesso em termos de civilidade. Assim, acabei por abdicar da condição de administrador daquele grupo, em razão das agressões e baixarias que se tornaram recorrentes. Nos últimos anos, o ambiente político interditou o debate, abrindo espaço para as fake news, as campanhas difamatórias, urdidas com interesses abjetos. Dessas discussões, noutros tempos, poderiam surgir subsídios importantes para auxiliar os gestores públicos daquela cidade. Essas observações vem a propósito da troca de farpas entre o prefeito que se elegeu e o que acaba de deixar o cargo, o que o leitor deve estar acompanhando pelas redes sociais e pela imprensa. Não entro nem no mérito da discussão sobre quem, de fato, tem razão por entender que isso pouco importa. Há no município um quadro político caótico, de décadas de gestão temerária dos negócios públicos, sem solução aparente. Infelizmente. 

Editorial: Você aprovaria o comportamento do brasileiro durante a pandemia?




Já faz algum tempo que este editor desistiu de entender os brasileiros. Li bastante sobre o assunto, mas, a cada hora, surgem alguns fatos novos que nos deixam atônitos, na condição de um expectador que ainda não viu tudo. Pesquisa recente, realizado pelo Instituto Parará Pesquisas e publicada por uma coluna de política conhecida, informa que, em enquete sobre a avaliação do comportamento dos cidadãos e cidadãs brasileiros durante a pandemia, ficamos, na média, com a nota 7,7. Em tese, daria para passar, mas, na condição de professor, reprovaria o nosso comportamento durante a pandemia, em razão dos fatos amplamente divulgados pela imprensa, onde se constata a desobediência explícita dos protocolos de segurança estabelecidos pelas autoridades sanitárias para evitar o contágio pelo coronavírus. Desrespeito à quarentena ou aos lockdowns decretados, ausência do uso obrigatório de máscaras, festinhas com aglomerações. Apenas isento dessas críticas aqueles segmentos sociais que, de fato, pelas contingências impostas, talvez não pudessem cumprir tais protocolos como gostariam, por absoluta falta de condições, em razão da precária situação econômica, habitacional e e higiênicas. Em casos extremos, falta até a água para lavar as mãos. Um fato curioso é que o tal "toque de recolher" imposto nas favelas por traficantes e milicianos (ia usar o "ou", mas os milicianos, hoje, também  estão envolvidos com o tráficos de drogas) contribuiu para forçar o isolamento social. 

Logo no início da pandemia, pipocaram denúncias de malversação de recursos públicos por todo o país, envolvendo agentes públicos e privados, mancumunados em práticas lesivas ao interesse público, ou seja, desvios de verbas ou compras irregulares de insumos para o enfrentamento da pandemia. A construção de hospitais de campanhas constituiu-se num outro grande duto por onde os recursos públicos eram sistematicamente desviados para outras finalidades. Até hoje não vi uma levantamento completo sobre o montante de recursos desviados, mas a soma é altíssima. Há até governador afastado do exercício do cargo e prestes a perder o mandato em razão dessas denúncias. Seria de muito bom alvitre que os órgãos de controle e fiscalização das contas públicas divulgasem alguma estimativa dos recursos desviados. Fica aqui a recomendação, em nome da transparência da função pública. Há um governador da região Norte do país que adquiriu determinados equipamentos imprestáveis para a finalidade desejada e ,este editor, equivocadamente, até solidarizou-se com ele, responsabilizando tão somente seus fornecedores. Depois, as investigações iriam descobrir que ele sabia, desde o início, das operações, e que estava comprando gatos por lebres, mancumunado com tais fornecedores. Eis aqui um cidadão desprovido de qualquer espírito público. A lição que aprendemos aqui é que a corrupção endêmica do país prevaleceu até mesmo num quadro de profunda calamidade pública.  

