pub-5238575981085443 CONTEXTO POLÍTICO.
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domingo, 22 de abril de 2018

Editorial: Quem tem medo da voz dissonante de Michel Zaidan Filho?




Numa tarde de sexta-feira, numa instituição de pesquisa federal sediada aqui em Pernambuco, tivemos a oportunidade de acompanhar uma palestra do professor Antônio Paulo de Resende. Talvez poucos programas se equiparem a tal experiência, uma vez que Paulo faz questão de afastar-se desses clichês tão comuns em palestras de cunho acadêmico. Paulo desconstrói aqueles ambientes áridos, instigando os ouvintes a refletirem sobre o seu cotidiano, sempre consoante a alguma temática em discussão durante as palestras, o que, no final, através da emoção e da sensibilidade, atinge seu objetivo de passar o recado, sem àquelas recorrências enfadonhas, de resultados duvidosos. No final, longe de os ouvintes saírem daquele ambiente preocupados em decorarem datas, períodos, correntes teóricas ou autores - assim como ocorre normalmente em salas de aulas convencionais - eles saem refletindo sobre as suas atitudes, suas interações com o ambiente social e político, o que os tornam em atores proativos, aqueles que, de fato, contribuem para os rumos que a História possa tomar.
 
O momento político que o país atravessa exige de cada um de nós, cidadãos e cidadãs brasileir@s, um posicionamento. Posicionamentos como o do Frei Leonardo Boff, que aguarda a horas uma autorização para visitar o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, que se encontra preso na carceragem da Polícia Federal, no Paraná, condenado  apenas por ilações e suposições, sem nenhuma prova material concreta, procedimentos que já se tornaram recorrentes na sociedade brasileira, a partir do arbítrio jurídico inerente ao golpe institucional de 2016, que depôs uma presidente legitimamente eleita, sem nenhuma razão plausível. Algumas conquistas da democracia brasileira estão irremediavelmente perdidas. A agenda negativa atinge direitos e garantias individuais e coletivas; rasgou a CLT, que era uma espécie de Constituição dos Trabalhadores Brasileiros; tornou-se permissiva em relação à exploração do trabalho em condições sub-humanas; recrudesceu a ação de grileiros no campo, com mortes sucessivas e - e não esclarecidas - de crimes contra lideranças que lutam contra os latifúndios rurais, o desmatamento e o comércio ilegal de madeiras de nossas florestas.  

Como tenho afirmado em editoriais anteriores, o Brasil, por diversas razões, vive um simulacro de democracia. Não há chances de uma democracia consolidar-se com tamanhas desigualdades e ausências de oportunidades para aqueles que ocupam o andar de baixo da pirâmide social. Por incrível que possa parecer, foram nos governos da coalizão petista que mais avançamos na construção de uma democracia no país: reconhecimento do direito de minorias, como comunidades quilombolas e indígenas; acessibilidade da etnia negra aos centros acadêmicos, uma revolução que representou o único indicador onde os negros avançaram nesses últimos 500 anos; a retirada de 36 milhões de brasileiros da extrema pobreza. O resultado é que encarceraram o cara que mais fez pela consolidação da democracia no país.

Não temos a menor dúvida de que os tentáculos autoritários estão se ampliando no país. Há rumores de sabres por todos os quadrantes. Alguns até esquisitos, como uma portaria do Governo do Estado do Maranhão, hoje administrado por um comunista, Flávio Dino, determinando que a Polícia Militar do Estado monitore seus adversários políticos. Num momento como este, isso soa esdrúxulo, sobretudo partindo de um político filiado ao PC do B, eleito na esteira de uma campanha toda voltada a combater a hegemonia de uma oligarquia política que infernizou a vida dos maranhenses por nada menos que cinco décadas. De contrapeso, apoiadores do regime militar instaurado no país com o golpe civil militar de 1964 e o golpe institucional de 2016. No que concerne a esta oligarquia, vale aqui a máxima: uma vez golpistas, sempre golpistas. O PCdoB, aliás, passa por uma profunda decomposição ideológica, mas, sinceramente, não se esperava que chagasse a tanto. A própria corporação militar manifestou seu estranhamento à medida.
 
O golpe institucional de 2016 segue cumprindo suas etapas. Se eles não mantiverem controle sobre o resultado do jogo eleitoral, certamente as eleições presidenciais de 2018 serão abortadas. O clima político está turvo, nublado e abafado, não recomendando sair às ruas sem as devidas precauções. Neste cenário, o "delito de opinião" passa a ser veementemente invocado, com o propósito de calar as vozes dissonantes, ou seja,  aqueles cidadãos e cidadãs que se colocam do lado da defesa dos direitos humanos, do Estado Democrático de Direito, da condução republicana dos negócios públicos, das garantias constitucionais e do equilíbrio na distribuição de renda, o que no Brasil soa como uma grande blasfêmia, motivando as mais vis perseguições de uma elite forjada na naturalização da exploração do trabalho escravo. Trabalho escravo que, aliás, esteve no epicentro do golpe de 2016.
 
É neste contexto político que se entende o processo movido pelo ex-ministro da Educação, Mendonça Filho, contra o professor titular da Universidade Federal de Pernambuco, Michel Zaidan Filho, no qual pede uma indenização de R$ 10.000,00, supostamente por danos à sua honra de homem público, em razão de um artigo onde o professor "reproduz informações da imprensa" sobre os possíveis apadrinhamentos políticos que o conduziram ao cargo. Depois, afirmar que o senhor Mendonça Filho não tinha o perfil ideal para assumir o cargo de Ministro da Educação não se traduz, digamos assim, necessariamente numa ofensa. Reproduzo aqui um texto, que circula nas redes sociais, onde o professor Michel Zaidan comenta o fato. Assim como o professor Zaidan, nunca li uma única linha de reflexão sobre a educação pública brasileira escrita por este cidadão.
 
"Quanto vale a honra do deputado José Mendonça Filho?
 
 
Estava eu em minha sala de aula, no NIATE/UFPE, quando recebo a honrosa visita de ...uma representante legal para a entrega de uma notificação do ilustre "ex-ministro da Educação", o deputado José Mendonça Filho solicitando através de ação judicial, na vara civil da capital, uma indenização de 10.000,OO, por danos à sua integridade moral de homem público (deputado e ministro da Educação). Fiquei matutando valor da indenização pedida. Quanto vale a honra de um "homem público" no Brasil: 10, 100 ou um milhão de reais?
Sinceramente, 10.000,OO é pouco pela honra de qualquer pessoa (de Belo jardim, de Nova Iorque ou de qualquer lugar. Então fui especular com as notícias sobre a trajetória do homem público belo-jardinense. Na página 10 do Jornal GARRA, na edição de maio de 2016, foi publicada uma lista dos políticos que receberam doação da empresa Odebrecht. No segundo nome da lista, depois do impoluto prefeito do Recife, estava o do deputado Mendoncinha. Quanto teria recebido o parlamentar da empresa corruptora dos políticos brasileiros? - Depois fui ler o Blog de Jamildo do dia 6 de junho de 2016. Lá se diz que o procurador geral da República, Rodrigo Janot afirmava que havia indícios de que Mendonça Filho tinha recebido propina no valor de 100.000.
Fiquei pensando: 10.000,00 é muito pouco em relação a esses valores. Então me indaguei sobre o que teria feito ou dito para justificar esse pedido modesto do ex-ministro da Educação.
Aí, lembrei-me do artigo publicado no jornal brasil 247 sobre a indicação de Mendocinha para o MEC. Diz o jornal eletrônico, em sua edição do dia 19 de maio de 2016: "Dono da SER Educacional, o maior grupo de faculdades privadas do Nordeste, o empresário piauiense Janquiê Diniz bancou a indicação de Mendonça Filho, do Dem, para o Ministério da Educação. De quebra, o jornal esclarece que Janguiê mandou também um funcionário seu, Maurício Romão, para ocupar uma secretaria estratégica de autorização e fiscalização de novos cursos dessas faculdades particulares.
Pronto! Tudo se iluminou por um momento. O que o deputado Mendoncinha que nunca escreveu uma linha sobre educação pública, teria ido fazer no MEC, em troca de ter assinado o "impeachment" da Presidente Dilma? - Ora, a privatização dos FIES? O desmantelamento do Conselho nacional de Educação? O aligeiramento do perfil dos alunos do ensino secundário, acabando com a obrigatoriedade do ensino de História, Sociologia e Artes? Ou ouvindo os conselhos do ator pornô Alexandre Frota sobre a malsinada "escola sem partido"?
Parece que o telhado da casa de Mendoncinha é de um tipo de vidro muito frágil. Disse um antigo professor dele, na Escola Parque, que era um aluno mediano e silencioso que foi se queixar ao pai de professores esquerdistas, por causa de um poema do Brecht. De minha parte, o que eu sei é que Mendoncinha, formado em Administração de Empresas, foi avicultor, deputado e presidente de uma comissão de privatização, no governo do acrimonioso Jarbas Vasconcelos. Nunco o soube pedagogo, educador, professor, autor. A não ser mais um dos políticos do velho PFL que tem a irresistivel inclinação para usar recursos públicos clientelisticamente em época de eleição. E com o MEC, não foi diferente."

Charge! via Folha de São Paulo

terça-feira, 17 de abril de 2018

Drops político para reflexão: Quem matou Marielle Franco?



José Luiz Gomes

"O caso envolvendo o assassinato da vereadora Marielle Franco se encaixa numa dessas situações pouco usuais, com alguns componentes "políticos" que o remete à possibilidade de envolvimento de agentes do Estado, que teriam a obrigação legal de proteger cidadãos e cidadãs. Agentes do Estado ligado ao aparato de Segurança Pública, com ramificações que podem incluir vereadores do braço político das milícias que atuam no Estado, que se dedicam a extorquir comerciantes e trabalhadores das favelas cariocas. Hoje, conforme admite a própria Polícia Civil do Estado do Rio de Janeiro - de acordo com a imprensa - essa é a principal linha de investigação em curso. Dois executores profissionais dessas milícias - recentemente assassinados como "queima de arquivo" - passaram a integrar a lista de possíveis suspeitos de terem participado do assassinato da vereadora Marielle Franco. Se os exames das digitais encontrados nas cápsulas coincidiram com as digitais dos mortos, teremos dois defuntos para se pronunciarem, por exemplo, sobre os mandantes desse crime de natureza eminentemente política. A princípio, para alguns setores, uma boa "solução". Se daria uma satisfação à opinião pública e o caso seria encerrado. Até onde se sabe, mortos não falam."

