pub-5238575981085443 CONTEXTO POLÍTICO.
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domingo, 8 de junho de 2014

A origem oligárquica de Eduardo Campos

Por Severino Fernandes
A análise do sociólogo Adalberto Moreira é perfeita. Ele só se equivoca quando fala das origens oligárquicas de Eduardo Campos (PSB).
Eduardo é neto do falecido ex-governador (de Pernambuco) Miguel Arraes de Alencar. Arraes e Pelópidas da Silveira (ex-prefeito do Recife,também já falecido) lideraram a chamada “Frente do Recife”, através da qual (na década de 1950) as esquerdas chegaram à Prefeitura do Recife em aliança com setores liberais ou conservadores moderados, mas com prevalência de uma visão social dos problemas a enfrentar como governantes e de políticas públicas para solucioná-los ou pelo menos minimizá-los.
Essa frente ampliou-se e se transformou na “Frente Popular de Pernambuco”. Uma das primeiras e mais bem sucedidas alianças de centro-esquerda que acabou chegando ao Governo de Pernambuco (em 1962) com a vitória de Miguel Arraes (PTB) sobre o candidato da direita, João Cleofas (UDN), apoiado pelos poderosos usineiros da Zona da Mata Pernambucana.
Arraes, advogado e funcionário de carreira do extinto IAA (Instituto do Açúcar e do Álcool) iniciou sua carreira política como secretário da Fazenda do governo Agamenon Magalhães (PSD), que apesar de ser um político conservador (à direita) fez um governo de viés social, ao estilo getulista (construindo vilas operárias no Programa Social contra o Mocambo, para operários de fábricas da Região Metropolitana do Recife, porém sem incomodar os usineiros de açúcar e sua tradicional forma semi-feudal de conduzir seus negócios).
Acostumados a tratar seus trabalhadores rurais (cortadores de cana) com extrema brutalidade e incomum desumanidade, os poderosos usineiros se viram fortemente contrariados com a chegada de Arraes ao governo (com apoio de comunistas, socialistas, cristãos progressistas  e liberais da direita moderada).
No Sertão e no Agreste, onde não menos poderosos fazendeiros também comandavam com mão de ferro suas propriedades e onde os mais fortes economicamente via de regra se tornavam os coronéis (ou chefes políticos) de municípios de pequeno e grande porte, tampouco se agradaram com os ventos liberalizantes que a vitória de Arraes representava.
Arraes seguiu à risca seu programa social de governo, que previa reformas em benefício dos trabalhadores rurais, que prometia tirá-los da condição de semi-escravidão em que encontravam. Sob seu governo foi assinado o histórico e emblemático “Acordo do Campo”, em que os “garbosos” e arrogantes usineiros e senhores de engenho, a contragosto sentaram-se lado a lado com as lideranças dos trabalhadores rurais e tiveram que pagar salário mínimo e garantir direitos até então negados a esses camponeses.
Antes de Arraes era comum as questões sociais serem tratadas como caso de polícia em Pernambuco. O livro do ex-deputado estadual e promotor de Justiça Paulo Cavalcanti narra como, por exemplo, no município de Goiana, era comum trabalhadores rurais ligados aos sindicatos rurais serem perseguidos, torturados e em alguns casos até assassinados por usineiros e senhores de engenho da região canavieira.
Muitos desses trabalhadores violentados em sessões de tortura eram “socorridos”, já mortos, em unidades hospitalares públicas e posteriormente encaminhados para o necrotério do Cemitério Público de Goiana com papéis amarrados a um dos dedos dos seus pés, dando conta da  suposta causa da morte: “morte por problemas de baço”.
Nada era investigado, porque as lideranças políticas e as forças policiais, em geral, serviam como aparelho paramilitar dos usineiros e senhores de engenho. E usavam dessa condição para perseguir trabalhadores sindicalizados que se organizassem para reivindicar direitos trabalhistas.
Também era comum os trabalhadores rurais e cortadores de cana das usinas e engenhos de açúcar serem obrigados a comprar nos chamados “barracões de usina” os gêneros de primeira necessidade que precisavam para se alimentar e sobreviver. O problema é que esses produtos eram vendidos a preços extorsivos, muitas vezes duas ou três vezes mais caros em relação ao preço em que eram vendidos nos “armazéns de secos e molhados” e nos mercados públicos das cidades da Zona da Mata.
O que ocorria é que como os produtos eram caros e o salário dos trabalhadores muito baixos, em geral abaixo do mínimo, eles acabavam muitas vezes ao final do mês sem receber salários e ainda por cima devendo a usineiros e senhores de engenho. Dessa forma os seus patrões além de burlarem a legislação trabalhistas ainda os prendiam pela dívida, como se fossem semi-escravos ou servos da gleba do período feudal europeu.
Pouco antes da posse de Arraes, e no apagar das luzes do governo (do também usineiro) Cid Sampaio (PSD) ocorreu o  chamado “Massacre da Usina Estreliana”, no município de Ribeirão, quando o  usineiro José Lopes da Siqueira Santos, proprietário da Usina Estreliana, chacinou com rajadas de metralhadora cinco trabalhadores rurais que foram exigir pagamento de diferença de salários, porque estavam com suas famílias passando fome.
No governo Arraes sempre tentou intermediar acordos trabalhistas e determinou que a polícia fosse retirada das usinas, fazendas e engenhos. Que deixasse de servir como força paramilitar à serviço das elites e dos chefetes políticos dos municípios do interior pernambucano.
Os trabalhadores passaram a receber salários melhores. E o comércio dos municípios polo da Zona da Mata melhorou sensivelmente, vendendo radinhos e pilha, relógios e móveis que os  trabalhadores antes não podiam comprar.
Mas os “coronéis” do interior e a elite canavieira nunca perdoou Arraes. E esses segmentos de direita foram a ponta de lança civil do golpe militar que depôs Arraes em 1964. Preso e deposto pelos militares, e logo após um período de prisão no Arquipélago de Fernando de Noronha, Arraes seguiu para o exílio (parte na França, parte na Argélia) para garantir sua própria segurança e a segurança de sua família.
Voltou em 1979 e recebido por uma multidão no Aeroporto dos Guararapes, no Recife, e posteriormente em um comício no Largo da Feira do bairro de Santo Amaro, no centro do Recife, Arraes disse que estava voltando “não para ser bonzinho para os militares”, mas para continuar sua luta em favor da unidade e libertação do povo brasileiro.
Miguel Arraes de Alencar, que tomou posse em 1963 e foi apeado do governo em 1964, voltou a governar Pernambuco em outras duas oportunidades (1987 a 1990 e 1995 a 1998). Sempre investindo em programas sociais: como o Chapéu de Palha (voltado aos cortadores de cana, vítimas do desemprego sazonal da Zona Mata – e similar ao atual “Bolsa Família”); e como os programas de eletrificação rural e de perfuração de poços artesianos, que levou água e energia elétrica para pequenos municípios e para quase 90% das áreas rurais do interior pernambucano.
Seus programas sociais ajudaram a reduzir as profundas desigualdades sociais no campo e nas pequenas e médias cidades de Pernambuco. Já que em Recife e municípios da Região Metropolitana da capital pernambucana os movimentos sociais e sindicatos de trabalhadores garantiam outros avanços.
Foi dessa linhagem política que surgiu a liderança de Eduardo Campos, neto de Miguel Arraes. E o único do clã Arraes que manifestou interesse em enveredar pela política partidária.
Eduardo (ainda como estudante de Economia) participou do movimento estudantil na Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) na década de 1980. E no segundo governo do avô (1987-1990)foi seu oficial de gabinete.
No terceiro governo de Miguel Arraes (1995-1998), já com experiência parlamentar acumulada como deputado estadual e deputado federal, Eduardo Campos foi nomeado para secretário da Fazenda. E nesse posto foi fiador do polêmico episódio dos “precatórios” que custou a derrota eleitoral de Miguel Arraes (em 1998) para o ex-aliado Jarbas Vasconcelos (PMDB), capitaneando uma aliança de centro-direita, com PFL  e PSDB em seu palanque.
Apesar do baque eleitoral, Arraes ainda chegou a dar a volta por cima, elegendo-se como um dos deputados federais mais votados, pelo PSB, em 2002, praticamente sem fazer campanha, e apenas fazendo pequenas caminhadas em feiras livres das cidades da Zona da Mata, Agreste e Sertão. Eduardo também se elegeu deputado federal na mesma eleição. E depois foi nomeado por Lula para ministro da Ciência e Tecnologia.
Já ex-ministro, Eduardo lançou-se ao Governo de Pernambuco em 2006, derrotando Mendonça Filho (PFL), vice de Jarbas Vasconcelos, e vingando a derrota eleitoral do avô em 1998.
No governo, embora mantendo alguns programas sociais do avô, como o Chapéu de Palha, a pretexto de “modernizar” o “arraesismo” Eduardo adotou experiências privadas de gestão. O que o aproximou do meio empresarial e lhe rendeu críticas dos antigos aliados dos sindicatos rurais e dos movimentos sociais contra essa sua lógica, tida como conservadora (de direita), de “choque de gestão” e “governo de resultados gerenciais”.
Embora aliado do “lulismo”, Eduardo rompe aliança com o PT nas eleições para a Prefeitura do Recife. Profundamente rachado o PT lança o senador Humberto Costa para a sucessão do prefeito João da Costa (que não conseguiu encaminhar seu próprio processo de reeleição dentro do PT). E aproveitando dessa divisão o governador Eduardo Campos acabou emplacando seu aliado Geraldo Júlio (PSB), elegendo-o prefeito do Recife.
A patranha fez Eduardo Campos sonhar com voos mais altos, rumo ao Palácio do Planalto. E é a partir daí que exercita certa “dissidência” em relação ao governo Dilma e ao chamado “lulo-petismo” (com o qual os conservadores desdenham dos governos trabalhistas do PT). Dissidência essa que logo se transforma em oposição frontal, que leva Eduardo a postular uma candidatura presidencial em aliança com a ex-petista Marina Silva (que não conseguiu oficializar o registro de seu partio – Rede).
Eduardo tem feito acordos e conjecturas heterodoxas e perigosamente contraditórias para a biografia de seu avô. Mas dizer que ele vem de linhagem oligárquica é no mínimo um grave equívoco ou desconhecimento contextual da dinâmica da política pernambucana. Pois embora fazendo alianças pontuais com poucas dissidências de oligarquias interioranas, Arraes jamais foi um oligarca, ao contrário, ajudou e muito para enfraquecer o poder das oligarquias mais reacionárias e à direita, que sempre fizeram política clientelista para se firmar no governo. Mas sem jamais avançar socialmente em nenhum aspecto.
O problema é que ideologicamente Eduardo está a se movimentar como barata tonta. Critica Dilma de um lado, mas está tendo dificuldade de dizer a que veio e que propostas diferentes teria para “fazer mais” do que fez e vem fazendo a líder petista. O que se vê é uma perigosa aproximação dele com proeminentes lideranças da direita mais reacionária (como o catarinense Jorge Bornhausen) e com economistas e pensadores neoliberais contemporâneos, o que faria corar o seu avô (Miguel Arraes).
Na verdade esse camaleonismo de Eduardo está mais confundindo do que propriamente definindo um norte de governo. E em certa medida o afasta de segmentos de esquerda dos quais sempre foi aliado. O caso do escritor Ariano Suassuna (um histórico eleitor do “arraesismo” e apoiador de primeira hora de Eduardo) que já sinalizou apoio à reeleição da presidente Dilma é emblemático neste sentido. O renomado escritor diz que vota “a favor do Brasil” e não contra Eduardo, e que o jovem líder do PSB ainda terá sua chance de chegar  à Presidência.
(Publicado originalmente no site do Luis Nassif)

