pub-5238575981085443 CONTEXTO POLÍTICO.
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domingo, 12 de maio de 2019

Bourdieu e a educação

                                          
Ana Paula Hey e Afrânio Mendes Catani
                                                                                

Bourdieu e a educação      


Tratando todos os educandos como iguais, o sistema escolar é levado a dar sua sanção à desigualdades iniciais de cultura, diz Bourdieu (Reprodução)

A partir dos anos 1960, e durante quase 45 anos, Pierre Bourdieu produziu um conjunto de análises no âmbito da sociologia da educação e da cultura que influenciou decisivamente algumas gerações de intelectuais, obtendo o reconhecimento de pesquisadores, estudantes e ativistas que atuam em várias outras esferas da sociedade. Em “Uma sociologia da produção do mundo cultural e escolar”, introdução a Escritos de educação (1998), que reúne 12 textos do sociólogo francês, Maria A. Nogueira e Afrânio Catani escrevem o seguinte: “Ao mesmo tempo em que colocava novos questionamentos, sua obra fornecia respostas originais, renovando o pensamento sociológico sobre as funções e o funcionamento social dos sistemas de ensino nas sociedades contemporâneas, e sobre as relações que mantêm os diferentes grupos sociais com a escola e com o saber. Conceitos e categorias analíticas por ele construídos constituem hoje moeda corrente da pesquisa educacional, impregnando boa parte das análises brasileiras sobre as condições de produção e de distribuição dos bens culturais e simbólicos, entre os quais se incluem os produtos escolares”.
Bourdieu, em seus escritos, procurou questionar, nas sociedades de classes, temática que persegue muitos intelectuais: a compreensão de como e por que pequenos grupos de indivíduos conseguem se apoderar dos meios de dominação, permitindo nomear e representar a realidade, construindo categorias, classificações e visões de mundo às quais todos os outros são obrigados a se referir. Compreender o mundo, para ele, converte-se em poderoso instrumento de libertação – é esse procedimento que ele realiza, dentre outros domínios, no educacional.
A cultura vem a ser um sistema de significações hierarquizadas, tornando-se um móvel de lutas entre grupos sociais cuja finalidade é a de manter distanciamentos distintivos entre classes sociais. A dominação cultural se expressa na fórmula segundo a qual a cada posição na hierarquia social corresponde uma cultura específica (elitista, média, de massa), caracterizadas respectivamente pela distinção, pela pretensão e pela privação. Definida por gostos e formas de apreciação estética, a cultura é central no processo de dominação; é a imposição da cultura dominante como sendo “a cultura” que faz com que as classes dominadas atribuam sua situação subalterna à sua suposta deficiência cultural, e não à imposição pura e simples.
O sistema de ensino desempenha papel de realce na reprodução dessa relação de dominação cultural, funcionando ainda, para Bento Prado Jr., “como chancela de diferenças culturais e linguísticas já dadas, antes da escolarização, no quadro da socialização primeira, que é necessariamente diferencial, segundo a inscrição das famílias nas diferentes classes sociais. (…) O código linguístico da burguesia (com seus cacoetes, idiotismos, sua particularidade) será encontrado, pelos futuros notáveis, nas salas de aula, como a linguagem da razão, da cultura, numa palavra, como elemento ou horizonte da Verdade. O particular é arbitrariamente erigido em universal e o ‘capital cultural’ adquirido na esfera doméstica, pelos filhos da burguesia, lhes assegura um privilégio considerável no destino escolar e profissional. No Destino, enfim” (“A educação depois de 1968”, em Os descaminhos da educação, ed. Brasiliense).
A escola como reprodutora da dominação
A função do sistema de ensino é servir de instrumento de legitimação das desigualdades sociais. Longe de ser libertadora, a escola é conservadora e mantém a dominação dos dominantes sobre as classes populares, sendo representada como um instrumento de reforço das desigualdades e como reprodutora cultural, pois há o acesso desigual à cultura segundo a origem de classe.
O filósofo idealista Alain (Émile Chartier, 1868-1951) foi professor durante décadas na Khâgne (classes preparatórias às Escolas Normais nas áreas de letras e filosofia, onde são recrutados os intelectuais de maior prestígio no campo intelectual francês) do Lycée Henri IV (Paris) tendo, dentre centenas de outros alunos, Raymond Aron, Simone Weill e Georges Canguilhem. Em 1932, Alain escrevia em Propos sur l´éducation – Pédagogie enfantine, de maneira apologética, que “se pode perfeitamente dizer que não há pensamento a não ser na escola”.
Bourdieu construirá sua trajetória analítica no domínio da sociologia da educação procurando opor-se a um idealismo como o preconizado por Alain, em que a reflexão é destituída de qualquer fundamento histórico, como na velha tradição francesa. Em artigo de 1966, “A escola conservadora: as desigualdades frente à escola e à cultura”, rompe com as explicações fundadas em aptidões naturais e individuais e critica o mito do “dom”, desvendando as condições sociais e culturais que permitiriam o desenvolvimento desse mito.
Desmonta, também, os mecanismos através dos quais o sistema de ensino transforma as diferenças iniciais – resultado da transmissão familiar da herança cultural – em desigualdades de destino escolar. Explora a relação com o saber, em detrimento do saber em si mesmo, mostrando como os estudantes provenientes de famílias desprovidas de capital cultural apresentarão uma relação com as obras da cultura veiculadas pela escola que tende a ser interessada, laboriosa, tensa, esforçada, enquanto para os alunos originários de meios culturalmente privilegiados essa relação está marcada pelo diletantismo, desenvoltura, elegância, facilidade verbal “natural”. Ao avaliar o desempenho dos alunos, a escola leva em conta, conscientemente ou não, esse modo de aquisição e uso do saber.
Segundo Bourdieu, “para que sejam desfavorecidos os mais favorecidos, é necessário e suficiente que a escola ignore, no âmbito dos conteúdos do ensino que transmite, dos métodos e técnicas de transmissão e dos critérios de avaliação, as desigualdades culturais entre as crianças das diferentes classes sociais. Tratando todos os educandos, por mais desiguais que sejam eles de fato, como iguais em direitos e deveres, o sistema escolar é levado a dar sua sanção às desigualdades iniciais diante da cultura”.
Bourdieu constrói seu esquema analítico relativo ao sistema escolar e às relações não explícitas que o ancoram em uma longa trajetória que envolve análises empíricas objetivas, centradas em estatísticas da situação escolar francesa. Já em 1964, em Les étudiants et leurs études (Os estudantes e seus estudos) e Les héritiers. Les étudiants et la culture (Os herdeiros. Os estudantes e a cultura), escritos com Jean-Claude Passeron, examina como os estudantes se relacionam com a estrutura do sistema escolar e como são nele representados, e constata a desigual representação das diferentes classes sociais no sistema superior. Investiga a cultura “legítima”, aquela das classes privilegiadas que é validada nos exames escolares e nos diplomas outorgados, e o ensino, aquele que autentica um corpo de conhecimentos, de saber-fazer e, sobretudo, de saber dizer, que constitui o patrimônio das classes cultivadas.
O fato de desvendar as desigualdades do ensino francês, tanto como sistema como em seu interior, significa uma grande mudança no pressuposto já canonizado – principalmente com Durkheim, que personifica o ideal da Terceira República (1870-1940), conhecida como “A República dos Professores” –, em que a escola deveria fornecer a educação para todos os indivíduos, proporcionando-lhes instrumentos que pudessem garantir sua liberdade, mas, também, sua ascensão social.
Ao afirmar que o sistema escolar institui fronteiras sociais análogas àquelas que separavam a grande nobreza da pequena nobreza, e esta dos simples plebeus, ao instaurar uma ruptura entre os alunos das grandes escolas e os das faculdades (ao analisar o campo universitário francês e o papel das Grandes Écoles), Bourdieu desvela a crueza da desigualdade social e, ao mesmo tempo, como ela é simulada no sistema escolar e entranhada nas estruturas cognitivas dos participantes desse universo – professores, alunos, dirigentes.
Conhecimento e poder
Assim, a instituição escolar é vista como desempenhando uma grande função de produção de diferenças cognitivas, uma vez que ajuda a produzir esquemas de apreciação, percepção e ação do mundo social por via da internalização dos sistemas classificatórios dominantes no mundo social global.
Suas análises da educação, então, passam a pertencer ao campo da sociologia do conhecimento e da sociologia do poder, pois como ele mesmo afirma, longe de ser uma ciência aplicada e adequada somente aos pedagogos, ela se situa na base de uma antropologia geral do poder e da legitimidade, porquanto se detém “nos mecanismos responsáveis pela reprodução das estruturas sociais e pela reprodução das estruturas mentais”.
Para Loïc Wacquant, Bourdieu oferece uma anatomia da produção do novo capital [o cultural] e uma análise dos efeitos sociais de sua circulação nos vários campos envolvidos no trabalho de dominação. Em La noblesse d´État (A nobreza do Estado) comprova e reforça suas teses iniciais sobre o sistema de ensino e a “relação de colisão e colusão, de autonomia e cumplicidade, de distância e de dependência entre poder material e poder simbólico”. Sua sociologia da educação é, antes de tudo, uma “antropologia generativa dos poderes focada na contribuição especial que as formas simbólicas dão à respectiva operação, conversão e naturalização. (…) O interesse de Bourdieu pela escola deriva do papel que ele lhe atribui como garantidor da ordem social contemporânea via magia do Estado que consagra as divisões sociais, inscrevendo-as simultaneamente na objetividade das distribuições materiais e na subjetividade das classificações cognitivas”.
A apropriação do autor no campo educacional brasileiro ocorre de forma mais incisiva no uso de suas noções mais evidentes e, não raramente, desvinculadas de sua epistemologia. É por isso que podemos encontrar os “teóricos” de Bourdieu, os “ativistas” e, de forma menos usual, aqueles que se apropriam de sua “prática epistemológica”. Constata-se a necessidade de re-conhecer o autor, buscando o entendimento da teoria sociológica que embasa suas noções mais conhecidas e também mais banalizadas, assim como o sentido da percepção do mundo social que tal teoria informa. Bourdieu nos ensina que toda prática humana encontra-se imersa em uma ordem social, sobretudo essa categoria específica de práticas inerentes ao mundo acadêmico. Fazer uma sociologia da educação bourdieusiana, analisando o papel do sistema de ensino na consagração das divisões sociais e consolidando um novo modo de dominação, torna-se um desafio até para os acadêmicos mais ousados.