(José Luiz Gomes, cientista político, em editorial publicado aqui no blog)

Durval Muniz: Pouco se lixando para o lixo

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“Manda esse lixo janela abaixo”, dizia alguém que usou um rádio transmissor e interferiu na comunicação do avião que transportava Lula para a sede da Polícia Federal, em Curitiba. O lixo em questão era o próprio ex-presidente, que estava sendo levado preso, apesar de ter sido condenado apenas em segunda instância, quando a Constituição prevê explicitamente que só poderia sê-lo quando o processo percorresse todas as instâncias recursais e transitasse definitivamente em julgado (mas, para ele, a Constituição não vale, segundo afirmou o próprio Supremo Tribunal Federal, que por ela devia zelar, atribuindo-se poder constituinte originário e modificando o que dispõe explicitamente nossa desmoralizada Carta Magna). O lixo que deveria ser atirado fora pela janela de um avião e, portanto, morto (o desejo homicida da pessoa gravada é inequívoco), foi condenado num processo kafkiano, em que tudo o que se tem de provas é uma reportagem de um jornal e depoimentos de co-réus, depois de mantidos presos, preventivamente, durante meses nos calabouços de Curitiba. Lula foi condenado porque um dia pretendeu comprar um apartamento, pagando cotas do empreendimento, declarando no imposto de renda esses pagamentos mas, quando o imóvel ficou pronto e o visitou uma vez, desistiu da compra, passando a cobrar o que pagara de volta. O apartamento que, pretensamente seria propina, continua no nome da construtora e ela o penhora junto à Caixa Econômica Federal, mas tanto a promotoria como o juiz que, de forma irregular, faz tabelinha com a acusação, estão convictos de que o apartamento é de Lula e é fruto de propina em troca de contratos com a Petrobras, o que de resto nunca ficou provado. Até um jornalista conservador e antipetista como Reinaldo Azevêdo, que leu o processo (ao contrário de toda uma camarilha que continua afirmando a culpabilidade do ex-presidente) chegou a conclusão que é insustentável a condenação.
Mas, o que quero discutir nesse artigo, é a frase dita pelo invasor de espaço aéreo (em si mesmo um crime, que poderia causar sérias consequências para a vida de todos que estavam no avião), que relega à condição de lixo um ser humano. Mas o que é ser lixo? Etimologicamente lixo vem do latim lixare, que remete ao ato de desgastar, desbastar, lixar alguma coisa, mas lixo seria, justamente, o que sobra, o que resta dessas operações, as aparas, os resíduos, os restos. Em nossa cultura, o lixo têm conotações muito pejorativas pois se associa àquilo que é jogado fora por ser imprestável, por estar estragado, por estar podre, por ser impróprio para o consumo. Pelo seu próprio aspecto e odor, ao lixo é atribuído ainda sentidos como de algo sujo, fétido, repelente, contaminante, degradado. Dessa origem etimológica da palavra lixo advém, também, a expressão “se lixar para algo ou alguém”. Se o verbo lixar se refere ao ato de polir, de desgastar, de desbastar alguma coisa, o que implica prestar muita atenção naquilo que se está fazendo, em fixar a atenção sobre o material que está sendo lixado, a expressão “pouco se lixar” se refere a falta de atenção, a pouca importância, ao desprezo que se devota a algo ou a alguém. Estar pouco se lixando para algo ou alguém é não dar o menor valor àquilo ou àquele de que se trata. É figuradamente tomar o outro como se fosse lixo, como se fosse algo indigno de atenção, fosse algo sem importância, sem valor e que, portanto, pode ser jogado fora, destinado ao descarte e à destruição.
A frase do invasor de espaço aéreo diz muito do que estamos vivendo na sociedade brasileira, ela é um indício emblemático desses dias que correm. Há setores na sociedade brasileira que consideram que outras pessoas, com opiniões políticas e visões de mundo diferentes das suas, não podem continuar existindo, devem ser jogadas fora, descartadas, eliminadas, mortas. O fascismo tem como uma de suas características a rejeição ao que é diferente e distinto. O fascismo tende a desumanizar aqueles que toma como adversários ou inimigos. A desumanização transforma humanos em animais (ratos, porcos, cães, bestas, pulgas), como fizeram os nazistas, ou em excrementos, restos, sobras, lixo (os homicidas que atentaram contra a vida de Lula no Paraná o chamaram de bosta). Os nazistas, literalmente, transformavam os corpos dos judeus, dos comunistas, dos homossexuais, em resíduos, em cinzas, em restos que deviam ser enterrados e desaparecidos. O fascista é uma pessoa tomada pelo desejo de morte, governada por uma libido assassina (suas fantasias, seus sonhos, até mesmo suas ações visam o gozo com a morte do outro rejeitado). O fascista invasor de espaço aéreo teve um gozo só por pronunciar essas palavras, sentiu seu desejo minimamente satisfeito só por manifestar desejos e ideias que, em outras circunstâncias sociais, não teria coragem de expressar, nem para si mesmo. A atuação fascista e assassina da mídia, dos meios de comunicação, notadamente da Rede Globo (que começa assassinando a verdade, com ela assassinando reputações) incentiva ao assassinato sanguinário dos corpos. Os programas policiais, que vivem de alimentar o gozo fascista pela tortura psicológica e física das pessoas ditas bandidas, espalham pela sociedade brasileira o desejo de desforra e linchamento. Na   hora do almoço ou no final da tarde, milhares de pessoas, no Brasil, sentem prazer em contemplar a humilhação e o escárnio em relação a pessoas humanas, que são constantemente comparadas a animais, feras, bichos. A própria maldade daqueles que são ali espetacularizados espalha-se como um exemplo do que seria o comportamento de pessoas das condições sociais e raciais delas. Só vemos preto e pobre na TV na condição de “bandido”, o que reforça a ideia de que todos são criminosos ou que só os pobres e pretos são desonestos e malvados. As maldades intrínsecas a uma ordem social que gera essas pessoas nunca são mostradas ou discutidas. Se personaliza a maldade como forma de encobrir a origem social do crime e da violência. Se violenta todos os dias pessoas nos meios de comunicação a pretexto de combater a violência. Se glamouriza, se espetaculariza a violência do Estado, através da atuação, muitas vezes desastrada e preconceituosa, dos órgãos de segurança, a pretexto de se combater a violência.
Por que grande parte da elite brasileira e setores expressivos das classes médias não possuem qualquer simpatia ou empatia com a figura de Lula? Por que tanto ódio em relação a um ex-presidente que só os beneficiou, que esteve longe de atacar seus privilégios? Na época em que Lula governou, a burguesia brasileira não parou de ganhar dinheiro, nunca se consumiu tanto, nunca o país viveu uma euforia tão grande. No entanto, a falta de identidade de classe era e é nítida, nunca o consideraram um dos seus, nunca deixaram de achar que ele estava ocupando um lugar indevido. O ódio assassino a Lula se deve menos a ele, mas a tudo que ele simboliza. Quando desejam jogá-lo do avião, quando o consideram um lixo, expressam seu repúdio a pobreza e ao pobre. Lula será sempre marcado por ser aquele que tem origem popular. O motivo que o leva a ser amado por milhões, é o mesmo que o leva a ser odiado por milhares. No Brasil o pobre sempre esteve muito próximo da condição de lixo. Somos um país em que as elites, e a população em geral, assiste passivamente e sem qualquer esboço de solidariedade pessoas viverem jogadas nas ruas, nas praças, embaixo dos viadutos, nas marquises, nas sarjetas. Tendemos a ter medo, a discriminar e a marginalizar a criança que dorme na saída de ar das estações de metrô. Somos o país onde governos estaduais e municipais tratam os consumidores de drogas, os homens e mulheres jogados nas cracolândias, como se fossem incômodos restos humanos, usando da violência policial como saída para um problema que é social e de saúde pública. Desde o início da República que tratamos questões sociais como caso de polícia. Somos um país onde milhares de retirantes das secas, como Lula, morreram perambulando pelas estradas, vítimas da fome e da sede, atirados aos urubus e aos cachorros e não alimentamos por isso nenhum remorso ou vergonha. Atribuídas às secas, à causas naturais, essas milhares de mortes pouco fazem parte de nossa própria história, é como se nunca tivessem existido tais andrajos humanos, que foram despejados como restos mortais numa cova rasa qualquer. Vítimas da incúria governamental e de uma estrutura fundiária e econômica assentada na concentração e no privilégio, esses milhares de retirantes são como o lixo que nossa história produziu e deve ser atirado fora.
Lula é nordestino, filho da região pária da nação. Região de uma elite nababesca, que vive secularmente da exploração da maioria, elite que optou em vários momentos pelo atraso, como fizeram novamente em 2016, desde que não perca seus privilégios. Região privilegiada pelos investimos e programas do governo Lula, reacendendo ódios e preconceitos regionais, notadamente no Sul e Sudeste do país. Ao privilegiar em suas políticas os mais pobres e, entre eles, os nordestinos, Lula teria optado pela escória do país: os preguiçosos, os improdutivos, os incapazes de trabalho intelectual, os sem consciência, os alienados, os burros, os feios, sujos e malvados do país. A classe média e as elites limpinhas, brancas, os homens bons, os gestores, os empreendedores, os inteligentes e conscientes olham com desprezo para essa gente que deveria não existir e existindo deveriam desaparecer, ser atirados fora do país. Lula teria retirado dinheiro daqueles que trabalham e produzem para alimentar vagabundos com o Bolsa Família. Aqueles grupos e aquelas regiões que enriqueceram com a exploração do trabalho barato dos nordestinos, a encarnação do proletário no Brasil, se indignam com a possibilidade que essa gentalha possa andar de avião e cursar a universidade. Lula personifica o nordestino que deu certo no Sul (por isso é tão amado em sua região), mas ao mesmo tempo personifica aquele que veio tomar o lugar de um sulista, que veio ocupar um lugar que não era dele. Se o Nordeste e os nordestinos sempre foram vistos como os indesejados da nação, seu resto, sua sobra, sua escória, porque não jogar todos no lixo ou reservar para eles o lugar de catadores de lixo.