Aliás, por falar em região Norte, fico cada vez mais convencido que as razões do colapso do sistema de saúde no Amazonas deve-se muito mais a razões políticas do que propriamente técnicas. O ex-ministro da Saude, Luiz Mandetta, com muita capacidade, já havia antecipado o possível colpaso do nosso sistema de saúde, caso medidas preventivas não fossem tomadas imediatamente. Mandetta foi demitido do cargo. Os relatórios da força tarefa do SUS - sempre o SUS - também deixaram isso muito claro. Mobilizações de insanos fizeram com que o Governo do Estado da Amazonas voltasse atrás num lockdown decretado semanas antes dessas ocorrências. O recuo do governo foi comemorado nas redes sociais pelos negativistas. Fica claro que as autoridades públicas tinham conhecimento sobre o desastre iminente. Pior: que ele poderia ter sido evitado, caso as providências necessárias tivessem sido tomadas a tempo. Mesmo com as providências emergenciais, diante do quadro caótico que se instaurou, os problemas estão longe de serem equacionados. Ainda ontem acompanhei cenas de pessoas levando seus parentes aos hospitais acompanhado dos tais cilindros de oxigênio, isso quando reúnem condições de comprá-los ou abastecê-los. O Estado do Maranhão, que recebeu parte dos doentes de Manaus, já se encontra com a suas UTIs e estoque de oxigênio no limite. 

Agora, por ocasião do início da campanha de vacinação em massa, somados aos embaraços com a logística da distribuição e os embates diplomáticos que virão para adquirir os insumos farmacêutico ativo (IFA) para a produção de novas doses da vacina, surgem denúncias, incluisive aqui no Estado de Pernambuco, de desrespeito à ordem de aplicação das mesmas, neste primeiro momento, facultadas apenas os profissionais de saúde. Mas, diante do maldito "jeitinho brasileiro", prefeitos, secretários e até fotógrafos furaram a fila. Isso é apenas a ponta do iceberg, se  é que entendemos um pouco desse paí, algo que desisti, como afirmei no início deste editorial. Observem o comportamento dos cidadãos e cidadãs de outros países, mais institucionalizados, onde o respeito às regras é observado e os homens públicos são os primeiros a oferecer bons exemplos de conduta. Não sou alarmista, mas estamos com um sério problema de estoque de vacinas pela frente. Cálculos de especialistas afirmam que, sequer, as doses disponibilizadas seriam suficientes para atender a demanda dos profissionais de saúde, o grupo priorizado. A rigor, até aqui temos problemas, uma vez que tais cálculos de profissionais de saúde deveriam incluir, tão somente, aqueles profissionais da linha de frente do enfrentamento da pandemia, excentuando-se aqueles que desempenham funções burocráticas. 


terça-feira, 19 de janeiro de 2021

Tijolinho: Drops político para reflexão: O SUS fará a grande diferença na vacinação em massa no país.



"Mesmo começando com um relativo atraso em relação a outros países, a tendência é que possamos assumir a dianteira dessa corrida, em razão da nossa espertise no assunto, graças ao nosso Sistema Unificado de Saúde. Mais uma razão para empreendermos todos os nossos esforços no sentido de preservar este sistema de saúde, um dos melhores do mundo. É numa situação crítica como esta que dimensionamos a sua real importância para a saúde pública no país. Vacinação em massa da população é coisa do nosso tão maltratado SUS, um grande patrimônio nacional."

(José Luiz Gomes, Cientista Político, em editorial publicado aqui no blog.) 

Tijolinho: Bancada do PSB pernambucano dividida nas eleições da Câmara dos Deputados.



Há duas reflexões importantes para se fazer quando se está em jogo as  conjecturas acerca das eleições para a Presidência da Câmara dos Deputados, que devem ocorrer no dia primeiro de fevereiro. A primeira delas desaconselha o cálculo dos eventuais resultados a partir de uma avaliação do voto pelo apoio da bancada partidária, ou seja, o candidato que conquista o apoio de um determinado partido não pode, em hipótese alguma, concluir que todos seus representantes votarão nele. Recorre-se, aqui, a uma lição deixada por uma velha raposa da política mineira, Tancredo Neves: Em votação secreta, naquele escurinho, os homens traem. Sempre acrescento que as mulheres também, Dr. Tancredo, para não sermos acusados de misoginia, nesses tempos bicudos, onde até uma simples paquera, quando mal conduzida, pode ser confundida com um assédio. Uma outra lição - esta, infelizmente, não sei quem nos legou - recomenda não se orientar muito pela ideologia dos partidos politicos, uma vez que, a partir de um determinado momento, ali no Congresso, todos os gatos tornam-se pardos, ou seja, acabam assumindo aquela "cultura' bastante conhecida dos brasileiros, independentemente de suas vinculações partidárias. 