ANA PAULA HEY é professora no Programa de Pós-Graduação em Educação da UMESP e autora do livro Esboço de uma sociologia do campo acadêmico: A educação superior no Brasil (EDUFSCar/FAPESP)
AFRÂNIO MENDES CATANI é professor na Faculdade de Educação da USP e pesquisador do CNPq. Organizou, com Maria Alice Nogueira, Escritos de educação (Vozes), reunindo ensaios de Pierre Bourdieu.

(Publicado originalmente no site da Revista Cult)

Charge! Jean Galvão via Folha de São Paulo

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terça-feira, 7 de maio de 2019

O papel dos juízes no grande encarceramento: um estudo sobre sentenças de tráfico

                                      
                                                                                                                                                                                                                                                                                           
Além da lei
                                                                                

O papel dos juízes no grande encarceramento: um estudo sobre sentenças de tráfico
Pesquisa conduzida por Marcelo Semer sepulta definitivamente a ideia de leniência por parte dos juízes (Arte Revista CULT)

A política criminal brasileira para as drogas conseguiu a proeza de reunir todos os defeitos: não ajudou a reduzir o consumo e manteve a distribuição em pleno crescimento; não cuidou efetivamente da saúde pública e produziu um desgaste sem precedentes nas forças policiais, além de ter impulsionado de forma contundente o encarceramento. Enquanto o homicídio mal representa 10% dos presos, quase um terço deles estão atrás das grades em razão do tráfico.
Embora o momento político não enseje qualquer fragmento de esperança, dos idealistas aos pragmáticos, a convicção de que algo não vai bem com a política de drogas, é razoavelmente consensual. Mas sempre há aqueles que se aproveitam, política, econômica ou criminosamente mesmo, daquilo que Jeffrey Reiman chamou de Derrota de Pirro: um sistema que se valoriza, sobretudo, pelos seus fracassos.
É o medo do crime que vitamina os investimentos em segurança, tanto os públicos quanto os privados. Do lado de dentro das celas, o encarceramento é pré-requisito para o empoderamento das facções criminosas; para as opções externas, comunidades terapêuticas se fortalecem à custa das internações compulsórias.
E os juízes, que papel representam no teatro de operações desta guerra às drogas?
O vertiginoso crescimento dos presos após a Lei Antidrogas de 2006 dá uma pista importante.
Embora a lei tenha excluído a prisão do mero usuário, ao mesmo tempo em que distinguiu punições entre grandes e pequenos traficantes, até esses tímidos pontos acabaram perdendo relevância na vida real.
A uma, porque a polícia continuou se concentrando nas prisões em flagrante, sem investigações, quando a chance de atingir executivos do crime é praticamente inexistente; a duas, porque sem critérios razoáveis, usuários são presos como traficantes. Ademais, os juízes resistiram, mesmo após decisões reiteradas do STF, a aplicar o privilégio, a fixar regime aberto ou substituir a pena privativa de liberdade por restritiva de direitos aos microtraficantes primários. Ao final, são justamente esses pequenos que lotam os cárceres, quando muito peões facilmente substituíveis, sem qualquer abalo ao comércio.
Os dados que apresento neste artigo foram fruto da pesquisa de meu doutoramento em Criminologia, recentemente defendido na Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, que envolveu a análise de 800 sentenças de tráfico de drogas em oito Estado do país (SP, RS, PR, MG, BA, MA, GO e PA), entre o segundo semestre de 2013 e o primeiro de 2015. É possível entender um pouco melhor o papel dos juízes neste processo e aquilatar a responsabilidade que têm pela formação de um grande encarceramento – aliás, das maiores populações prisionais do mundo, a brasileira é a única que continua em pleno crescimento.
O primeiro dado situa quem são os “traficantes”, os réus destes processos: pelo menos dois terços deles são pobres (número que só não é maior pela falta de dados em muitas sentenças); 80% são primários. Em pouco mais de 70% dos processos, há apenas um réu envolvido (a média geral é de 1,52 acusados por processo, ou seja, nem chega a dois). Menos de 10% das pessoas presas foram encontradas com armas de fogo. As apreensões de dinheiro, quando existem, são em regra pouco expressivas: a média não passa de R$ 266,00, sendo que 67% das apreensões se dá com menos de 10% do salário mínimo.
Como se prende é outro dado significativo: cerca de 89% dos processos se iniciam com a prisão em flagrante – em 70% deles, pelos policiais militares. Pouco mais de 10% dos casos se iniciaram com investigações prévias, que levaram, por exemplo, a buscas e apreensões domiciliares ou interceptações telefônicas. O forte mesmo são as ações de patrulhamento, nos quais a seletividade das abordagens é historicamente conhecida.
Concentrar a prisão nas ruas significa deixar de lado a droga de grandes transações ou mesmo as festas privadas. O pobre é, efetivamente, o grande alvo da abordagem policial – e, embora, a pesquisa em si não tenha tido recorte racial, em face da ausência de informações nas sentenças, sabe-se, por outros levantamentos, que o assédio é muito maior sobre a população jovem e negra.
Por fim, o que se apreende: 97% das drogas entre as três mais recorrentes são maconha, cocaína em pó e na forma de crack. Os volumes são díspares, mas prevalecem as pequenas apreensões: 56% a 75% abaixo de 100g (maconha) ou 50g (cocaína e crack); medianas respectivamente de 66,1g de maconha, 30,66g de cocaína e 13,36g de crack. Mesmo nas grandes apreensões (2,5% dos casos acima de 10kg), as prisões são, em regra, das pessoas de menor expressão, como o motorista que transporta a droga, ou o cuidador do barraco onde ela é alojada. Quase não há prisão por venda, remessa ou importação da droga. As condutas incriminadas são as mais próximas à posse e estocagem: ter consigo e guardar.
Apesar deste quadro relativamente minimalista, os resultados das sentenças impressionam: média de 78% de condenação; pena-base fixada no mínimo apenas em 52% dos casos; pena definitiva três vezes superior a menor pena possível (1 ano e 8 meses de reclusão). Apesar da baixa reincidência e da pouca denúncia por associação, o redutor do tráfico é empregado apenas em 44% dos casos e no seu patamar maior (2/3 da pena), só em 20% dos processos. Não obstante o STF tenha expressamente permitido aos primários a substituição da pena privativa de liberdade pela restritiva de direitos, apenas 16% a fixam e o regime mais comumente empregado ainda é o fechado (68%).
Para a análise qualitativa, resgatei de Stanley Cohen, o conceito de pânico moral: o alarde, a desproporção, o perigo iminente que ameaça a sociedade, a estereotipação do inimigo público (folk devil), a necessidade imperiosa de providências que possam minorar os efeitos maléficos, o enrijecimento das agências de controle e, ainda assim, a amplificação do desvio.
Todos os elementos são encontradiços na pesquisa, a começar pelo julgamento com base em crenças generalizadas, a caracterização do traficante como verdadeiro folk devil, que a nada faz jus, e consequente falta de individualização. Em muitos casos se conclui que os juízes estão julgando não os réus, mas o próprio crime de tráfico. Seus fundamentos são assim indicativos: “O narcotráfico é o flagelo da humanidade. Semeia terror e morticínio”; “O tráfico é uma das condutas mais danosas que existe no seio da sociedade moderna”; “Nefastas são as suas consequências, eis que promove a decadência dos valores”; “Inexiste delito mais odioso”; “Coloca em risco a própria existência sadia da humanidade”.
Entre os resultados surpreendentes, uma enorme diferença regional. Estados de maior porte, como SP, MG e RS aplicam em menor escala os parâmetros do STF e, portanto, as penas são mais severas do que as aplicadas por Estados como Maranhão e Bahia, que seguem o STF com mais frequência.
Esta inusitada diferenciação regional, que seria compreensível em um país de legislação estadualizada (como os EUA), é incompatível com nossos instrumentos de federalização: uma legislação que é de competência exclusiva da União e tribunais superiores com a incumbência de unificar a interpretação destas normas. E isso só tende a piorar com a manutenção da “prisão em segundo grau”, pois autorizar o início da execução pelo julgamento local, apenas consolida a regionalização e praticamente inutiliza a jurisprudência dos tribunais superiores – com decisões mais garantistas, apenas para inglês ver.
Nessa distinção regional, deve-se observar, São Paulo é uma espécie de Texas brasileiro. Seu apenamento é bem mais severo (muito mais regime fechado e quase nada de restritiva de direitos), ao mesmo tempo em que os índices que possam apontar para a gravidade dos fatos são os menores.
Pela pesquisa, o Estado lidera o índice de apreensões de dinheiro de baixo valor (97% abaixo de um salário mínimo); apresenta média de apenas 1,31 réus por processo (o menor índice de coautoria entre os Estados pesquisados); 7% de investigações (o segundo menos investigativo); menos de 5% de armas apreendidas (o menor índice entre os oito Estados), 8% de apreensão de balança de precisão (também o nível mais baixo). São Paulo lidera, ainda, o maior índice de pequenas apreensões de crack (82% de apreensões inferiores a 50g) e é o segundo Estado em que nos processos mais se apreende quantias pequenas de maconha (67% de apreensões inferiores a 100g).
Por outro lado, é o líder em condenações (85% para uma média de 78%) e o que menos absolve (9% para uma média de 15%). É o Estado com penas em regime fechado em maior proporção, de longe (89%, de uma média de 68%) e o que menos aplica as penas restritivas (5%, de uma média de 16%), sendo que 34% das rejeições de aplicação não se fazem por nenhum impeditivo legal. Não é preciso muito para compreender a força estatística da maior severidade em São Paulo, onde já se localizam cerca de um terço dos presos.
No que diz respeito à prova, ela é quase toda construída sobre as palavras dos policiais. Tidos como portadoras de fé pública ou legitimidade sempre presumida (numa confusão com o conceito que é próprio ao direito administrativo), o que quer que digam tem uma “especial eficácia probatória”. Tudo que é contrário a seus relatos, está “isolado” nos autos.
Enfim, os policiais são críveis, quando coerentes, são tolerados quando contraditórios e são auxiliados quando desmemoriados; não resta mais do que o mero aval policial para desencadear a persecução e fixar bases para a condenação. Do outro lado, o desprezo absoluto pela versão e testemunhos de defesa (repelidas em abstrato pela parcialidade) além de mecanismos que privilegiam a inversão do ônus probatório –como a necessidade do próprio réu de fazer a prova diabólica de que a droga apreendida consigo teria exclusivamente a finalidade de consumo.
Os juízes funcionam sob a órbita dos estados de negação também estudados por Stanley Cohen: sabem e ao mesmo tempo não sabem dos vícios que são imputados aos policiais.
Os exageros do pânico moral, que vitaminam prisões e condenações com fundamentações genéricas se casam com os silêncios acerca das atrocidades. Pouco importa que os policiais brasileiros sejam os mais violentos contra a população civil no mundo: em suas mãos, e só nelas, os juízes depositam a confiança para julgar os crimes que reputam de maior gravidade.
A pesquisa sepulta definitivamente a ideia de leniência por parte dos juízes. Para o bem ou para o mal, é importante destacar que o quociente de encarceramento se dá em razão deles mesmos, inclusive e principalmente quando há alternativas menos draconianas na lei.
Isto pode ser um começo de explicação para o fato de que o crescimento prisional não se distinguiu tanto entre os diversos governos desde os anos 1990, quando começa a crescer vertiginosamente. O que significa dizer que a alteração política não define todos os passos no horizonte do encarceramento – embora, é óbvio, sempre possa atrapalhar bastante.
Há um ator importante, cujo estudo vinha sendo negligenciado pelos modelos que se debruçaram para entender o grande encarceramento: o juiz. É preciso prestar mais atenção nele para compreender que a política de drogas não se exaure na produção de uma lei.
MARCELO SEMER é juiz de Direito e escritor. Mestre em Direito Penal pela USP, doutor em Criminologia pela USP, é também membro e ex-presidente da Associação Juízes para a Democracia.