É muito simbólico e revelador que seja o primeiro presidente da República a receber em palácio representantes dos catadores de lixo, o presidente que fazia questão de passar as festas natalinas com os trabalhadores do lixo, que investiu numa política social voltada para os trabalhadores em cooperativas de reciclagem, que venha a ser tratado ele mesmo como se lixo fosse. A campanha midiática de difamação que sofre, encontra guarida com maior facilidade justamente porque, para muita gente, Lula sempre foi sujo, sempre esteve próximo da condição de alguém que cheirava mal, pois era pobre e nordestino, e ainda se envolvia com catadores de lixo. Convencer de que Lula é um sujo corrupto, é um fedorento ladrão não é difícil para gente de narinas levantadas que nunca o engoliu, que sempre achou que ele não era flor que se cheire. A campanha de difamação funciona porque mobiliza os baixos sentimentos, as emoções inconfessáveis, as repulsas que antes não eram expressadas e que ganham, com a autorização midiática e com o anonimato das redes sociais, seu caldo de cultura. No Brasil, sempre se associou pobreza a sujeira, a mal cheiro, a tendências criminosas. Numa casa de classe média a empregada sempre foi a primeira suspeita quando algo some. É difícil, por isso, convencer a muita gente que Lula não é corrupto e ladrão, se os políticos e empresários de outros extratos sociais o são. Como justo o pobretão, o retirante, o nordestino seria honesto? No imaginário nacional, todo político, todo homem público é desonesto, e não têm nem como provar em contrário. A impostura jurídico-midiática construída para afastar Lula da vida pública, para impedir a sua volta, é facilmente credível, porque sua figura possui vários traços que o predispõe a ser o bode expiatório a ser exposto no meio da sala. Um sistema corrompido de alto a baixo, um judiciário atravessado pelo privilégio e pela corrupção, se volta contra um homem que deles se diferencia e atiram sobre ele, exatamente por ser diferente, todo o seu ódio e rejeição. Pouco se lixando para o que venha sofrer o país, sua população e o próprio ex-presidente, um verdadeiro linchamento se realiza, externalizando os desejos de morte e o ódio de classe e o ódio regionalista.
Se Lula é o sem dedo, o deformado no corpo, também deve ser o aleijado de espírito e de caráter. O sapo barbudo deve ser salgado e esmagado como se faz com um animal repelente. As inúmeras referências pejorativas à sua deficiência física mostram o quanto o portador de necessidades especiais no Brasil é desprezado e vítima de preconceitos. Foi justamente em seu governo que ocorreram avanços significativos na inclusão das pessoas com deficiência na educação básica e superior. Mais uma vez, Lula ficava do lado daqueles que são vistos como humanos pela metade, como restos de gente, como lixos humanos. Assim como tem que pagar caro por criar políticas voltadas para a população LGBTT, também lixos que deveriam ser lançados ao mar ou no inferno como pregam todos os dias os nossos representantes de Cristo (que ele não saiba disso). Se Lula só olhou para os de baixo, só olhou para baixo, eis sua maior baixeza e todas as suas baixarias, como não querer ser associado a lixo? O ressentimento das elites e de setores da classe média com ele se deve ao fato de, ao invés de querer ser um deles, de querer deixar de ser o que foi, de renegar suas origens, Lula afirmar que sempre soube de onde veio e quais seus verdadeiros iguais. Lula é um presunçoso que não quer ser um burguês como a maioria que sempre nos governou. Qualquer passo que ele possa ter dado nesse sentido vira uma ameaça e assinte. Comprar apartamento, sítio, ter carro, etc, etc, não era para ele, como ousa comprar essas coisas e ainda honestamente? Só pode ser fruto de roubo. Lula é ladrão dos lugares de privilégio de nossas elites, dos símbolos de ascensão social, usados para marcar diferenças que deveriam ser intransponíveis. Além de roubar esses lugares, que deveriam ser só deles, ainda os considera menor e menos importantes do que aqueles de onde saiu. Lula, duas vezes presidente da República pelo voto popular, aquele que atingiu níveis de popularidade nunca vistos, nunca quis se fingir de empresário, de bacana, de almofadinha, continuou nesse lugar sendo o operário, o metalúrgico, aquele que fala um português estropiado e não fala inglês (mesmo assim foi o presidente que melhor projetou o Brasil no mundo, para desespero de nosso jet set mochileiro de Miami), o homem do povo, o nordestino, o homem de esquerda, ou seja, tudo aquilo que nossas elites aprenderam a desprezar, a menosprezar.
Lula, o comunista, eterno lixo de nossa vida pública, a atrair o ódio de civis e militares. Homem de posições moderadas, um verdadeiro estadista, um cristão convicto, um homem capaz de conviver sem radicalismos com forças políticas as mais distintas, que não levou a cabo transformações mais profundas por causa das alianças com as forças conservadoras do país, é odiado como se fosse um revolucionário descabelado, um terrorista, como alguns próceres da direita querem equiparar todos os militantes de movimentos socais. No Brasil, ao longo de sua história, muitos homens e mulheres por serem de esquerda, por professarem convicções socialistas, anarquistas, comunistas foram abatidos como cães sarnentos, foram torturados, aprisionados, trucidados, desaparecidos, jogados como lixo numa vala comum, se nenhuma identificação como um ser humano. Nesse país, todos os dias, centenas de pessoas são assassinadas como se suas vidas nada valessem. Muitas permanecem por horas atiradas no meio-fio, cobertas por um lençol, como se fossem o lixo, o resto, a sobra que essa sociedade da exploração e da desigualdade joga fora. Nessa sociedade injusta, qualquer brado por justiça pode te levar a ter o mesmo destino de Marielle, não só morta como um traste no meio da rua, mas ainda difamada, acusada de ser a responsável por sua própria morte, pois ela veio debaixo, ela veio do lixo social, portanto, só pode ser lixo também, cuja morte e cujos responsáveis por seu bárbaro trucidamento são jogados para debaixo do tapete, para que os limpinhos possam ser preservados dessa mácula.
Mas, a frase do violador de espaço aéreo, também revela muito sobre nossas elites e nossas classes médias. Ele disse que Lula era um lixo e que por isso devia ser jogado pela janela. Atitude típica da incivilidade de nossas elites: atirar lixo pela janela, atitude que não a diferencia do povão. O atirar o lixo pela janela é um gesto que indicia, também, a completa ausência de sentido de cidadania entre nós. Emporcalhem-se as cidades, entupam-se os bueiros, tornem as vias públicas intransitáveis, atitudes típicas daqueles que não veem na cidade uma construção humana e cidadã, a cidade como um lugar de convívio e respeito ao direito do outro. Jogar o lixo pela janela, não importando com o transeunte que venha passando, indício da barbárie de nossa população. As nossas elites sempre se caracterizaram por ser espaçosas, por terem sido sempre criadas em enormes espaços rurais ou urbanos, a espaciosidade parece ser um traço de mentalidade de nossas classes dominantes. Elas se julgam donas do mundo, todo e qualquer espaço é seu, é feito para seu desfrute. Daí a revolta em ter que dividir espaços com pobres, pretos, índios, mulheres (que agora querem até ser presidente da República, que petulância, só com um impeachment para se resolver isso). O lixo é incômodo justo quando vem ocupar lugares que para ele não é destinado. Faz parte, como apêndice do direito de propriedade, no Brasil, o direito de se colocar uma tabuleta dizendo: “Favor não colocar lixo”. Sem teto, sem terra, por favor Estado, despeje todos para fora daqui, quem sabe para fora do mundo. Sim, em nosso país a expressão que se usa para desalojar pobres de casas e terrenos que não lhe pertencem é despejar, mesmo verbo que usamos para o lixo. Nossas elites, que precisam de um carro enorme para que uma pessoa se desloque dentro e ocupe uma grande área para estacionar, são as mesmas que se comprazem em destinar a empregada doméstica um quarto de 5 metros quadrados. Essa elite espaçosa toma o espaço público como se fosse uma extensão de sua casa, enorme, mas que é pequena para tanto ego.
Não há elite para produzir mais lixo do que a elite brasileira, em todos os sentidos. Em onze anos, entre 2003 e 2014, exatamente o período dos governos do PT, a produção de lixo no país cresceu 29%, acompanhando o crescimento do consumo. Cada habitante no Brasil produz em média 387 quilos de lixo por ano. Mas o lixo de nossas classes médias é de uma riqueza incomparável, muitos miseráveis vivem de chafurdar esse rico lixo. Produzimos lixo como um país de primeiro mundo, mas o descartamos como um do terceiro mundo, daí a poluição e a degradação ambiental. Somos o terceiro maior produtor de lixo do mundo, pois o desperdício de alimentos, por exemplo, é uma marca de nossas classes dominantes. Se Lula colocou como meta de seu governo acabar com a fome, que atingia milhares de pessoas e que depois do golpe de 2016 já voltou a atingir 11 milhões de pessoas que foram excluídas dos programas sociais ou perderam o emprego, nossas elites sempre se caracterizaram pelo desperdício de comida, pelo olho grande e a barriga estufada de comer. Para eles, Lula tem o mesmo valor que os alimentos que atiram fora, que jogam pela janela do carro, todo dia. Lula quis matar a fome dos pobres, que valor isso pode ter, que importância isso pode ter para elites impanzinadas e obesas, como as nossas, adiposas até no pensamento? Eles estão se lixando para os pobres e sua fome, logo estão se lixando para esse presidente que foi sem nunca poder ter sido. Ele agora está no seu lugar, no lugar onde a sociedade burguesa joga todos os seus detritos, os seus restos, os seus lixos: a prisão. Depois de sugar, esmagar, deglutir e moer a todos, joga-se o bagaço no lixão, para que longe da vista de todos, não possa atrapalhar a linda paisagem de lugares exclusivos, nem venham emporcalhar e feder à porta de quem produziu tais resíduos. Lula, em seu tempo, foi usado para benefícios de muitos que hoje o atiram ao lixo (inclusive a quase totalidade dos julgadores que lhe atirou na cadeia, hoje recebem os poupudos salários que percebem, por causa que aquele que hoje é bagulho os escolheu e indicou). Típica atitude de gente que vêm das elites brasileiras em relação aos que vieram de baixo: desprezo, arrogância, desconhecimento. Eles estão mais é se lixando para o que possa ocorrer com esse lixo, quem mandou teimar em ser gente.

