pub-5238575981085443 CONTEXTO POLÍTICO.
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quarta-feira, 13 de maio de 2015

Eliane Brum, no El País: Humilhar e ignorar professor pode. Sufocar e ferir não.


O que se pode infligir a um educador sem causar indignação aponta o tamanho do buraco da educação pública no Brasil

 
– "Eles estão atirando em nós".
A frase atravessa vídeos sobre o massacre dos professores, executado pela Polícia Militar do Paraná a serviço do Governo de Beto Richa (PSDB), em 29 de abril. Professores desmaiam, professores passam mal com as bombas de gás lacrimogêneo, professores são feridos por balas de borracha. Um cão pit bull da PM arranca pedaços da perna de um cinegrafista. Há sangue na praça de Curitiba, diante da “casa do povo”, a Assembleia Legislativa do Estado. Ao final, há cerca de 200 feridos. Mas mais do que as imagens, é essa frase anônima, em voz feminina, que me atinge com mais força. Porque há nela uma incredulidade, um ponto de interrogação magoado nas entrelinhas e finalmente a compreensão de ter chegado a um ponto de não retorno. Depois de ser humilhada por baixos salários, depois de dar aula em escolas em decomposição, depois de ser xingada por pais e por alunos, agora a PM também podia atirar nela. E atirava. E, se as bombas de gás, as bombas de efeito i-moral não matam, pelo menos não de imediato, a sensação é de morte.
O susto causado pela percepção de que não havia mais limite para o que se podia infligir a um professor era a prova de que um professor não era mais um professor. Toda a aura que envolve aquele que ensina se esvaía em sangue na praça de Curitiba. Os PMs, cujos filhos possivelmente são ensinados por aqueles educadores, tinham autorização para atirar. Esse extremo, o da fronteira rompida, causou uma comoção nacional. E vem desenhando o inferno do governador Beto Richa, explicitado por uma crise no Governo paranaense que levou até agora à demissão de dois secretários, o de Educação e o de Segurança Pública, e o comandante da PM.
De repente algo se esgarçou e tornou-se inaceitável para uma parte significativa da sociedade. Ainda houve quem tentasse transformar os professores em “vândalos”, a palavra usada para criminalizar aqueles que protestam desde as manifestações de 2013. Ainda houve na imprensa quem chamasse massacre de “confronto”, o truque para transmitir a ideia de que eram forças equivalentes em conflito. Mas as imagens e os relatos eram evidentes demais. As redes sociais na internet mais uma vez cumpriram o papel de amplificar as vozes e garantir um número maior de narrativas para dar conta da complexidade do 29 de abril. Os coletivos de mídia independente tiveram inegável importância na documentação da história em movimento.
Por que bala de borracha e gás é a ruptura que produz indignação?
É assustador que alguns tenham tentado justificar, em plena democracia, o massacre em praça pública dos professores do Paraná. Nessa tentativa de criminalizar aqueles que protestam e, ao mesmo tempo, legitimar a ação policial, como se as forças de segurança do Estado não tivessem se comportado como forças criminosas, há algo em curso que precisamos prestar muita atenção. Não existe equívoco de inocência nessa versão. Mas eu gostaria aqui de me deter em algo que também me parece um tanto perturbador, ainda que pelo avesso.
É sinal de esperança que grande parte da sociedade brasileira, na qual me incluo, se comova diante da violência contra os professores. Não há dúvida sobre isso. Mas cabem pelo menos duas perguntas. A primeira é: por que este é o limite que produz indignação? A segunda: o quanto o que se tornou visível apenas revela e reforça a invisibilidade maior?
Quando testemunho as manifestações de repúdio ao massacre de Curitiba, sinto esse misto de esperança e de incômodo. Esperança pelos motivos óbvios. Quem sabe não acordamos, todos nós, para o buraco da educação no Brasil? Inclusive porque a perda de popularidade do governador Beto Richa e a crise instalada no Governo virou um pesadelo bem vivo para o restante dos governantes.
Agora, o incômodo. O que esse limite revela sobre o que não é limite? É louvável que as pessoas se revoltem ao ver professores sangrando ou desmaiando ou sendo ameaçados por cães pit bull. Se não nos revoltássemos nem com isso seria ainda mais dramático. Mas por que testemunhar durante décadas professores brasileiros, dos diversos estados do país, ganhando um salário incompatível com uma vida digna é um fato com o qual parece ser possível conviver, tão possível que chegamos a esse ponto depois de 30 anos de democracia? Por que escolas caindo literalmente aos pedaços, naufragando a cada chuva, numa materialização explícita da situação crônica da educação pública, é algo com o qual a maioria se acostuma? Por que o fato de os professores serem ameaçados por alunos e às vezes por pais de alunos em salas de aula, num confronto entre desesperados, uma versão urbana da guerra dos miseráveis que atravessa os rincões do Brasil, é algo que se tolera?
Em resumo: pode pagar salário indecente, pode botar gente pra ensinar e gente pra ser ensinado debaixo de um teto que pode cair, pode quase tudo. Só não pode ferir com balas de borracha e sufocar com bombas de gás lacrimogêneo. Ah, pit bull também pega mal. Bem, isso os governantes acabaram de aprender que não podem fazer sem provocar repúdio dos eleitores. Já o resto... Talvez nesse sentido possa se justificar uma certa perplexidade da PM, do Governo paranaense e de alguns setores da sociedade brasileira e da imprensa tradicional: como assim, não pode bater nesses “baderneiros” que deveriam estar na sala de aula e não na praça protestando? Não pode descer o cacete nesses “vândalos” que têm o desplante de achar que a casa do povo é do povo?
Ao menos descobriu-se que há um limite para o que se pode infligir a um professor, uma fronteira demarcada pela reação da sociedade ao massacre de Curitiba. Mas que limite sem-vergonha o nosso.
Repetir que educação deve ser prioridade no país é a flatulência do Brasil atual
Qualquer um, em qualquer classe social, em qualquer esfera de poder vai repetir que “a educação deve ser prioridade” ou que “a educação é o maior desafio para o país” ou que “sem melhorar a educação o Brasil jamais será um país desenvolvido”. É um consenso, quase uma platitude. Mas, de novo, é um consenso bem sem-vergonha. É o consenso mais vazio do Brasil contemporâneo, é quase uma flatulência. Que não se perceba o quanto fede é só mais um sinal dessa hipocrisia de salão.
De fato, uma boa parte daqueles que têm voz e poder de pressão para mudar essa situação está pouco se importando. Porque “a elite brasileira é burra”, como já disse aqui neste espaço meu colega Luiz Ruffato. Principalmente porque a elite brasileira acredita que seus filhos estão a salvo. Essa ilusão de que os “meus” filhos estão salvos, já dos filhos dos “outros” eu sinto pena, lamento, desculpe aí, queria sinceramente que fosse diferente, mas não me incomodo o suficiente para fazer disso uma grande questão na minha vida. Afinal, quem tem tempo pra isso tendo que ralar para pagar os preços exorbitantes de uma escola privada que transforma educação em mercadoria cara?
Inclusão social no Brasil significa entrar no barco dos que podem se salvar. A classe média acredita que seus filhos estão a salvo e uma parcela daqueles que ascenderam, na década passada, ao que se chama de Classe C fez um grande esforço para matricular seus filhos em escolas particulares assim que a situação financeira permitiu. Filho em escola privada – e portanto supostamente a salvo da péssima educação pública – é parte do que significa ser classe média no Brasil. Dos mais ricos, nem se fala.
É óbvio – ou deveria ser – que a má qualidade da educação oferecida a essa entidade chamada “povo brasileiro” em algum momento vai afetar os privilégios dos mais ricos. Mão de obra desqualificada é um problema sério no Brasil, com impacto em qualquer projeção de futuro. Então, ainda que por egoísmo ou por pragmatismo, a elite econômica deveria se preocupar, o que já vem acontecendo com bem poucos empresários, mas a preocupação ainda é imensamente menor do que as dimensões da catástrofe.
A escola privada, como gueto de iguais, é um reprodutor de privilégios, mas também um reprodutor de ignorâncias
Talvez houvesse uma mudança real de posição se as pessoas percebessem que seus filhos estão menos salvos do que acreditam estar. Primeiro, porque escola privada e educação de qualidade não são sinônimos. Longe disso. Apenas poucas escolas, em geral as mais caras, a elite da elite, têm qualidade reconhecida. Ainda assim, são apenas medianas com relação ao nível de suas similares em países do mundo nos quais a educação é prioridade.
