pub-5238575981085443 CONTEXTO POLÍTICO.
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domingo, 22 de novembro de 2020

Editorial: A luta entre civilização ou barbárie chega à Guatemala


No dia de ontem, sábado, milhares de manifestantes saíram às ruas da Guatemala para protestar contra algumas medidas aprovadas pelo congresso daquele país, que incluem cortes orçamentários para setores importantes, como saúde, educação e direitos humanos. Acintosamente, os parlamentares também aprovaram, neste mesmo momento, medidas que ampliam seus benefícios, numa profunda indiferença às dificuldades enfrentadas pela população. Num dia de congresso vazio, alguns desses manifestantes se dirigiram àquela casa legislativa e atearam fogo em suas dependências. O que acontece neste país da América Central é reflexo da adoção do receituário ultraliberal, potencialmente danoso aos interesses dos segmentos sociais mais fragilizados, perifericamente inseridos na dinâmica econômica, sem assistência à saude, com aposentadorias comprometidas, alijados do consumo de bens, submetidos às condições precárias de subsistência. Isso não fosse o bastante, o país também sofre as consequências de desastres naturais, que atingem não apenas o país, mas seu vizinho, como a Nicarágua.  

Num contexto como este - de absoluto desprezo pela democracia substantiva - a democracia política fica sensivelmente comprometida, daí esses arranjos autoritários que estão se proliferando pelo mundo, em particular no continente latino-americano, onde a democracia política sempre esteve sob constantes solavancos, vitima frequente de lideranças políticas populistas ou oligárquicas. Alejandro Giammattei foi eleito com uma plataforma política ultraliberal, alinhavado com o presidente norte-americano Donald Trump. Em seu primeiro pronunciamento após os protestos, prometeu que usará de todo o rigor legal para punir os infratores, numa demonstração inequívoco que está disposto a endurecer o regime.  

Os protestos na Guatemala juntam-se a outros tantos que estão ocorrendo no mundo, em contraposição a esta política autoritária e suicída, que depõe contra a civilização e a própria vida. A racionalidade ultraliberal é sinônimo de barbárie. Tudo indica que chegamos à fase mais cruel do capitalismo. Não por acaso, pensadores sociais mais consequentes estão formulando um conjunto de alternativas a este estágio infame, propondo uma alternativa pós-capitalista, que preserve a vida, o planeta, as sociabilidades, a sensibilidade, a subjetividade solidária, as possibilidade de convivência, pois, neste terreno pantanoso, estão sendo cevadas as sementes do fascismo, com sua plataforma racista, intolerante, mentirosa, destrutiva da alteridade. Tratamos aqui de uma patologia política, que só precisa desses "incentivos" para prosperarem.

Depois de dormir  sono político que produziu o monstro, finalmente, a humanidade parere ter se dado conta da gravidade deste momento politico que atravessamos. Um conjunto de ações insurgentes estão produzindo alguns resultados alvissareiros, como a derrota de Donald Trump nas eleições americanas; a decisão soberana do povo chileno, que, através de um plebiscito, decidiu pela formulação de uma nova constituição para o país; a vitoria de Luis Arce nas eleições bolivianas e, agora, os protestos pacíficos na Guatemala.    

    

Charge! Jean Galvão via Folha de São Paulo


 

sábado, 21 de novembro de 2020

Michel Zaidan Filho: Teses equivocadas sobre as eleições municipais

Primeiro, transformar as eleições municipais em "fora Bolsonaro" e nacionalizar o discurso político do pleito". Isso chama-se oportunismo político e confunde ou quer instrumentalizar uma eleição para uma Prefeitura municipal em meio de fazer oposição aberta e franca a Bolsonaro. A agenda dessa eleição são os problemas comuns do cotidiano da população recifense: transporte público, educação púbica, saneamento e saúde pública, habitação, segurança etc. Se o candidato não tem propostas viáveis e factíveis para resolver esses problemas (mesmo que isso passe pela oposição à agenda de Bolsonaro), ele não está habilitado para exercer o mandato. mais ainda de uma prefeitura como a do Recife. Segundo, o programa politico-administrativo do candidato não pode ser uma mera colcha de retalhos (um bric-a-brac) das demandas dos movimentos sociais, por mais urgentes e importantes que seja. Este programa deve se constituir de uma linha comum das questões do cotidiano da população. Questões gerais e universalizantes. Isso não quer dizer que não haja espaço na agenda para questões específicas dos movimentos. Quarto, essa questão das demandas específicas e outras não se relacionam diretamente com as alianças para a conquista do mandato. Se faz eleição com santos, fiéis, irmãos , se faz com cidadãos e cidadãs de carne e osso. A questão são os compromissos assumidos pelo candidato, públicos e não tão públicos, que possam comprometer a agenda de mudança. Mas aí pesam os partidários e militantes da candidatura para garantir a fiel obediência ao programa estabelecido. Quinto, a tese de que a eleição municipal é uma prévia da eleição estadual ou nacional. Depende. Dado o caráter federativo do país, as alianças mudam, em cada nível de governo, as questões são diferentes e a própria conjuntura muda. Não se pode querer fazer dessa eleição municipal uma prévia da eleição estadual ou federal. Lembrar que das 3, a menos politizada é a municipal. A mais politizada (e plebscitarizada) é a federal. Não confundir as esferas. Vamos arregaçar as mangas e consolidar o que já conseguimos, ao invés de pré-julgar, sectariamente, o que sequer ainda é real e consolidado. É cômodo censurar um processo político em curso, urdido com tanta dificuldade. É mais fácil erguer uma igreja e fazer um movimento messiânico, com os irmãos e irmãs. Mas a política não é assim. Michel Zaidan Filho é filósofo, historiador, cientista político, professor titular da Universidade Federal de Pernambuco e coordenador do Núcleo de Estudos Eleitorais, Partidários e da Democracia - NEEPD-UFPE.