Durval Muniz de Albuquerque é historiador e professor titular da Universidade Federal do Rio Grande do Norte.

(Publicado originalmente no site Saiba Mais, Agência de Reportagem, aqui reproduzido com autorização do autor)
 

Charge! Laerte via Folha de São Paulo

segunda-feira, 16 de abril de 2018

Editorial: Marielle Franco: um mês depois do assassinato.

Resultado de imagem para Marielle Franco/charge

Na juventude, confesso, gostava de ler bastante sobre temas que envolviam a teoria da conspiração. Nos meus arquivos pessoais, ainda guardo alguns documentos sobre o assunto, notadamente sobre a crise dos mísseis soviéticos instalados em Cuba, assim como documentos sobre a Operação Condor, cujas vivandeiras já andam se sentido à vontade em ameaçar aqueles atores que se colocam do lado da justiça e do Estado Democrático de Direito. Os tempos passaram e nos tornamos mas reticentes a tal teoria. Hoje, no entanto, à medida que o golpe institucional de 2016 avança, com seus tentáculos asfixiando o Estado de Direito, começam a surgir no horizonte alguns cenários  curiosos, como chacinas envolvendo jovens sem nenhuma vinculação a atos criminosos ou delituosos; prisões em massa; "suicídios" suspeitos, como o que ocorreu recentemente com um médico do Estado do Maranhão, acusado de envolvimento com práticas de caráter pouco republicanas na administração pública daquele Estado. Se continuarmos nesse diapasão, não duvido que logo comecem a surgir os "desaparecidos", aqueles cidadãos que saíam de suas casas para as suas atividades cotidianas e não mais voltavam para o aconchego dos seus lares. O jornalista Vladimir Herzog, por exemplo, foi "convidado" a deixar seu gabinete de trabalho para prestar um depoimento. Teria dito aos seus familiares que logo voltaria. Nunca mais voltou. Suicidaram-no.  
 
O caso envolvendo o assassinato da vereadora Marielle Franco se encaixa numa dessas situações pouco usuais, com alguns componentes "políticos" que o remete à possibilidade de envolvimento de agentes do Estado, que teriam a obrigação legal de proteger cidadãos e cidadãs. Agentes do Estado ligado ao aparato de Segurança Pública, com ramificações que podem incluir vereadores do braço político das milícias que atual no Estado, que se dedicam a extorquir comerciantes e trabalhadores das favelas cariocas. Hoje, conforme admite a própria Polícia Civil do Estado do Rio de Janeiro - de acordo com a imprensa - essas são as duas linhas de investigações em curso. Dois executores profissionais dessas milícias - recentemente assassinados como "queima de arquivo" - passaram a integrar a lista de possíveis suspeitos de terem participado do assassinato da vereadora Marielle Franco. Se os exames das digitais encontrados nas cápsulas coincidiram com as digitais dos mortos, teremos dois defuntos para se pronunciarem, por exemplo, sobre os mandantes desse crime de natureza eminentemente política. A princípio, para alguns setores, uma boa "solução". Se daria uma satisfação à opinião pública e o caso seria encerrado. Até onde se sabe, mortos não falam.

Um amigo museólogo nos informou que alguns pertences da ex-vereadora Marielle Franco serão expostos no Museu da Maré, localizado na favela da Maré, onde ela nasceu e construiu sua trajetória política. Nada mais justo. Assim como são justas todas as homenagens que a vereadora carioca continua recebendo por todo o país, como uma forma de reconhecimento à sua luta, às suas bandeiras. Desaprovados aqui estão seus detratadores, que deverão enfrentar as barras da justiça, por suas ilações, calúnias e difamações. Numa leitura mais abrangente sobre a justiça no país, certamente ficaremos decepcionados com o número de homicídios devidamente esclarecidos, o que significa, em última análise, um alto índice de impunidade. Aqui em Pernambuco, por exemplo, apenas para ficarmos num caso, o estupro e assassinato de duas adolescentes em Serrambi, litoral sul do Estado, que continua num grande impasse, sem solução. Isso apenas para mencionar os casos que ganham repercussão na imprensa. Todo nosso apoio às mobilizações no sentido de exigir o esclarecimento e as circunstâncias da morte da vereadora Marielle Franco. Mais ainda se esses grupos se mantiveram mobilizados no sentido de que mais assassinatos sejam esclarecidos no país. Esta, aliás, era uma das suas bandeiras. Uma luta que pode estar no raiz das motivações de seu assassinato. 

Michel Zaidan Filho: O fator Lula e o processo eleitoral


 

 
 
Os que torcem, fervorosamente, pela prisão de LULA e o seu impedimento em participar das eleições presidenciais deste ano ora alegam a sua condição de preso ora a legalidade da prisão ora a sua ficha “suja”. Entendo que se trata de uma espécie de “vindita particular”, uma racionalização de um “ódio de classe” contra LULA, o PT e a esquerda de um modo geral. É como se fosse possível utilizar o braço da Justiça para alcançar (e ferir) os nossos adversários. Se fôssemos seguir as lições de Michel Foucault sobre a origem do processo penal, saberíamos que o ordálio, a vingança particular, ou simplesmente a famosa “Lei de talião” estabeleceu o que se chama de justiça retributiva nas relações penais com os condenados. Mas o progresso das leis penais – desde Beccaria – chegou ao “garantismo legal” da nossa época, rejeitando a lei kantiana do “olho pelo olho” e estabelecendo o papel ressocializador do direito penal.

O que assistimos hoje – a um espetáculo digno dos jogos da arena romana – é uma carnificina moral, política e penal. É o abandono por completo das conquistas e avanços da consciência jurídica universal, trocada por um tipo de “terrorismo penal”, onde uma parte da sociedade se compraz, como na luta da arena romana, em torcer pela desgraça alheia, sem considerar sua culpa ou o grau de responsabilidade civil e penal pelos alegados crimes. É uma espécie de “catarse de cabeça para baixo”, uma forma de exorcização dos nossos maus instintos, da nossa vingança, do nosso ódio contra um inimigo público e comum.

Não precisamos ir muito longe à ensaística sobre os massacres e genocídios, para entender (que não justificar) que o ódio é uma patologia social perigosa. Seja contra os negros, as mulheres, os pobres e favelados ou homossexuais e transgeneros, seja contra um partido político, uma ideologia política e seus seguidores. Os frakfurtianos que estudaram bem esse fenômeno, na Alemanha Nazista, chegaram à conclusão que ele resulta de um potencial de autoritarismo latente, alimentado por uma cultura de repressão e de muitas frustrações sociais. Não é à toa que setores das classes médias têm sido usados – pela manipulação da mídia – como “massa de manobra” contra LULA, o PT e a esquerda. É uma maneira dela externar seu complexo social – vingando-se dos mais pobres e da esquerda. Isto não é novo, nem no Brasil nem no mundo. Na Alemanha e na Itália (mas também nos EE.UUs.) essa onda de ressentimento e revolta chocou o ovo da serpente nazista e fascista. No Brasil, uma sucessão de golpes (ainda que estes se apresentem com a fachada de uma modernização conservadora).

É necessário fazer o diagnóstico correto dessa histeria anti-lulista e anti-petista, tanto quanto o crescimento inquietante do voto de direita e do voto religioso. Mas pode ser que tudo isso não passe de uma cortina de fumaça para a execução de uma outra política voltada aos interesses das grandes empresas e da banca. Mas uma vez, o ódio de determinados grupos é utilizado para demonizar a política (e os candidatos) da esquerda e viabilizar outro golpe contra os interesses da população. Como disse um jornalista antenado com os acontecimentos, se LULA participar do processo eleitoral  com chances de ganhar (e estas são muitas) não haverá eleição. Tudo será conduzido por um “petit comitê” para reproduzir e ampliar a política ultra-liberal, anti-popular, anti-nacional que vem sendo posta em prática por este intruso que ora ocupa a cadeira presidencial.

Michel Zaidan Filho é filósofo, historiador, cientista político, professor titular da Universidade Federal de Pernambuco e coordenador do Núcleo de Estudos Eleitorais, Partidários e da Democracia - NEEPD-UFPE.

sexta-feira, 13 de abril de 2018

Não é neutralizando Lula que o novo vai emergir

                                       
Ivana Bentes                                                                                

Não é neutralizando Lula que o novo vai emergir
Lula nos braços do povo, em São Bernardo do Campo, no dia 7 de abril de 2018 (Ricardo Stuckert/Instituto Lula)