Marina e Eduardo Campos: A insustentável leveza de um relacionamento.

Bastante curiosa essa relação entre a Rede e o PSB ou, mais precisamente, entre Marina Silva e Eduardo Campos. Quando a aliança foi formalizada, logo foi apresentada como uma jogada estratégica que poderia mudar os rumos da eleição presidencial de 2014, quem sabe quebrando a histórica polarização entre tucanos e petistas. Eduardo, até então sem o desgaste que hoje ostenta, logo foi apontado como um grande estrategista, levando publicações nacionais a realizarem grandes matérias na residência de Dois Irmãos, onde sempre aparecia muito sorridente, ao lado da família. A lua-de-mel entre a irmão e o ex-governador, no entanto, duraria muito pouco. Alguns pontos de vista em comum, afirmam, ajuda bastante para construir um bom relacionamento. O problema é que eles vivem às turras - e tão somente às turras - sequer permitindo-se à trégua proposta pelo cancioneiro popular, do tipo entre tapas e beijos. Seria melhor eles pedirem logo o divórcio porque está muito complicada essa relação. Não fosse suficiente os problemas "programáticos" entre a Rede e o PSB, uma série de outros pontos de divergências estão surgindo, atrapalhando, até mesmo, as negociações políticas. A Rede Sustentabilidade soltou uma nota contundente, informando que não endossa a aliança entre o PSB e o governador Geraldo Alckmin, em São Paulo. Estão livres para apoiarem outra candidatura naquela praça. Aqui no Estado, as divergências entre ambos se avolumam. Sérgio Xavier emitiu uma nota em defesa do movimento #OcupeEstelita, sugerindo que o traçado urbano da cidade fosse melhor debatido com a população. Ora, não há como descolar o PSB de, pelo menos, "vista grossa" sobre o Projeto Novo Recife. Sob pressão popular, o prefeito Geraldo Júlio recuou de imediato e a Prefeitura do Recife, agora, prepara-se para uma longa batalha jurídica com os advogados do Consórcio de construtoras. Além de irregularidades com o leilão dos imóveis, sua aprovação pelos conselhos municipais também estão sendo questionadas, uma vez que o tal projeto não cumpriu alguns requisitos essenciais. Por essas e outras razões, não vejo com bons olhos essa suposta "conversão" de proeminentes figuras neo-socialistas, em defesa do "OcupeEstelita". Pois bem. Logo depois que a vereadora Marina Silva reclamou da ausência de democracia interna dentro das hostes neo-socialista, integrantes da Rede no Estado também vieram a público denunciar que estão sendo preteridos, em favor de algumas raposas felpudas da política pernambucana, cevadas no mais autêntico patrimonialismo, filhotes da ditadura, como costumava se referir a elas o ex-governador Leonel Brizola. Se eles são os aliados preferenciais, como se explica os privilégios que estão sendo outorgados àqueles políticos que, em tese, eles desejam a apear da vida pública, com a sua pregação de "Nova Política"? Certa vez alguém entrou no nosso blog (http://www.blogdojolugue.blogspot.com/) para informar como se deu a aproximação do ex-governador com os evangélicos tratando, inclusive, dos diálogos entre Eduardo e o pastor Silas Malafaia. Ainda revelo isso para vocês. Por enquanto, vale a observação de que essa relação entre o ex-governador e a irmã Marina parece não ter muito futuro. Uma das grandes questões que se coloca - até mesmo entre os coordenadores de campanha do ex-governador - é: Por que Marina não consegue transferir seus votos para o candidato? Qual o real capital político de Marina? Afinal, as eleições de 2010 foram as eleições de 2010. Ela ainda tem aqueles milhões de votos? Seria possível transferi-los para Eduardo Campos? Em que condições?