Editorial: Casos de infecção e mortes por Covid-19 voltam a subir no Brasil.

Os casos e mortes por Covid-19 estão aumentando sensivelmente no Brasil, o que significa dizer que entramos firmes na segunda onda da doença, realidade já então enfrentada por países europeus e pelos Estados Unidos. Em alguns desses países, voltaram a ser adotadas medidas preventivas rigorosas, como as restriçoes de contatos sociais. No Brasil, a adoção de medidas do gênero ainda não foram implantadas, segundo comenta-se, em razão da realização das eleições municipais, que só terminam no domingo 29, quando do término do segundo turno. O fato concreto é que fatores políticos e econômicos estão impedindo que os governos estaduais adotem medidas mais duras para o enfrentamento dessa segunda onda da doença. O mais preocupanete é que em algumas praças estão sendo observadas a incidência de casos mais graves da doença, exigindo cuidados mais complexos, quando não, significando a morte do paciente. O Brasil nunca foi um bom aluno do lockdown. Desde o início, nunca atingimos as metas que estavam sendo previstas, o que poderia, naquele momento, ter evitado a propagação da doença, diminuindo sensivelmente o número de mortes. Se, para alguns grupos sociais essa observação é procedente, para aqueles grupos sociais periféricos, empobrecidos e moradoress de favelas é preciso fazer as ponderações específicas, uma vez que as condições de vida dessa gente interditam a adoção de alguns cuidados básicos. Vivem confinados em pequenos espaços físicos, não recebem água em casa com regularidade - para a higiene das mãos com sabão amarelo - precisam trabalhar de manhã para comer à noite. Principalmente no Rio de Janeiro, contingentes expressivos da população já vivem sob o comando de grupos milicianos que, na realidade, é quem determina o que pode e o que não se pode fazer. Se, por um lado, o toque de recolher pode ter sido saudável, pois vai ao encontro das restrições de contato social, por outro lado isso representou o definhamento de uma das fontes de financiamento de grupos milicianos, como a extorsão aos comercientes. Alguns deles foram obrigados a pagar pedágio mesmo com o comércio fechado. Em outros casos, foram obrigados a abrir a porta dos seus estabelecimentos comerciais por imposição das milícias. O lockdown não é necessariamente uma unanimidade. Segundo alguns analistas, apenas restringir os contatos sociais - embora seja uma medida importante - não seria o suficiente para conter o avanço da doença se não acompanhada de outras medidas, como a ampliação das testagens, por exemplo. O fato é que medidas preventivas deverão ser ampliadas no próximo mês, em razão do preocupante avanço da doença em todos os quadrantes do país, com maior ou menor incidência. As vacinas estão chegando, mas ainda há muitas controvérsias em torno do assunto. Por outro lado, até atingirmos a sua democratização, muitas vidas ainda serão ceifadas. A Covid-19 provocou um desarranjo gigantesco na economia em sua primeira onda, o que leva comerciantes e empresários a se colocarem contra um outro procedimento de lockdown radical. Isso não ocorre apenas aqui, mas em países europeus, onde foram registrados inúmeros protestos contra as medidas resritivas, com os manifestantes sequer tomando um cuidado primário, como o uso das máscaras. Aqui em Pernambuco, quando sou obrigado a deixar a concha - por dever de ofício - costumo observar muita gente sem o uso das máscaras. De fato, seu uso causa um certo desconforto, mas, certamente, é um desconforto menor do que os procedimentos médicos adotados naqueles pacientes de Covid-19 em estágio grave, quando a doença costuma atingir a capacidade respiratória do indivíduo. Difícil saber como os nossos govenrnates sairão dessa saia justa. Mortes, hospitais abarrotados de gente doente, e as reticências naturais às medidas restritivas de contato social, seja por motivações culturais, seja por motivação econômicas. Este é o período do ano em que, normalmente, começam o planejamento para as festas de réveillon, seguida das férias de janeiro. Quem tiver a curiosidade de pesquisar os preços de hospedagem neste período em praças conhecidas - como Tambaú, Fortaleza, Rio de Janeiro - vai se deparar com a prática de valores que não indicam, de forma alguma, uma diminuição desses valores em razão da baixa procura. Os preços estão nas alturas. O mesmo se aplica aos valores de viagem de avião. Para esses setores parece que nada está acontecendo e, possivelmente, essas festas não serão proibidas em razão da pandemia, o que seria uma grande temeridade. Espero que prevaleça o bom-senso, mesmo a contragosto de alguns irresponsáveis ou negacionistas. Salvo melhor juízo, apenas o governo consequente da Bahia já teria anunciado a não realização do tradiconal carnaval.

sexta-feira, 20 de novembro de 2020

Editorial: Eleições do Recife. Chamem o Przeworski.