Segundo, educação está longe de ser apenas conteúdo formal. Educação é um processo muito mais complexo, no qual a diversidade das experiências é fundamental. É claro que aquela elite que se habituou por séculos a decodificar a diferença como inferioridade tem dificuldades para compreender a diversidade de experiências como riqueza. Para esta, o diferente era primeiro o escravo, depois o empregado ou o subalterno, alguém com quem não havia nada a aprender, já que a sua única função era servir.
Há, porém, uma elite intelectual e uma classe média com outra origem, de quem se poderia esperar uma visão menos estúpida. O que muitos pais não percebem é que a escola privada, como gueto de iguais, é um reprodutor de privilégios, mas também é um reprodutor de ignorâncias. E também um reprodutor de pobrezas não materiais. Num exemplo bem corriqueiro, em algum momento talvez os pais possam perceber que adolescentes que já andaram bastante pelo mundo em viagens protegidas mas nunca pegaram um metrô em São Paulo ou um ônibus de linha em qualquer lugar podem ter alguma dificuldade em lidar com a vida como ela é. Porque a vida como ela é chega para todos em algum momento e em alguma medida. E podem, principalmente, ter perdido um universo de experiências criadoras e criativas não apenas por serem incapazes de cruzar as pontes, mas por nem mesmo desconfiar que é importante cruzá-las.
O degrau seguinte daquele que historicamente foi submetido é virar não cidadão, mas cliente
Num país com a educação pública em ruínas ninguém está a salvo, nem mesmo os filhos da elite. Ainda que seja óbvio que estes estão bem mais a salvo que todos os outros. O que quero enfatizar é a hipótese de que a ilusão de estar a salvo cumpre um papel decisivo na manutenção das ruínas como ruínas. E na convivência com o que não deveria se poder conviver, na aceitação da indignidade como algo já dado, na tolerância ao intolerável que é a situação dos professores e das escolas no Brasil. O que quero dizer é que a comoção pública diante do massacre de Curitiba, se é louvável, é também sinalizadora da falência da sociedade brasileira, inclusive ética. Já que é pelos limites que também compreendemos a lógica de uma sociedade. E o limite aqui é: pode humilhar um professor, pode pagá-lo mal, pode submetê-lo a condições insalubres de trabalho. Não pode ferir explicitamente seu corpo.
Vale a pena compreender que a ampliação do acesso à educação formal é muito recente no Brasil. É o salto que deveria ter sido dado e ficou pela metade. Para muitos pais das camadas mais pobres, eles mesmos analfabetos ou filho de analfabetos, só o fato de conseguir matricular o filho numa escola, mesmo que seja uma instituição de má qualidade, já é um avanço. Como tem sido para os pais de Classe C ter um filho com diploma universitário, mesmo que de uma faculdade de terceira linha.
A saída encontrada pelos mais pobres, numa lição aprendida com a classe média tradicional, é individual. Por isso, uma das primeiras medidas de ascensão social é reproduzir o ciclo: matricular o filho numa escola privada, deixando a pública para os mais fragilizados, os menos visíveis, os com pouca ou nenhuma voz. O degrau seguinte daquele que historicamente foi submetido não é se tornar cidadão, mas cliente. Parece mais fácil aderir à lógica de mercado. Quem ainda não conseguiu fazer a conversão, almeja fazê-la. Acolhe a versão perversa de que a melhora está na sua mão, de que é o pai e a mãe de família que precisam mudar de classe se quiserem dar uma boa educação aos filhos.
No Brasil ainda infectado pela mentalidade de Casa Grande e Senzala, tantas vezes reatualizada para continuar em vigor, ainda é difícil para muitos compreender a educação como o direito fundamental que é. E cobrá-lo do Estado pelo caminho da cidadania. É também por conta dessa mentalidade, na qual a qualidade da educação vira um problema com solução individual e privada, e não uma luta pública e coletiva, que a revolta é abafada e os professores vão se convertendo em párias, esvaziados de dignidade, lugar e sentido.
É assim que caminha o “Brasil, pátria educadora”, país que tem um dos piores salários de professor do mundo. O lema do segundo mandato da presidente Dilma Rousseff (PT) apenas mais um sinal do absurdo, de uma espécie de realismo de perdição.
A tensão, porém, existe. E é grande. O fato de as escolas públicas sofrerem constantes depredações, se é sinal da violência crescente, é também sinal de que a escola falha como um lugar de acolhimento para os conflitos e também como espaço para a construção de sentidos e para a qualificação do desejo. Ainda que as causas sejam várias e complexas, é bastante óbvio que, sem outros canais para expressar a traição de uma educação que não educa, resta a violência mais primária. Também porque a escola pública, que deveria dar condições de representação, não representa. E assim vai fracassando ao ser reduzida a uma tentativa perversa de conter a tensão causada pela fratura racial brasileira.
A depredação das escolas públicas mostra que os alunos aprenderam a lição dada pelo Estado: tanto eles quanto os professores valem muito pouco
A depredação das escolas por alunos é também uma resposta tortuosa à depredação original, a do Estado, que deixa as escolas apodrecerem, dando provas evidentes de que aquele que lá está é considerado cidadão de segunda ou terceira categoria. A violência direta de alunos e, às vezes, também de pais de alunos contra professores é também o sinal de que a lição dada pelo Estado foi bem compreendida: professor vale pouco, quase nada.
Enquanto alunos e professores se violentam mutuamente, aqueles que têm a responsabilidade de mudar essa situação não são incomodados. É conveniente que as vítimas se agridam entre si, muitas vezes dentro de escolas cada vez mais parecidas com bunkers para se proteger da comunidade, o que em si já expõe o tamanho da tragédia. Se essa realidade ultrapassa os muros da escola para ocupar espaços geográfica e simbolicamente mais centrais, chama-se a PM. Que os policiais militares, também eles servidores mal pagos do Estado, façam o serviço sujo. E então homens públicos como Beto Richa sentem-se à vontade para declarar, rosto compungido: “Não tem ninguém mais ferido do que eu. Eu estou ferido na alma. O mais prejudicado hoje sou eu”.
Não, governador. Mas não mesmo. Valeu a tentativa, mas não vai colar.
Geraldo Alckmin, subestimado como “picolé de chuchu”, é talvez o político que mais mereça a atenção do país neste momento
Agora, a segunda pergunta que lancei no início desse artigo, e que diz respeito ao jogo entre o visível e o invisível. Ou, repetindo: o quanto o que se tornou visível apenas revela e reforça a invisibilidade de fundo? O sangue dos professores no massacre de Curitiba os tornou visíveis para o país, mas essa visibilidade é um tanto ilusória. Neste momento, greves de professores esvaziam salas de aula em vários estados e municípios brasileiros. E cadê a surpresa? Cadê o susto? Cadê as manchetes? Cadê a indignação? É muito menor do que o bom senso e a catástrofe educacional brasileira sugeririam.
Por isso. Porque pode. Na prática tornou-se aceitável que os mais pobres fiquem sem aula ou tenham educação de má qualidade. Só não pode é sufocar professor com gás e ferir professor com bala de borracha no centro. Aí passa dos limites. Aí exagerou, né, tio. Aí a sociedade grita. Não deixa de ser uma versão do “estupra mas não mata”.
Talvez o paradigma seja o estado de São Paulo, governado há mais de 20 anos pelo PSDB. Em São Paulo, os professores estão em greve há quase dois meses, mas o governador Geraldo Alckmin chegou a afirmar: “Na realidade não existe greve de professores”. Faltou explicitar em qual realidade.
Geraldo Alckmin é talvez o político que mais mereça a atenção do país no momento, mais até mesmo do que seu colega Beto Richa. Subestimado com o apelido de “picolé de chuchu”, o que apontaria uma suposta falta de personalidade, parece ser de longe uma das criaturas políticas mais nebulosas do Brasil atual. Sobre Alckmin, a academia deveria estar escrevendo teses, e a imprensa, perfis de peso. O apelido não tem nenhum lastro na prática concreta do Governo.
O governador de São Paulo escolheu na sua expressão pública, no trato com a população e com a imprensa, a política da negação. O que prejudica sua imagem e seus ambiciosos planos eleitorais não existe. Não existe racionamento de água, não existe greve dos professores. E, o mais surpreendente: funciona. Geraldo Alckmin se reelegeu no primeiro turno, em plena crise hídrica, dizendo que não existia crise. Agora, enfrenta a greve dos professores com a mesma fleuma. Enquanto Beto Richa, que começava a se tornar um expoente do PSDB, mandou a PM massacrar professores, Alckmin prefere fingir que os professores em greve não existem. Onde está a maior perversão? Ou a maior esperteza? Beto Richa com a popularidade em queda livre, chamado de “Rixa” e até de “Ritler” em artigos e posts nas redes sociais; Alckmin, o “picolé de chuchu”, avançando, apesar de todas as crises, olhos fixos na eleição presidencial de 2018.
Só posso sugerir que Geraldo Alckmin conhece bem seus eleitores.