sábado, 7 de junho de 2014

O que há de errado( e de bom) no capitalismo

PAULO BRABO, 07 DE JUNHO DE 2014

O QUE HÁ DE ERRADO (E DE BOM) NO CAPITALISMO

Estocado em MANUSCRITOS
Foto: Alexey Titarenko
O trajeto usual é este: quem se aproxima do soci­a­lismo é porque sente que há algo de errado com o capitalismo.
Como neste mundo o capi­ta­lismo é pra­ti­ca­mente tudo que existe, é rela­ti­va­mente raro que as pessoas enxerguem no sistema (que é o seu mundo) falhas que as levem a concluir que o sistema precisa ser revisto ou subs­ti­tuído. Essa infrequên­cia tem diversos motivos, mas deve-se antes de tudo à pro­fun­di­dade das trans­for­ma­ções que o regime capi­ta­lista produziu no rastro da sua ascensão.
O capi­ta­lismo existiu em regime embri­o­ná­rio em todas as gerações dos homens, mas foi por milênios contido por res­tri­ções técnicas, morais e reli­gi­o­sas. O emprés­timo de dinheiro a juros, por exemplo, é essencial para o fun­ci­o­na­mento do capi­ta­lismo e indis­tin­guí­vel dele, mas foi con­si­de­rado imoral na Europa católica por mais mil anos. Para nascer o capi­ta­lismo teve que esperar que a Reforma Pro­tes­tante impri­misse à usura a divina credencial.
Para des­lan­char o potencial represado da sua visão de mundo o capi­ta­lismo só teve de aguardar o sole­va­mento das últimas res­tri­ções, aquelas tec­no­ló­gi­cas, à sua ascensão. A Revolução Indus­trial resol­ve­ria esse problema para sempre.
Todos os poderes têm algum potencial equa­li­za­dor. Todos podem ser usados em alguma medida para promover a justiça, até o momento em que não. Nos cem anos entre 1850 e 1950 o capi­ta­lismo exerceu for­mi­da­vel­mente o potencial equa­li­za­dor do seu poder.

A face boa do capi­ta­lismo: um mundo menos desigual

O sucesso da evan­ge­li­za­ção capi­ta­lista reside em grande parte na singeleza da sua boa nova: se quiser, caro leitor e ouvinte, você pode ficar rico. Todas as res­tri­ções que tra­ba­lha­vam para impedi-lo de beneficiar-se do seu potencial foram abolidas.
A enorme distância cultural que separa 1850 de 1950 é explicada pelo sucesso universal dessa ideia.
A um mundo cansado de se curvar diante de arti­fi­ci­a­li­da­des e de sustentar a sua per­pe­tu­a­ção, a Revolução Francesa já havia arti­cu­lado o sonho equa­li­za­dor de igualdade, liberdade e fra­ter­ni­dade. Porém a Revolução Indus­trial acenou com uma promessa de justiça embasada na realidade e não na poesia. A vitória da indústria parecia esta­be­le­cer um poder demo­crá­tico por natureza, um poder que acabaria se trans­fe­rindo natu­ral­mente para a mão dos mais capazes e mais mere­ce­do­res: a posse do capital.
Colocado em movimento, o capi­ta­lismo começou a demolir ime­di­a­ta­mente dis­tin­ções entre as pessoas que haviam per­ma­ne­cido por milênios fixas e indis­cu­ti­das. A mobi­li­dade social demons­trou que o tra­ta­mento pre­fe­ren­cial que a sociedade dis­pen­sava a deter­mi­na­das classes, e que todos agiam como se fosse coisa natural, era na verdade uma invenção con­ve­ni­ente, uma farsa contada de modo a manter intatas as estru­tu­ras de dominação.
Pouco a pouco todas as classes de pessoas foram sendo enten­di­das como livres e iguais – nobres e pobres, homens e mulheres, ex-escravos e pro­fes­so­res, negros e brancos, cidadãos e estran­gei­ros, açou­guei­ros e pastores. Ninguém podia se dar ao luxo de considerar-se melhor do que ninguém, porque as opor­tu­ni­da­des do mercado estendiam-se demo­cra­ti­ca­mente diante de todos.
Com essa mensagem e o imenso lastro da sua vocação ao sucesso, o capi­ta­lismo serviu para des­mas­ca­rar mundo afora for­ja­du­ras e ide­o­lo­gias que tinham estado em vigor por milênios. O mundo final­mente entendeu que os critérios que garantiam poderes e pri­vi­lé­gios aos reis, aos nobres e aos sacer­do­tes eram intei­ra­mente arbi­trá­rios, méritos imputados a eles sem nenhum fun­da­mento cor­res­pon­dente na realidade.
A eficácia com que o capi­ta­lismo denunciou e desarmou as ide­o­lo­gias de dominação que pre­va­le­ciam antes dele é lembrada com frequên­cia pelos seus defen­so­res. Quaisquer injus­ti­ças de que o capi­ta­lismo seja culpado nos nossos dias, insistem eles, não são para comparar com as injus­ti­ças do mundo que havia antes.