Uma das maiores falácias dos que “preferiram não se posicionar” ao longo desse processo, que começou com um impeachment ilegítimo e culminou ontem na prisão de Lula, é a tese de que o ex-presidente representa “o que tem que desaparecer” para nos liberar das “polarizações”; aquele que precisa “desaparecer” da cena política para liberar o novo. O que tem que desaparecer para que outras causas, pautas e formas da política possam emergir. Mas não é neutralizando Lula que o novo vai emergir.
A miopia desse tipo de argumento é justamente pensar de forma dualista e maniqueísta, como os que acharam em Lula o “bode expiatório” para todos os males da corrupção. Lula tornado signo do mal a ser extirpado, do antipetismo histérico; o mal a ser “neutralizado” dos ponderados, dos equilibrados, dos que querem “acelerar” a emergência do novo.
Para estes – com dilemas e conflitos edipianos -, é preciso matar o pai, o estadista, o rival. Matar o que transbordou as fronteiras. O problema seria o excesso de grandeza de Lula, que projeta sua sombra sobre o novo! No fundo, respiram aliviados com sua prisão. Agora sim podemos “zerar” o game. Sem Lula, os conservadores e as “esquerdas oprimidas” vão florescer. Sem Lula acabam as polarizações!
A estupidez é achar que Lula não é (e não foi) justamente uma das condições de possibilidade do novo que emergiu desse período, de uma democracia em convulsão.
Essa extraordinária jornada que fez o Brasil produzir novos sujeitos do discurso: da emergência da potência das culturas das periferias até os novos feminismos, do empoderamento dos movimentos sociais e culturais clássicos (MTST, MST) até o afrofuturismo, a cultura da diversidade pop e dos lugares de fala, as experiências dos novos bandos e movimentos urbanos vindos do interior do país como o Fora do Eixo, a possibilidade das mídias livres etc.
Há um Lula nessas novas lideranças jovens e negras que surgiram nas favelas, Marielles são parte desse processo e desse efeito-Lula. Não se trata de culto da personalidade, mas de processos históricos complexos e intricados em que Lula é um dos “hubs”, intercessores, ideia, conceito.
Lula e o processo em torno dele – Lula-ideia, Lula-conceito como intercessor e não “personalidade” e nem “messias” – foi e é a condição de possibilidade do novo, e não a sombra que “cala” e impede o devir.
Lula transcendeu o campo das esquerdas faz tempo. Não pertence mais ao PT, não pertence mais a um “partido”. Por isso a luta contra a sua prisão arbitrária e toda a sua jornada de vida já é uma dessas pedras fundamentais que, uma vez jogada, produz ondas cada vez mais amplas. Em um país desencantado, brutalizado, violentado, não podemos nos dar ao luxo (mesquinho) de rifar Lula.
Um fato significativo da sua embaixada provisória no sindicato em São Bernardo foi quando o PCO (Partido da Causa Operária), contrariando a decisão do próprio PT, dos advogados e o desejo do próprio Lula, tentou impedir que ele se entregasse à PF, num acontecimento fora de controle, tenso e que aponta para esse incontrolável da figura e legado de Lula. Lula não pertence mais a ninguém!
A mobilização de São Bernardo também apontava para novas forças: Guilherme Boulos com seus acampados da Ocupação Povo Sem Medo e o movimento dos sem teto como uma outra configuração pós-Lula de grande força. Isso porque há uma população pobre que precisa acreditar, que não pode se dar ao luxo do niilismo ou do desencanto. “Eu perdi a fé, que enfermidade mais terrível”, poderíamos ouvir de setores inteiros neste momento no Brasil.
Essa é a doença que viralizou: a descrença na política, o descrédito, a força tarefa de demolição de um campo que transmutou afetos e libido em ódio. Por isso é preciso acreditar, senão em Lula, pelo menos nos processos que desencadeou. De que folha em branco sairia o novo? Os movimentos mais potentes que emergiram no Brasil desde 2013 – as ocupações urbanas, os secundaristas, o movimento social das culturas (#ocupaMinc), a primavera das mulheres, a juventude negra em insurgência contra seu genocídio, não podem não crer.
A prisão como voo
Depois de 24 horas acompanhando tudo o que se passava pelas mídias livres, redes, por amigos próximos, pela Mídia Ninja, por chats de Telegram e Whatsapp, dava para sentir essa percepção ampliada, generosa, alargada de Lula, e desses processos pelos quais passamos se avolumando em uma velocidade vertiginosa.
Lula já transcendeu as bolhas e as esquerdas. A ficha caindo para artistas, ex-petistas, desencantados, familiares, gente que estava se lixando para tudo! A gente sabe que os processos são complexos, trazem milhares de erros, desvios, equívocos, e todas as críticas têm que ser feitas, mas nada disso neutraliza a grandeza e riqueza desse processo encabeçado por Lula.
A única hora em que realmente chorei sentida foi no momento em que, depois daquele longo cortejo pelas ruas de São Paulo, o minúsculo, frágil, monomotor da PF decolou de Congonhas, levando Lula já preso. Mas até essa imagem era paradoxal. No menor espaço do mundo, aprisionado, constrangido, Lula voava sobre a cidade que lhe deu tudo e que detonou um processo histórico e singular. A prisão já era um voo e agora desencadeará um campanha global, um #LulaLivre que pode ser apropriado e reivindicado por muitas causas e sujeitos.
A tese pernóstica defendida pelo Estadão no seu editorial pós-prisão vai nessa direção de “enterrar” Lula: “O Brasil já não suporta mais ter o seu destino atrelado ao de Lula da Silva. É preciso virar esta triste página da História e voltar os olhos para o futuro.” Mas não existe futuro na nossa frágil democracia que não passe pelo legado, pelos acertos e erros de Lula.
Lula não é a “causa suprema” ou suficiente de tantas transformações urgentes e necessárias, e nem o corpo que precisa ser silenciado, esquartejado, martirizado. Sua história de vida e sua trajetória política fazem parte de um processo que evidentemente e obviamente são muito maiores, mais amplo que um indivíduo. Intercessor é isso. Não tem fetiche, poderia ser outro, mas não foi. Coube a ele estar nesse lugar na história do Brasil, é fato consumado. Intercessor, detonador, com ele e apesar de seus erros.
O entendimento que o próprio Lula tem como “cavalo”, instrumento, processo atravessado por muitas forças em disputa é bastante claro e lúcido. Não se trata de nenhum delírio de onipotência e nem romantização. Pessoas e indivíduos são resultados e efeitos. Temos um efeito-Lula. “Dizer algo em nome próprio é muito curioso, pois não é em absoluto quando nos tomamos por um eu, por uma pessoa ou um sujeito que falamos em nosso nome. Ao contrário, um indivíduo adquire um verdadeiro nome próprio ao cabo do mais severo exercício de despersonalização, quando se abre às multiplicidades que o atravessam de ponta a ponta, às intensidades que o percorrem”, escreveu Deleuze em 1992.
A frase de Lula no seu discurso de despedida em São Bernardo do Campo expressa isso: “Eu não sou mais um ser humano, eu sou uma ideia. (…) E vocês todos se chamarão Lula”. Eis a grandeza do nome Lula e o que escapa por todos os lados.
O ex-presidente Lula, que tem pedido de habeas corpus julgado nesta quarta (4)
O ex-presidente Lula, que teve pedido de habeas corpus negado nesta quarta (4) (Ricardo Stuckert/ Instituto Lula)
A produção de fatos e as narrativas
A prisão de Lula deu um nó na narrativa midiática em torno da sua “morte simbólica” ao escolher dia e hora para se entregar à PF, mostrando a força do seu campo e disputando o sentido e a forma da sua prisão. Um momento narrativo e cinematográfico quando escolheu se dirigir para a sede do Sindicato dos Metalúrgicos em São Bernardo do Campo, onde ficou protegido por uma trincheira de corpos amorosos e solidários. Em uma cultura virtualizada isso é um feito. A precedência da presença e dos corpos sob as virtualidades e aos mesmo tempo a mobilização 24 horas dos canais de notícias e redes sociais. O rito sumário da prisão virou uma missa nacional e global com duração e tempo singulares.
Como silenciar um acontecimento estrondoso? A Globo News transmitindo em tempo real, refém de um acontecimento que marcará a história do Brasil (filmando de helicóptero e de teleobjetivas), sem autorização para entrar no Sindicado dos Metalúrgicos onde Lula se abrigou, cortava e baixava o som das transmissões ao vivo do carro de som montado para se ouvir as falas que se revezavam desde a sexta-feira, 6 de abril de 2018, um dia histórico.
Só escutávamos os comentários enviesados, criminalizantes dos que querem construir o sentido do mundo e que têm medo dos protagonistas dos fatos. Os participantes da vigília, ato, protesto, missa, desagravo, resistência em torno de Lula não tiveram voz ao vivo na Globo News. As mídias livres ocuparam e deram voz aos acontecimentos.
Essas são as novas formas da censura, o anti-jornalismo em que o comentarista é o cento dos acontecimentos e onde tudo o que é dito é imediatamente “lido” para se produzir o “sentido”.
Mas hoje, com as redes sociais, as vozes e conteúdos vazam por todos os lados e produzem uma ruidocracia ingovernável. Lula protagonizou um ato/performance de desobediência civil que entrará para a história da resistência do Brasil.
Sem exclusividade e sem acesso, a Globo teve que utilizar o ao vivo da TVT, canal de TV da CUT, enquanto redes como Mídia Ninja e Jornalistas Livres faziam transmissões com exclusividade no front dos acontecimentos, com audiência fora do comum.
Durante toda a cobertura midiática corporativa da prisão de Lula, o desespero dos comentaristas era denunciar a fartura de imagens das equipes de mídia do ex-presidente como “politização” e “fraude” com objetivos eleitorais (“Vejam as câmeras, estão gravando tudo, vejam os fotógrafos, vejam como “encenam”, horrorizados por não terem o controle das imagens). Em momento algum dimensionaram e apontaram a força e simbolismo dos acontecimentos de hoje e a reviravolta simbólica de Lula.
Uns analistas míopes e/ou cegos, quando o roteiro lhes escapa. A questão é que o mundo faz “cinema” e produz narrativas fora do controle das fábricas de fatos. As mídias livres tiveram níveis estratosféricos de audiências e engajamento. Estamos em plena transição para a multidão de mídias que rivalizam com a fábrica fordista midiática.
Lula entendeu tudo! Não está “capitalizando” uma prisão, está narrando sua vida. Seu personagem público e privado é um só. Choram os jornalistas diante da força das imagens, choram os marqueteiros diante do fato-Lula – pois teriam que inventar, simular gente, perfis, personagens com esse carisma, afeto e dimensão! Num mundo sem mística e desencantado, Lula é um real acontecimento que foge da racionalidade marqueteira e das linhas retas. Uma ideia e um conceito difíceis de “aprisionar”.
Diante dessas imagens épicas e comoventes, buscam a foto/imagem de Lula preso como um troféu, mas qualquer imagem depois disso será pequena. No G1 e na Globo News ouvimos o som de um helicóptero e o silêncio. Um olho vazio de câmera de vigilância e comentários que enchem linguiça: o vazio de sentido e o “atirador” posicionado para acertar o alvo/imagem. Mas “a foto da prisão de Lula” não aconteceu.
Desobediência civil
“Se entrega Corisco! Eu não me entrego não! Eu não sou passarinho pra viver lá na prisão, não me entrego a tenente, nem mesmo a capitão, só me entrego na morte, de parabelo na mão”. Essa canção/cordel que marca a trilha sonora de Deus e o Diabo na Terra do Sol, de Glauber Rocha, mostra o quanto a desobediência civil está arraigada no imaginário popular brasileiro, para quem o inimigo não é nem as esquerdas, nem os conservadores, mas o próprio Estado.
A desobediência civil, o ato que Lula protagonizou na sua Canudos provisória, é a percepção de que o Estado, a lei e a ordem produzem injustiça. Daí a necessidade de resistir, atrasar, acenar com uma trincheira humana em São Bernardo do Campo, que passou de resistência e radicalismos iniciais para a forma de uma missa, liturgia em homenagem à memória de sua mulher, dona Marisa Letícia, no mesmo espaço. Momento histórico no ABC que viu nascer Lula e que reuniu lideranças políticas, movimentos, lideranças religiosas e sociedade civil num ato real e simbólico de resistência.
O antipetismo tem uma só fala: Lula deve desaparecer
Não precisa ser petista para entender que hoje o antipetismo histérico encobre os discursos de ódio contra grupos inteiros, encobre o ódio de classe, encobre os discursos racistas e machistas contra as minorias. O antipetismo construído e alimentado durante as últimas décadas está produzindo monstruosidades muito maiores do que quaisquer erros cometidos nas gestões dos presidentes Lula e Dilma. A frágil democracia brasileira rifada e amesquinhada para destruir um partido e suas lideranças.
O que acontece quando um inimigo da grandeza de Lula é neutralizado e se decreta sua morte? Já estamos no pós-lulismo – o demônio, o inimigo exorcizado. Veremos, agora, o vazio de projetos e propostas, e a dificuldade de se mobilizar afetos e crenças no reencantamento da política.
Lula se pensa já como mito, como póstumo, como história e como futuro com uma consciência aguda dos processos e da vida como construção. Queriam um mártir? Um preso político? Já têm. Desde o ato em defesa de Lula no Circo Voador, no Rio de Janeiro, ele já anunciava e encarnava esse lugar de Lula-Multidão. Lula é muitos, enfatizou na sua fala poética e política:
“Se me prenderem e eles não me deixarem andar, eu andarei pelas pernas de vocês. Se eles não me deixarem falar, eu falarei pela boca de vocês. Se meu coração parar de bater, baterá pelo coração de vocês. Não é de mim que eles têm que ter medo, eles têm que ter medo de vocês.”
Não se muda a história com lágrimas, nem com teorias, mas com lutas e corpos. A prisão de Lula também foi comemorada por muitos em todo o Brasil. Num primeiro momento, o que vimos foi a liberação dos piores instintos de ressentimento e ódio: salgar a terra, esquartejar, tripudiar dos vencidos.
Oscar Maroni comemora a prisão de Lula distribuindo cerveja grátis para três mil pessoas (Reprodução)
Senha para liberar a barbárie
A fotografia do altar erguido ao juiz Sérgio Moro e a ministra Carmem Lúcia em uma casa de prostituição, com o dono de uma boate de luxo mostrando a genitália desnuda de uma das suas contratadas enquanto lhe tapa a boca, chama atenção por sua constelação de signos.
Vestido de preso/torturador/irmão metralha, Oscar Maroni, o dono da boate Bahamas Club, comemora a prisão de Lula distribuindo cerveja grátis para três mil pessoas, cumprindo uma promessa alardeada pelas redes como as do MBL. O que diz a imagem, que evoca tanto a iconografia da prisão de Abu Ghraib quanto uma cena de Salò ou os 120 dias de Sodoma, de Pier Paolo Pasolini – ou ainda cenas de tortura da deep web -, é exatamente essa libido diante da sujeição do outro: voltamos ao comando!
Podemos infringir nosso poder aos corpos: das mulheres, das minorias, podemos comandar o espetáculo politicamente incorreto, porque vencemos. Como nos estupros pós-guerra, como nas cenas de torturas da ditadura militar. Poder, sexualidade e assujeitamento. Uma multidão de homens brancos que cultua Bolsonaros, armas e assujeitementos de todo tipo. Eu gozo com o teu sofrimento, eis a trip regressivo-vingativa travestida de “justiça”, moralidade e combate à corrupção em que estamos.
Como sublinha Friedrich Nietzsche, toda reivindicação por justiça traz junto de si um desejo primário de vingança, mas essas duas coisas não se confundem, ou não deveriam se confundir. É o que distingue a civilização da barbárie. Poder separar nossos piores instintos de uma justiça construtiva e pedagógica. Ao amalgamar justiça e vingança, o que vimos no Brasil, no impeachment e golpe jurídico midiático contra Dilma Rousseff, na Operação Lava Jato e no fetiche por prender Lula, foi essa assimetria que transformou um impulso e processos decisivos por justiça e contra a corrupção em uma senha que libera o devir fascista, o ressentimento social e a vingança que só deseja a morte do outro, do inimigo social, outro gênero, outra cor da pele, outras crenças.
Teríamos que nos empenhar em produzir dispositivos que separem justiça de vingança. Um processo profundo de reencantamento na potência das lutas e disputas dos imaginários.