Eliane Brum é escritora, repórter e documentarista. Autora dos livros de não ficção Coluna Prestes - o Avesso da Lenda, A Vida Que Ninguém vê, O Olho da Rua, A Menina Quebrada, Meus Desacontecimentos e do romance Uma Duas. Site: desacontecimentos.com Email: elianebrum.coluna@gmail.com Twitter: @brumelianebrum

O carrão do negão.



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José Luiz Gomes escreve:


Parte considerável dos estudos do sociólogo Gilberto Freyre foram realizados em universidades americanas. Ali ele fez o mestrado e, por muito pouco, não concluiu o doutoramento. Bastava apresentar à banca uma versão inglesa de sua famosa obra Casa Grande & Senzala, como lhe foi sugerido por um dos seus professores. O mestre de Apipucos, que escrevia tão bem, informou ao seu interlocutor que não sabia "dançar em inglês". Bailava na língua portuguesa. Quando Gilberto informou a um amigo que pretendia voltar ao Brasil, foi aconselhado a não fazê-lo, pois o Recife não era apenas cruel com alguns políticos, mas com todos aqueles que conseguiam alguma projeção. Em suma, uma cidade de invejosos. Darcy Ribeiro, em conversa com João Goulart, conseguiu convencê-lo a nomear o sociólogo Josué de Castro para o seu ministério. 

Em conversas reservadas, pediu que o estudioso da fome mantivesse segredo absoluto sobre o assunto. Vaidoso, Josué começou a espalhar na província que seria indicado ministro. Não deu outra. Dentro da própria agremiação partidária, surgiram uma leva de pessoas a desqualificar o sociólogo para assumir o ministério, enquanto alguns "mais capazes" se sentiam preteridos. Afinal, Josué de Castro​ só vivia fora do país. De fato, Josué de Castro viajava bastante, mas isso era apenas mais um indicador do prestígio internacional que ele havia conquistado, a partir de suas reflexões sobre o problema da exclusão alimentar no país, principalmente na região Nordeste. 

Desde então, pelo que observamos pela imprensa e pelas redes sociais no dia de ontem, esse quadro não mudou muito. As colunas de políticas baixaram tanto o nível que ficaram parecendo com os programas do tipo Leão Lobo ou das revistas Tititi, preocupados unicamente em revelar segredos das estrelas, do tipo quem está comendo quem. Quem já foi vítima dessas ilações sabe muito bem o que isso significa e os interesses obscuros embutidos nessa prática. Em Pernambuco isso já atingiu o limite do suportável. Até os instrumentos de Estado são utilizados para atingir a honra ou denegrir com calúnias e difamações quem se coloca contra os desmandos dos grupelhos políticos hegemônicos, alinhavados com os interesses do capital. 

Trata-se de um dispositivo azeitado, bastante lubrificado, acionado no momento certo. Já comentamos isso numa outra oportunidade. Reparem que qualquer mobilização contra o Governo Dilma Rousseff, na província, e o Estado amanhece com os muros pichados com os dizeres que foi o PT que matou aquele ex-governador dos olhos verdes ou camisas com aquela famosa frase: Não vamos desistir do Brasil. Possivelmente em razão da luta que se trava entre empreiteiras, órgãos públicos e setores da sociedade civil em torno do Projeto Novo Recife, pessoas ligadas ao Grupo Direitos Urbanos tiveram suas vidas devassadas, caso do Deputado Edilson Silva e Leonardo Cisneiro. Do primeiro, descobriram que ele comprou um suposto carrão, dessas caminhonetes de cabine dupla, avaliada em R$ 120.000,00. 

Sobre Cisneiro, informaram que o mesmo é professor da Universidade Federal Rural de Pernambuco e dá expediente no gabinete de Edilson Silva, o que se constitui num problema, posto que, a princípio, ele não dá aulas na ALEPE. Ainda nesta semana, publicamos no blog um artigo do professor Michel Zaidan Filho​ sobre a campanha que elegeu Edilson Silva como o primeiro deputado do PSOl eleito em Pernambuco. Foi uma verdadeira campanha do tostão contra o milhão. Um megafone, um tamborete, muito cuspe e disposição. Um bom trabalho pelas redes sociais, e ele estava eleito. Edilson é um sujeito transparente, vem realizando um bom mandato, os proventos de Deputado Estadual já lhes faculta o acesso a um bem como um carrão, adquirido em suaves prestações. Para esta situação, deixando as ilusões e as idealizações de lado, temos que usar a filosofia pragmática ou maquiavélica. Tanto do lado do negão, quanto do lado dos seus acusadores. 

Todo político deseja o poder. É a característica do campo social onde eles atuam. Vamos deixar de ser ingênuos, porque a Assembleia Legislativa do Estado não é, necessariamente, um lugar de orações. Até sua "bancada evangélica", possivelmente, possui outras motivações para além da salvação da alma. E o poder, por sua vez, impõe seus ritos. É típico desse campo social, para usarmos uma expressão cara ao sociólogo francês Pierre Bourdieu. Muito pouco provável que o senhor Edilson Silva continuasse indo para a ALEPE com a sua famosa bicicleta, na qual fazia campanha. Seus algozes, por sua vez, não se orientam por nenhuma moral elevada, mas por uma tentativa inequívoca de tentar prejudicá-lo, apontando-o como uma pessoa "vendida"; que se sujeitou aos "apelos do capital e do consumismo"; um político da "vala comum como outro qualquer"; um ex-pobre que está se "lambuzando" nas benesses proporcionadas pelo exercício do poder; uma baita "decepção". Sinceramente, não vejo aqui como condenar o negão. E falo com a intimidade de um eleitor. O que merece a nossa reprovação é esse botequim de fofocas e bisbilhotagem institucionalizada que tomou conta do Estado de Pernambuco, cujos setores da imprensa é apenas um dos aspectos do problema. 

Isso é mais comum do que se imagina. Quando o "sistema" não possui contra-argumentos sobre uma determinada questão - o caso do projeto Novo Recife se aplica bem a esta situação - parte-se para a tentativa de desqualificar os atores políticos e, consequentemente, diminuir o impacto do seu "discurso". Para isso, utiliza-se de todos os aparatos possíveis e imagináveis, alguns deles ilegais. O capital compra bens tangíveis e simbólicos, consciências igualmente. Transformar espaços de discussão política em colunas de Leão Lobo é o de menos. Caberia agora a nossa gloriosa Polícia Civil do Estado esmiuçar e descobrir como este documento "vazou" do DETRAN.