(Publicado originalmente no site da Revista Cult)

terça-feira, 23 de abril de 2019

Ralph Ellison: a causa e o efeito

                                         

    Luiz Maurício Azevedo 
                                                                                                                                                                 

Ralph Ellison: a causa e o efeito

FacebookTwitterEmailPinterestAddThisO crítico literário Ralph Ellison, em 1960 (Foto: Agência de Informações dos Estados Unidos)

Em 2019 completam-se 25 anos da morte do escritor afroamericano Ralph Ellison. Nascido em 1919, em Oklahoma, Ellison tornou-se notório por escrever aquela que é, sem dúvida, a obra obrigatória de toda a tradição literária negra nos Estados Unidos: Homem invisível. Publicado em 1952, o livro é basicamente uma carta-explicação sobre os motivos pelos quais um homem decide optar por viver dentro do subsolo da cidade de Nova York. O protagonista salta de decepção em decepção, fracassando em toda socialização que empreende. A experiência de ser negro nos Estados Unidos é como uma trajetória trágica, cheia de mal entendidos, frustrações, injustiças e imoralidades.
No Brasil, há duas traduções do livro disponíveis: uma datada de 1990, produção da editora Marco Zero, editada na esteira do centenário da abolição da escravatura, ocorrido no ano anterior. A outra edição é de 2013 e foi produzida pela José Olympio. Àquela altura, Homem invisível só podia ser encontrada em sebos. Em 2012, exemplares da obra eram comercializados por até duzentos reais cada, em sites como Estante Virtual e Mercado Livre. O hiato entre a primeira e a segunda tradução tem muitas explicações editoriais: a aquisição dos direitos de publicação de uma obra é um processo complexo, que envolve longa negociação, poder aquisitivo e elementos culturais. E isso sem dúvida pesou na sentença de afastar o leitor brasileiro desse livro seminal. Contudo, é possível que a conjuntura social brasileira tenha tido mais peso nessas decisões do que as demandas editoriais.
Explico: Homem invisível é um ataque frontal a dois tipos de ilusão. A primeira é de que pessoas negras podem se comportar como pessoas brancas e obter do mundo as mesmas reações que colheriam se não fossem negras. A segunda é a de que um projeto de coletividade – seja ele político, seja ele religioso – pode oferecer resposta para as angústias profundas de um indivíduo. Ellison se esforçou para demonstrar em sua obra que fatores socioeconômicos turvavam a visão sobre um ser humano, mas que não podiam determiná-lo. Para grande parte dos leitores estadunidenses, o livro é uma potente bandeira liberal sobre os riscos do pensamento de manada, das associações e das entidades que vendem a ideia de que os trabalhadores desejam algo diferente de seus chefes.
Essa concepção tornou Homem invisível de certa forma inútil para o Brasil, país onde o capitalismo hiberna, há décadas, em um limbo que coaduna atraso e identidade racial esquizofrênica. Por aqui, o livro encontra dificuldades em sua recepção porque seus principais temas são conduzidos por nós de forma bastante negativa, e a questão racial é um pesadelo que negamos como país. Por outro lado, sempre foi interessante para grande parte de nossa crítica a descrição do outro como sendo uma vítima passiva, e nossa literatura – eurodescendente – jamais pode dar conta do problema racial.
Homem invisível parece ser o último suspiro essencialista de um autor profundamente existencialista. A complexidade de sua obra não deixa espaço para o proselitismo tão palatável ao ambiente das elites nacionais, sempre dispostas a ouvir a canção dos outros quando os outros se dispõem a louvá-los, no espetáculo perdido da vida humana.
Nos Estados Unidos, membros do Partido Comunista rejeitaram a obra. Acreditavam estar frente a um romance que desenhava com traços agressivos e pejorativos uma comunidade que já estava suficientemente massacrada pela má-fama. No campo conservador, a reação foi bastante diferente. Houve uma série de manifestações que misturaram racismo e admiração. Orville Prescott, célebre crítico do The New York Times, chamou o livro de “impressionante realização; o melhor talento literário que já vi em um negro”. Fredrik Spotchen, da extinta revista Millestone, disse ser Ralph Ellison “uma espécie de James Joyce do Harlem”.
Entre os negros a obra atingiu grande notoriedade ao longo das décadas. Barack Obama atribui um grande peso em seu processo de formação. A cultura pop também presta constantes tributos à obra: na série Luke Cage, produzida pela Netflix, o protagonista tem Homem invisível como livro de cabeceira, em meio à sua improvável rotina de super-herói.  Em Todo mundo odeia o Chris, série cômica, escrita por Chris Rock, há uma exploração bem humorada da centralidade da obra no sistema escolar americano e o modo como certos indivíduos negros lidam com a herança cultural do seu próprio grupo.
O autor, contudo, não goza de igual destaque. Seu temperamento difícil e a inclinação pelo criticismo mais ácido fizeram dele uma figura complexa, com poucos acessos sócio-midiáticos. Não há camisetas com seu rosto; não há canecas com suas frases; não há celebração pública de sua figura histórica. Ellison tornou-se uma espécie de raiz da qual a própria invisibilidade é uma mera consequência lógica.
Homem invisível foi publicado em um momento em que o Modernismo estava em franca crise nos Estados Unidos. A forma-romance parecia encontrar uma limitação. Os elementos centrais da vida cultural negra por aquelas bandas (a saber: o jazz, a oralidade, a religiosidade e o mito da ascensão social) foram usados pelo autor para refazer a indagação-base de toda investigação filosófica séria: “quem sou?” É por isso que a obra começa com um significativo: “sou um homem invisível”. Ser capaz de determinar aquilo que se é, longe de ser uma limitação, é uma libertação. E, especificamente para indivíduos negros, significa desfazer as minas tóxicas que foram ardilosamente colocadas pela ideologia racial.
Luiz Maurício Azevedo é doutor em Teoria e História Literária pela UNICAMP; autor de A toupeira invisível: marxismo negro e cultura antimarxista em Ralph Ellison (Editora Figura de Linguagem)
(Publicado originalmente no site da Revista Cult)