(Publicado originalmente no site da Revista Cult)

Durval Muniz: O país da chibata

O historiador Durval Muniz escreve aos domingos na agência Saiba Mais

            Os cientistas sociais sabem que há imagens, há cenas que sintetizam uma dada época, uma dada ordem social. Essas imagens servem como emblemas de dados momentos e dadas circunstâncias sociais. Como observaram o filósofo alemão Walter Benjamin e o historiador da arte Georges Didi-Huberman, há imagens que sobrevivem a seu tempo e, como restos, como fragmentos, como cacos de sua época, reaparecem num tempo posterior, promovendo um encontro revelador entre o passado e o presente. A imagem que, vinda do passado, relampeia no presente, serve como um facho de luz para iluminar o que se passa à nossa volta. Nesse choque entre tempos, nesse pedaço de passado que atravessa a cena do presente, Freud via a possibilidade de entendermos as dimensões inconscientes que governam nossas vidas individuais e coletivas. Recalcadas, amortecidas como brasas cobertas de cinzas, essas imagens emergem, vêm à tona em um dado momento de conflito, que Benjamin chamou de “um dado momento de perigo” dando acesso à camadas profundas da vida social, estruturas de valores, estruturas sociais e culturais marcadas por uma longa duração. Essas cenas, pois elas implicam uma dada dramaturgia, uma dada forma de aparecer, de se expor, elas tem o condão de resumir os traços mais definidores de uma dada sociedade, em um dado momento histórico.
O fotógrafo Guilherme Santos, do jornal Sul21, flagrou o momento em que um fazendeiro gaúcho, munido de um relho, chicoteava simpatizantes do ex-presidente Lula. Imagem arcaica, imagem saída dos porões do nosso passado escravista. Fazendeiro a espancar pessoas a quem, possivelmente, considera não terem o direito de existir, de ser e pensar diferente, talvez que não tenham sequer a condição de humano. Possivelmente para esse representante do latifúndio secular, aqueles homens e mulheres sejam vistos como gado, podendo ser chicoteados, como se fazia com o gado humano trazido à ferros da África. A chibata, o rebenque, o relho, foram durante quatro séculos a encarnação do poder discricionário, absoluto, sem peias, dos potentados senhores de terra, de quem esse agressor é um descendente e continuador. O chicote contra a carne, contra o lombo, contra qualquer parte do corpo, deixava impressas as marcas de um poder sem contestação, um poder de vida e morte protegido pela legislação, amparado pelo Estado, considerado legal. O relho, a palmatória, o chicote eram vistos como pedagógicos, como instrumentos de ensino e educação. Somos um país onde ainda se espanca crianças todos os dias, em nome da educação. Os espancados serão os espancadores de amanhã. O fazendeiro que maneja o relho contra petistas, bem pode ter sido o menino que aprendeu a ser “homem” debaixo de peia. Significativamente, o ex-presidente que é motivo de tanto ódio, foi aquele que enviou ao Congresso Nacional, um projeto de lei proibindo o espancamento infantil, para a revolta de muita gente que se perguntava como os pais poderiam educar seus filhos sem espancá-los. A lei da tapinha, como ficou conhecida, foi um daqueles gestos dos governos do PT que mexeu em nervos expostos da sociedade brasileira, que atingiu o âmago de nossa vida social, ainda profundamente marcada pelas relações escravistas. Pais espancadores e torturadores são apresentados como educadores e se revoltam contra o que seria a ingerência indevida do Estado “no jeito dos pais educar os filhos”. O mesmo enunciado que serve de base para a demagogia da chamada “Escola sem Partido” apresentado à Assembleia Legislativa pelo deputado Jacó Jácome. O princípio republicano exige que o Estado (e a escola é uma instituição do Estado, mesmo quando privada, pois por ele é fiscalizada e deve seguir as regras gerais que dele emana) participe da educação dos cidadãos e partilhe com a família essa educação, em benefício da defesa de interesses gerais da sociedade e em detrimento dos interesses privados das famílias, que podem ser antisociais e antirepublicanos.
Essa imagem que poderia ser tomada como isolada, como sendo o documento de um ato espúrio de um celerado, foi amplamente apoiada pelos setores da oposição ao PT, mostrando que ela é a explicitação de tendências bem mais profundas de nossa sociedade. Uma senadora da República, uma mulher, uma senhora de classe média alta, uma avó, formada no meio urbano, jornalista ligada por décadas ao grupo midiático mais poderoso do sul do Brasil, o grupo RBS, usou o palanque da pré-convenção de seu partido, o PP – que lembremos é um restolho da Arena, o partido que apoiou a ditadura militar, com seus relhos e rebenques, com suas botas, fuzis, cães amestrados, com a tortura e assassinato de presos políticos, também na época chamados de terroristas (o mesmo nome que os grupelhos de direita e extrema-direita que perpetraram vários atos de ataque e agressão a caravana do ex-presidente Lula, chamam aqueles a quem agridem, chicoteiam e tentam matar) – para defender o uso do relho feito pelo seu conterrâneo. Ela disse, como uma boa representante dessa elite brasileira, branca, que nunca saiu da casa-grande, que nunca retirou o pé do latifúndio, da monocultura e da escravidão, bases de nossa colonização: “levantar o relho, o rebenque não é violento”. Possivelmente porque violência seja empunhar uma bandeira vermelha, querer ouvir um ex-presidente, querer saudá-lo, ir para as estradas recebê-lo, portar uma estrela no peito. Possivelmente, para essa gente, violência é reivindicar reforma agrária, divisão dos enormes latifúndios, que nessa região do Rio Grande do Sul, como em tantas outras no país, remontam ao período colonial e escravista. Para essa senadora levantar o relho e o rebenque deve continuar sendo pedagógico, educativo, deve ser legal e legítimo. A senadora da República pretende fundar a República no uso da chibata, como afinal foi fundado o Estado brasileiro. O Império brasileiro esteve por décadas fundado na escravidão, na lei do tacão e do chicote. Foi preciso que, no início da República, os marinheiros se revoltassem contra o uso sistemático da chibata na Marinha brasileira. Não é de espantar que muita gente ainda queira fundar a própria existência política da nação no uso “não violento” do relho.
A senadora cumprimentou Bagé, Santa Maria (uma das cidades mais militarizadas do país), Palmeiras das Missões, Passo Fundo, São Borja e Santana do Livramento, “que botou para correr aquele povo que foi lá, botando um condenado para se queixar da democracia”. Notem a muito particular noção de democracia da senhora senadora: democracia é a prevalência da opinião dela e dos seus, nem que para isso tenha que se fazer uso do chicote, do soco inglês, da pedra, do sopapo, do tiro. Democracia não é a convivência necessária com a diferença, com um outro que é diferente de mim, que pensa diferente de mim, mas que tem os mesmos direitos de existir que o meu. Quando qualquer um de nós chega à terra, já encontramos outros, já encontramos muita gente com línguas, costumes, religiões, ideias políticas diferentes da nossa, o que temos que fazer é buscar coabitar com toda essa diferença. Com que direito eu que cheguei depois, quero fazer da terra algo só meu ? É esse tipo de postura que a existência da propriedade privada, que a existência da propriedade da terra causa. Quem nasce dono de terra tende a se achar dono da Terra, tende a se achar aquele que é dono do mundo, não tendo lugares para outros existirem. Além do dono da terra, só existe o gado, até mesmo as demais gentes são gados, a que se deve dar uma ração e algumas bordoadas quando não obedecem. A senadora Ana Amélia, quando foi candidata ao governo gaúcho, deixou de declarar que era proprietária de uma fazendola de 1,9 mil hectares. Ou seja, fica claro de que lado ela está do chicote, ela está empunhando o cabo, não do lado de quem recebe a lambada. Sua solidariedade com os portadores de chicote é uma solidariedade de classe. Mesmo tendo suas atividades na cidade, como é comum no Brasil, as elites urbanas, quando já não são ou descendem de proprietários de terra, que se acham donos da Terra, tornam-se proprietários, usando o acúmulo de propriedades rurais como reserva de valor, como investimento, já que os baixíssimos impostos cobrados sobre a terra no país, um dos privilégios conferidos a uma elite agrária que ainda tem enorme poder no aparelho de Estado, torna esse investimento tremendamente lucrativo, sem que seja preciso, inclusive, torná-la produtiva.
Alguns dos municípios que mereceram o efusivo cumprimento da senadora da lambada (não a dança, claro!), ficam nas regiões de fronteira do Rio Grande do Sul, tendo uma longa história de conflitos com os vizinhos uruguaios e argentinos, sendo zonas muito militarizadas, com uma cultura marcada pela presença da violência e da escravidão. Nessa região a presença da grande propriedade pecuária é acompanhada por uma forte presença do Movimento dos Trabalhadores sem Terra (MST), o principal movimento social do país, nas últimas décadas, que tem sua origem nesse estado, que reivindica a desapropriação para fins de reforma agrária dos grandes latifúndios com baixa produtividade nesses municípios. O ódio dos ruralistas ao MST, os conflitos em torno da terra, é o caldo de cultura para explicar a formação dos grupos que tentaram impedir a passagem da caravana de Lula pela região. O uso de tratores, colheitadeiras, deixa claro a origem social dos manifestantes. No entanto, o candidato a presidência da República pelo PRB, o empresário Flávio Rocha, disse que as manifestações eram do povo e que elas demonstravam a irresponsabilidade do STF por deixar um condenado, no caso, Lula, solto. É interessante que manifestações de minorias intolerantes sejam transformadas em rejeição popular, quando o que se viu foi o uso do rebenque para tentar impedir que a população acorresse até o presidente. O empresário que se revolta contra a justiça quando ela apenas investiga possíveis irregularidades de suas empresas, que tenta sob ameaças intimidar o Ministério Público, que usa de manobras para tentar anular o processo em relação a questão das facções é o mesmo que cobra celeridade da justiça e da punição no caso de Lula. O empresário da Riachuelo também quer que o chicote da justiça só atinja o lombo daqueles que contrariam seus interesses. Ele é mais um que segura o cabo do chicote com gosto, mas acha um absurdo se a folha da chibata vira para o lado de seus costados. Seus trabalhadores têm que aguentar, sem reclamações trabalhistas, a força de seu tacão, têm que sair como rebanho a defender os seus interesses, tangidos por sua chibata invisível: a chibata da ameaça da demissão, do desemprego, da miséria e da fome, os tradicionais instrumentos de acicate ao trabalho no capitalismo.