P.S do Realpolitik: A foto da caminhonete acima foi tirado por um leitor e encaminhada ao blog de Jamildo, publicado pelo JC, assim como o documento do carro, onde o Deputado Edilson Silva, do PSOL, aparece como proprietário. O difícil é entender como este cidadão teve acesso ao documento, cuja liberação não seria tão simples.Também gostaríamos de acrescentar que não sabemos nada sobre a situação funcional de Leonardo Cisneiro, impossibilitando-me, portanto, de emitir algum juízo de valor sobre o assunto. Observaríamos, entretanto, que, se houve uma cessão legal do órgão de origem, a UFRPE, não há nenhuma irregularidade na situação.


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terça-feira, 12 de maio de 2015

Charge! Renato Aroeira em seu perfil do Facebook

Vladimir Safatle: Obscurantismo.





Pode parecer um mero problema ligado à vida acadêmica nacional, mas infelizmente é muito mais que isto. Trata-se da expressão perfeita de um sintoma de obscurantismo que parece, aos poucos, tomar conta de setores importantes da sociedade brasileira.
Há alguns anos, alguns dos mais destacados professores de filosofia da PUC de São Paulo, associados a várias universidades francesas, ibéricas e latino-americanas, juntamente com o Consulado Geral da França em São Paulo, criaram a cátedra Michel Foucault. Seu objetivo era fornecer a estrutura institucional para o estudo e pesquisa de um dos filósofos mais importantes do século 20, com grande influência no desenvolvimento do pensamento brasileiro. Graças a tal iniciativa, o Brasil recebeu, por exemplo, um precioso acervo das gravações de suas aulas no Collège de France.
No entanto, há algumas semanas um dos conselhos dirigentes da PUC-SP vetou a criação da referida cátedra. Motivo: o pensamento de Foucault não coadunaria com os valores defendidos por uma instituição católica de ensino. Por ironia do destino, e isto diz muito sobre o Brasil atual, a mesma PUC-SP foi, nos anos setenta e oitenta, uma das instituições responsáveis pela introdução do pensamento de Foucault e outros filósofos franceses entre nós.
Alguns podem ver nisto certa coerência, como seria coerente, seguindo este mesmo raciocínio, impedir os alunos da PUC terem aula sobre Nietzsche (já que este anunciou a morte de Deus), Freud (que chamou a religião de "o futuro de uma ilusão"), Voltaire (o anticlerical por excelência) ou quiçá mesmo sobre Spinoza (visto pela teologia oficial como a expressão cabal da heresia panteísta).
Mas, se assim for, por que chamar de "universidade" o que, cada vez mais, se aproxima de um seminário católico ou de uma maquinaria de proselitismo religioso? "Universidade" significa espaço livre de saber, no interior do qual podemos oferecer um formação na qual visões em conflito são apresentadas. Por isto, o conteúdo de ensino de uma universidade deve estar livre dos limites impostos pelos interesses de igreja, mercado, Estado ou de qualquer outro poder político.
Se a PUC quer seguir tal caminho obscurantista, então ela deve assumir as consequências de sua escolha e abrir mão de sua creditação como universidade. Pois tal creditação é fornecida pelo Estado brasileiro a partir do respeito a valores elementares de abertura e pluralidade. Várias outras universidades católicas no mundo achariam aterrador uma atitude como a recusa de uma cátedra de filosofia por motivos teológicos. Se esta for a regra daqui para a frente, o Estado brasileiro deve defender o conceito de universidade fruto do Esclarecimento.

segunda-feira, 11 de maio de 2015

Altamiro Borges: PSB + PPS, um novo partido de direita


publicado em 11 de maio de 2015 às 11:26
roberto frerire
PSB-PPS: uma fusão pela direita
Já está marcado, para 20 de junho, o casamento de conveniência entre o PSB e o PPS. O congresso da fusão deverá resultar em um partido ainda mais à direita no espectro político. Nas eleições de 2014, o PSB sofreu vários traumas: o primeiro com a trágica morte de Eduardo Campos; na sequência, com o fiasco da Marina Silva; e, nos estertores, com o apoio descarado ao tucano Aécio Neves – um afronta aos fundadores da ex-sigla socialista.
Como resultado, o partido definhou na disputa nos Estados (caiu de cinco para três governos estaduais) e estagnou na Câmara Federal. Já o PPS, do eterno chefão Roberto Freire, quase sumiu no pleito. A união visa dar alguma musculatura as duas legendas combalidas.
Com a fusão, o PPS finalmente desaparece do mapa político e o PSB passa a reunir 45 deputados federais e sete senadores. A resultante, porém, é um partido mais à direita – com Roberto Freire, um tucano infiltrado, na sua vice-presidência, e Marcio França, vice-governador de São Paulo e fiel seguidor de Geraldo Alckmin, com ainda mais força na sigla.
Como apontou Roberto Amaral, fundador e dirigente histórico do PSB, a fusão é “o ponto final da legenda como força de esquerda”. Em nota publicada logo após o anúncio da fusão no jornal “Folha de Pernambuco”, ele pediu mais “honestidade ideológica” aos atuais chefões da sigla e maior respeito aos seus fundadores socialistas.
Para ele, o PSB poderia, “numa homenagem a João Mangabeira, Miguel Arraes e Jamil Haddad, raspar o ‘S’ de socialismo. Poderia ser apenas ‘P40′, um nada e um número, como muitos de seus dirigentes atuais já pleiteiam há tempos”.
Na sua avaliação, “a fusão é moralmente inaceitável, é o ponto final do PSB, formal e politicamente, é o sepultamento do socialismo, do nacionalismo e da prática de uma política de esquerda.No entanto, é processo natural no PSB de hoje que nada tem a ver com o PSB de seus fundadores”. Ele lembra que atualmente a legenda reúne “o Pastor Eurico, o deputado Heráclito Fortes e a família Bornhausen. E será logo mais o partido de Roberto Freire”.
“Por tudo isso, a fusão é tristemente lógica, pois dá sequência aos esforços atuais de jogar a história partidária na lata de lixo e de abdicar de seu futuro. É obra dos que mudam para ganhar, e transformam a política em mero jogo estatístico, ou instrumento de mesquinhas realizações pessoais. É a miséria da política que espanta os jovens”, conclui a nota de Roberto Amaral.
Outros dirigentes e militantes do PSB identificados com as lutas dos trabalhadores também estão indignados com a guinada direitista da sigla e já estudam alternativas de militância à esquerda. Já os expoentes da direita, principalmente na mídia, estão felizes com o transformismo do PSB e a fusão com o PPS.
Em sua coluna no Estadão, Eliane Cantanhêde, da “massa cheirosa” do PSDB, não escondeu a sua alegria.
Em artigo publicado em 3 de maio, ela soltou rojões: “A fusão do PSB com o PPS é mais um torpedo contra o PT e os planos lulistas de eternização no poder… O primeiro ataque frontal será na eleição municipal de 2016, quando PSB e PPS, já recriados sob nova sigla, pretendem lançar a senadora Marta Suplicy contra a reeleição do petista Fernando Haddad à Prefeitura de São Paulo”.
(Publicado originalmente no site Viomundo)

Tijolinho Real: A doença de Marco Maciel.




O filósofo alemão, Friedrich Nietzsche, num dos parágrafos mais famosos  do seu livro Além do Bem e do Mal, enfatiza que toda palavra é uma máscara e todo o discurso é uma fraude. Muito mais do que importante para algum ramo das ciências sociais, trata-se de um ensinamento importante para vida. Devo confessar que nunca fui muito sensível ao estilo de escrever do filósofo alemão. Fui apresentado a ele através de um outro filósofo, este francês, Michel Foucault,​ sobretudo em razão da leitura de suas famosas conferências no Collége de France. Invariavelmente, Foucault cita Nietzsche, enfaticamente quando trata dessa questão do discurso. 