A outra face do capi­ta­lismo: um mundo cada vez mais igual – e cada vez mais desigual

O sucesso do capi­ta­lismo parece mais for­mi­dá­vel na medida em que ignoramos que ele se fun­da­menta em pro­mis­só­rias que são cobradas das gerações futuras – ou de gerações presentes que estão distantes do nosso olhar. Grande parte das reservas levan­ta­das contra o capi­ta­lismo nascem pre­ci­sa­mente da sua eficácia em vencer culturas com­pe­ti­do­ras e abafar a voz dos seus críticos. Alguns de nós entendem que nenhuma ideia humana deveria ter cacife para apagar da com­pe­ti­ção todas as outras, mas é pre­ci­sa­mente essa a pegada e o efeito do capitalismo.
► o capi­ta­lismo é uma monocultura
O apelo de nar­ra­ti­vas de fantasia como O Senhor dos Anéis e Game of Thrones reside em grande parte nisto: são histórias que falam de mundos em que subsistem, colaboram e competem uma diver­si­dade de culturas, enquanto o nosso próprio mundo se mostra cada vez mais uma cultura única.
A ideologia capi­ta­lista parte do pres­su­posto de que não importa o seu sexo, idade, religião, tradição nacional, bagagem cultural ou pre­fe­rên­cia pessoal, você irá desejar a mesma coisa – o mesmo preciso modo de vida – que os demais bilhões de habi­tan­tes do planeta. Não importa se você nasceu no sertão do nordeste, numa várzea fértil da Índia, num vale remoto da Itália, numa cidade litorânea da Austrália, num vilarejo do Iraque ou numa aldeia pendurada no Himalaia ou nos Apeninos: você vai sentir a irre­sis­tí­vel vocação de deslocar-se para uma escola, para uma fábrica, para um cubículo, para uma sala de reuniões, para um con­do­mí­nio fechado, para um escri­tó­rio envi­dra­çado num edifício moder­nís­simo – o que for mais com­pen­sa­dor ou mais rápido.
Você vai querer a liberdade de ter as mesmas máquinas, assinar os mesmos serviços, pagar pelas mesmas atu­a­li­za­ções, reclamar das mesmas ninharias: ter no bolso um retângulo cujo mágica se compare à do retângulo do seu colega, e em casa uma tela maior.
O sistema tem meca­nis­mos de controle e não vai permitir que você se sinta completo ou realizado se não se conformar ao perfil urbano, a um modo de vida que lhe permita consumir o que desejam consumir todos que habitam a cidade com você. Dica: você não vai querer ser agri­cul­torpintor de car­ro­ce­rias de caminhãofabri­cante de cestos oupastor de ovelhas. Entre outras coisas, você não con­se­gui­ria conviver com o sen­ti­mento de ina­de­qua­ção. O capi­ta­lismo lhe terá con­ven­cido de que para alcançar o status de pessoa única será neces­sá­rio você se conformar ao que fazem todos.
► o capi­ta­lismo elimina culturas e modos de vida
O capi­ta­lismo de mercado está tão convicto de seu status de solução universal para todas as soci­e­da­des que não pausa um instante sequer para lamentar a perda, ao redor do mundo, de uma infi­ni­dade de culturas e modos de fazer que o seu avanço eliminou ou colocou em grave risco de extinção.
A lista de culturas riscadas do mapa pelo capi­ta­lismo é longa demais para ser resumida, mas são extinções com muitos aspectos em comum. Jovens do interior são con­fis­ca­dos para os grandes centros em busca do batismo expi­a­tó­rio das escolas, sem o qual estarão todos con­de­na­dos à ina­de­qua­ção. Pequenos pro­du­to­res só con­se­gui­rão comer­ci­a­li­zar a sua produção se se dobrarem às exi­gên­cias dos grandes con­glo­me­ra­dos (ou só con­se­gui­rão sobre­vi­ver vendendo a esses con­glo­me­ra­dos as suas pro­pri­e­da­des). As tradições de vilas, cidades remotas e comu­ni­da­des rurais morrem gra­du­al­mente, perdendo a vida e a cor pela trans­fu­são sem volta dos mais jovens para as metrópoles.
Vocações e modos de vida pacatos e ide­a­lis­tas – fran­cis­ca­nos, freiras, monges budistas, pastores de ovelhas, pes­ca­do­res, alfaiates, sapa­tei­ros, tipó­gra­fos, ser­ra­lhei­ros, lavra­do­res, pequenos comer­ci­an­tes locais e artesãos de toda a sorte – mínguam sem suces­so­res e sem que ninguém entenda o fascínio e o sub­ver­sivo prestígio que já representaram.
► o capi­ta­lismo se apropria das imagens das culturas que eliminou
Em A sociedade do espe­tá­culo (1967) Guy Debord aponta que o regime capi­ta­lista reduziu a expe­ri­ên­cia à con­tem­pla­ção de uma sucessão de imagens: “tudo que era antes vivido dire­ta­mente tornou-se mera repre­sen­ta­ção. A vida real é absorvida mate­ri­al­mente pela con­tem­pla­ção do espe­tá­culo, e acaba alinhando-se a ela”.
O capi­ta­lismo se apropria das imagens das culturas que eliminou, expondo-as e beneficiando-se delas como se ainda exis­tis­sem. As emba­la­gens de leite e de suco de laranja mostram imagens de casas e tra­ba­lha­do­res rurais intei­ra­mente inte­gra­dos na natureza – emblemas de modos de vida que a própria con­ve­ni­ên­cia da produção em massa e das emba­la­gens longa-vida tornou inviáveis e eliminou da exis­tên­cia. O capi­ta­lismo ignora esse paradoxo como ignora todos os demais, limitando-se a endossar com des­ca­ra­mento e sem pausa todas as farsas que as imagens que seques­trou ajudam a sustentar.
World Showcase do parque Epcot, da Disney, é um mundo em miniatura: uma sucessão literal e pronta para o consumo de “imagens sig­ni­fi­ca­ti­vas” de onze países, entre os quais estão China, Itália, França, Marrocos e Canadá.
Mas o World Showcase é também uma miniatura do mundo, porque em todo lugar o capi­ta­lismo exige que con­su­ma­mos a imagem de uma cultura ao invés de nos sub­me­ter­mos, no confronto com outra cultura, a um encontro com o Outro. Não só você consome a imagem de Veneza e de Paris no parque da Disney; na Veneza e da Paris da vida real você não espera consumir mais do que um parque: não uma cultura, mas imagens e encontros ima­gi­ná­rios em sucessão. Consumo e repre­sen­ta­ção em lugar de assi­mi­la­ção, confronto e crescimento.
► o capi­ta­lismo aliena o tra­ba­lha­dor de tudo que diz respeito ao trabalho
A ideia de que o capi­ta­lismo produz alienação – um dis­tan­ci­a­mento entre o homem e a porção mais essencial de si mesmo – é fun­da­men­tal na crítica de Marx.