Przeworski é um cientista político polonês especialista em estudos sobre a democracia. Por conseguinte, as motivações que definem o voto do eleitor está entre as suas preocupações. Até recentemente,lançou um livro muito interessante sobre os problemas enfrentados pelos regimes democráticos na atualidade, frequentemente assediados por expedientes autoritários e fascistas. Mas, interessa aqui, saber o que leva um eleitor a votar neste ou naquele candidato, consoante uma série de constrangimentos, seja de natureza pessoal, seja em relação aos fatores externos, que também podem influenciar suas decisões. Hoje o eleitor sofre uma influência forte do marketing político, das pesquisas de intenção de voto, da estratégia adotada pelos marqueteiros, dos gastos de campanha, qua variam dependendo da capacidade financeira do postulante, assim como dos apoios recebidos. Não à toa se diz que um candidato cujo partido já está na máquina administrativa possui maiores chances do que um outsider, por exemplo. Gosto muito dos exemplos. Dos bons exemplos, naturalmente. Przeworski cita um deles, apontando um eleitor pobre, evangélico, com projeto de implantar um pequeno negócio. Dentre essas condições, qual aquela que seria determinante para a sua escolha deste ou daquele candidato? Seria ele um pobre de "direita", votando num candidato completamente descompromissado de sua condição social? Seguiria as orientações do pastor de sua igreja, o que, aliás, possui um poder indutor nada desprezível? Ou apostaria naquele candidato que acenasse para um crédito para ele abrir seu pequeno negócio? Isso vem a propósito de um fato intrigante que está ocorrendo neste segundo turno das eleições do Recife. O que estaria levando parte do eleitorado de Mendonça Filho(DEM) ou da delegada Patrícia(PODEMOS)a esta tendência de votar em Marília Arraes, do Partido dos Trabalhadores. Confesso que, por algumas razões, creditava ao candidato João Campos, do PSB, maiores possibilidades de herdar esses votos. O PSB está na máquina do Estado há um bom tempo, alinhavou-se com forças políticas conservadoras para disputar as eleições desde o primeiro momento,e, em tese, para este eleitorado citado, seria um partido político mais confiável. Hoje,sobretudo pelas razões expostas no editorial do dia de ontem, é, no mínimo, duvidoso afirmar que o PSB é um partido de esquerda, embora essa condição possa ser creditada nos seus primórdios, quando contou com atores políticos identificados com este perfil. O PT, por seu turno, é um partido estigmatizado. Não entramos aqui nem na seara ideológica, mas o partido passou até recentemente por um processo de assassinato de reputação e a gente sabe que não se constitui numa tarefa das mais simples a recomposição de uma imagem. Certamente, depois dessas eleições,ao se confirmarem o que as pesquisas estão indicando, deveremos ter algumas lives de cientistas políticos e analistas sociais para tentar entender um pouco a motivação de um eleitorado - tradicional, conservador e refretário ao PT - migrar para sufragar o nome de Marília Arraes nas urnas. Há algo mais determinante, neste horizonte, do que a rejeição ao PT. Uma grande insatisfação com a gestão atual, que já completa dois mandatos? O peso de uma condução não necesariamente republicana da máquina? Equívocos na estratégia de campanha? A mocidade e a inexperiência do candidato socialista, que talvez não esteja conseguindo passar confiança à população? Hoje, pelas redes sociais, um internauta estava levantando a tese da ingratidão. De fato, o PT foi um dos grandes suportes políticos e financeiro para o êxito da gestão do ex-governador Eduardo Campos. Mas esse legado foi solenemente rejeitado pelo PSB, sobretudo neste momento de disputa. Marília, por sua vez, foi atacada duramente, inclusive em sua honra, ao deixar as hostes socialista. Este fato estaria repercutindo, agora, no resultado das pesquisas, que a aponta na dianteira da disputa, num indicador de solidariedade da população? Na época de Eduardo Campos, o PSB tinha um guru argentino especialista em pesquisas qualitativas. Eis aqui um excelente instrumento científico para se chegar a alguma conclusão sobre esse fenômeno.

quinta-feira, 19 de novembro de 2020

Porque revoltas antirracistas espalham-se pelo mundo?