Essas considerações preliminares nos vem à tona em razão das contradições por trás da figura política do ex-senador Marco Maciel. O político pernambuco figura aqui entre os mais respeitados estudiosos da doutrina liberal no Brasil, ao lado de José Guilherme Merquior. Uma contradição profunda para um político que sempre esteve alinhavado com o fortalecimento do poder de Estado e a supressão das liberdades individuais, durante o Regime Militar de 1964, no Brasil. Marco Maciel fez carreira na estufa da ditadura militar, sendo nomeado, no período, Governador do Estado de Pernambuco, além de outros cargos de relevância na República. Os embates com o ex-senador Marco Maciel foram intensos aqui pelos espaços que ocupamos no blogosfera. Sobre a sua última derrota nas eleições para voltar ao Senado Federal, escrevemos um longo artigo sobre o assunto.

O ex-senador, entretanto, está muito doente e, nessas horas, devemos incorporar outros princípios que orientam a nossa conduta. Do ponto de vista político, não retiro uma palavra do que afirmei sobre ele aqui pelo blog. Estranhava, entretanto, a sua ausência do campo político - para usarmos uma expressão de Pierre Bourdieu - onde ele atuava com notável desenvoltura. Nunca tive a oportunidade - e também faltava o interesse - de conhecê-lo pessoalmente, mas, dizem, trata-se de um cidadão de uma boa conversa, habilidoso articulador. Deve ser mesmo. Nunca fez outra coisa na vida além da política. Parece que nasceu para o mitiiê. Era o tempo todo com o telefone, fazendo contatos, com um link aberto permanentemente com suas bases. Algo nos informava que o ex-senador não ia muito bem. Agora vem a confirmação de que ele fez tratamento do mal de Alzheimer, em Brasília. Este é o momento de esquecer as diferenças políticas e emprestar solidariedade à família, torcendo pelo restabelecimento da saúde de Marco Maciel. Este é um assunto tabu aqui no Estado. Ninguém comenta sobre o mesmo.  

Nos últimos dias, li algumas notícias alvissareiras do progresso da medicina tratamento desta doença, mas ela é terrível. Atinge o disco rígido do indivíduo, apagando de sua memória até as questões mais cruciais, como as relações de parentesco. É pior do que a morte.    

O PT acabou? Ainda não.





José Luiz Gomes escreve: 



Ontem, 10/05, o jornal Folha de São Paulo trouxe um artigo do cientista político Octávio Amorim sobre uma possível derrota do Partido dos Trabalhadores nas eleições de 2018. O PT passa por um momento que exige algumas mudanças de rumo, mas, até 2018 muita água ainda deve correr pelo rio da História, sendo mínimas as possibilidades de alguém prever, com segurança, a derrocada do partido naquelas eleições. Mesmo que esse alguém seja um respeitado cientista político, que atua no campo acadêmico, cujo capital ainda está em alta. Algumas dessas aves de mau agouro - caso do historiador Marco Antonio Villa - já perderam completamente a credibilidade, sobretudo pela indisfarçável torcida em suas análises "acadêmicas". 

Numa democracia representativa, perder é uma das possibilidade possíveis. Penso até que o PT aprendeu bem essa lição. Quem parece que não aprendeu ainda foram os tucanos, a julgar pelas dificuldades de encarar democraticamente a derrota das urnas nas últimas eleições. Mas, o assunto aqui é o PT. O artigo foi muito bem lido pelo também cientista político Cláudio Gonçalves Couto​, que, como nós, iniciou sua trajetória acadêmica estudando o Partido dos Trabalhadores. Tenho muito respeito pelo Couto, que começou dando aulas na Unicamp e hoje atua na Fundação Getúlio Vargas. 16 anos de poder ininterrupto desgastam qualquer agremiação partidária. Com o PT não tem sido diferente. Soma-se a isso alguns equívocos que poderiam ser evitados. Daqueles equívocos ou erros de avaliação que não tem perdão.  

A erosão do capital político do partido, proporcionalmente observado a partir do fortalecimento das forças de oposição, também é inegável. Um exemplo claro disso são os nacos de poder ocupados por setores políticos conservadores, numa tentativa de "equilibrar" a correlação forças. As concessões foram tantas que alguns analistas chegaram a afirmar que a presidente Dilma Rousseff fazia um governo "tucano". A economia não vai bem e nada nos animam a afirmar que poderíamos estar em céu de brigadeiro em 2018. A corrupção da Petrobras produz um desgaste devastador, respingando no núcleo central da coalizão petista, mesmo quando se sabe que não ocorreu envolvimento direto de Dilma e Lula naquelas falcatruas. Eles, porém, são vítimas de "consensos" formados pelos meios de comunicação massa aliados da oposição ou de caráter golpistas. 


Outro grande problema são os "aliados" do PMDB. Com aliados dessa natureza, eles, certamente, nem precisariam de inimigos. As medidas de "ajuste fiscal", alardeadas como absolutamente necessárias, penalizam profundamente os trabalhadores e aposentados, o que implica no aprofundamento da crise de capital político justamente entre setores que, historicamente, sempre estiveram do lado do partido. Um aspecto positivo nesse imbróglio todo é que, finalmente, o partido parece ter entendido ser necessário manter os projetos estratégicos que sempre caracterizam os governos de coalizão petista - como os investimentos em educação - que alcançam setores sociais historicamente marginalizados. Ainda hoje ouvi do filósofo Renato Janine Ribeiro​,  a declaração de que as cotas só acabam quando acabar o racismo no país. Daqui a alguns séculos, imagino. Mangabeira Unger, através da Secretaria de Assuntos Estratégicos, ao seu estilo, prepara um mega-projeto para o "Brasil, Pátria Educadora."

Embora não haja uma articulação entre os dois ministérios - há muito ego em jogo - nada nos leva a considerar a possibilidade de um conflito aberto entre os dois ministros. O que nos preocupa é que, enquanto Renato Janine fala em tomar como norte o PNE em sua gestão, do outro lado, Mangabeira Unger não considerou o PNE em suas considerações. Em todo caso, temos duas das maiores inteligências do país pensando as questões de educação, o que, por si só, já é um dado bastante alvissareiro. O importante é que o caráter estratégico da pasta tenha retomado o seu status.

Numa seara tão cheia de armadilhas como a política é uma atitude, no mínimo, arriscada predizer resultados. O PT já sobreviveu a muitos reveses. Claro que há problemas e o risco de perder as eleições de 2018 é iminente, como já o foi em 2014. Em seu último depoimento na CPI da Petrobras, o delator Paulo Roberto Costa, por exemplo, citou nominalmente gente do partido envolvido em possíveis recebimentos irregulares de doações para as suas campanhas. Vaccari está com prestígio mais baixo do que poleiro de pato, com a cueca toda suja de batom. O pior é que há indícios de que sua mulher sabia de suas escapulidas eventuais. O rolo-compressor em torno do escândalo da Petrobras é "trabalhado" sistematicamente pela mídia com propósitos específicos, desde as últimas eleições, numa articulação muito bem planejada, com  o propósito de ferir o partido de morte. Seria muito interessante que este cientista político também se desse conta dessa urdidura com o propósito de destruir o PT. 


Outro dia, recebi aqui na repartição, uma lista das novas aquisições da biblioteca. Lá estava, no topo da lista, o livro do senhor Marco Villa, tratando justamente do fim do PT. Há um desejo de destruir o PT e esse desejo envolve um engendramento complexo, com participação de vários segmentos sociais. O PT cometeu muitos equívocos, mas vai deixar para o país uma agenda de políticas públicas bastante positivas no que concerne ao quesito "cidadania", voltado para andar de baixo da pirâmide social, algo negligenciado historicamente.

Num país como o nosso, de profundas desigualdades sociais, esse capital político tem um peso incomensurável. Foram 22 milhões de pessoas que saíram da condição de extrema pobreza; o maior programa de ingresso de jovens empobrecidos ao ensino superior público, entre 18 e 24 anos,  através do Prouni; o maior e melhor programa de distribuição de renda do mundo, reconhecido internacionalmente. Dava pena do candidato Aécio Neves quando a então candidata Dilma Rousseff comparava os dois governos, o dos tucanos e o da coalizão petista. Quantas escolas técnicas mesmo foram construídas pelo seu padrinho político, senador? Essas questões também virão à tona em 2018, Octávio Amorim. Segmentos expressivos da sociedade brasileira conhecem muito bem o que foram os anos FHC.