A linha de produção afasta o tra­ba­lha­dor do produto do seu trabalho, visto que o que cada um vê é sua par­ti­ci­pa­ção limitada – seu girar do parafuso – num processo maior do que ele e sobre o qual ele não tem controle. Trabalho numa fábrica de auto­mó­veis e não tenho um.
Porém o capi­ta­lismo gera todo um leque de relações humanas sobre as quais o tra­ba­lha­dor não tem qualquer controle. Marx está par­ti­cu­lar­mente pre­o­cu­pado com as con­sequên­cias desu­ma­ni­zan­tes da renúncia, por parte do pro­le­tá­rio, de sua capa­ci­dade de autodeterminação.
O regime capi­ta­lista requer que o tra­ba­lha­dor deixe de agir como entidade autônoma, capaz de deter­mi­nar o seu destino, e passe a operar como entidade econômica, uma ferramenta/engrenagem da qual o capi­ta­lista dispõe como bem entende. Essa transação é desu­ma­ni­zante, antes de tudo porque ninguém ignora que o capi­ta­lista deseja extrair do tra­ba­lha­dor o máximo de produção pelo mínimo de reco­nhe­ci­mento: sua sobre­vi­vên­cia no sistema depende da sua capa­ci­dade de manter arti­fi­ci­al­mente essa distância.
Isso num sistema em que todos os com­po­nen­tes, não importa em que patamar se encontrem, sabem-se des­car­tá­veis e sentem-se portanto desu­ma­ni­za­dos. O capi­ta­lista está com­pe­tindo com outros capi­ta­lis­tas, o tra­ba­lha­dor está com­pe­tindo com outros que podem querer o seu lugar.
Marx:
Supo­nha­mos agora que tivés­se­mos executado a produção como seres humanos. Cada um de nós teria, de dois modos, afirmado a si mesmo e à outra pessoa. [1] Em minha produção eu teria obje­ti­fi­cado a minha indi­vi­du­a­li­dade, seu caráter espe­cí­fico, e teria portanto des­fru­tado não só de uma mani­fes­ta­ção indi­vi­dual da minha vida durante a atividade, mas também, olhando para o objeto, teria o prazer indi­vi­dual de saber que minha per­so­na­li­dade é algo objetivo, visível aos sentidos, e portanto um poder além de qualquer dúvida. [2] Quando você estivesse usu­fruindo ou uti­li­zando o meu produto eu teria o prazer direto tanto da cons­ci­ên­cia de ter com meu trabalho satis­feito uma neces­si­dade humana, ou seja, de ter obje­ti­fi­cado a natureza essencial do homem, quanto o de ter criado um objeto cor­res­pon­dente à neces­si­dade da natureza essencial de uma outra pessoa. Nossos produtos seriam desse modo muitos espelhos nos quais veríamos refletida nossa natureza essencial.
O seu smartfone é uma maravilha do mundo. Porém quem quer pirâmides tem de suportar escravos.
► o capi­ta­lismo mantém fora do nosso campo de visão as injus­ti­ças mais brutais do sistema
Em uma de suas sacadas mais bri­lhan­tes, o capi­ta­lismo toma pro­vi­dên­cias para que não tenhamos de tes­te­mu­nhar gente sendo explorada na confecção do produto que estamos consumindo.
Foi assim desde o início: os primeiros con­su­mi­do­res modernos já compravam os primeiros produtos indus­tri­a­li­za­dos sem ter de saber que as condições de trabalho das fábricas estava longe do ideal.
Esse sistema de desvio de atenção, no entanto, só alcançou a perfeição numa economia globalizada.
Não se iluda: em qualquer era dos homens o seu smartfone (que você não vê a hora de trocar) seria con­si­de­rado uma maravilha do mundo, digna de pere­gri­na­ção e de assombro. Porém quem quer pirâmides tem de suportar escravos. O capi­ta­lismo apenas tomou cuidado para que você não tenha de tes­te­mu­nhar as condições de trabalho dos seus.
Os escravos que cor­res­pon­dem à sua parcela de consumo estão com toda a pro­ba­bi­li­dade con­fi­na­dos em alguma fábrica da China. Para sua con­ve­ni­ên­cia, daqui você não tem de tes­te­mu­nhar a dureza das condições em que foi montado o seu smartfone ou o seu roteador wireless.
Essa distância entre o local ide­a­li­zado de consumo e um local de produção longe do ideal é ela mesma uma forma de alienação. Nesse caso é o con­su­mi­dor que se permite desu­ma­ni­zar, rebaixando-se a aceitar uma farsa que só um acordo mútuo e silen­ci­oso de vista grossa permite subsistir.
Num mundo glo­ba­li­zado, fica esta regra: se você pode comprar, alguém está pagando, e não é você.
► o capi­ta­lismo requer cada vez mais energia
Quando se reduz a economia à sua for­mu­la­ção mais simples, riqueza e consumo de energia são a mesma coisa. O capi­ta­lismo é uma máquina peculiar que só funciona enquanto cresce: os seus custos de manu­ten­ção só são cobertos enquanto mais consumo é arti­fi­ci­al­mente gerado (através de novos con­su­mi­do­res, novos produtos ou do seuaumento de consumo).
Para que haja manu­ten­ção de riqueza éneces­sá­rio que haja consumo de energia crescente: em outras palavras, o capi­ta­lismo requer que queimemos de comum acordo uma parcela cada vez maior dos recursos da Terra na forja capitalista.
Num mundo esférico é só de má fé que gente informada ousa colocar juntas palavras como “cres­ci­mento” e “sus­ten­tá­vel”. A des­ca­rac­te­ri­za­ção da paisagem e o holo­causto das espécies não são efeitos inde­se­ja­dos de algumas formas perversas e irres­pon­sá­veis de capi­ta­lismo; são o projeto e o com­bus­tí­vel de todas.
Embora as con­sequên­cias ine­vi­tá­veis desse tráfico estejam se tornando cada vez mais difíceis de ocultar, esta pode ser contada como outra das ins­tân­cias em que as injus­ti­ças mais graves do regime capi­ta­lista são mantidas fora do nosso campo de visão. Somente as gerações futuras poderão avaliar o custo total da nossa impre­vi­dên­cia presente; entre outras coisas, porque serão elas que terão de pagar os com­pro­mis­sos que estamos assinando agora.
► o capi­ta­lismo derrubou valores que eram sus­ten­ta­dos arti­fi­ci­al­mente, mas opera a partir do seu: o progresso
É inegável que a ascensão do capital denunciou e anulou valores que eram tidos como legítimos mas hoje enten­de­mos como arbi­trá­rios e arti­fi­ci­ais. Hoje a nenhuma pessoa sensata ocorreria sustentar o direito divino dos reis, os pri­vi­lé­gios inerentes da nobreza ou a supe­ri­o­ri­dade moral ou inte­lec­tual de sexo, raça, origem, crença, nas­ci­mento ou sangue.