Editorial: Economia do "bico"


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Na manhã da última Quarta-Feira, véspera do feriado da Semana Santa, havia um bom motivo para voltarmos à Universidade Federal de Pernambuco. Mais precisamente ao 13º andar do CFCH - onde realizamos parte de nossos estudos naquela Instituição - na Pós-Graduação de Antropologia, ocorreria a palestra do professor Mabuse, que abordaria um tema dos mais relevantes na atual conjuntura política que atravessamos, seja no Brasil, seja no mundo: a absoluta ausência de normas ou procedimentos éticos na construção de algoritmos. De acordo com Mabuse, a lógica que orienta a criação desses algoritmos segue um viés unicamente utilitarista, embora envolva mecanismos de controle e vigilância sobre indivíduos e coletividades, cujas implicações deixariam um filósofo como Michel Foucault - aquele do bio poder - de queixo caído.
Hoje, com o advento dos aparelhos de celulares android, é possível acompanhar todos os passos dos indivíduos, mesmo quando o aparelho está desligado. Sites de busca como o Google - nada sigiloso - por exemplo, ajudaram bastante o trabalho da polícia para se chegar aos assassinos da militante Marielle Franco. Espanta ao professor o fato de a juventude não demonstrar qualquer tipo de incômodo ou desconforto com este fato. Um bom sinal de wi-fi, já comentamos isso por aqui, figura entre os primeiríssimos critérios para se definir por algum tipo de hospedagem. Talvez até mais determinante do que uma boa cama e uma boa companhia. 
Algoritmo, na realidade, é um termo do campo da informática, que pode ser definido como uma sequência finita de ações executáveis que visam obter uma solução para um determinado tipo de problema. Em tese, por exemplo, podem ser utilizado para facilitar a vida dos velhinhos em filas intermináveis nos supermercados; ajudar as grávidas na escolha do enxoval das crianças; fazer intervenções em circuitos expositivos, consoantes as reações do público visitante de museus ou galerias de arte; coisas do tipo. A questão é quando as grandes plataformas se utilizam dos dados dos indivíduos para objetivos não necessariamente assim tão republicanos, invadindo sua privacidade, fornecendo esses dados para usos escusos, conforme já ocorreu, por exemplo, nas últimas eleições americanas, quando milhões de dados foram sutilmente utilizados por uma determinada empresa de marketing político, que trabalhou magistralmente as emoções e reações dos eleitores em favor de um determinado candidato.
A última eleição brasileira foi a eleição das fake news, ou seja, mentiras sistematicamente disseminadas através de robôs, utilizando-se das redes sociais, que acabaram tornando-se verdades, através da “construção” da opinião pública. Sou de uma época em que os bons debates ainda ajudavam a “formar” a opinião pública, num ambiente aonde ainda se respirava democracia. Hoje, no entanto, as pessoas são submetidas a linchamentos morais, sem direito de defesa, sem ser ouvidas, sem provas, sem que seja observado o princípio da presunção de inocência ou do contraditório, baseadas no "achismo". Desde que um certo magistrado da Suprema Corte resolveu orientar suas decisões pelo domínio do fato para condenar agentes públicos,  o trem constitucional saiu dos trilhos, desencadeando o caminho pantanoso da permissividade ou uma espécie de "relativismo" jurídico, já pedindo perdão aos juristas por alguma impropriedade na definição do conceito.   

No bojo desse debate, invoca-se a postura de instituições como o Estado, hoje absolutamente empenhado em ampliar os mecanismos de controle e as tecnologias de vigilância sobre os indivíduos, como o uso cada vez mais frequente de drones, GPS e as famosas câmaras de reconhecimento facial, numa tradução bastante aproximado do Grande Irmão de George Orwell. O Ministério da Verdade, então, esse já está completamente escancarado, com a divulgação de mentiras e a ocultação de dados e informações que, de fato, poderiam ser úteis aos cidadãos. As crescentes restrições à transparência de informações - um retrocesso - se encaixam aqui. Que interesse teria o cidadão comum em conhecer a caixa-preta da Previdência Social? 
Um fator ainda relacionado à conformação do aparelho de Estado na atual conjuntura política, diz respeito a uma previsão do filósofo esloveno Slavoj Zizek que, ainda no calor das passeatas das Jornadas de Junho de 2013, alertava sobre o recrudescimento do uso da força no exercício do poder político, uma profecia que está se materializando. Há, aqui, uma “nova” conformação que não se restringe apenas ao aparelho de Estado, mas ao próprio capitalismo, que se reinventa sempre, pouco se lixando para os segmentos sociais que não reúnem condições de participar dos seus banquetes consumistas. Mas este é um tema que, por envolver o "capital" das milícias, deixaremos para abordar num momento mais apropriado.
Vale aqui uma observação - que chegamos a discutir anpassant com o professor Mabuse - que diz respeito à institucionalização da Economia do Bico, ou, como preferem os americanos, o GIG Economy. Há, de fato, um crescente processo de “institucionalização do bico”, sobretudo quando se observa, simultaneamente, o “arrojo” de empresas como a Uber - que participou ativamente do último carnaval de Olinda, conforme lembrou o professor Mabuse - e amplia seus negócios, atingindo milhões de usuários e parceiros, em sua maioria jovens que estão iniciando suas atividades produtivas, ou desempregados que não conseguem uma recolocação num mercado de trabalho precarizado e desregularizado pelo Estado, como o nosso, cuja Constituição Trabalhista - era assim a CLT para os trabalhadores e trabalhadoras - está praticamente extinta.
Isso nos fez lembrar de uma visita que o sociólogo Ulrick Beck fez ao Brasil, anos atrás, quando saiu daqui entusiasmado com o fenômeno de nossa economia informal, chegando a cunhar a expressão “Brasilização do Ocidente”, numa alusão a uma espécie de “democratização do setor informal no Brasil “ - Não é nada improvável que o alemão tenha lido as teorias de um outro sociólogo brasileiro bastante conhecido - apresentando o caso brasileiro como um exemplo a ser seguido pelo Ocidente, uma vez que, por aqui, se irmanavam no mesmo barco, brancos, pretos, pardos, héteros, homossexuais, trans, mulheres, homens e crianças, numa situação pouco provável de ocorrer na Europa, onde os conflitos étnicos praticamente impediriam essa possibilidade. A visão idílica de Beck sobre a "democracia da economia informal no Brasil", possivelmente, turvou sua percepção mais efetiva sobre esse fenômeno, que já atinge 10 milhões de brasileiros, sem garantias de assistência à saúde, vivendo no limite, sem um plano de seguridade que garanta uma vida digna na velhice. Estes já estão, a priori, condenados a morrerem trabalhando.