Consegue-se muito identificar ou definir o candidato Arthur Lira(PP-AL) como um candidato chapa-branca pelo apoio explícito emanado pelo Governo do senhor Jair Bolsonaro, que faz questão de ratificar esta posição. Arthur Lira, em alguns momentos, tem até sinalizado que seria até mais independende do que o candidato apresentado por Rodrigo Maia para sucedê-lo, Baleia Rossi(MDB-SP), nome oficialmente de oposição, um candidato que conta, ainda, com diversas arestas a serem aparadas pelos partidos e parlamentares do campo progressista que o apoiam. O PSOL, numa atitude equivocada, por exemplo, depois de muitas idas e vindas, acabou lançando a candidatura independente de Luiza Erundida(PSOL-RJ), de alguma forma, cindindo a estratégia e base de apoio articulada por  Rodrigo Maia (DEM-RJ) para assegurar as chances de vitória do pupilo Baleia Rossi(MDB-SP). O PSOL confirma a tese dos "gatos pardos", uma vez que sempre demonstrou o interesse em apoiar o nome de oposição apenas num segundo turno, onde teria melhores chances de barganha por cargos e comissões.  

Aqui na província pernambucana, quando se discute os votos da bancada do PSB, as coisas continuam no mesmo diapasão, ou seja, a despeito de uma resolução da Executiva Nacional do Partido indicando, por unanimidade, que não apoiariam o candidato governista Arthur Lira,  parlamentares da legenda não escondem sua intenção de votar nele, contrariando aquela resolução partidária. E, neste caso em particular, trata-se de uma traição assumida, sem os ingredientes do dark room, naturalmente. Esses deputados socialistas são explícitos em assumir que não acompanharão a decisão da Executiva do Partido, criando até mesmo alguns embaraços para o governador Paulo Câmara(PSB-PE), que resolveu acatar a orientação da legenda, assumindo o voto no candidato Baleia Rossi. O prefeito João Campos(PSB) é um dos maiores entusiastas do apoio ao nome de Arthur Lira(PP-AL). Deputados do PSL também esboçaram uma dissidência, segundo dizem, controlada pelo próprio Rodrigo Maia(DEM-RJ) com o apoio do deputado federal Luciano Bivar, dirigente nacional da legenda. Como se observa, o cálculo do voto neste ou naquele candidato não pode ser inferido pelo apoio de "bancada".  

Editorial: A espertise brasileira em vacinação em massa vai fazer a diferença.



Estamos iniciando a campanha de vacinação em massa da nossa população, depois de idas e vindas, incertezas e muitos desencontros entre o Governo Federal e os Estados da Federação. O andar da carruagem política atrapalhou, em muito, o andar da carruagem científica. Aliás, continua atrapalhando, pois tal campanha de vacinação, infelizmente, antecipou o start das eleições presidenciais de 2022. Não apenas a campanha de vacinação em si, mas pode-se afirmar isso em relação a todo o imbróglio provocado pela pandemia do coronavírus. Não tenho a menor dúvida de que todos esses fatos estarão presentes na disputa pelo Palácio do Planalto nas eleições presidenciais de 2022. A iniciativa do governador do Estado de São Paulo, João Dória Junior(PSDB-SP), de iniciar a vacinação da população ainda no domingo - antecipando-se às previsões do Ministério da Saúde - além do mal-estar, dividiu governadores, de matizes políticas distintas, independentmente de afinidades ou não com o Governo Federal. É bom os brasileiros e brasileiras irem se acostumando com os fatos, pois as trocas de farpas devem continuar daqui para frente. Depois das vacinas prontas, encaminhadas para a população, agora o embate se dá em torno sobre quem, de fato, financiou a sua produção, colocando o ministro Eduardo Pazuello e o governador João Dória num novo embate. Preocupa bastante essa birra, quando, por exemplo, todos deveriam, na realidade, é estar empenhados em providenciar os ingredientes farmacêuticos ativos, fundamental para a produção de novas vacinas, sobretudo em se tratando de uma vacina que exige uma segunda dose de imunização e sua produção não pode ser interrompida por falta de algum insumo.   