A senadora, orgulhosa, ainda utilizou um argumento de identidade regional para louvar as chibatadas “não violentas”: disse ela, talvez em nome de um Centro de Tradições Gaúchas, “atirar ovos, levantar o relho, levantar o rebenque para mostrar o Rio Grande, para mostrar onde estão os gaúchos”. Como em todo discurso identitário, toma-se uma parte pelo todo: o fazendeiro espancador, o atirador de ovos, aqueles que fizeram levantamento de rebenque (talvez uma modalidade olímpica no futuro) são os gaúchos, representam todos eles. Aqueles milhares de vermelhinhos que foram ver Lula por onde ele passou, não são gaúchos, quedam alijados da identidade regional. Gaúchos machos devem ser os que usaram soco inglês para agredirem uma mulher grávida, em Cruz Alta, pois, afinal, todo macho é misógino e odeia mulheres. Mas a senadora parece não ter a menor identidade com o seu gênero, ela sabe de que lado estão os verdadeiros gaúchos: eles são machos, latifundiários, reacionários e seguram o cabo do relho e do rebenque, mesmo que urbanamente usem saia e frequentem o Parlamento nacional. Gaúchos machos devem ser o promotor que impediu que o reitor da Unipampa, uma universidade criada por Lula, pudesse receber o ex-presidente, e o próprio reitor que se escondeu para não recebê-lo, dois machaços. Como eles poderiam se identificar com a presidente deposta pelo golpe, uma gaúcha por adoção, uma mulher forte, digna, honesta, mas que se negava a ficar do lado dos verdadeiros gaúchos, aqueles que empunham a macaca pedagógica. O ódio a Lula repercute o enorme preconceito regional, de parte das elites e da população dos estados do Sul do Brasil, contra os nordestinos e o restante dos brasileiros como um todo. É preciso notar que Lula percorreu os estados do Nordeste e do Sudeste sem ter encontrado essas manifestações organizadas de hostilidade e de violência. Foi no sul que estivemos à beira de uma tragédia, com os ônibus da caravana tendo sido emboscados e alvejados por tiros, após grupos extremistas usarem a internet para prepararem o ataque. O separatismo de setores das sociedades desses estados, embora minoritário, seu desprezo e ressentimento pelo Brasil e pelos moradores de outras áreas do país, notadamente pelos nordestinos, de quem Lula é um representante simbólico, explica parte da violência e do ódio que assistimos. Tendo sido colonizados por imigrantes europeus, que aqui chegaram fugindo da miséria e da guerra, nesses estados foi cultivado mitos compensatórios para essa desterritorialização forçada, como a pretensa superioridade racial e cultural, como a pretensa superioridade quando se trata de disposição para o trabalho e, inclusive, o mito de que são mais conscientes politicamente, embora estados como Santa Catarina e Paraná estejam politicamente, há décadas, nas mãos de oligarquias inéptas e corruptas, que embora não sejam consideradas compostas por coronéis, como se costumam chamar as oligarquias nordestinas, para deixar claro o seu atraso, são responsáveis pelo declínio relativo da importância do sul na economia nacional e pela miséria e atraso de dadas áreas de estados como o Rio Grande do Sul, atraso e declínio que são demagogicamente atribuídos ao fato de que o governo federal roubaria o sul e transferiria o fruto de seu trabalho para os “vagabundos e preguiçosos do Nordeste”, do bolsa família, para eles votarem no PT. A falência de um estado como o Rio Grande do Sul, da qual políticos como a senadora Ana Amélia é responsável, é atribuída à transferência de recursos e empresas para fora da região, que teriam sido estimuladas pelos governos do PT.
Se o fascismo grita nas ruas e desvãos do sul do país (ele está presente no país como um todo) temos que lembrar que aí imigrantes italianos e alemães simpatizaram com o nazi-fascismo e grupos neonazistas têm militância permanente e pública, sem que nada seja feito a respeito. Os imigrantes de várias nacionalidades tenderam a se agrupar em organizações comunitárias que construíam suas identidades enquanto grupos reivindicando uma ancestralidade europeia, uma ancestralidade branca, não brasileira, não mestiça, não indígena, não negra. O orgulho racial somado ao isolamento comunitário é um caldo de cultura para a formação de subjetividades reativas ao diferente, para a formação de uma visão de mundo hierárquica, em que outro é colocado em posição de subalternidade. A desqualificação do outro, seu não reconhecimento, passa a ser um perigoso princípio identitário. Quem levanta uma chibata para bater num outro, não o reconhece como igual, como semelhante, como humanamente tendo o direito de existir. A chibata animaliza, rebaixa à condição de animal (já que os humanos ainda se acham no direito de espancar os animais por eles serem pretensamente inferiores). Assim como os nazistas rebaixavam os judeus à condição de ratos, cães, pulgas, porcos para justificarem seus atos, nos emails que prepararam o ataque assassino a caravana de Lula e que comemoravam, depois do ocorrido, que com isso foram parar no Jornal Nacional (deixando claro outra fonte de nosso fascismo, já que com ele o fascismo se identifica), o ex-presidente é reduzido a um saco de bosta que seria explodido com uma bomba em seu avião. O fascismo é justamente essa rejeição passional e reativa à existência do outro na sua diferença. Outro presidenciável, Jair Bolsonaro, em mais um gesto que revela o seu estatuto político e moral, foi a cidade vizinha a Curitiba, onde Lula finalizava sua caravana com uma gigantesca manifestação contra o fascismo (deixando claro que milhares de pessoas no sul não concordam em serem representados pelo relho “não violento” da senadora da lambada), fazia no palanque um gesto indicando que se devia atirar na cabeça do ex-presidente. Essa é a plataforma de Bolsonaro, o extermínio daquele com quem ele não concorda. Afinal, além da chibata, a tocaia, a emboscada, sempre foram tecnologias muito utilizadas por nossas elites, rurais e urbanas, para resolver de forma “não violenta”, de forma “republicana e democrática” os conflitos, notadamente com os trabalhadores negros e pobres. Marielle Franco e seu motorista foram vítimas dessa sofisticada tecnologia de extermínio do diferente, do opositor, daquele que denuncia os desmandos, a exploração, a ganância, a corrupção, a violência, a prepotência dos poderosos desse país, em todas as áreas. A tocaia talvez seja uma evolução da tecnologia da chibata, por ser mais letal e resolver de forma definitiva um problema. Normalmente bastava o poderoso chegar para seu braço armado e dizer: “é preciso tomar providências em relação a fulano”. “Pois não coronel, não se preocupe”. Hoje esse diálogo foi modernizado, ele se dá nas redes sociais: “ Vá numa loja de arma, compre uma puma 38 ou 44, é mais fácil do que vc imagina”. Emoticon com uma carinha piscando, matreira. “Aí é só se posicionar do outro lado do rio e mandar uma bala certeira”. Retorno do recalcado, imagens sobreviventes.
O governador do estado mais rico do país, representante da nossa indústria mais moderna, saído da burguesia que teria levado o país para a modernidade, o centro da inteligência nacional, o estado com os eleitores mais politizados do país, livres de coronéis, governados por gente que domina a “gestão”, território à parte no domínio populista, bolivariano, esquerdista do PT, território do tucanistão, não podia deixar de se associar à política entendida como uso do relho e da bala. Se a política implica sempre uma dada violência, a violência simbólica, verbal, da troca de ideias, da crítica, ela existe desde os gregos para evitar a violência direta, sanguinolenta, carnal. A democracia surgiu para que as diferenças entre os homens pudessem coexistir, pudessem ser negociadas, pudessem ser objeto de discussão e deliberação. O governador Geraldo Alckmin, outro presidenciável, disse uma frase muito sábia: “Lula colheu o que plantou”. Ou seja, nosso governador confunde disputa verbal, política, de ideias, embates eleitorais, críticas e dissensões políticas com chicote e bala. Que me conste nem Lula, nem o PT, jamais usou o chicote ou a bala para atacar nenhum adversário. O que Lula plantou foram 14 novas universidades federais, mais de 240 novos institutos federais de educação, mais de 20 milhões de empregos, milhares de casas populares, a redução da miséria para milhares de brasileiros, milhares de cisternas, centenas de UPAS, farmácias populares, UBS, permitindo que milhares de brasileiros negros tivessem acesso ao ensino superior. É por causa disso que ele e seus partidários merecem ser tratados no chicote e na bala? Nem mesmo se ele tivesse cometido os crimes que lhe imputam era para receber esse tratamento. O processo civilizatório criou o direito e a justiça para se evitar que as pessoas resolvam suas diferenças usando a violência. O PT dividiu o país por defender um projeto político distinto daquele que nossas elites e parcelas da classe média estão dispostos a aceitar, mas isso se resolve nas urnas e não na bala e na lambada.
É significativo que a senadora do uso “não violento” do relho tenha sido jornalista e tenha trabalhado na RBS, afiliada da Rede Globo. Talvez nenhuma instituição tenha feito mais para a instalação desse clima de caça às bruxas que vivemos. Nem mesmo o Judiciário, onde a Corte Suprema do país está à beira do uso da chibata e do clavinote, onde as punhaladas pelas costas têm sido o pão de cada dia, tenha feito tanto quanto a mídia para que a besta fascista esteja mostrando os seus dentes sedentos de sangue, como a intervenção na segurança pública do Rio de Janeiro mostra claramente. Sangue nos dentes vindo de um governo vampiresco não é de espantar. Nem mesmo a república de Curitiba, com o tacão das conduções coercitivas e das prisões preventivas indefinidas, fez mais para instalar o desejo de morte coletivo, desejo que caracteriza o fascismo, do que o jornalismo de guerra praticado pelos principais meios de comunicação do país. O destilamento diário de ressentimento, inveja, preconceito, má consciência, ódio, desrespeito ao próximo, aos direitos humanos, somados à mentira, à armação, à calúnia, à fabricação de versões parciais e desonestas, produziram essas subjetividades intolerantes, violentas, agressivas, assassinas. No Jornal Nacional todo dia passou a ser dia de Rei do Gado. Todas as estatísticas mostram, nunca se bateu tanto num partido, numa pessoa como a de Lula. Lula leva anos a ser chicoteado em praça pública todas as noites. Seu poder de resistência e resiliência desorienta os senhores da casa-grande platinada. Quando torceram que o câncer o matasse, quando se regozijaram com a morte de Dona Marisa, ficou claro que para essa gente vê-lo morto é um desejo indisfarçável. A Rede Globo, seus jornalistas, suas afiliadas, os órgãos da grande mídia são eles que empunham o cabo do relho que desceu violento sobre o lombo dos petistas e simpatizantes no Rio Grande do Sul. Todos os dias os programas policiais descem o relho no pobre, no preto, no bandido, no marginal, no meliante, no da favela. Eles não são humanos, são bestas que merecem ser violentadas. Direitos, que direitos podem ter ? Aprendemos todos os dias, com esses programas fascistas, como as velhas lições e imagens do passado já nos mostravam, que para quem não concorda comigo o que se deve ter é peia, pau nos bostas que vivem, pensam, desejam diferente da gente, tal como dizia um post na internet. Assim se afundará a República e a democracia, mas os donos dos relhos e das chibatas terão seus privilégios garantidos. Quem segura no cabo do chicote pouco está se importando com a dor de quem está levando sua folha e sua ponta no lombo. O golpe foi dado para que o relho continue a vibrar sobre as contas dos trabalhadores, dos negros, das mulheres, dos pobres, dos marginalizados, do diferentes. O relho senhorial sobrevive, a chibata do senhor de escravo ainda ressoa entre nós, as carnes laceradas dos negros de ontem continuam sendo as carnes mais baratas no mercado hoje, sujeitas à lambadas e a serem varadas de balas quando resistem, quando se rebelam, quando se revoltam, quando apelam até para o crime para ver se são vistas e têm existência.