Charge! Laerte via Folha de São Paulo

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terça-feira, 9 de abril de 2019

Filosofia em tempos bizarros

                                 
Charles Feitosa
                                                                                                                                                                 

Filosofia em tempos bizarros              


 
Platão, Sócrates e Aristóteles (Reprodução)


A filosofia de fato é “filha do seu tempo”, como afirmava Hegel. Cada época clama por mais e melhores pensamentos, mas a filosofia nunca dita o que deve ser feito, cabe a cada um de nós decidir como vamos corresponder a esse clamor. Onde quer que esteja, a tarefa do filósofo consiste sempre em questionar os discursos vigentes, as explicações hegemônicas, as unanimidades de cada era. Assim foi quando Platão questionou a falta de senso crítico dos seus concidadãos atenienses em relação à poesia de Homero ou quando Hegel denunciava as consequências éticas e políticas da ascensão do “indivíduo” na modernidade.
Hoje, no mundo globalizado, a filosofia continua sendo solicitada a questionar os lugares consolidados do pensamento, seja na esfera ética/política (quando nossos concidadãos absorvem de maneira acrítica os discursos da mídias ou os boatos das redes sociais); seja na esfera epistemológica (quando,  por exemplo, as ciências humanas se rendem à tendência reducionista de considerar o cérebro como o índice mais fundamental da humanidade); ou ainda na esfera estética (quando certas instituições arquivísticas acreditam deter o poder de determinar o que é ou não é arte).
Muitas vezes a estratégia dos filósofos consiste justamente em colocar à prova a validade de certas interpretações que o ser humano faz do mundo, dos outros e de si mesmo, esticando-as ao máximo, desvelando assim suas possíveis decorrências ainda não evidentes. É famoso o comentário de Heidegger na palestra A Coisa (1951) sobre a bomba atômica, evento histórico decisivo que surpreendeu o mundo inteiro em 1945. Para Heidegger a bomba atômica de alguma maneira já tinha explodido muito tempo antes, enquanto um efeito não apenas acidental, mas sim necessário, da aposta exclusiva pela racionalidade científica, ou seja, pela exploração tecnicista da natureza, que a civilização ocidental havia feito. Logo, nenhum protesto pelo desarmamento nuclear teria êxito completo se não fosse sempre acompanhado por uma constante reflexão crítica sobre a essência da técnica, na qual depositamos todas nossas esperanças.
Outra história que ilustra essa desconfiança da filosofia em relação aos “coros dos contentes” é a famosa entrevista que Adorno deu para a revista alemã Der Spiegel em maio de 1969, no auge das manifestações, das barricadas, dos protestos estudantis que contagiavam as Américas e a Europa. Apesar de eu discordar das posições ali defendidas sobre a relação entre teoria e da prática, considero emblemático o modo como a conversa se desenrola para se compreender a singularidade do gesto filosófico. O repórter inicia sua entrevista com a seguinte frase: – “Professor Adorno, duas semanas atrás, o mundo ainda parecia em ordem…” e é interrompido firmemente pelo filósofo, que diz simplesmente: -“Não para mim”. Essas e muitas outras anedotas contribuem para a imagem do filósofo como um portador de más notícias, sempre nos alertando de que o pior estar por vir. Isso fica especialmente nítido em relação a questão da morte, que é o nosso futuro mais certo, ainda que em hora incerta. A filosofia pode ser definida desde os seus primórdios como um memento mori [em latim: lembre-se da morte] uma espécie de sino que dobra constantemente para nos lembrar da nossa condição efêmera.
Aqui vale a ressalva que o objetivo da filosofia não é nos aterrorizar com a lembrança da morte, mas sim nos provocar e sacudir, para que possamos de vez em quando reavaliar nosso modo de ver o mundo e as nossas prioridades na existência.  Da mesma forma não se deve deduzir do exposto que o papel da filosofia se reduz apenas a profetizar apocalipses, individuais ou coletivos. Isso depende muito de cada contexto. A filosofia tem sido historicamente um alerta quando o otimismo se torna hegemônico, mas acredito que ela pode também se tornar uma brisa de ar revigorante, quando é o pessimismo e a sensação de impotência que predominam, tal como ocorre no Brasil de hoje.
Quais são portanto, as tarefas do pensamento nesses tempos bizarros? O termo “bizarro” está em moda no Brasil e corre o risco de perder a força devido à sua superexposição. Tudo o que não se entende, que é incomum, extravagante, ganha a alcunha de bizarro. A origem do termo é nebulosa, como de hábito, mas alguns historiadores afirmam que ainda no século 16, “bizarro” em espanhol tinha um sentido diverso, a de garboso, valente, admirável. Somente no século seguinte, transportado para a língua francesa, que o termo ganhou o sentido que prevalece até hoje, de algo “muito anormal”. Então quando falo em tempos bizarros para descrever o momento atual de exceção no Brasil, quero apostar na ambiguidade originária desse termo, pois certamente vivemos tempos muito estranhos, marcados por ataques políticos-midiáticos-jurídicos-econômicos à democracia. Mas acredito que também poderão vir a se mostrar como “tempos de coragem”, quem sabe até como “tempos admiráveis”, onde não mais será possível deixar de se posicionar e de participar dos combates.
É por isso que prefiro descrever nossos tempos como “bizarros” e não recorrer ao já consagrado jargão “tempos sombrios”. A expressão “tempos sombrios” foi eternizada pela filósofa política alemã de origem judaica Hannah Arendt no seu livro Men in Dark Times (1968). Nele são descritas as vidas de homens e mulheres, tais como Rosa de Luxemburgo, Walter Benjamin ou Bertold Brecht, que por meio de suas ações foram exemplos de resistência contra os regimes totalitários que surgiram durante a primeira metade do século 20. A expressão que dá nome ao livro de Arendt foi inspirada no famoso poema Aos que virão depois de nós [An die Nachgeborenen] (1934-1938) de Bertold Brecht que diz: “Eu vivo em tempos sombrios [finsteren Zeiten]. / Uma linguagem sem malícia, é sinal de estupidez. / Uma testa sem rugas, é sinal de indiferença. Que tempos são esses?”.
Apesar desse heroico pano de fundo, considero que o termo “sombrio” ainda está irremediavelmente preso ao binarismo típico da modernidade, onde a luz evoca auto-consciência e conhecimento, ao passo que a escuridão e as trevas representam a ignorância e a violência. O uso da luz como remédio pode ter sido adequado para os tempos modernos, uma época em que ainda vigorava a luta da verdade contra a mentira, mas talvez não sirva mais para o momento atual, marcado ao contrário por uma inflação de verdades a todo custo, seja na forma das fake news da internet ou ainda dos assim chamados “fatos alternativos” de Donald Trump.
Desconfio que o diagnóstico da situação atual indique ao contrário um excesso de luminosidade na vida cotidiana (representada pela a omnipresença da tecnologia, da farmacêutica, das mídias de massa, da burocracia, etc.), o que acaba deixando cada vez menos espaço para a noite (representada pelas artes, pelos corpos, por seus gestos, seus afetos, suas ações). Luz demais também cega, já indicava Platão desde a alegoria da caverna.
Dentro desse contexto “pós-moderno” talvez a tarefa do filósofo não seja mais apenas disseminar a luz, mas ao contrário defender os espaços de escuridão. Tal como bem defende o historiador da arte francês Didi-Huberman no seu belo livro A Sobrevivência dos Vagalumes (2014), para que os “vaga-lumes” – simbolizando outras formas de saberes, fora do eixo, periféricas, tais como as oriundas da matriz africana, oriental ou ameríndia – possam ser preservados da ameaça da extinção.
Para mim, mais do que defender a noite, talvez a filosofia atual precise nesses tempos bizarros partir para uma dimensão ainda mais ativista e promover ela mesma alguns “apagões” ao seu redor. Um “apagão”, como bem sabemos, é uma situação incômoda que costuma interromper nossas atividades recorrentes, seja de trabalho ou de entretenimento. Mas dependendo da nossa atitude de resposta, um apagão pode vir também a se tornar um buraco criativo no tempo cotidiano, uma oportunidade de iniciar aquela conversa consigo próprio, muitas vezes adiada, que os antigos chamavam de pensar. Durante esses apagões quem sabe possamos nos “lembrar da vida” e contrapor o pessimismo e a sensação de impotência com a invenção de mais e melhores estratégias para reconquistar os territórios que estão sendo roubados de nós, brasileiros.
Vila Isabel, Rio de Janeiro, inverno de 2017
Charles Feitosa é doutor em Filosofia pela Universidade de Freiburg i.B./Alemanha; professor e pesquisador do Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas (PPGAC) da UNIRIO; coordenador do Pop-Lab (Laboratório de Estudos em Filosofia Pop) e autor entre outros de Explicando a filosofia com arte (Prêmio Jabuti 2005).

quarta-feira, 20 de março de 2019

A história da filosofia e as obras escritas por mulheres: uma nota metodológica

                                          
Nastassja Pugliese
                                                                                

A história da filosofia e as obras escritas por mulheres: uma nota metodológica                                                                             
Hipátia de Alexandria, Marie de Gournay, Mary Astell e Kristina Wasa: pensadoras pouco lembradas pela academia (Arte: Revista CULT)