O capi­ta­lismo contribui para anular o efeito desses meca­nis­mos de dominação, mas colocou em operação o seu, tão arbi­trá­rio e arti­fi­cial quanto aqueles que derrubou: a crença no progresso.
Cremos no mérito inerente do desen­vol­vi­mento do mesmo modo que as gerações que nos pre­ce­de­ram criam no mérito da raça, e, como elas, per­ma­ne­ce­mos igno­ran­tes de que estamos sendo mani­pu­la­dos por uma farsa sem fundo, sem men­su­ra­bi­li­dade e sem prestação de contas.
Bruce Sterling:
Os sucessos do progresso tornam-se problemas espi­nho­sos para a geração seguinte: não per­ma­ne­cem per­ma­nen­te­mente “melhores”. Nossos juízos de valor sobre o que é melhor são tem­po­rá­rios, intei­ra­mente limitados à nossa pers­pec­tiva no tempo. Não existe um “melhorô­me­tro”; ninguém tem como medir a extensão, a amplitude e a duração de uma “melhoria”. Melhor é um juízo abstrato de valor, não uma qualidade cien­tí­fica; não pode ser testado expe­ri­men­tal­mente. Ninguém sabe o que é melhor; na verdade, ninguém sabe o que é pior. É tremenda inge­nui­dade acreditar que cada des­do­bra­mento tec­no­ló­gico é neces­sa­ri­a­mente um avanço.
O que é o progresso? Quando acaba? Como se pode medi-lo? Quem decide quando basta? Como deter­mi­nar os seus méritos? Quais são as alter­na­ti­vas? A quem devemos pedir desculpas se estávamos errados? Devemos proteger do progresso algumas partes do mundo? Se sim, porque não proteger dele o mundo inteiro?
A crença no progresso justifica qualquer extinção, qualquer desa­pro­pri­a­ção, qualquer des­ca­rac­te­ri­za­ção, pre­ci­sa­mente como o pretexto invisível da “conversão do mundo” jus­ti­fi­cou todos os abusos, apro­pri­a­ções, geno­cí­dios e devas­ta­ções aben­ço­a­dos his­to­ri­ca­mente pela cristandade.
É uma forja, e é universal.
► o capi­ta­lismo faz o tra­ba­lha­dor desejar a própria opressão
O ideário capi­ta­lista depende for­te­mente e promove sem pausa o excep­ci­o­na­lismo, a ideia simples mas irre­sis­tí­vel de que com você será diferente. É a mesma promessa que alimenta a máquina das loterias, mas depende nesse caso de uma mani­fes­ta­ção par­ti­cu­lar da falsa cons­ci­ên­cia: a crença de que a sua agência bastará para alçá-lo da sua presente condição.
Como resultado, você é convidado a não ressentir-se pes­so­al­mente da carga opressiva do sistema, e a crer que as penas e maltratos servirão para filtrar os outros e permitir que você se destaque. Você chega a desejar para os outros e para si mesmo o fogo da opressão, da cobrança e da com­pe­ti­ti­vi­dade, porque acredita que ele o ajudará a demons­trar o seu valor.
Como notou Wilhelm Reich (e depois dele Foucault e Deleuze/Guatari), o desejo pela própria opressão é típico dos modos desu­ma­ni­zan­tes de operação dos regimes fascitas. Reich:
A coisa assom­brosa não é que alguns de vez em quando roubem ou que outros entrem oca­si­o­nal­mente em greve, mas que os que passam fome não roubem todos como prática habitual, e que os que são explo­ra­dos não per­ma­ne­çam todos em greve con­ti­nu­a­mente. Depois de séculos de explo­ra­ção, por que as pessoas ainda toleram ser humi­lha­das e escra­vi­za­das, ao ponto de desejarem a humi­lha­ção e a escra­vi­dão não só para os outros mas para si mesmas?
► o capi­ta­lismo cani­ba­liza os seus críticos e sequestra o discurso revolucionário
Mais esta regra: não há nada que o capi­ta­lismo não possa reverter em seu favor. Não há crítica ao capi­ta­lismo que não possa ser usada para agregar valor a uma camiseta, não há figura revo­lu­ci­o­ná­ria que não possa ter a sua imagem seques­trada numa campanha de publicidade.
A postura da Apple é nesse sentido exemplar. A empresa apropriou-se desde o início do discurso revo­lu­ci­o­ná­rio, equi­pa­rando o consumo dos seus produtos a um processo sub­ver­sivo e civi­li­za­tó­rio desen­ca­de­ado por uma elite de rebeldes, incon­for­ma­dos, criativos e lúcidos.
O comercial de lan­ça­mento do Macintosh, “1984”, usava imagens sugeridas pelo pesadelo fascista do livro de George Orwell para sugerir que adquirir o novo produto equivalia a um ato de bravura, um definido enga­ja­mento na luta contra o conformismo.
A apro­pri­a­ção está presente de maneira ainda mais cons­tran­ge­dora na campanha Think different/Pense diferente, de 1997. “Um viva para os malucos, os rebeldes, os incon­for­ma­dos”, dizia a narração do comercial, um dos mais famosos da história da pro­pa­ganda. E concluía: “Porque aqueles que são malucos o bastante para achar que podem mudar o mundo são aqueles que o acabam mudando”. A sugestão, nada sutil e nada fun­da­men­tada, era que consumir os produtos da Apple equivalia a assumir a postura revo­lu­ci­o­ná­ria de gente como Martin Luther King, Albert Einstein, Thomas Edison, John Lennon, Pablo Picasso, Mahatma Gandhi (GANDHI, meu amigo) – figuras cujas as imagens o comercial seques­trou para endossar aquilo que jamais endossariam.
Não foi a primeira vez e não será a última.
► o capi­ta­lismo não admite alternativas
O eco­no­mista Francis Fukuyama opinou famo­sa­mente que o capi­ta­lismo neo­li­be­ral é uma ideia tão boa e irre­to­cá­vel que sim­ples­mente não tem como ser subs­ti­tuída: nem agora, nem nunca.
Esse sen­ti­mento de supe­ri­o­ri­dade moral se traduz numa feroz com­ba­ti­vi­dade dirigida contra ideias com­pe­ti­do­ras, quer sejam reais ou ima­gi­na­das. O pro­po­nente do capi­ta­lismo (direita, estou falando com você) não irá admitir a mínima sugestão de que o seu sistema pode ser aper­fei­ço­ado ou corrigido, quanto menos substituído.
O homem de direita vê a si mesmo como infle­xí­vel defensor da liberdade, e irá responder a qualquer crítica com o argumento de que a liberdade não tem como ser aper­fei­ço­ada. Todos os ajustes que você propuser para conter os des­tem­pe­ros do capi­ta­lismo – taxações, impostos, regu­la­men­ta­ção de mercado, escolas públicas, assis­tên­cia e pre­vi­dên­cia social, dis­tri­bui­ção de renda, leis tra­ba­lhis­tas, áreas de pre­ser­va­ção – o par­ti­dá­rio da direita entenderá como estorvos inad­mis­sí­veis colocados no caminho da liberdade.