Durval Muniz é historiador e professor titular da Universidade Federal do Rio Grande do Norte

(Publicado originalmente no site Saiba Mais, Agência de Reportagem, aqui reproduzido com autorização do autor)

sábado, 7 de abril de 2018

PTfobia e Lulofobia


Em sua ciência antropológica, Lévi-Strauss faz uso de duas palavras que definem como nos organizamos na cultura: antropofagia e antropoemia. A primeira indica que simbolicamente aceitamos, assimilamos e “ingerimos” o estranho. A diferença é reconhecida e pode, inclusive, modificar aquilo que havia antes. Antropofagia é devoração do Outro. Uma prova disso, em Natal, foi a presença dos americanos na Segunda Guerra Mundial que nos legou a identificação de algumas avenidas e ruas por números. Ou, ainda, quando identificamos hábitos portugueses, africanos e árabes em nossa culinária, ritos e linguagens. Dizem que o nosso aboio nordestino tem influência da sonoridade árabe e do canto de libertação dos escravos africanos. Na antropoemia, ao contrário, não assimilamos e não aceitamos as diferenças. Ao invés da devoração para a assimilação, “vomitamos” e repelimos aquilo que é da ordem do diferente ou do novo. Noutros termos, temos que expulsá-lo do nosso território, pois representa perigo e repulsa. Ou como definiu Mary Douglas, “Pureza e Perigo”. Do lado da pureza, os limpos. Do lado do perigo, os sujos.
Olhando para a realidade política brasileira atual, percebemos este paradoxo civilizatório. De um lado, o discurso do ódio e da violência simbólica e física. Do outro, a tentativa de garantia do estado de direito e da garantia da vida como uma valor ético universal. Neste ringue civilizatório, estão forças políticas reacionárias como, por exemplo, Bolsonaro e Flávio Rocha. Ambos fazendo do discurso da moral e dos chamados bons costumes, pressupostos da política. Isso materializa-se em teses como aquelas da defesa da Escola sem partido ( eliminação da crítica), contra cotas nas Universidades, contra a máxima feminista “meu corpo, minhas regras” e, por extensão, contrários à descriminalização do aborto, das drogas e da união civil homoafetiva. São os paladinos da pureza. Os antropoêmicos. Aqueles que desejam eliminar qualquer “sujeira” da ordem social. O holocausto dos judeus é, sem dúvida, a maior consequência histórica desta visão política e cultural. Das ideias de raça superior (ariana) e inferior (judeus), herdamos a barbárie das prisões e mortes de milhões de pessoas em campos de concentração e câmaras de gás. A antropoemia nazista! A ditadura militar brasileira, que matou e expulsou vários dissidentes porque eram considerados “sujeiras”, também, servem de exemplo. A atuação da organização ALT-RIGHT( Direita Alternativa) dos EUA em defesa de propostas nacionalistas, racistas, tradicionalistas e no apoio radical a Donald Trump é um outro exemplo
Dou outro lado do ringue, estão aqueles que querem a assimilação e convivência dos contrários. E por isso, muitas vezes, são tratados como ameaças à ordem e à moral dos bons costumes. São as Marielles e Lulas que teimam em desafinar coros de contentes quando defendem os estranhos repelidos e vomitados pela elite: os pobres. Uma elite que de bolsas, só conhecem aquelas da Louis Vuitton. Uma elite que tem ojeriza aos que recebem bolsa-família, aos sem-terra, aos que borram as fronteiras da heteronormatividade. Neste ano de eleições, assistiremos com preocupações a esta briga incivilizada. A morte de Marielle, as milícias armadas contra o ex-presidente Lula em sua Caravana por cidades do Sul, são provas desta deia de pureza e ódio de classe. Ônibus foram alvejados por tiros, pedras e ovos e, pasmem, não vimos nenhum Dallagnol, Moro ou a mídia brasileira repelirem. O silêncio demonstra de que lado estão. Do lado dos antropoêmicos, que agem a todo o momento como caçadores de lulistas e petistas. Justiceiros da “limpeza” com venenos de ódio nas mãos e nos discursos, desejam eliminar a “praga” perigosa. Inauguram a prática da PTfobia e da Lulofobia. Exemplo disso foi o resultado da votação do habeas corpus de Lula pelo STF. Os comportamentos da ministra Rosa Weber (disse que era inconstitucional a prisão em segunda instância, mas…) e da presidenta do Supremo, ministra Cármen Lúcia, ao se negar pautar o tema, são provas cabais da PTfobia e Lulofobia. Fizeram política com a desfaçatez de supostos argumentos racionais. Não teriam tido os mesmos comportamentos perante políticos do PSDB, do DEM e do MDB. O tratamento fóbico é notório também nos Tribunais Brasil afora. O grau da lente da justiça é sempre aumentado quando se trata de julgar os petistas. As dos outros, quase sempre, é cega ou míope.
Uma nação democrática e moderna é aquela que convive com as diferenças e constrói instrumentos formais e culturais que garantam o princípio da igualdade. O outro, como aquele que habita meu território social e simbólico e, por isso mesmo, devemos ser tolerantes. Devemos nos “outrar” e percebê-lo como condição para si mesmo. O embate se faz entre aqueles que aceitam democraticamente o dissenso e aqueles que lutam pela sua eliminação. Para alcançarmos níveis de tolerância civilizatório, faz-necessário acabarmos com a dicotomia entre antropofágicos e antropoêmicas.
(Publicado originalmente no site Saiba Mais, Agência de Reportagem)