Por que revoltas antirracistas espalham-se pelo mundo Nem na morte de Luther King protestos foram tão imensos e globais. Agora, há dois caminhos. Entregar movimento a uma “vanguarda”, o que agradaria Trump; ou lançar, na esteira dos Panteras Negras, um programa de reformas estruturais OUTRASPALAVRAS DESCOLONIZAÇÕES por Italo Jardim Publicado 17/06/2020 às 16:37 - Atualizado 17/06/2020 às 16:53 Foram oito minutos e 46 segundos. Um episódio de tortura seguido do assassinato de George Floyd, de 46 anos, que trabalhava como segurança em um restaurante em Minneapolis, no estado de Minnesota, nos EUA. Ele foi abordado por policiais que responderam a uma chamada de suspeita de uso de cédulas de dinheiro falso na noite do último dia 25 de maio. Em seguida, um vídeo de 10 minutos, filmado por uma testemunha, mostra Floyd suplicando e dizendo repetidamente: “não consigo respirar”, para um policial branco. Ao ver as imagens da truculência e de abuso policial, é impossível não se indignar. A tragédia se soma a um rastro de sangue negro, derramado no decorrer da história. O assassinato de Floyd foi o ponto de ebulição para uma série de manifestações civis, marcadas por intensos e violentos confrontos entre revoltosos e a polícia americana, numa cidade que tem os maiores índices de disparidade socioeconômica entre negros e brancos nos EUA. São mais de 18 dias de protestos, mas nada disso começou agora. O histórico recente nos dá uma percepção. No dia 29 abril de 1992, um júri absolveu oficiais do Departamento de Polícia de Los Angeles, três brancos e um hispânico, acusados​​de agressão contra o motorista negro Rodney King, após uma perseguição em alta velocidade. A agressão dos policiais foi filmada. Milhares de pessoas na área de Los Angeles se revoltaram ao longo dos seis dias, após o veredito. Entre agosto e novembro de 2014, houve uma crise decorrente da violência racial. O policial que em agosto matou o jovem afro-americano desarmado Michael Brown, em Ferguson (Missouri), não enfrentou processo judicial. A decisão desencadeou uma nova onda de turbulência na cidade, incêndios, lançamentos de pedras e depredações de veículos. Michael Brown morreu no horário de almoço de um sábado, atingido por, pelo menos, seis disparos de Wilson, quando andava numa rua residencial com um amigo. A polícia afirma que houve uma luta entre os dois para pegar a arma, mas o amigo que acompanhava Brown diz que este ergueu os braços em sinal de rendição. Já em 19 de abril de 2015, o jovem negro Freddie Gray morreu sob custódia policial em Baltimore, Maryland, o que ocasionou um novo clamor contra os preconceitos e abusos da polícia dos Estados Unidos contra a população negra. As manifestações, que haviam começado de maneira pacífica, acabaram se transformando em fortes distúrbios por parte de um grupo de manifestantes, a sua maioria jovens. Nunca houve silêncio sobre os assassinatos e a truculência policial racista, embora essa violência contra negros seja permanente. Mas nunca se viu a propagação desses movimentos por todo o país e ao mesmo temp. Por tantos dias e com tendência a continuar crescendo. Algo mudou completamente, o assassinato de Floyd gerou uma insurreição que parece não ter hora para acabar. Algo que não se via em número, tamanho e expressão há mais de 50 anos. Aliás, muito maior que a manifestação após a morte do ativista político por direitos civis, Martin Luther King em 1969. Movimento ganha força meio à pandemia do novo coronavírus A crise social iniciada a partir do brutal assassinato de George Floyd acontece em meio à pandemia do novo coronavírus, no auge da disseminação do vírus, que já matou milhares de pessoas nos EUA e no mundo. A crise de saúde se soma à crise econômica, de características inéditas, que tende a se aprofundar nos próximos meses, e com toda a tensão política de um ano eleitoral norte-americano. O cenário é extremamente imprevisível do ponto de vista político. As manifestações foram crescendo dia a dia. Na terceira noite de protestos, quinta feira, 28 de maio, eles se concentraram na Terceira Delegacia de Minneapolis, que foi incendiada, espalhando-se por outras áreas da cidade. A revolta liderada pelos negros nas ruas de Minneapolis é alimentada pelo peso histórico de décadas de segregação e desigualdade. Apesar de sua reputação como um refúgio para a política progressista, Minneapolis é a área metropolitana mais segregada dos EUA. No domingo, 31 de maio, Trump passou pelo menos uma hora em um bunker subterrâneo durante os confrontos no lado de fora. O Exército patrulha as ruas na Califórnia. São mais de 40 cidades mobilizadas, ao menos 30 delas com toque de recolher e guarda nacional1 acionada (mecanismo utilizado somente durante a 2º guerra mundial). Depois de 11 dias seguidos, manifestantes ainda tomavam as ruas de muitas cidades e a Casa Branca tem sido um local de protestos diários. O clima de tensão diminuiu por alguns motivos, mas as manifestações são cada vez mais numerosas. Em um esforço permanente de combater o vandalismo e também uma mudança de postura das forças policiais no acompanhamento, que passaram a não intervir nas movimentações de forma direta, ao invés disso, policiais à paisana acompanham de longe, inclusive foram filmados episódios de solidariedade entre a polícia e os manifestantes. O impacto dos protestos no governo Trump O comportamento de Trump diante dos acontecimentos acirra ainda mais as relações políticas e causa a indignação de muitos. Em uma de suas declarações no Twitter, repete uma frase da década de 60, sugerindo atirar em manifestantes: “estes BANDIDOS estão desonrando a memória de George Floyd, e eu não deixarei que isso aconteça. Acabei de conversar com o governador Tim Waltz e disse que o Exército está com ele até o fim. Qualquer dificuldade e nós assumiremos o controle, mas quando começam os saques, começam os tiros”. A plataforma Twitter incluiu aviso de exaltação da violência na mensagem. Trump utiliza com rigor a tática da ultradireita em descrever os manifestantes como inimigos da nação. Em episódio inusitado, chegou a solicitar a retirada de manifestantes que estavam no entorno da Casa Branca para tirar uma foto na igreja, com a Bíblia estendida. Embora esse gesto sirva como performance orientada a sua base eleitoral conservadora, não parece estar surtindo efeito. Os manifestantes estão ganhando apoio popular durante os confrontos, aos gritos de “as ruas são nossas”. A tentativa de criminalização dos protestos, a exemplo de outros episódios da luta racial, desta vez teve dura resposta da sociedade americana. Pesquisas mostram que dois terços da população apoiam as manifestações. Algumas vitórias vêm ajudando o movimento a ganhar força e levar mais pessoas as ruas. No dia 4 de junho, o governador da cidade de Nova York suspendeu o toque de recolher. Disse que vai decretar um momento de silêncio em todo o estado, em