Mesmo começando com um relativo atraso em relação a outros países, a tendência é que possamos assumir a dianteira dessa corrida, em razão da nossa espertise no assunto, graças ao nosso Sistema Unificado de Saúde. Mais uma razão para empreendermos todos os nossos esforços no sentido de preservar este sistema de saúde, um dos melhores do mundo. É numa situação crítica como esta que dimensionamos a sua real importância para a saúde pública no país. Vacinação em massa da população é coisa do nosso tão maltratado SUS, um grande patrimônio nacional. Aproveito o ensejo para fazer nossa mea-culpa em relação ao pessimismo quanto à logística de distribuição das vacinas pelo país. Ocorreram alguns problemas, é fato, como a ausência de uma sincronia com os horários dos voos, mas nada que comprometesse o objetivo final, o de fazer as vacinas chegarem aos Estados para serem distribuição às cidades. Há vários pleitos dos prefeitos encaminhados ao Instituto Butantan, por iniciativa prórpia, mas o ideal talvez seja mesmo o de centralizar essa distribuição através do Ministério da Saúde. Se o Instituto Butantan assumisse essas demandas talvez não desse conta do recado, além de criar um sistema perverso de privilégio nessa distribuição. E os rincões, sem recursos, quando receberiam suas vacinas se elas não fossem distribuídas de forma equitativas? Seria mais um caso de uso político de um problema de saúde pública. 

Aqui pela província pernambucana, finalmente, parece que a população resolveu acatar as determinações do Governo do Estado no sentido de evitar as aglomerações e o uso de som nas praias  neste último final de semana, o que se constitui numa boa notícia, pois o contrário seria o mais prevísivel, a julgar pelo comportamento da população nesses casos, salvo raras e honrosas exceções. Convém salientar que, mesmo com a vacinação em massa em curso, os cuidados recomendados desde o início da pandemia precisam ser mantidos. Nas edições aqui do blog, trazemos sempre os conselhos e as avalições do quadro de saúde pública do país, produzidas por cientistas como Miguel Nicolelis, que assessora o Consórcio Nordeste. Para o cientista, nunca houve momento de relaxar os cuidados, tampouco as medidas restritivas de contato social. Muito ao contrário, o lockdown deveria ter sido mantido ou retomado em regiões, como o grande Recife, por exemplo. Agora é torcer que, com a varíavel do início da vacinação em massa, situações como aquela que ocorre em Manaus possam ser evitadas, uma vez que segmentos da população e os governantes passaram a abominar essa palavar lockdown. Ainda a pouco, li uma matéria onde o Ministro do Turismo afirma que o setor não resistiria a um novo lockdown. 

Essa espertise de 50 anos de experiência do SUS em vacinação em massa irá ajudar bastante o país, neste momento delicado. Andou circulando pelas redes sociais um joguinho, onde, a partir de alguns dados do indivíduo, haveria uma previsão sobre quando ele possivelmente poderia ser vacinado. Repito aqui as palavras do Dr. Dráuzio Varela, em artigo publicado na edição dominical do jornal Folha de São Paulo: "Não vejo a hora de ser vacinado." Os prejuízos pessoais provocados por esta pandemia são incalculáveis, fatura que deve ser apresentada sabe-se lá quando, assim que tivermos condições seguras de voltarmor à "normalidade" que não mais será como antes. A pandemia impôs à sociedade profundas reflexões sobre valores, inclusive, sobre aquilo que realmente importa: Que saudade de se reunir com os amigos no sítio, tomar aquelas cervejinhas geladas - sem o uso de máscaras - num churrasquinho de final-de-semana, possivelmente com uma fraldinha ou asinhas de galinha, já que a picanha sumiu do cardápio dos pobres: R$ 90 o quilo. Fomos longe para descobrir que, de fato, isso é o que realmente importa, como disse o sociólogo espanhol Manuel Castells. 