A mais maldita das heranças do PT

A mais maldita das heranças do PT

Mais brutal para o Partido dos Trabalhadores pode ser não a multidão que ocupou as ruas em 15 de março, mas aquela que já não sairia de casa para defendê-lo em dia nenhum

O maior risco para o PT, para além do Governo e do atual mandato, talvez não seja a multidão que ocupou as ruas do Brasil, mas a que não estava lá. São os que não estavam nem no dia 13 de março, quando movimentos como CUT, UNE e MST organizaram uma manifestação que, apesar de críticas a medidas de ajuste fiscal tomadas pelo Governo, defendia a presidente Dilma Rousseff. Nem estavam no já histórico domingo, 15 de março, quando centenas de milhares de pessoas aderiram aos protestos, em várias capitais e cidades do país, em manifestações contra Dilma Rousseff articuladas nas redes sociais da internet, com bandeiras que defendiam o fim da corrupção, o impeachment da presidente e até uma aterradora, ainda que minoritária, defesa da volta da ditadura. São os que já não sairiam de casa em dia nenhum empunhando uma bandeira do PT, mas que também não atenderiam ao chamado das forças de 15 de março, os que apontam que o partido perdeu a capacidade de representar um projeto de esquerda – e gente de esquerda. É essa herança do PT que o Brasil, muito mais do que o partido, precisará compreender. E é com ela que teremos de lidar durante muito mais tempo do que o desse mandato.

Algumas considerações prévias. Se no segundo turno das eleições de 2014, Dilma Rousseff ganhou por uma pequena margem – 54.501.118 votos contra 51.041.155 de Aécio Neves –, não há dúvida de que ela ganhou. Foi democraticamente eleita, fato que deve ser respeitado acima de tudo. Não existe até esse momento nenhuma base para impeachment, instrumento traumático e seríssimo que não pode ser manipulado com leviandade, nem mesmo no discurso. Quem não gostou do resultado ou se arrependeu do voto, paciência, vai ter de esperar a próxima eleição. Os resultados valem também quando a gente não gosta deles. E tentar o contrário, sem base legal, é para irresponsáveis ou ignorantes ou golpistas.Tenho dúvidas sobre a tecla tão batida por esses dias do Brasil polarizado. Como se o país estivesse dividido em dois polos opostos e claros. Ou, como querem alguns, uma disputa de ricos contra pobres. Ou, como querem outros, entre os cidadãos contra a corrupção e os beneficiados pela corrupção. Ou entre os a favor e os contra o Governo. Acho que a narrativa da polarização serve muito bem a alguns interesses, mas pode ser falha para a interpretação da atual realidade do país. Se fosse simples assim, mesmo com a tese do impeachment nas ruas, ainda assim seria mais fácil para o PT.
No resultado das eleições ampliou-se a ressonância da tese de um país partido e polarizado. Mas não me parece ser possível esquecer que outros 37.279.085 brasileiros não escolheram nem Dilma nem Aécio, votando nulo ou branco e, a maior parte, se abstendo de votar. É muita gente – e é muita gente que não se sentia representada por nenhum dos dois candidatos, pelas mais variadas razões, à esquerda e também à direita, o que complica um pouco a tese da polarização. Além das divisões entre os que se polarizariam em um lado ou outro, há mais atores no jogo que não estão nem em um lado nem em outro. E não é tão fácil compreender o papel que desempenham. No mesmo sentido, pode ser muito arriscado acreditar que quem estava nos protestos neste domingo eram todos eleitores de Aécio Neves. A rua é, historicamente, o território das incertezas – e do incontrolável.

Na tese do Brasil polarizado, onde ficam os mais de 37 milhões que não votaram nem em Dilma nem em Aécio?
Há lastro na realidade para afirmar também que uma parte dos que só aderiram à Dilma Rousseff no segundo turno era composta por gente que acreditava em duas teses amplamente esgrimidas na internet às vésperas da votação: 1) a de que Dilma, assustada por quase ter perdido a eleição, em caso de vitória faria “uma guinada à esquerda”, retomando antigas bandeiras que fizeram do PT o PT; 2) a de votar em Dilma “para manter as conquistas sociais” e “evitar o mal maior”, então representado por Aécio e pelo PSDB. Para estes, Dilma Rousseff não era a melhor opção, apenas a menos ruim para o Brasil. E quem pretendia votar branco, anular o voto ou se abster seria uma espécie de traidor da esquerda e também do país e do povo brasileiro, ou ainda um covarde, acusações que ampliaram, às vésperas das eleições, a cisão entre pessoas que costumavam lutar lado a lado pelas mesmas causas. Neste caso, escolhia-se ignorar, acredito que mais por desespero eleitoral do que por convicção, que votar nulo, branco ou se abster também é um ato político.
Faz sentido suspeitar que uma fatia significativa destes que aderiram à Dilma apenas no segundo turno, que ou esperavam “uma guinada à esquerda” ou “evitar o mal maior”, ou ambos, decepcionaram-se com o seu voto depois da escolha de ministros como Kátia Abreu eJoaquim Levy, à direita no espectro político, assim como com medidas que afetaram os direitos dos trabalhadores. Assim, se a eleição fosse hoje, é provável que não votassem nela de novo. Esses arrependidos à esquerda aumentariam o número de eleitores que, pelas mais variadas razões, votaram em branco, anularam ou não compareceram às urnas, tornando maior o número de brasileiros que não se sentem representados por Dilma Rousseff e pelo PT, nem se sentiriam representados por Aécio Neves e pelo PSDB.
Esses arrependidos à esquerda, assim como todos aqueles que nem sequer cogitaram votar em Dilma Rousseff nem em Aécio Neves porque se situam à esquerda de ambos, tampouco se sentem identificados com qualquer um dos grupos que foi para as ruas no domingo contra a presidente. Para estes, não existe a menor possibilidade de ficar ao lado de figuras como o deputado federal Jair Bolsonaro (PP) ou de defensores da ditadura militar ou mesmo de Paulinho da Força. Mas também não havia nenhuma possibilidade de andar junto com movimentos como CUT, UNE e MST, que para eles “pelegaram” quando o PT chegou ao poder: deixaram-se cooptar e esvaziaram-se de sentido, perdendo credibilidade e adesão em setores da sociedade que costumavam apoiá-los.

Não há hoje uma figura nacional para ocupar o lugar de representação da esquerda
Essa parcela da esquerda – que envolve desde pessoas mais velhas, que historicamente apoiaram o PT, e muitos até que ajudaram a construí-lo, mas que se decepcionaram, assim como jovens filhos desse tempo, em que a ação política precisa ganhar horizontalidade e se construir de outra maneira e com múltiplos canais de participação efetiva – não encontrou nenhum candidato que a representasse. No primeiro turno, dividiram seus votos entre os pequenos partidos de esquerda, como o PSOL, ou votaram em Marina Silva, em especial por sua compreensão da questão ambiental como estratégica, num mundo confrontado com a mudança climática, mas votaram com dúvidas. No segundo turno, não se sentiram representados por nenhum dos candidatos.
Marina Silva foi quem chegou mais perto de ser uma figura com estatura nacional de representação desse grupo à esquerda, mais em 2010 do que em 2014. Mas fracassou na construção de uma alternativa realmente nova dentro da política partidária. Em parte por não ter conseguido registrar seu partido a tempo de concorrer às eleições, o que a fez compor com o PSB, sigla bastante complicadapara quem a apoiava, e assumir a cabeça de chapa por conta de uma tragédia que nem o mais fatalista poderia prever; em parte por conta da campanha mentirosa e de baixíssimo nível que o PT fez contra ela; em parte por equívocos de sua própria campanha, como a mudança do capítulo do programa em que falava de sua política para os LGBTs, recuo que, além de indigno, só ampliou e acentuou a desconfiança que muitos já tinham com relação à interferência de sua fé evangélica em questões caras como casamento homoafetivo e aborto; em parte porque escolheu ser menos ela mesma e mais uma candidata que supostamente seria palatável para estratos da população que precisava convencer. São muitas e complexas as razões.
O que aconteceu com Marina Silva em 2014 merece uma análise mais profunda. O fato é que, embora ela tenha ganhado, no primeiro turno de 2014, cerca de 2,5 milhões de votos a mais do que em 2010, seu capital político parece ter encolhido, e o partido que está construindo, a Rede Sustentabilidade, já sofreu deserções de peso. Talvez ela ainda tenha chance de recuperar o lugar que quase foi seu, mas não será fácil. Esse é um lugar vago nesse momento.
Há uma parcela politizada, à esquerda, que hoje não se sente representada nem pelo PT nem pelo PSDB, não participou de nenhum dos panelaços nem de nenhuma das duas grandes manifestações dos últimos dias, a de 15 de março várias vezes maior do que a do dia 13. É, porém, muito atuante politicamente em várias áreas e tem grande poder de articulação nas redes sociais. Não tenho como precisar seu tamanho, mas não é desprezível. É com essa parcela de brasileiros, que votou em Lula e no PT por décadas, mas que deixou de votar, ou de jovens que estão em movimentos horizontais apartidários, por causas específicas, que apontam o que de fato deveria preocupar o PT, porque esta era ou poderia ser a sua base, e foi perdida.