Em par­ti­cu­lar, o par­ti­dá­rio da direita procurará desa­cre­di­tar cada uma dessas noções como “comu­nis­tas”, ao ponto do mais insensato redu­ci­o­nismo. Como a história não cessa de demons­trar, a direita tentará denunciar como comunismo qualquer postura que por algum capricho não aprove, mesmo aquelas sem qualquer relação com a teoria ou a prática do comunismo (por exemplo, mulheres de cabelos curtos ou o casamento inter-racial).
► o capi­ta­lismo é inescapável
“Para onde fugirei do teu espírito? Para onde me afastarei da tua presença?”, espantou-se o Salmo 139 (vv.7-8), e o que dizia da divina presença aplica-se sem ajuste ao espírito da nossa época. “Se eu subir ao céu, lá tu estás; se fizer a minha cama no inferno, tu estarás lá também”.
Se eu for à China, lá encon­tra­rei um MacDonald’s. Se for a Teo­tihu­a­cán, lá encon­tra­rei um Walmart. No fundo do oceano e na montanha mais alta encon­tra­rei a mesma garrafa de plástico, e não importa onde for perderei ime­di­a­ta­mente a paciência se não tiver acesso a wi-fi.
Viver à margem da cultura dominante teve desde sempre os seus custos sociais, mas antes da nossa era ninguém teve de conhecer os custos de resistir a uma mono­cul­tura ver­da­dei­ra­mente global. Fazen­dei­ros urbanos como o Claudio Oliver e seus com­pa­nhei­ros, ou pro­pri­e­tá­rios rurais como o João Fris­chen­bru­der de Urubici, têm de enfrentar um rosário infin­dá­vel de obs­tá­cu­los, que se renovam a cada manhã, no esforço de manter sus­ten­tá­vel uma vida que dependa apenas par­ci­al­mente da máquina capitalista.
Querida Apple: os malucos, os rebeldes e os incon­for­ma­dos são os caras que nunca cairiam na sua conversa.
► o capi­ta­lismo pressupõe um desejo uniforme
O mundo já conheceu mono­cul­tu­ras, mas nenhuma foi arrogante ao ponto de pressupor um desejo per­fei­ta­mente uniforme – nem mesmo, incri­vel­mente, o cris­ti­a­nismo, que postulava como ine­vi­tá­vel uma parcela de oposição.
Os Estados Unidos, seus embai­xa­do­res na Terra, entendem o avanço do capi­ta­lismo como parte de um grande, magnânimo e pla­ne­tá­rio processo civi­li­za­tó­rio. Trata-se da graciosa dis­se­mi­na­ção de um modo de vida pelo qual todas as civi­li­za­ções e culturas anseiam mesmo sem saber.
Os evan­ge­lis­tas do capital tomam por incon­ce­bí­vel que os habi­tan­tes do Iraque, de Cuba, da floresta amazônica ou da estepe africana não desejem uni­for­me­mente ser “liberados” para o modo de vida capi­ta­lista. O muçulmano radical quer secre­ta­mente vestir Hugo Boss, o monge budista quer secre­ta­mente o último modelo do iPhone, a madre superiora quer secre­ta­mente uma bolsa LV, o cubano quer aber­ta­mente afundar-se em McNuggets – porque quem não iria desejar algo que é ine­ren­te­mente desejável?
Demorei a entender a frequên­cia e a ênfase com que meu amigo Daniel Oudshoorn acusa o capi­ta­lismo de “dis­ci­pli­nar o desejo”. Por certo o capi­ta­lismo pode ser acusado de coisas mais graves, não?
Gra­du­al­mente fui enten­dendo que não, não pode. O regime capi­ta­lista não tem como ter feito coisa mais perversa e pre­ju­di­cial do que uni­for­mi­zado o desejo. Dessa sua arro­gân­cia essencial nascem todas as outras.
Levei Georges Bataille para a cama, e o erro em dis­ci­pli­nar o desejo agora me parece mais do que evidente. O desejo, meu amigo, deve ser mantido abso­lu­ta­mente livre e indis­ci­pli­nado, uma metra­lha­dora abso­lu­ta­mente giratória, pro­du­zindo todo o tipo de hete­ro­ge­nei­dade pessoal, cultural e nacional. Um mundo equi­li­brado é um mundo em que grupos inteiros de pessoas escolhem modos de vida que você abso­lu­ta­mente não tem como entender. Um mundo de uma variedade ator­do­ante, obscena, inclas­si­fi­cá­vel, impos­sí­vel de tabular: pre­ci­sa­mente uma pintura de Bruegel.
O pastor de ovelhas deve poder desejarser pastor de ovelhas, o açou­gueiro deve poder desejar ser açou­gueiro, o lavrador deve poder desejar ser lavrador. O monge budista e a freira devem desejar uma vida frugal, Gandhi deve desejar tecer as próprias roupas, o Claudio Oliver e o profeta do Rio dos Cedrosdevem desejar que o capi­ta­lismo não seja ines­ca­pá­vel e devem agir em con­for­mi­dade com essa sua insen­sa­tez. Que muitos outros desejem renúncias, desvarios, poetices, festivais, ence­na­ções, tatuagens de henna, folias, impru­dên­cias, pinturas de areia, rodas de oração, pelejas de repente, danças cir­cu­la­res, muros de lamen­ta­ção, ídolos de manteiga, xilo­gra­vu­ras, pere­gri­na­ções, desvios de rota, poesia sufi e toda sorte de tradições que não terei jamais como compreender.
Uma dada viagem de elevador deve ter em média um executivo, um pai de santo, um budista, um nudista, um muçulmano, um repen­tista e um rei momo. Pelo menos metade da população urbana deve escolher andar descalça, espe­ci­al­mente os que trabalham de terno e gravata.
Rios e rios de pessoas, grossas e irre­sis­tí­veis torrentes humanas nas cidades e nos sertões, devem poder desejar o ócio em vez da autor­re­a­li­za­ção, preferir a preguiça à pro­du­ti­vi­dade. Soci­e­da­des inteiras devem ser livres para zombar do capi­ta­lismo, e outras soci­e­da­des devem zombar dessas, tomando suas respostas ao capi­ta­lismo como abso­lu­ta­mente toscas e insuficientes.
Fábricas não devem apagar monas­té­rios, praias de nudismo não devem apagar tipo­gra­fias, com­pa­nhias de ópera não devem apagar acam­pa­men­tos de ciganos, direitas não devem apagar esquerdas, pro­tes­tan­tes não devem apagar católicos. Meu Deus, viva a diver­si­dade, porque o que permanece variado permanece impos­sí­vel de controlar e de submeter. Diver­si­dade é despoder.
Nem mesmo o capi­ta­lismo, essa merda imensa e crescente, rotatória e fractal, precisa ser apagado por completo da prática ou da memória. Basta que a cri­a­ti­vi­dade humana ou alguma bem-aventurada crise (porque há pouca diferença) trabalhem para desafiar e vencer a sua obscena supremacia.