segunda-feira, 18 de janeiro de 2021

Eduardo Leal: Há homossexuais

Eduardo Leal Cunha

Há homossexuais
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Joy Hester, Love Series, 1949 (Foto: Reprodução)

 

Vladimir Safatle, alguém a quem certamente admiro, usou recentemente sua coluna nesta revista para nos dizer, de forma peremptória, que não há heterossexuais.

Gostaria inicialmente de lembrar aos leitores e ao meu querido Vladimir que os problemas com esta afirmação começam no fato de que podem não existir heterossexuais, mas, curiosamente há, sim, homossexuais. Situação que intrigou bastante o velho Freud.

Depois disso, preciso reconhecer certa dificuldade em responder a seus argumentos, dado que concordo com muitos deles.

O problema é que não se trata apenas de argumentos, e muito menos da afirmação d’A Verdade, que uma vez aceita nos curará de todas as nossas feridas. Não estamos em um debate ascético de ideias. Estamos em um campo onde as palavras são encarnadas, têm corpo, e alguns destes corpos são discriminados ou, ao contrário, gozam de privilégios.

Pode ser que heterossexuais não existam, nem brancos. Mas certamente homossexuais existem, como negros e mulheres. Existem e são discriminados desde cedo na escola, no trabalho e nas sociedades de formação em psicanálise, e não me refiro apenas à tradicional e sabidamente conservadora Associação Psicanalítica Internacional.

Por isso me pergunto se o raciocínio de Vladimir em seu artigo não é muito próximo daquele que já fez tantos psicanalistas afirmarem, repetidas vezes, que não há brancos nem pretos, mas sim sujeitos.  Talvez tenham razão, não exista mesmo relação sexual e sejamos todos sujeitos, de modo que a cor da nossa pele não importa muito. Mas em que espaço isso acontece? Certamente não nas calçadas das ruas ou nas filas de emprego e talvez nem mesmo na maioria dos consultórios de psicanálise.

Penso aqui em outro amigo querido que, como bom lacaniano, não se cansa de repetir que a relação sexual não existe, mas que por alguma razão é incapaz de enunciar outras verdades, que para mim talvez sejam circunstancialmente mais importantes. Por exemplo, ele nunca se refere a meu namorado (ou marido, já que oficializamos uma união estável) ou mesmo a meu companheiro. É sempre: como vai seu amigo?

Em outro artigo, também recente, Vladimir admitiu que finalmente se convencera de que a filosofia é branca e eurocêntrica. Para muitos, se trata de um reconhecimento excessivamente tardio e que se fez sem a necessária referência a toda uma vasta literatura – artística e reflexiva – que tenta nos dizer isso há pelos menos cinquenta anos, na qual se inclui, por exemplo, Frantz Fanon, só recentemente descoberto pelos psicanalistas brasileiros. Para mim, aquele artigo foi, de qualquer modo, um gesto político e intelectual importante.

Por isso, gostaria que, num segundo movimento, o filósofo pudesse entender que, à despeito do seu desejo e das pulsões que o ligam a objetos contingentes, no mundo em que vivemos, Vladimir é sim heterossexual e mais uma prova viva de que eles existem. O que, aliás, é testemunhado por muitos, já que os supostamente não existentes heterossexuais podem sair nas ruas de mãos dadas com seus objetos parciais, sem o risco de sofrer algum tipo de violência. Eu não.