memória de Floyd. Ele se mostrou preocupado com o avanço da pandemia do novo Coronavírus e pediu para que todas as pessoas que participam dos protestos façam teste para diagnosticar a Covid-19 e, para isso, ele vai aumentar a capacidade de testes em todo o estado. Além de tudo isso, Trump enfrenta dificuldades no próprio governo. Seu secretário de Defesa não concorda com a política de enfrentamento proposta pelo presidente. O chefe do Pentágono, Mark Esper, se distancia e rejeita o envio do Exército para conter protestos, afirmando que “medidas como essa devem ser usadas apenas como último recurso e nas situações mais urgentes e extremas”. É para além das fronteiras dos EUA A pandemia e a crise econômica desoladora que passa os EUA, que perdeu 20,5 milhões de postos de trabalho em abril e registra um índice de desemprego de 14,7%, o mais alto em mais de 70 anos, junto a ausência de respostas do Estado, geram respectivamente conclusões aos negros e os mais pobres, morrer de fome, doente ou pela bala da polícia. A partir da internacionalização dos protestos, como vem acontecendo em Paris e em algumas cidades do Brasil, por exemplo, são sintomas desse mesmo referencial de crise generalizada. Não são manifestações somente antirracistas, mas que também expressam o descontentamento com a maneira que se organiza a economia e a política mundialmente. Houve protesto antirracista, no dia 2, em Paris, na França, com confronto entre manifestantes e a polícia. O ato levou milhares de pessoas às ruas da capital. Outras cidades, como Marselha e Nantes, também tiveram protestos nas ruas. Os manifestantes se reuniram por cerca de duas horas em torno do tribunal de Paris em homenagem a George Floyd e a Adama Traoré, um homem negro francês que morreu sob custódia policial em 2016, segundo relato de seu irmão, suas últimas palavras foram as mesmas de George Floyd: “não consigo respirar”. Os jovens negros que se manifestam em Paris são filhos da imigração e do colonialismo francês, são também os que mais sofrem pela falta de condições e a desigualdade social. Na cidade canadense de Toronto, o protesto contra o racismo também foi em homenagem a Regis Korchinski-Paquet, um homem negro que morreu depois de cair de um prédio durante uma abordagem policial. Em Londres, o protesto pacífico foi no distrito de Peckham, na capital britânica. Os manifestantes gritavam “Justiça por George Floyd” e carregavam faixas e cartazes em sua homenagem. Em Berlim, na Alemanha, milhares de manifestantes se reuniram em frente à embaixada americana e espalharam a frase do movimento Black Lives Matter. No Brasil o efeito foi imediato. Protesto de comunidades e coletivos de favelas no palácio Guanabara no Rio de Janeiro e uma grande manifestação de torcidas organizadas pela democracia no MASP em São Paulo. Manifestações também em Curitiba e outras cidades. A solidariedade internacional ao movimento, a referência identitária do povo negro que se organiza e se manifesta em várias cidades e o descontentamento com a estrutura política e organizativa que mantém as desigualdades, são partes fundamentais da indignação que está em curso e começa a se espalhar pelo mundo. Seus impactos já são visíveis em muitos lugares. O debate sobre o racismo e os questionamentos políticos a procura de respostas aos antigos e novos problemas sociais ganham força nas ruas. A diáspora negra e a omissão de direitos à raça Não há forma responsável de iniciar uma reflexão sobre a importância das vidas negras e a jornada de manifestações que acontecem nos últimos dias nos EUA, sem compreendermos, ainda que brevemente, três elementos fundamentais que contextualizam historicamente a identidade negra em todo o planeta: a diáspora africana, o distintivo racial da negritude e a condição socioeconômica decorrente desse histórico de omissão de direitos. A diáspora africana, ou negra, como também é conhecida, se caracteriza pelo fenômeno de imigração de africanos, durante o tráfico transatlântico de escravizados. Junto com seres humanos, nestes fluxos forçados, embarcavam modos de vida, culturas, práticas religiosas, línguas e formas de organização política que acabaram por influenciar na construção das sociedades às quais os africanos escravizados tiveram como destino. Estima-se que, durante todo período do tráfico negreiro, aproximadamente 11 milhões de africanos foram transportados para as Américas. A condição socioeconômica dos negros nas Américas guarda peculiaridades de acordo com cada país, seu processo de libertação dos escravos e a política posterior aplicada. Nos EUA, por exemplo, como forma de manter a mão de obra e de dar um destino econômico à população negra – liberta, mas não socialmente incluída – foi adotada uma estratégia de criminalização da raça. Isso ocorria tanto por meio da comunicação – exibindo vídeos e propagandas nas quais negros configuravam como animais e estupradores – como no âmbito da justiça, pelo qual eram presos por motivos insignificantes. Uma vez presos, voltavam a servir como trabalhadores sem custo, praticamente voltando a ser escravos. Até hoje, as diferenças são gritantes entre negros e brancos, da condição salarial ao acesso à educação, passando pelos índices de violência. O privilégio branco está diretamente ligado à condição do negro na sociedade capitalista atual. Aquilo que nos identifica racialmente é fundamental para entender como as diferenças sociológicas se manifestam na realidade concreta. Por motivos óbvios, essa distinção pode ser relativizada por uma série de questões e negada por segmentos sociais historicamente privilegiados nessa relação. No entanto, é impossível não considerar que, a cor da pele nos remete imediatamente a alguma conformação identitária. Como disse W.E.B. Du Bois o líder mais importante nos primeiros anos do movimento norte-americano pelos direitos civis, no início do século XX: “mesmo as características físicas incluindo a cor da pele, são resultados diretos, em medida considerável, do ambiente físico e social. Além disso, são indefinidos e fugazes demais”. Baseado nisso, em autobiografia, o autor abandona a definição científica de raça em prol do fato de que ele escreve sobre africanos, e que africanos e afrodescendentes têm o que chama de ancestralidade racial em comum, porque: — é importante notá-lo — “têm uma história em comum, sofreram um mesmo desastre e têm uma única e longa memória de desastre”. Porque a cor, embora pouco significativa em si, é importante — Du Bois afirma — “como distintivo da herança social da escravidão, da disseminação e do insulto dessa experiência.” Um distintivo, uma insígnia, uma marca. Aqui está a ideia de que raça é um significante, em outras palavras, o significado racial da negritude se encontra na memória e na realidade vivida da sua história, dos acontecimentos e seus resultantes no tempo presente. O mesmo distintivo social que liga George Floyd de Minneapolis a João Pedro em São Gonçalo, é a identidade que orienta também todo o povo negro das Américas. A luta por direitos civis nas décadas de 1950 e 1960 O Movimento pelos Direitos Civis é o nome que se dá à luta dos negros norte-americanos por esses direitos, especialmente nas décadas de 1950 e 1960. Nos Estados Unidos, os direitos civis de muitos negros foram negados em sua totalidade por quase cem anos após o fim da escravidão. Revisitar esse período de destaque do movimento Negro dos EUA, é parte da tarefa desafiadora, de compreender a história de luta do povo negro e sua trajetória incansável por igualdade racial. Alguns dos episódios de uma extensa cronologia do Movimento por Direitos Civis nos Estados Unidos nesse período2: 1955 – Rosa Parks lançou a bem-sucedida Campanha de Boicote de ônibus em Montgomery, Alabama. 