O partido das ruas perdeu as ruas porque acreditou que não precisava mais caminhar por elas
A parcela de esquerda que não bateria panelas contra Dilma Rousseff, mas também não a defenderia, aponta a falência do PT em seguir representando o que representou no passado. Aponta que, em algum momento, para muito além do Mensalão e da Lava Jato, o PT escolheu se perder da sua base histórica, numa mistura de pragmatismo com arrogância. É possível que o PT tenha deixado de entender o Brasil. Envelhecido, não da forma desejável, representada por aqueles que continuam curiosos em compreender e acompanhar as mudanças do mundo, mas envelhecido da pior forma, cimentando-se numa conjuntura histórica que já não existe. E que não voltará a existir. Essa aposta arriscada precisa que a economia vá sempre bem; quando vai mal, o chão desaparece.
Fico perplexa quando lideranças petistas, e mesmo Lula, perguntam-se, ainda que retoricamente, por que perderam as ruas. Ora, perderam porque o PT gira em falso. O partido das ruas perdeu as ruas – menos porque foi expulso, mais porque se esqueceu de caminhar por elas. Ou, pior, acreditou que não precisava mais. Nesse contexto, Dilma Rousseff é só a personagem trágica da história, porque em algum momento Lula, com o aval ativo ou omisso de todos os outros, achou que poderia eleger uma presidente que não gosta de fazer política. Estava certo a curto prazo, podia. Mas sempre há o dia seguinte.
Não adianta ficar repetindo que só bateu panela quem é da elite. Pode ter sido maior o barulho nos bairros nobres de São Paulo, por exemplo, mas basta um pequeno esforço de reportagem para constatar que houve batuque de panelas também em bairros das periferias. Ainda que as panelas batessem só nos bairros dos ricos e da classe média, não é um bom caminho desqualificar quem protesta, mesmo que você ou eu não concordemos com a mensagem, com termos como “sacada gourmet” ou “panelas Le Creuset”. Todos têm direito de protestar numa democracia e muitos dos que ridicularizam quem protestou pertencem à mesma classe média e talvez tenham uma ou outra panelinha Le Creuset ou até pagou algumas prestações a mais no apartamento para ter uma sacada gourmet, o que não deveria torná-los menos aptos nem a protestar nem a criticar o protesto.
Nos panelaços, só o que me pareceu inaceitável foi chamar a presidente de “vagabunda” ou de “vaca”, não apenas porque é fundamental respeitar o seu cargo e aqueles que a elegeram, mas também porque não se pode chamar nenhuma mulher dessa maneira. E, principalmente, porque o “vaca” e o “vagabunda” apontam a quebra do pacto civilizatório. É nesses xingamentos, janela a janela, que está colocado o rompimento dos limites, o esgarçamento do laço social. Assim como, no domingo de 15 de março, essa ruptura esteve colocada naqueles que defendiam a volta da ditadura. Não há desculpa para desconhecer que o regime civil militar que dominou o Brasil pela força por 21 anos torturou gente, inclusive crianças, e matou gente. Muita gente. Assim, essa defesa é inconstitucional e criminosa. Com isso, sim, precisamos nos preocupar, em vez de misturar tudo numa desqualificação rasteira. É urgente que a esquerda faça uma crítica (e uma autocrítica) consistente, se quiser ter alguma importância nesse momento agudo do país.

Tão ou mais importante do que a corrupção, que não foi inventada pelo PT no Brasil, é o fato de o partido ter traído algumas de suas bandeiras de identidade
Também não adianta continuar afirmando que quem foi para as ruas é aquela fatia da população que é contra as conquistas sociais promovidas pelo governo Lula, que tirou da miséria milhões de brasileiros e fez com que outros milhões ascendessem ao que se chamou de classe C. Pessoas as quais é preciso respeitar mais pelo seu passado do que pelo seu presente ficaram repetindo na última semana que quem era contra o PT não gostava de pobres nos aeroportos ou estudando nas universidades, entre outras máximas. É fato que existem pessoas incomodadas com a mudança histórica que o PT reconhecidamente fez, mas dizer que toda oposição ao PT e ao Governo é composta por esse tipo de gente, ou é cegueira ou é má fé.
Num momento tão acirrado, todos que têm expressão pública precisam ter muito mais responsabilidade e cuidado para não aumentar ainda mais o clima de ódio – e disseminar preconceitos já se provou um caminho perigoso. Até a negação deve ter limites. E a negação é pior não para esses ricos caricatos, mas para o PT, que já passou da hora de se olhar no espelho com a intenção de se enxergar. De novo, esse discurso sem rastro na realidade apenas gira em falso e piora tudo. Mesmo para a propaganda e para o marketing, há limites para a falsificação da realidade. Se é para fazer publicidade, a boa é aquela capaz de captar os anseios do seu tempo.
É também por isso que me parece que o grande problema para o PT não é quem foi para as ruas no domingo, nem quem bateu panela, mas quem não fez nem uma coisa nem outra, mas também não tem a menor intenção de apoiá-lo, embora já o tenha feito no passado ou teria feito hoje se o PT tivesse respeitado as bandeiras do passado. Estes apontam o que o PT perdeu, o que já não é, o que possivelmente não possa voltar a ser.
O PT traiu algumas de suas bandeiras de identidade, aquelas que fazem com que em seu lugar seja preciso colocar máscaras que não se sustentam por muito tempo. Traiu não apenas por ter aderido à corrupção, que obviamente não foi inventada por ele na política brasileira, fato que não diminui em nada a sua responsabilidade. A sociedade brasileira, como qualquer um que anda por aí sabe, é corrupta da padaria da esquina ao Congresso. Mas ser um partido “ético” era um traço forte da construção concreta e simbólica do PT, era parte do seu rosto, e desmanchou-se. Embora ainda existam pessoas que merecem o máximo respeito no PT, assim como núcleos de resistência em determinadas áreas, secretarias e ministérios, e que precisam ser reconhecidos como tal, o partido traiu causas de base, aquelas que fazem com que se desconheça. Muitos dos que hoje deixaram de militar ou de apoiar o PT o fizeram para serem capazes de continuar defendendo o que o PT acreditava. Assim como compreenderam que o mundo atual exige interpretações mais complexas. Chamar a estes de traidores ou de fazer o jogo da direita é de uma boçalidade assombrosa. Até porque, para estes, o PT é a direita.