E não se trata, melhor ressaltar, de uma questão política, que possa ser pensada em separado dos processos de construção subjetiva, pois a deslegitimação das experiências homoeróticas, que marca nossa socialização, claramente incide sobre os processos de subjetivação e os modos possíveis de existir e de se relacionar consigo com o outro. Por isso, um autor como Didier Eribon é levado a afirmar que o mundo homossexual é constituído pela injúria.

Evidente que, como qualquer identidade, a homo e a heterossexualidade nos aprisionam e limitam nossas possibilidades de existência. Evidente que é necessário e urgente, nos liberarmos desse modelo binário como, aliás, de qualquer identidade, mas a emancipação não se fará pela afirmação de uma verdade última que se imporá como revelação aos ignorantes. Nos tempos de hoje, aliás, não fica bem acreditar que “conhecereis a verdade e a verdade vos libertará.”

 

Assim, parece-me que seu
argumento, embora possa
ser tomado como verdadeiro,
é insuficiente, pois lhe falta
dizer que os heterossexuais
não existem e, no entanto,
eles existem.

 

 

Ocupam posições de poder, figuram a norma e em sua grande maioria, ainda hoje, em boa medida, discriminam aqueles com os quais não podem se identificar, os ditos homossexuais.  Este é o X da questão. É preciso enfrentar esse duplo estatuto, em lugar de negá-lo, afirmando uma verdade maior, situando-a como, esta sim, a vivência concreta do sexual.

Por outro lado, Vladimir parece esquecer que quando falamos de homo ou heterossexuais não é exatamente de práticas sexuais que estamos tratando, do contrário ainda falaríamos de sodomia e coisas tais. Assim, não dá para reconhecer a força da heteronormatividade e ao mesmo tempo supor que heterossexuais não existem. Essas duas existências se determinam e se produzem mutuamente e um dos seus efeitos está no fato de que se desejamos “objetos que circulam ou se fixam entre os corpos, em corpos”, esses corpos são situados hierarquicamente em relação à heteronorma, e assim acabam por definir limites para os sujeitos que os habitam.

Mais ainda, para afirmar que heterossexuais não existem, nem tampouco a relação sexual, talvez seja necessário colocar também em questão o binarismo de gênero, o que não poderia ser feito sem interrogar minimamente a diferença sexual e seu estatuto de invariante antropológico, até porque no Édipo, tal como lido em Lacan – ao menos em grande parte da sua obra e segundo muitos dos seus comentadores –, elementos como sexuação, identidade de gênero e escolha de objeto se entrelaçam em um modelo de constituição subjetiva que arrisca se referir a um ideal e supor um desenvolvimento necessário, naquilo que Judith Butler denomina produção de gêneros inteligíveis.

Estamos dispostos a tanto? Nossa crítica da heterossexualidade pode nos conduzir à interrogação do Édipo, do diagnóstico estrutural e de uma antropogênese que vincula diferença sexual e entrada na ordem simbólica?

Em sua conclusão, o artigo enuncia um desejo de emancipação, mas creio que as estratégias para tal emancipação não podem ser generosamente decididas pelos heterossexuais (sobretudo se eles sequer existirem), afinal toda a desordem no gênero que registramos nos últimos anos foi obra de pessoas engajadas em práticas sexuais e performances de gênero dissidentes. O que nos leva a pensar que se há algo na norma cisgênera-heterossexual-patriarco-colonial que oprime aqueles identificados como heterossexuais (e homens, brancos, europeus etc.), estes ou não o percebiam ou estavam relativamente bem acomodados, pois a violência da norma parece que só passou a perturbá-los depois que “as gay, as bi, as trava, e as sapatão”, junto com as feministas, começaram a tramar sua revolta e a interrogar a psicanálise e seus enunciados cabais.

Eduardo Leal Cunha é psicanalista, doutor em Saúde Coletiva (IMS), professor do Departamento de Psicologia e Coordenador do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal de Sergipe e Pesquisador Associado do Departamento de Estudos Psicanalíticos da Universidade de Paris.