1961 – Um grupo chamado Congresso da Igualdade Racial organizou uma Viagem de Liberdade, transportando 500 brancos e negros do Norte em ônibus para, simbolicamente, quebrar a segregação no transporte público. A polícia local e brancos racistas responderam com violência brutal. 1963 – Em agosto, CORE, NAACP, SNCC, SCLC e vários sindicatos organizaram a Marcha por Emprego e Liberdade de 200 mil pessoas em Washington em frente ao Memorial a Lincoln. 1964 – O Congresso e o Senado aprovaram a Lei dos Direitos Civis proibindo segregação em educação e serviços públicos. Entre 1964-1969 ocorrem 341 rebeliões urbanas em 265 cidades deixando 221 mortos, em grande parte, negros. No mesmo ano Luther King ganhou o Prêmio Nobel de Paz. 1965 – O Congresso e Senado aprovaram a Lei do Direito de Voto proibindo discriminação no processo eleitoral. Malcolm X foi assassinado em Nova York. O Movimento pela Liberdade em Chicago foi lançado pela SCLC e Luther King para acabar com discriminação em habitação e emprego dos negros nas cidades nortistas. Luther King critica o governo de Lyndon Johnson sobre a guerra no Vietnã. 1966 – O Partido dos Panteras Negras foi fundado na Califórnia e o movimento “Black Power” começa eclipsar o convencional movimento por direitos civis liderado por Luther King. 1968 – Luther King foi assassinado em Memphis. Capítulo importante da História do Movimento negro americano foi a criação do Partido dos Panteras Negras para Autodefesa, conhecido como o Partido dos Panteras Negras, fundado em 1966, por Huey Newton e Bobby Seale que criaram essa organização nacional como forma de combater coletivamente a opressão dos brancos. A violência policial com os negros era recorrente na revista por todo o país. Os Panteras Negras sintetizaram seus objetivos em um programa com 10 pontos que incluíaliberdade, terra, habitação, emprego e educação. Sua contribuição influenciou enormemente as movimentações em vários países do mundo e foi decisiva para a conformação do movimento negro e seu caráter estético, político e cultural até os dias de hoje. O mar da História está agitado A diáspora negra começa a se levantar e está mais viva hoje do que em qualquer dia do passado. George Floyd não está mais entre nós, mas a memória de luta do povo negro encontrou um novo ponto humanitário e simbólico de unidade, que canaliza a indignação social diante de toda essa violência. Este é certamente um novo capítulo da história do movimento negro que pode transbordar as relações sociais e étnicorraciais por mudanças estruturais em todo o globo. São muitos os casos como o de George Floyd pelo mundo, no Brasil o último com visibilidade foi adolescente João Pedro, de 14 anos, que teve sua casa crivada com mais de 70 balas de fuzil na cidade de São Gonçalo, no estado do Rio de Janeiro. O caso Marielle, conhecido mundialmente segue sem justiça há mais de 2 anos. Imagens dos EUA mostram uma palavra de ordem nas ruas das capitais: No Just, no Peace, que em tradução livre significa “Sem Justiça, sem paz”. A luta antirracista precisa ver respostas e, ao que tudo indica, seguirá nas ruas enquanto não as conseguir. Ainda que os poderosos quisessem verdadeiramente ajudar na resolução dos problemas sociais, sobretudo na desigualdade racial, não se trata apenas de uma vontade política, Trump representa a manutenção dos resultados políticos e econômicos, fruto das contradições e da desesperança por uma vida melhor. É a revolta e o ódio organizado por um programa conservador, que em nada se preocupa com negros, latinos ou imigrantes. Mas a dinâmica não para por aí. As instituições têm um limite até mesmo na perspectiva de atender as demandas antirracistas, pois comprometeria a estrutura capitalista do Estado, que se alimenta e mantém essa desigualdade porque lucra com isso. Há um embate inevitável com o comitê gestor do capitalismo e a essência excludente do sistema. Uma chave parece estar virando, ao menos dentro do coração do imperialismo. Abre-se um novo tempo de possibilidades e lutas pelo mundo. O caráter antirracista, combinado a indignação do povo com questionamentos sobre as formas de organização política e econômica começam a tomar conta dos debates cotidianos, ganhando forma e potencial de transformação. Na medida em que a crise econômica se aprofunda, diante de tanta desigualdade potencializada pela situação crítica que passa o mundo, somente a organização do povo poderá arrancar vitórias expressivas e salvar vidas. Há dois caminhos para a rebelião negra norte-americana. Perder força social para os substitucionistas – os que tentam substituir as maiorias por suas supostas vanguardas –, transformando as ruas em um campo de guerra. Isso justificaria a já anunciada política de Donald Trump em fazer um combate aberto, criminalizando os protestos e tratando os manifestantes como bandidos. Esse cenário poderia fortalecer Trump repetindo, guardadas as devidas proporções, o ano de 1969, no qual, após o assassinato de Martin Luther King, foi acionada a Lei de Insurreição – criada em 1807 e que prevê o recurso ao Exército em casos de extrema gravidade e ameaça de ordem pública. Após esse acontecimento histórico, os EUA elegeram Richard Nixon como presidente sob o lema “lei e ordem”. A outra via é apostar na organização do povo e no diálogo com as massas. Ampliar as manifestações de rua, vencer a tentativa de substitucionismo da pauta, combatendo os infiltrados, como vêm fazendo, para atingir maioria social capaz de emparedar o governo. E a partir da construção de um programa de exigências, como deixou de legado o Partido dos Panteras Negras e seus 10 pontos, arrancar reformas estruturais, elevando o nível de consciência, enviando uma mensagem a toda diáspora negra e ao povo explorado e oprimido pelo mundo. 1 A guarda nacional possui 13 mil soldados (Uma força convocada em situações excepcionais) Minnesota foi ativada com a justificativa de conter os “anfifas” infiltrados. 2 http://anphlac.fflch.usp.br/direitos-civis-eua-cronologia (PUblicado originalmente no site Outras Palavras)