Hipátia de Alexandria, Marie de Gournay, Christine de Pizan, Margaret Cavendish, Kristina Wasa, Anne Conway, Damaris Cudworth, Mary Astell, Émile du Châtelet, Mary Wollstonecraft. Mesmo com a ampliação dos debates na comunidade filosófica brasileira sobre a ausência de autoras mulheres nas obras canônicas da história da filosofia, ainda é muito provável que um aluno de graduação termine seu curso sem ter ouvido falar sobre nenhuma delas. É possível, ainda, que um aluno de pós-graduação não tenha participado ou ouvido falar bem de pesquisa alguma sobre elas. Também não é impossível que professores universitários que trabalham com história da filosofia não tenham lido obras produzidas por mulheres filósofas. E, sejamos realistas, há um grande desinteresse por parte destes últimos em investigar sobre obras não-canônicas escritas por “autores menores”. É comum que os professores pesquisadores descartem de antemão a relevância destas obras por não terem eles mesmos sido expostos a elas ao longo da carreira (afinal, se não estão no cânone, é porque suas obras não são tão importantes assim).
Por isso, na pesquisa sobre as obras filosóficas clássicas escritas por mulheres, se impõe a reflexão sobre as condições materiais, sociais e políticas do processo que se inicia no fazer filosófico e se concretiza na entrada das obras para a história. A exigência dessa reflexão parte também da observação da fragilidade do tema no presente contexto de ensino e pesquisa de filosofia no Brasil, evidenciada pelas parcas investigações sobre o tema, no pouco número de traduções das obras para o Português, na ausência de literatura secundária e das poucas conferências sobre suas contribuições. Entre outros motivos, penso que este estado de coisas se deve a uma falta de clareza metodológica em relação às razões para se motivar o estudo e, por conseguinte, incluir as obras das mulheres nas agendas de pesquisa.
Na maior parte das vezes, as razões para a ausência de protagonismo feminino na história da filosofia e nos debates filosóficos são rápida e facilmente encontradas fora da filosofia: a dificuldade de acesso das mulheres às esferas institucionais das atividades intelectuais, a falta de autonomia dentro do contexto privado e a ausência de cidadania plena no ambiente público. Questões relativas às possibilidades de publicação de suas obras também influenciavam o reconhecimento público de suas ideias: quando mulheres conseguiam publicar seus escritos, ou a autoria de suas ideias era disputada e atribuída a homens de seus círculos intelectuais, ou a obra era classificada apressadamente como escrito anônimo. Algumas delas, entretanto, participaram ativamente dos círculos intelectuais de suas épocas, tiveram suas obras intensamente debatidas por grandes figuras da época, mas não aparecem nas antologias e enciclopédias da história da filosofia.
Ainda que consideremos a arbitrariedade destas razões externas à filosofia na falta de reconhecimento da produção intelectual feminina no decorrer da história da filosofia, o apelo a estas condições históricas não se mostra suficiente para motivar o estudo de suas obras. Isto porque o cânone define e é definido por questões e obras habitualmente trabalhadas. Assim, há uma inércia na pesquisa filosófica que faz não ser interessante modificar o cânone, principalmente se essa mudança vier apenas de critérios exteriores à reflexão filosófica.
Pesquisadoras que movimentam, hoje, as discussões e a produção filosófica sobre mulheres e cânone na história da filosofia, criando grupos de pesquisa, realizando traduções, estudando suas biografias e obras, se dedicam também a discutir questões de metodologia da pesquisa em história da filosofia. Um marco importante no final do século XX foi a publicação do número especial da revista Hypatia em 1989, com o tema History of women in philosophy. Mas o trabalho de resgate foi realizado principalmente por Marjorie Nicholson, Mary Ellen Waithe, Eileen O’Neill. Este fato é importante porque a pesquisa metodológica contribui para sedimentar a discussão e para estabelecê-la desde dentro da filosofia, a partir do questionamento de seus próprios critérios.
Gostaria principalmente de chamar atenção para o trabalho metodológico de Lisa Shapiro. Em seu artigo de 2005, “Some thoughts on the place of women in early modern philosophy”, ela argumenta que a disputa narrativa que se encontra no processo de estabelecimento da história canônica da filosofia ocorre entorno de dois grandes eixos de discussão: o dos critérios externos e o dos critérios internos às obras filosóficas. Os critérios externos são aqueles que se baseiam em fatores que relacionam o texto com as suas condições de surgimento, ou seu contexto histórico. Shapiro critica a tomada dos critérios externos como único parâmetro de inclusão das obras escritas por mulheres no cânone.
Seu argumento é a favor de uma articulação da história a partir da compreensão da função do cânone como roteiro ou enredo de uma narrativa protagonizada por perguntas. Ao invés de se privilegiar certos autores ou obras, parte-se do princípio de que são as perguntas que determinam os autores a serem estudados. Dependendo das perguntas feitas, constrói-se um roteiro a partir dos autores que trabalharam determinadas questões. Ao privilegiar as perguntas, o direcionamento da pesquisa se dá de modo interno às obras filosóficas, pois as perguntas não são anteriores a elas, mas concomitantes. Não podemos cair no erro de achar que a pergunta torna o cânone irrelevante. O que o privilégio da pergunta implica é em um direcionamento da seleção de obras e de relação entre as teses apresentadas nas obras. Ela funciona como princípio norteador da pesquisa, a partir do qual as obras se tornam relevantes frente a um certo tema. A pergunta direciona o objeto de estudo – nas palavras de Shapiro, “muda sutilmente as questões filosóficas tomadas como centrais e permite que um maior número de figuras se tornem centrais”.
Esta nota metodológica é, portanto, um convite a pensarmos quais mudanças nas perguntas filosóficas que fazemos podem nos ajudar a questionar a homogeneidade do cânone, facilitando assim o ressurgimento de figuras forçadamente ignoradas e auxiliando em seu reconhecimento.


NASTASSJA PUGLIESE é professora da Faculdade de Educação e do Programa de Pós-Graduação em Lógica e Metafísica no Departamento de Filosofia da UFRJ, foi pesquisadora de pós-doutorado na Universidade de São Paulo junto ao Grupo de Estudos Espinosanos e é membro do corpo editorial dos Cadernos Espinosanos.
 
(Publicado originalmente no site da Revista Cult)

                                                                                                    

sábado, 9 de março de 2019

Stanley Kubrick, o cineasta das obras-primas

                                        

    Luiz Zanin Oricchio 
                                                                                                                                                                 

Stanley Kubrick, o cineasta das obras-primas

Kubrick foi um cultor da forma, sempre pensada em função do tema a tratar (Foto: Deutsches Filminstitut & Filmmuseum/Divulgação)