(Publicado originalmente no site da Revista Cult)

Vladimir Safatle: Não há heterossexuais

 

Não há heterossexuais
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"Sem título", Joy Hester, 1949, Australia (Foto: Reprodução/Wikiart)

 

Um problema relevante em certos debates sobre sexo e identidade que circulam atualmente entre nós é produzido quando se parte do pressuposto de que existam heterossexuais. Segundo essa ideia, heterossexual seria aquela pessoa cujas escolhas de objetos recaem sobre algo que seria o “sexo oposto”. A princípio, essa seria a posição hegemônica em nossas sociedades. Ou seja, viveríamos em uma sociedade na qual a maioria das pessoas teriam, como escolha de objeto, o “sexo oposto”. De onde se seguiria algo como certo binarismo próprio a vida dos pretensos heterossexuais: presos em uma dinâmica do desejo que só reconheceria homens e mulheres, sendo que um polo seria submetido a identificações e outro a investimentos libidinais.

Mas há de se perguntar se toda essa gramática de “binarismos” e “heterossexuais” realmente descreve alguma vivência concreta do sexual. Talvez seria o caso de começar por se perguntar se heterossexuais realmente existem.

Pode parecer que uma questão dessa natureza seria ociosa, algo como uma provocação especulativa equivalente a se perguntar se existe, de fato, montanhas e números primos. No entanto, seria importante se perguntar sobre que tipo de existência é essa que se procura descrever quando se fala de “heterossexuais”. Que tipo de objetos tais termos cobrem? Onde eles de fato estão, em qual tipo de categoria?

Esclarecer esse ponto seria importante para sabermos quem são afinal esses “heterossexuais”, esses apóstolos do binarismo de que tanto se fala. Pois o que aconteceria se descobríssemos que não há ninguém sob esses termos, que não há sujeito algum que possa ser descrito dessa forma, que “heterossexual” é, vejam só vocês, uma categoria absolutamente vazia? Não seria, afinal, uma atitude mais subversiva do que imaginar que podemos encontrar “heterossexuais” andando nas ruas, trabalhando conosco ou mesmo vivendo em nossa própria casa?

Pois é possível que devamos fazer uma distinção importante e nem sempre levada em conta nos debates atuais. É possível não existir heterossexuais, o que não significa que inexista heteronormatividade. Quer dizer, não há práticas concretas que possam ser descritas como “heterossexuais”, embora não haveria dificuldades maiores em identificar discursos que procuram disciplinar comportamentos e significar relações a partir da crença na existência de heterossexuais. Tais discursos criam classificações e estabelecem uma gramática que inviabiliza, para os próprios sujeitos, o sentido das práticas das quais eles são portadores.

Assumir isto significaria que nosso problema não é um problema de “tolerância”. Não vivemos em um mundo que deveria saber lidar de forma mais tolerante com a multiplicidade de formas de relacionalidade que não podem ser descritas como “heterossexuais”. Nosso problema talvez seja muito mais estrutural. Vivemos em um mundo que tem uma gramática, com suas classificações e suas emendas posteriores, que simplesmente nada diz sobre a experiência concreta no campo do sexual. Uma gramática que não é uma “condição de possibilidade” para a orientação e a experiência do sexual, mas que é uma má “condição de impossibilidade”. Nesse sentido, nosso problema não é de “tolerância”. Nosso problema é de destituição. Há toda uma gramática inadequada que precisa ser destituída, pois não sabemos como falar do sexual.

Nesse sentido, o primeiro equívoco consiste em acreditar que “relações sexuais” é algo que ocorre entre “pessoas”, sejam elas duas ou mais. Pois sendo uma relação sexual aquilo que ocorreria entre “pessoas”, o próximo passo poderia ser então se perguntar: qual o tipo de gênero tal “pessoa” tem? Mas e se tais relações não se dessem no nível das “pessoas”, se essa descrição fosse, na verdade, um erro categorial?