Charge! Benett via Folha de São Paulo

quarta-feira, 18 de novembro de 2020

O pacto de morte do racismo

Em entrevista, Cida Bento compartilha reflexões sobre a questão racial e sua produção acadêmica e atuação na sociedade civil Carine Nascimento 12nov2020 06h10 (17nov2020 12h18) articles-zIClOuebFQ52Ibw Na versão mais conhecida do mito grego, Narciso é um rapaz que, ao se banhar em um lago, vê sua imagem refletida na água e se apaixona por ela. Para não abandonar a figura amada, o rapaz passa dias a fio ao lado do lago, definhando sem alimento, até que, em uma tentativa de alcançar a criatura, ele se lança ao lago e morre, afogado. É nessa figura mitológica e no estudo que Freud fez sobre ela que se fundamenta o conceito de “pactos narcísicos no racismo", elaborado por Maria Aparecida Bento, doutora em psicologia e diretora-executiva do Centro de Estudos das Relações de Trabalho e Desigualdades (CEERT). Mais conhecida como Cida Bento, ela fundou essa organização ao lado de Hédio Silva Jr., doutor em direito e advogado das Religiões Afro-brasileiras no Supremo Tribunal Federal (STF), e de Ivair Augusto Alves dos Santos, doutor em sociologia. Ao lado de Robin DiAngelo, pesquisadora estadunidense e autora do livro Não basta não ser racista: sejamos antirracistas (Faro Editorial, 2020), Cida Bento foi uma das participantes da mesa de abertura do encontro Branquitude: racismo e antirracismo, realizado pelo Instituto Ibirapitanga nos dias 26, 27 e 28 de outubro. Durante sua fala, Bento abordou os pactos narcísicos no racismo, conceito desenvolvido em sua tese de doutorado, defendida em 2002. Por ocasião do evento, ela concedeu entrevista à Quatro Cinco Um, na qual explica como esse conceito contribui para compreender a questão racial no Brasil. O que são os pactos narcísicos e como eles operam? O racismo institucional vai se entranhando nas regras e processos, até que estes automaticamente excluam os não brancos, pois quem pensa esses processos são os brancos. Eles são as grandes lideranças de qualquer instituição, seja ela pública, privada, do terceiro setor, revolucionária do movimento sindical ou de empregadores. Os homens brancos são maioria na direção dessas instituições que não são neutras, funcionam a partir da perspectiva de quem as lidera. Então o Judiciário, o Executivo, o Legislativo, é tudo de gente branca; o sujeito pode ser muito racista, ou nada racista, mas a manutenção dos privilégios para assegurar a sua perspectiva de mundo está colocada. Eu sempre digo, branquitude não é transparência, é posicionamento, é visão de mundo - então nas instituições e na sociedade civil se estabelecem regras a partir de uma perspectiva branca. O pacto narcísico é essa perspectiva que favorece, que fortalece, que protege, que assegura privilégios para o branco à medida que reserva os melhores espaços institucionais para ele, independente da intencionalidade. Se uma pessoa branca que faz uma seleção para cargo de direção ou para estagiário, por exemplo, tiver cinco candidatos ao final de um processo, a tendência dela é confiar mais nas pessoas brancas que estão nessa etapa. Ele [o pacto] não é uma coisa instintiva, mas fala de uma grande cumplicidade, que faz com que o branco acredite no outro branco, ache que o outro branco é realmente mais bonito, que aquele cabelo é o que funciona bem dentro de instituições, que aquela pessoa branca vai seguir as regras, vai assegurar que tudo funcione direito. Por isso esta confiabilidade no branco e essa tendência a trazer outros iguais para o seu entorno, para lugares onde a competência, segundo o conceito da instituição, precisa estar assegurada. Então o pacto narcísico é fortalecimento, é proteção, é assegurar lugar de privilégio para os iguais. E nesse conceito de iguais, ele é pacto de morte. Quando você estuda Freud, você tem o narcisismo de morte, porque o que é igual e monolítico não é gerador de vida, de energia criativa, de inventividade, é sempre mais do mesmo. Esse pacto de morte é tipicamente o que estamos vendo na sociedade: um monte de cabeças masculinas brancas pensando tudo, que leva o país a ser um dos que mais tem mortes pela Covid-19, o país que mais mata negros, o país do genocídio da juventude negra, que tem um grande percentual de morte de mulheres e de indígenas. Então, tudo o que não é masculino e branco fica mais fragilizado, porque não tem voz nenhuma. Nosso país é uma árvore torta na qual só um lado define tudo. A partir desta sua análise, é possível dizer que quando a gente mata a juventude negra, mata também a possibilidade de outras soluções para o país? Exatamente. Eu trabalho com o conceito de personalidade autoritária e de medo que está naquele segmento que concebeu apenas um tipo jeito de ser bem-sucedido. Quando eu estou em grandes corporações, entro em espaços em que os homens nem precisam afrouxar a gravata, tão bem climatizado é o escritório em que as janelas não abrem, e você não ouve as pessoas caminhando, tão bem colocado está o carpete; e o conceito de sucesso é passar dias, semanas, meses e anos inteiros naquele ambiente fechado, onde o ar nem chega. Então, esse conceito exige um grande aprisionamento de tudo o que não está morto, de tudo o que tem vida ainda e de tudo o que desvia deste padrão: a sexualidade, a agressividade, a inventividade. Tudo que está em outra dimensão