Quando Stanley Kubrick morreu, em 1999, um jornalista escreveu que agora não mais poderia viver à espera do próximo filme do cineasta, e que com isso sua vida se empobrecera – e muito. De fato, Kubrick, nascido em 26 de julho de 1928, em Nova York, é um dos poucos cineastas (eu diria mais, um dos poucos artistas) contemporâneos capazes de causar esse tipo de impressão, de que seu desaparecimento implica uma limitação às nossas expectativas estéticas e mesmo em nossa compreensão do mundo. E que outra coisa dizer de um diretor que legou peças de antologia como 2001: Uma odisseia no espaço, Lolita, Laranja mecânica, Doutor Fantástico, O iluminado, entre outros filmes?
Podemos fazer jus a Kubrick analisando sua carreira filme a filme, ou tomando-a em seu conjunto. Vendo-se cada peça de maneira isolada se constata uma grande concentração de obras-primas em uma única filmografia. A análise geral manda dizer que o nível de qualidade raramente cai, porque, provavelmente, o cineasta tinha, como poucos, amplo domínio sobre as diferentes etapas do fazer cinematográfico. E não por acaso. Em um dos seus primeiros filmes, o curta-metragem Fear and desire (1953), história de quatro soldados perdidos entre as linhas inimigas, Kubrick foi produtor, diretor, roteirista, fotógrafo e montador. Foi um fracasso comercial, mas muito instrutivo do ponto de vista técnico.
Já seu magnífico noir O grande golpe (1956), história de um assalto em um hipódromo, tornou-se grande sucesso de público, e também de crítica. Bastante influenciado por Robert Aldrich e Max Ophuls, Kubrick trabalha visualmente com longos planos-sequência nesse caso de um assalto fracasso estrelado por Sterling Hayden (que curiosamente está em O segredo das jóias, de John Huston, sobre tema semelhante). Rever esse filme sempre serve para comprovar como Kubrick foi eclético. Dominando a forma, pôde se exercitar com igual competência em gêneros diferentes. E, por isso mesmo, suas obras-primas estão divididas em uma série de gêneros distintos – noir, ficção científica, filme de época, guerra, romance, thriller etc. Conclusão: quando se trata de um grande artista, no fundo não é o gênero que conta. O gênero apenas se presta para o exercício de um ponto de vista, uma visão de mundo e um estilo pessoal.
Será assim no antimilitarista Glória feita de sangue (1957) e também no filme-histórico em que retorna à Roma Antiga, Spartacus (1960). No primeiro, aborda um episódio vergonhoso da Primeira Guerra Mundial, que fez o filme ficar proibido na França durante muito tempo. Usa uma fotografia notável, que torna o conjunto das imagens parecido a uma obra de fato rodada na época em que os fatos acontecem. E que fatos! Uma missão inútil, que termina em massacre e ainda custa o fuzilamento dos que se recusam à carnificina. É uma denúncia do absurdo da guerra que tem de ser citada ao lado de clássicos como A grande ilusão, de Jean Renoir. A cena final, com a moça alemã cantando num cabaré de franceses, é de cortar o coração.
Spartacus, cujo roteiro se deve a dois “vermelhos” da época do macarthismo, Howard Fast e Dalton Trumbo, fala da revolta dos escravos contra os senhores de Roma, numa clara alusão política. Além disso, o filme tem um tratamento cru, nada convencional, e destoante da maneira como a Roma antiga era retratada então, em melodramas cristãos moralizantes.
Um marco na carreira de Kubrick será Lolita (1962), adaptado da obra polêmica de Vladimir Nabokov. Como se sabe, o cineasta teve de enfrentar resistências da indústria para adaptar essa obra que mexe em tema tabu – a pedofilia. No romance, Lolita é uma menina mesmo. No filme, aparece mais próxima da idade adulta, na figura da adolescente vivida por Sue Lyon. Mesmo assim, a Lolita de Kubrick não deixou de provocar reações. E, mais uma vez, essas se devem tanto ao tema como à maneira como Kubrick coloca a câmera e arma o plano. Por exemplo, a primeira vez que o personagem de Humbert ­Humbert (James Mason) vê a sua Lolita é de uma sensualidade inesquecível, qualquer que seja a idade da garota em questão.
Em Doutor Fantástico (1964), Kubrick voltará ao tema da guerra, já abordado em Glória feita de sangue e ao qual retornará mais adiante em Nascido para matar (1987). Mas, no contexto da Guerra Fria, usará de uma fina ironia para melhor discutir o absurdo da situação em que a política parece refém de militares alucinados. Com Peter Sellers fazendo diversos papéis (inclusive o dr. Strangelove, do título original), Kubrick irá examinar como o militarismo e a luta entre as então duas superpotências, estava à beira de mandar o mundo à breca, o que de fato quase aconteceu durante a chamada “crise dos mísseis” em Cuba, tendo como antagonistas o presidente John Kennedy e o premiê soviético Nikita Krushev.
2001: Uma odisseia no espaço (1968) não se preocupa tanto com a corrida espacial, outra face da guerra fria entre as superpotências, mas explora outros pontos inerentes ao desenvolvimento tecnológico acelerado: a relação entre homem e máquina (o caso do computador Hal), ainda incipiente, e a eterna busca humana pelas origens. O que faz dessa adaptação da obra de Arthur C. Clarke uma ficção científica em tom metafísico e um dos filmes de visual mais impactante da história do cinema.
Em seu filme seguinte, Laranja mecânica (1971), Kubrick trata de outra das distopias possíveis, associada ao futuro, desta vez não se referindo a máquinas que saem do controle, mas aos próprios seres humanos, incapazes de dominar seus instintos. Agora é a violência sem controle, tal como conhecemos hoje nas grandes cidades e, por paradoxo, as formas de combatê-la, por um tipo de “tratamento psicológico” radical, conhecido nos laboratórios como condicionamento aversivo. Mas é também a plasticidade e a força das imagens que impressionam aqui, com sua aceleração e desaceleração de cenas de tortura e de estupro. O filme foi proibido no Brasil durante a ditadura militar.
Barry Lindon (1975) talvez seja o Kubrick menos amado – e há razões para isso. Seu retrato de um escocês que usava a hipocrisia britânica como arma social foi chamado pela crítica Pauline Kael de “bloco de gelo”. Uma narrativa em off antecipatória e a longa descrição em imagens dos ambientes tornam monótona essa adaptação de W. M. Thacheray para a maior parte dos espectadores. Nesse sentido, parece ser um filme que se limita à descrição do grand monde europeu, sem entrar no campo analítico.
Com O iluminado (1980), adaptado da obra de Stephen King, Kubrick faz um clássico do suspense. Antológica é a interpretação de Jack Nicholson como o escritor perturbado pela solidão do Hotel Overlook, isolado no inverno pela neve, e que passa a ameaçar a própria família. Nesse filme, o steadycam, dispositivo que permite produzir o efeito de câmera na mão, mas sem oscilações, é usado de maneira intensiva. Permite algumas filmagens de arrepiar através dos imensos corredores do hotel, quando algumas figuras do passado parecem sempre prestes a surgir de cada canto oculto.
Em Nascido para matar (1987), Kubrick, depois de Coppola, Cimino e Oliver Stone, volta-se para o Vietnã, essa ferida narcísica norte-americana. Essa adaptação do romance enxuto de Gustav Hasford, The short-timers, contém cenas que talvez tenham servido de inspiração para José Padilha em Tropa de elite, com o treinamento sadomasoquista dos militares. É, ainda uma vez, o retorno de Kubrick ao absurdo da guerra, mas enfraquecido em sua segunda parte, que se utiliza de imagens clássicas e pouco surpreendentes, fato inusitado em cineasta do nível de Kubrick. A originalidade está em mostrar o exército não como fábrica de máquinas de matar, mas “máquinas de deixar-se matar”, colocando a ênfase no lado sacrificial da atividade militar.
Stanley Kubrick no set de Barry Lindon (1975) (Foto: Divulgação)
De olhos bem fechados (1999) é o título da adaptação de Pequeno romance de sonho, de Arthur Schnitzler. É a despedida de Kubrick, que morreu depois de ter feito a primeira versão da montagem. Interpretado pelo então casal na vida real Tom Cruise e Nicole Kidman, mostra como a simples confissão de um devaneio, uma insinuação fantasiosa de adultério, pode levar o marido a uma espécie de descentramento mental. Kubrick capta bem o espírito do romance deste contemporâneo de Freud e lhe dá a estrutura de um sonho – aspecto que não foi bem compreendido por parte da crítica, muito comprometida com a estética naturalista dominante. O ponto de vista é o da fantasia do personagem de Cruise e esta não necessariamente tem a ver com a realidade objetiva. Talvez seja, dos filmes de Kubrick, o menos compreendido, o que é uma pena.
Sua obra, relativamente sintética, marcou profundamente a cultura cinematográfica moderna, dos anos 1950 em diante. Sem trabalhar, como outros autores, na ruptura mais radical da linguagem cinematográfica, Kubrick foi um cultor da forma, sempre longamente pensada em função do tema a tratar. Talvez por esse motivo, haja sempre nele um impulso em limitar a extensão da emoção, como se temesse o melodrama dominante em Hollywood. Por isso, não raro, seus filmes apresentam recorte um tanto cerebral, o que não chega a ser um defeito. Pelo menos para quem não considera o cérebro um órgão inferior ao coração.

Luiz Zanin Oricchio é jornalista, crítico de cinema de O Estado de S.Paulo
(Publicado originalmente no site da Revista Cult)

As origens operárias e socialistas do Dia Internacional da Mulher

                                        

    Cintia Frencia e Daniel Gaido 
                                                                                                                                                                 

As origens operárias e socialistas do Dia Internacional da Mulher

FacebookTwitterEmailPinterestAddThisRecorte do cartaz "Viva o Dia Internacional das Trabalhadoras", de 1926 (Arte Revista Cult)