A síntese das contradições e das traições do PT no poder não é a Petrobras, mas Belo Monte
A parcela à esquerda que preferiu ficar fora de manifestações a favor ou contra lembra que tão importante quando discutir a corrupção na Petrobras é debater a opção por combustíveis fósseis que a Petrobras representa, num momento em que o mundo precisa reduzir radicalmente suas emissões de gases do efeito estufa. Lembra que estimular a compra de carros como o Governo federal fez é contribuir com o transporte privado individual motorizado, em vez de investir na ampliação do transporte público coletivo, assim como no uso das bicicletas. É também ir na contramão ao piorar as condições ambientais e de mobilidade, que costumam mastigar a vida de milhares de brasileiros confinados por horas em trens e ônibus lotados num trânsito que não anda nas grandes cidades. Lembra ainda que estimular o consumo de energia elétrica, como o Governo fez, é uma irresponsabilidade não só econômica, mas socioambiental, já que os recursos são caros e finitos. Assim como olhar para o colapso da água visando apenas obras emergenciais, mas sem se preocupar com a mudança permanente de paradigma do consumo e sem se preocupar com o desmatamento tanto da floresta amazônica quanto do Cerrado quanto das nascentes do Sudeste e dos últimos redutos sobreviventes de Mata Atlântica fora e dentro das cidades é um erro monumental a médio e a longo prazos.
Os que não bateram panelas contra o PT e que não bateriam a favor lembram que a forma de ver o país (e o mundo) do lulismo pode ser excessivamente limitada para dar conta dos vários Brasis. Povos tradicionais e povos indígenas, por exemplo, não cabem nem na categoria “pobres” nem na categoria “trabalhadores”. Mas, ao fazer grandes hidrelétricas na Amazônia, ao ser o governo de Dilma Rousseff o que menos demarcou terras indígenas, assim como teve desempenho pífio na criação de reservas extrativistas e unidades de conservação, ao condenar os povos tradicionais ao etnocídio ou à expulsão para a periferia das cidades, é em pobres que são convertidos aqueles que nunca se viram nesses termos. Em parte, a construção objetiva e simbólica de Lula – e sua forma de ver o Brasil e o mundo – encarna essa contradição (escrevi sobre isso aqui), que o PT não foi capaz nem quis ser capaz de superar no poder. Em vez de enfrentá-la, livrou-se dos que a apontavam, caso de Marina Silva.
O PT no Governo priorizou um projeto de desenvolvimento predatório, baseado em grandes obras, que deixou toda a complexidade socioambiental de fora. Escolha inadmissível num momento em que a ação do homem como causa do aquecimento global só é descartada por uma minoria de céticos do clima, na qual se inclui o atual ministro de Ciência e Tecnologia, Aldo Rebelo, mais uma das inacreditáveis escolhas de Dilma Rousseff. A síntese das contradições – e também das traições – do PT no poder não é a Petrobras, mas Belo Monte. Sobre a usina hidrelétrica já pesa a denúncia de que só a construtora Camargo Corrêa teria pagado mais de R$ 100 milhões em propinas para o PT e para o PMDB. É para Belo Monte que o país precisaria olhar com muito mais atenção. É na Amazônia, onde o PT reproduziu a visão da ditadura ao olhar para a floresta como um corpo para a exploração, que as fraturas do partido ao chegar ao poder se mostram em toda a sua inteireza. E é também lá que a falácia de que quem critica o PT é porque não gosta de pobre vira uma piada perversa.
A sorte do PT é que a Amazônia é longe para a maioria da população e menos contada pela imprensa do que deveria, ou contada a partir de uma visão de mundo urbana que não reconhece no outro nem a diferença nem o direito de ser diferente. Do contrário, as barbaridades cometidas pelo PT contra os trabalhadores pobres, os povos indígenas e as populações tradicionais, e contra uma floresta estratégica para o clima, para o presente e para o futuro, seriam reconhecidas como o escândalo que de fato são. É também disso que se lembram aqueles que não gritaram contra Dilma Rousseff, mas também não a defenderiam.
Lembram também que o PT não fez a reforma agrária; ficou aquém na saúde e na educação, transformando “Brasil, Pátria Educadora”num slogan natimorto; avançou muito pouco numa política para as drogas que vá além da proibição e da repressão, modelo que encarcera milhares de pequenos traficantes num sistema prisional sobre o qual o ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo, já disse que “prefere morrer a cumprir pena”; cooptou grande parte dos movimentos sociais (que se deixaram cooptar por conveniência, é importante lembrar); priorizou a inclusão social pelo consumo, não pela cidadania; recuou em questões como o kit anti-homofobia e o aborto; se aliou ao que havia de mais viciado na política brasileira e aos velhos clãs do coronelismo, como os Sarney.
Isso é tão ou mais importante do que a corrupção, sobre a qual sempre se pode dizer que começou bem antes e atravessa a maioria dos partidos, o que também é verdade. Olhar com honestidade para esse cenário depois de mais de 12 anos de governo petista não significa deixar de reconhecer os enormes avanços que o PT no poder também representou. Mas os avanços não podem anular nem as traições, nem os retrocessos, nem as omissões, nem os erros. É preciso enfrentar a complexidade, por toda as razões e porque ela diz também sobre a falência do sistema político no qual o país está atolado, para muito além de um partido e de um mandato.
Há algo que o PT sequestrou de pelo menos duas gerações de esquerda e é essa a sua herança mais maldita. E a que vai marcar décadas, não um mandato. Tenho entrevistado pessoas que ajudaram a construir o PT, que fizeram dessa construção um projeto de vida, concentradas em lutas específicas. Essas pessoas se sentem traídas porque o partido rasgou suas causas e se colocou ao lado de seus algozes. Mas não traídas como alguém de 30 anos pode se sentir traído em seus últimos votos. Este tem tempo para construir um projeto a partir das novas experiências de participação política que se abrem nesse momento histórico muito particular. Os mais velhos, os que estiveram lá na fundação, não. Estes sentem-se traídos como alguém que não tem outra vida para construir e acreditar num novo projeto. É algo profundo e também brutal, é a própria vida que passa a girar em falso, e justamente no momento mais crucial dela, que é perto do fim ou pelo menos nas suas últimas décadas. É um fracasso também pessoal, o que suas palavras expressam é um testemunho de aniquilação. Algumas dessas pessoas choraram neste domingo, dentro de casa, ao assistir pela TV o PT perder as ruas, como se diante de um tipo de morte.

O sequestro dos sonhos de pelo menos duas gerações de esquerda é a herança mais maldita do PT, ainda por ser desvendada em toda a sua gama de sentidos para o futuro
O PT, ao trair alguns de seus ideias mais caros, escavou um buraco no Brasil. Um bem grande, que ainda levará tempo para virar marca. Não adianta dizer que outros partidos se corromperam, que outros partidos recuaram, que outros partidos se aliaram a velhas e viciadas raposas políticas. É verdade. Mas o PT tinha um lugar único no espectro partidário da redemocratização, ocupava um imaginário muito particular num momento em que se precisava construir novos sentidos para o Brasil. Era o partido “diferente”. Quem acreditou no PT esperou muito mais dele, o que explica o tamanho da dor daqueles que se desfiliaram ou deixaram de militar no partido. A decepção é sempre proporcional à esperança que se tinha depositado naquele que nos decepciona.
É essa herança que precisamos entender melhor, para compreender qual é a profundidade do seu impacto no país. E também para pensar em como esse vácuo pode ser ocupado, possivelmente não mais por um partido, pelo menos não um nos moldes tradicionais. Como se sabe, o vácuo não se mantém. Quem acredita em bandeiras que o PT já teve precisa parar de brigar entre si – assim como de desqualificar todos os outros como “coxinhas” – e encontrar caminhos para ocupar esse espaço, porque o momento é limite. O PT deve à sociedade brasileira um ajuste de contas consigo mesmo, porque o discurso dos pobres contra ricos já virou fumaça. Não dá para continuar desconectado com a realidade, que é só uma forma estúpida de negação.
Para o PT, a herança mais maldita que carrega é o silêncio daqueles que um dia o apoiaram, no momento em que perde as ruas de forma apoteótica. O PT precisa acordar, sim. Mas a esquerda também. 
Eliane Brum é escritora, repórter e documentarista. Autora dos livros de não ficçãoColuna Prestes - o Avesso da Lenda, A Vida Que Ninguém vê, O Olho da Rua, A Menina Quebrada, Meus Desacontecimentos e do romance Uma Duas. Site:desacontecimentos.com Email: elianebrum.coluna@gmail.com Twitter:@brumelianebrum
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