Paulo Brabo

Escrevo livros, faço desenhos e desenholetras. Meu livro mais recente, que você deve desejar comprar, é As divinas gerações. Esta é a Bacia das Almas, mas hoje em dia escrevo antes de tudo naForja Universal.

Nobel de Economia sai em defesa do "Marx" do século 21

Nobel de Economia sai em defesa do “Marx” do século 21

Por Redaçãojunho 3, 2014 10:27
Nobel de Economia sai em defesa do “Marx” do século 21
O liivro do francês Thomas Piketty, “Capital no Século 21″, tem causado polêmica nos debates sobre desigualdade de renda e concentração de riqueza. Dessa vez, foi Paul Krugman que o defendeu das críticas
Por Janet Allon, em Alternet | Tradução: Vinicius Gomes
O economista Paul Krugman, colunista pelo New York Times, ainda está brigando a “boa briga” contra os negadores da desigualdade. Em sua coluna deste domingo (1), ele apontou, pessimista, que tem falado sobre o crescimento da desigualdade desde 1992, quando escreveu um artigo intitulado “Os ricos, a direita e os fatos”. Claro, ele foi prontamente “trolado” pelos negadores da desigualdade.
Agora, Krugman sugere que é quase como um dejavu o que está acontecendo com o economista francês Thomas Piketty e seu livro “O Capital no Século 21”, e a desonestidade intelectual dos críticos quanto a seus números e conclusões. O mais notável foi o artigo de Chris Giles, o economista-editor do Financial Times, que atacou o trabalho de Piketty usando como base os ligeiros erros nos dados para então alegar que essa era a prova de que não há o crescimento da desigualdade e o fenômeno do aumento da concentração de riqueza.
Krugman escreve que a “afirmação crucial de que não há uma tendência clara quanto ao aumento da concentração de riqueza residia em uma conhecida falácia e que eu identifiquei em 1992 em um artigo”.
Mesmo que Krugman provavelmente ache cansativo continuar a estar certo sobre a desigualdade após todos esses anos, ele escreve todos os fatos – novamente –  para quem ainda não ficou claro:
“Nós temos duas fontes de evidência tanto de renda quanto de riqueza: pesquisas, nas quais as pessoas são perguntadas sobre suas finanças e dados fiscais. Os dados de pesquisa, enquanto úteis para rastrear os pobres e a classe média, notoriamente minimizam as maiores rendas e riquezas – falando claramente, pois é difícil entrevistar bilionários o suficiente. Então os estudos do 1%, do 0,1% – e por aí vai – se restringe em dados fiscais. A crítica do Financial Times, todavia, compara velhas estimativas de concentração de riqueza baseada em dados fiscais de estimativas mais recentes nas pesquisas; isso produz uma propensão básica em não encontrar a tendência de concentração. Em resumo, essa última tentativa em ridicularizar a noção de que nós nos tornamos vastamente uma sociedade mais desigual foi também ridicularizada. E vocês deveriam ter esperado por isso. Existem tantos indicadores independentes apontando para um agudo crescimento da desigualdade, indo de aumento nos preços das propriedades de alta classe até à explosão dos mercados para bens de luxo, que qualquer alegação que a desigualdade não está crescendo quase que certamente está baseada em uma análise falha de dados.”
Depois Krugman atualiza sua análise sobre a desigualdade e ridiculariza dois argumentos populares e falsos de seus negadores: que os EUA ainda têm toneladas de mobilidade econômica e que qualquer um pode fazer parte do 1% e que, de alguma maneira, o atual sistema de impostos tem esse problema sob controle:
“A concentração, tanto de renda quanto de riqueza, nas mãos de poucas pessoas aumentou drasticamente nas últimas décadas. Não, as pessoas recebendo essa renda e sendo dona dessa riqueza não estão nunca em grupo que está constantemente mudando: as pessoas se movem frequentemente entre os últimos lugares do 1% para as melhores posições do 1%, e vice-versa.”
Piketty deixa os mais ricos desconfortáveis, diz Krugman, assim como todas as demandas populistas para um aumento na taxação dos ricos.
Mas negar a desigualdade, assim como negar a mudança climática, não é sobre ciência ou dados, aponta Krugman. Ela é politicamente motivada para proteger certos grupos com fortes interesses em negarem os fatos ou lançar dúvidas sobre eles.
E Krugman irá continuar dizendo até que as pessoas finalmente tenham escutado e percebido, como ele diz, que dessa vez os populistas talvez estejam certos.
(Publicado originalmente na Revista Fórum)

sexta-feira, 6 de junho de 2014

O inferno astral de Eduardo Campos



O inferno astral de Eduardo Campos. Penso que o ex-governador e candidato à Presidência da República cometeu muitos erros de avaliação. Uma ambição desmedida, aliada a uma tendência autocrática se encarregaram de completar o serviço. É bem possível que saia dessas eleições bem menor do que quando entrou. Mesmo se considerarmos a hipótese de uma preparação para voos mais altos em 2018, ainda assim, o cenário que ele vem construindo não é nada alvissareiro. Num curto espaço de tempo, uma enxurrada de fatos e notícias nada agradáveis ao presidencial pernambucano. a) Transitou como um ilustre desconhecido pelas ruas de uma cidade do Rio Grande do Sul. Até o momento, seu esforço para tornar-se uma personalidade política conhecida nacionalmente, parece ainda não ter surtido o efeito suficiente; b) Em São Paulo, a cúpula da legenda deve indicar o apoio ao nome do atual governador, Geraldo Alckmin, para a reeleição, contrariando a opinião da Rede, que preferia uma candidatura própria em praças como São Paulo e Minas Gerais; c) Recuou da tentativa de impor o nome do primogênito, João Campos, na liderança da JSB, atitude contestada por setores do partido, que alcançou uma repercussão bastante negativa; d) A vereadora Marília Arraes, sua prima, em entrevista coletiva, condenou abertamente os seus "métodos" dentro da agremiação; e) Agora foi a vez de lideranças da Rede Sustentabilidade em Pernambuco fazerem coro à vereadora, informando o mesmo problema, ou seja, os "ungidos" preferenciais são velhas raposas da política pernambucana, vinculadas ao DEM, enquanto o pessoal da Rede, aliados de primeira ordem, estão sendo escanteados; f) Por fim, a última pesquisa do Instituto Datafolha, onde o postulante aparece com 7% das intenções de voto, oscilando numa curva descendente, o que o aproxima de um empate técnico com o pastor Everaldo, do PSC, uma situação vexatória para quem tinha tantas ambições; g) Para completar o enredo, sem andor, o "poste" indicado para concorrer ao Governo de Pernambuco pela legenda socialista também não consegue deslanchar. Cravou risíveis 8% numa das últimas pesquisas de intenções de voto. Se ainda houver alguém de bom-sendo entre os seus comandados, talvez já esteja na hora de reavaliar a situação. Quando comentamos que ele estava se metendo numa tremenda enrascada, um dos seus asseclas escalado para nos contestar ficou possesso. O mais engraçado é que pessoas ligadas ao jornalismo de cabresto que hoje se pratica em alguns órgãos da imprensa pernambucana preferem não enxergar o óbvio; h) Ainda tem as denúncias da Dilma Bolada de que sua equipe de gerenciamento nas redes sociais estaria "comprando" seguidores.