Em 1894, Clara Zetkin escreveu na revista das mulheres socialdemocratas um artigo polêmico contra as feministas alemãs, intitulado “Separação contundente” (“Reinliche Scheidung”), no qual argumentou que “o feminismo burguês e o movimento de mulheres proletárias são movimentos sociais fundamentalmente diferentes”. Segundo Zetkin, as feministas burguesas aspiravam conseguir reformas a favor do sexo feminino no marco da sociedade capitalista, através de uma luta entre os sexos e em contraste com os homens de sua própria classe, enquanto as trabalhadoras se esforçavam através de uma luta de classe contra classe, manifesto de uma luta conjunta com os homens de sua classe, para eliminar a sociedade capitalista. Tendo como base tais princípios, Zetkin criou o movimento das trabalhadoras na Alemanha, que chegou a reunir 174.754 membros em 1914, ano em que a circulação de seu jornal A igualdade (Die Gleichheit) alcançou o número de 124.000 exemplares.
Esta fortaleza ideológica e organizativa transformou o movimento de trabalhadores socialdemocratas alemães na coluna vertebral da Primeira Conferência Internacional de Mulheres Socialistas, em 1907, em Stuttgart, cidade de residência de Zetkin, e de onde se editava A igualdade. Em sua resolução final, tal conferência proclamou como sua principal demanda “o direito ao sufrágio universal da mulher para as mulheres adultas, sem limitação alguma no que se refere à propriedade, ao pagamento de impostos, ao grau de educação ou a qualquer outra condição que exclua aos membros da classe operária do exercício deste direito”, aclarando que “o movimento de mulheres socialistas tem como bandeira sua luta, não em aliança com as feministas burguesas, mas em associação com os partidos socialistas”.
Proclamação
O Dia Internacional da Mulher foi proclamado pela Segunda Conferência Internacional de Mulheres Socialistas, celebrada em Copenhague, em 1910. O convite à mesma já deixava claro seu caráter de classe: “Convidamos urgentemente a todos os partidos socialistas e organizações de mulheres socialistas, assim como a todas as organizações de trabalhadoras baseadas no principio da luta de classes a enviar suas delegadas, ou inclusive seus delegados, a esta conferência”.
O informe sobre as delegadas estadunidenses mencionava que o dia 28 de fevereiro de 1909 “deu lugar, pela primeira vez, para o Dia da Mulher”, um evento que despertou a atenção de nossos inimigos”. A delegada alemã Luise Zietz, seguindo o exemplo das socialistas norte-americanas, propôs então a criação de um “Dia Internacional da Mulher”, data que fosse celebrada anualmente. Sua proposta foi apoiada por sua companheira Clara Zetkin e por mais cem delegadas procedentes de dezessete países. A resolução adotada sobre esta questão postulou: “De acordo com as organizações políticas e sindicais, que lutam pela consciência de classe do proletário de seus respectivos países, as mulheres socialistas de todas as nacionalidades devem organizar um Dia da Mulher (Frauentag) especial, no qual, acima de tudo, a propaganda do sufrágio feminino é um compromisso a ser promovido. Esta demanda obrigatoriamente deve ser vinculada a qualquer outra demanda da mulher, segundo a concepção socialista”.
Assim, a “introdução do sufrágio feminino” foi colocada na resolução de Copenhagen pelas mulheres socialistas no contexto da legislação protetora das trabalhadoras, da assistência social para mulheres e filhos, da igualdade de trato das mães solteiras, da provisão de creches e jardins de infância, da provisão de alimentação gratuita e educação de qualidade nas instituições escolares e da solidariedade internacional. Sob esse panorama, ficou claro que nas suas origens, o Dia Internacional da Mulher era o dia da mulher trabalhadora, que tinha como objetivo imediato o sufrágio universal feminino, mas só como meio para um outro fim: o triunfo do socialismo.
Celebração
No entanto, o primeiro Dia Internacional da Mulher não foi celebrado em 8 de março, mas sim em 19 de março de 1911. A data foi eleita para também lembrar a Revolução de 1848 em Berlim, já que o dia anterior, 18 de março, estava dedicado para a homenagem dos “caídos de março”.
Com a frase de protesto “Sufrágio feminino já”, mais de um milhão de mulheres saíram às ruas da Alemanha pedindo a igualdade social e política. “Nosso dia de março”, reivindicava o chamado publicado no jornal A igualdade: “Companheiras, mulheres e meninas trabalhadoras, 19 de março é o vosso dia. É o vosso direito. Detrás de vossas demandas, está a Socialdemocracia, todos os trabalhadores organizados sindicalmente. As mulheres socialistas de todos os países são solidárias com vossa luta. 19 de março deve ser vosso dia de glória”.
O panfleto para participar dos atos do Dia da Mulher, encabeçado com a demanda “Sufrágio feminino já”, foi impresso e distribuído em uma edição de dois milhões e meio de cópias. Ante a iminente guerra mundial, o Dia Internacional da Mulher foi posto pelas socialistas desde o princípio sob o signo da luta contra o militarismo imperialista e pela preservação da paz. Neste dia, só na Alemanha, além de um milhão de mulheres organizadas do SPD (Partido Socialdemocrata) e dos sindicatos, muitas foram as mulheres não organizadas que fizeram parte dos eventos e manifestações. E não menos importante que o caráter massivo e internacional das manifestações que tiveram lugar durante o Dia Internacional da Mulher, foi o fato de que este evento esteve acompanhado de Assembleias Populares sobre Políticas Públicas de trabalhadoras (se contabilizaram 42 assembleias somente em Berlim), nas quais a “livre discussão” era a principal condição que exigia as trabalhadoras.
A professora, jornalista e política marxista Clara Zetkin (Foto: Coleção George Grantham Bain/ Livraria do Congresso de Washington)

8 de Março
Além da Alemanha, o Dia da Mulher se celebrou, em 1911, ainda que em dias diferentes, nos Estados Unidos, Suíça, Dinamarca e Áustria. Até a Primeira Guerra Mundial se somaram França, Holanda, Suécia, Rússia e também Boêmia. Na Alemanha, o segundo Dia Internacional da Mulher foi comemorado no dia 12 de maio de 1912.
A prática de celebrar o Dia Internacional da Mulher em 8 de março só passou a fazer parte do calendário a partir de 1914, quando um famoso cartaz “Dia da Mulher / 8 de março de 1914 – Sufrágio Feminino Já” – no qual uma mulher vestida de preto agita uma bandeira vermelha – se configurou no primeiro cartaz que conecta as mulheres com esta data. Na Alemanha, a peça não pode ser colada ou fixada em lugar algum, nem distribuída publicamente, devido à proibição da polícia. Ainda assim, transformou-se em um emblema, uma ação de massa contra a guerra imperialista, instalada três meses mais tarde.
A instauração do dia 8 de Março como Dia Internacional da Mulher teve como função homenagear um dos eventos mais importantes na história, a Revolução Russa de Fevereiro de 1917 – o 23 de fevereiro no calendário juliano equivale ao 8 de março no calendário gregoriano. Em tal ocasião, as trabalhadoras russas tiveram um papel de vanguarda fundamental contra a oposição de todos os partidos, incluindo aos bolcheviques, quando transformaram à manifestação do Dia Internacional da Mulher numa greve geral que acabou por levantar todos os trabalhadores de Petrogrado e deu início à Revolução Russa.
Uma nova era
Com o anúncio do início da Primeira Guerra Mundial, em agosto de 1914, foi anunciada também uma nova era no desenvolvimento do movimento internacional das mulheres socialistas. Toda a Segunda Internacional – e, portanto também, a Internacional de Mulheres Socialistas – se dividiu em seus componentes nacionais. Devido à política de paz social adotada pelo SPD e pela Comissão Geral de Sindicatos Alemães, afiliada a ele, as manifestações críticas já não eram tão bem-vindas. O Dia Internacional da Mulher acabou por ser proibido na Alemanha pelas autoridades oficiais, e os eventos, que só puderam acontecer de maneira ilegal, tiveram inúmeras represálias da parte do governo e da polícia. Meses depois, a princípios de novembro, Clara Zetkin redigiu um chamamento intitulado “Às mulheres socialistas de todos os países”, no qual se pronunciou decididamente contra a guerra e pelas ações ampliadas de paz, e ainda no marco desta oposição à barbárie imperialista, celebrou-se no ano seguinte, em abril de 1915, a terceira e última Conferência de Mulheres Socialistas, em Berna, na qual foi proclamado o princípio internacionalista “guerra a guerra”.
Abandono e resgate
Após o colapso do segundo Império Alemão e a conformação de conselhos (räte) de operários e soldados em todas as partes da Alemanha, em novembro de 1918, a burguesia fez um giro de 180 graus em sua política e resolveu abraçar os princípios da democracia, antes abandonados em favor de uma aliança com a monarquia. Em razão disso, outorgou o direito ao sufrágio para as mulheres, contrapondo a assembleia constituinte reunida em Weimar e o parlamento aos soviets de delegações operárias. Tal política de contrarrevolução democrática foi levada adiante pelo dirigente sociodemocrata Friedrich Ebert, primeiro presidente da República de Weimar, a quem o historiador Carl Schorske chamou de “o Stalin da revolução alemã”. Tal manobra fez que a demanda do sufrágio universal feminino, adotada pelo movimento operário revolucionário com um caráter transicional em direção ao socialismo, fosse transformada em uma barreira para a revolução pela burocracia partidária e sindical do próprio PSD.
Dado que o Dia Internacional da Mulher era uma tradição que tinha origem na ala esquerda do movimento das mulheres proletárias, a direção do Partido Socialdemocrático da Alemanha decidiu que deixaria de celebrar a data de 8 de março, com o argumento de que já se havia conquistado o objetivo da criação deste dia, com a introdução do voto feminino. Nesta briga de foices, o Partido Comunista, pelo contrário, adotou o Dia Internacional da Mulher sob a consigna de “Todo o poder aos conselhos! Todo o poder para o socialismo!”.
Apenas em junho de 1921, com a Segunda Conferência Internacional das Mulheres Comunistas, presidida por Clara Zetkin, em Moscou, que o futuro do Dia Internacional da Mulher pode ser decidido: este se manteria em todo o mundo no dia 8 de março. As celebrações do Dia Internacional da Mulher foram instituídas com regularidade desde então em muitos países, uma tradição que continua até o dia de hoje.

Cintia Frencia é professora da Universidade de Córdoba
Daniel Gaido é professor de História Contemporânea na Universidade Nacional de Córdoba
TRADUÇÃO Ellen Maria Vasconcellos
(Publicado originalmente no site da Revista Cult)