Uma das ideais mais fortes da psicanálise a esse respeito, potencializada por Jacques Lacan, nos lembra que relações sexuais não se dão entre representações globais de pessoas, mas entre objetos que circulam entre corpos. Objetos que carregam traços de posições do desejo que desconhecem algo que poderia ser chamado de “determinações  de gênero”. Mas vivemos em uma metafísica tão empobrecedora que descrever relações sexuais como algo que se dá entre objetos parece alguma forma de degradação das “pessoas” envolvidas, de instrumentalização do outro, de “fetichismo” e coisas do gênero. Como se só houvesse força de ação e decisão em “pessoas”, não em “objetos”. Toda uma concepção jurídico-metafísica de atividade acaba assim por colonizar até mesmo a forma de compreendermos afecções. Há também um fetichismo da pessoa do qual deveríamos saber nos livrar.

 

 

Assim, dizer que relações sexuais
se dão entre objetos significa,
concretamente, que ninguém
deseja “mulheres” ou “homens”,
mas deseja objetos que circulam
ou se fixam entre os corpos,
em corpos.

 

 

Objetos esses que não são projeções de fantasmas individuais. O corpo do Outro nunca é uma tela de projeção. Ele é um espaço de encontro e nunca se erra um encontro efetivo, sendo a marca de sua efetividade a força bruta de duração. Se um encontro ocorre é porque há objetos que circulam, e a ideia de circulação é importante aqui. Eles tem a capacidade de passar de um lado para o outro porque eles fazem reverberar as histórias dos desejos dos sujeitos, a história de seus desejos desejados. Uma hora eles se encontram de um lado, outra hora eles se encontram de outro. E tal circulação é a expressão de que tais objetos não se fixam em  “gêneros específicos”. Por isto, eles podem levar um “homem” ou uma “mulher” a pontos de indistinção, eles podem inverter posições, eles podem permitir composições heteróclitas as mais variadas.

Quando um juiz da corte de apelação de Dresden, no século 19, cujo nome era Daniel Paul Schreber, tem um surto paranoico depois de imaginar que seria bom ser uma mulher “no momento do coito”, ele demonstrou que apenas um paranoico sentiria tal posição como exterior a si. Só um paranoico entenderia isso como algo tão invasivo que lhe levaria a construir um delírio que integraria tal corporeidade, tais objetos associados por ele ao gozo feminino, apenas à condição de uma modificação alucinatória de seu corpo tendo em vista a sua própria transformação em “a mulher de deus”. Fora da posição paranoica, estamos a todo momento fazendo tais passagens em nosso inconsciente (que é onde os encontros afetivos realmente se dão), tanto em um sentido quanto em outro.

Dito isto, é fato que a discursividade heteronormativa pode ser vivenciada como processo de reações fóbicas contra tais movimentos, contra tal circulação de objetos. Ela pode assim consolidar disposições produtora das piores violências e negações, pois violências nas quais se mistura destruição de si e incorporação, no outro, do que se quer destruir. Mas tais discursividades descrevem apenas uma tentativa desesperada e brutalizada de lidar com impasses típicos dos que compreendem e vivenciam o desejo no nível de “pessoas” e “indivíduos”.  Nesse sentido, é bem provável que a melhor forma de desativar tais discursos seja mostrando, cada vez mais, que eles não descrevem sujeito algum, que eles descrevem uma forma de disciplina que cresce exatamente no momento em que as sociedades começam a classificar sujeitos a partir das pretensas escolhas sexuais de pessoas que eles seriam.

“Mas, como assim? A heteronormatividade é um discurso sobre nada?”. Bem, esse não será o primeiro dos discursos sem objeto que conhecemos. O que pode nos levar a imaginar um momento histórico de emancipação no qual será absolutamente indiferente se sujeitos são portadores de estratégias distintas de circulação de objetos, absolutamente indiferente a especificidade da série dos corpos que sujeitos singulares privilegiam. Não há porque classificar séries diferentes em conjuntos distintos. A partir dessa indiferenciação talvez encontremos enfim uma forma melhor e mais bela de falar de sexo.

Vladimir Safatle é professor titular do departamento de filosofia e do instituto de psicologia da USP

(Publicado originalmente no site da Revista Cult)