está aprisionado, e quem tem isso preso em si próprio fica muito desconfortável em ver o outro que, mesmo sem nada, andando descalço na favela, está cheio de dúvida, tem um corpo que umedece, que sua e que tem toda a sua vivacidade - aquilo desconforta porque o sujeito prendeu tudo o que ele tinha, tudo o que ele pôde, e a sexualidade dele acaba aparecendo na perversidade ou na repetição de todo dia. Por outro lado, temos aquela mulher, aquele homem, que ainda ama a natureza, que cuida da natureza, que batalha pela preservação, que não acha que tem que matar um monte de gente para ser bem-sucedido, que tem outra perspectiva. Então, o segmento que tem essa visão de buscar “assegurar os bons costumes” — que é da direita, da extrema direita e dos conservadores, na qual as armas são usadas em nome da Bíblia —, fica muito incomodado com a vida que se manifesta em quem não tem esse conceito de desenvolvimento, de sociedade, de sucesso, de mundo. Mulheres negras incomodam, mulheres indígenas incomodam, esses cabelos revoltos, vermelhos, essas roupas coloridas, tudo vai incomodar quem concebeu o mundo bem-sucedido aprisionando tudo que saia desses conformes. Que aproximações você enxerga entre o termo “fragilidade branca”, da Robin DiAngelo, e o conceito de pactos narcísicos? Enxergo muitas aproximações. Como eu disse, trabalho com o conceito de personalidade autoritária, que é um conceito que a partir da psicologia estuda as ideologias políticas, e nele tem uma frase que diz o seguinte: “Mata-se o outro porque o outro representa o que é nosso e que não podemos suportar dentro de nós”, o outro é assassinado porque é insuportável ver aquilo que é nosso, e que está dentro de nós, se explicitar no outro. Então, onde está a fragilidade branca? A fragilidade branca está na dificuldade de entrar em contato com a sua condição humana. Quando você tem a branquitude e o conceito de supremacismo branco, que impede aquele segmento de entrar em contato com a sua fragilidade porque ele prega a supremacia branca, essas pessoas não veem seus pés de barro ou não percebem a sua condição humana. Então é difícil entrar em contato com a sua dúvida, com a sua fraqueza, com a sua sensibilidade, com a sua reflexão sobre o mundo. Tudo isso vira “mimimi”, “vamos ser pragmáticos, buscar dinheiro, tempo é dinheiro”, a fragilidade vem pela dificuldade de entrar em contato com a sua condição humana. O supremacismo faz isso. Ciclo de debates discute o papel e os limites dos brancos na luta contra o racismo A DiAngelo traz essa questão, com a qual eu me deparo frequentemente quando estou com os brancos antirracistas. Neste momento, nós estamos simultaneamente em 25 instituições, eu trabalho frequentemente com pessoas brancas que querem transformar suas instituições em instituições mais plurais e diversas, e não há nenhum passo anterior àquele que é a pessoa reconhecer o diferencial que é ser branco, objetivamente, nas estatísticas, na condição econômica, financeira, no lugar de privilégio, mas também reconhecer o desconforto do branco com o negro, com a negra, com o indígena que ainda está pautado em outros valores, em outro conceito de sociedade, de desenvolvimento, em outra relação com os corpos e com a natureza. A fragilidade branca é o pensamento único sobre tudo e ela é irmã de primeira hora do fascismo; este conceito que está no coração da personalidade autoritária, que é matar tudo aquilo que não é “o que nós somos e para onde queremos levar a nossa sociedade”. Então a pergunta que não cala é: por que homens brancos com mais de cinquenta anos, que são as grandes lideranças das instituições brasileiras, contribuem ativamente para o assassinato da juventude negra, dos indígenas, das mulheres, das mulheres negras, se omitem diante disso? Por exemplo, geralmente quando uma mulher é assassinada é porque o seu ex quer voltar, mas ela não. Porque ela, muitas vezes sem ter nada, sem saber como vai construir sua vida, sem ter recursos, já disse: “eu não vou mais ficar com você”. O homem pensa: “como assim não vai mais ficar comigo?”, e ela responde novamente: “não vou, estou indo embora”. Ele não concebe isso, se pergunta “como assim ela escolheu ser livre, independente, muitas vezes sem ter nada, sem ter segurança?” Então o enfrentamento da condição humana, o reconhecimento de seus desafios, muitas vezes está por trás da fragilidade branca. O CEERT foi fundado em 1990, e você defendeu sua tese de doutorado em 2002. Como a sua atuação no Centro ajudou você na concepção desse trabalho? Ao falar disso é importante lembrar que trinta anos não são pouca coisa. Três lideranças de áreas diferentes, mas vinculadas ao mercado de trabalho, se juntaram no CEERT: eu, que vinha da área de recursos humanos de empresas; Hédio Silva Jr., que era liderança sindical; e Ivair Augusto Alves dos Santos, que vinha da área de políticas públicas. Então esse tripé – movimento sindical, empresa e poder público – é fundamental para pensar o trabalho do Centro. Nós trabalhávamos no Conselho da Comunidade Negra de São Paulo, que foi o primeiro, depois dele vieram centenas pelo país inteiro. Nessa época, eu estava fazendo meu mestrado, estava ouvindo trabalhadores e trabalhadoras negras dentro de instituições para saber como se operacionalizava a discriminação. Depois do mestrado, ouvi chefes e profissionais de RH, mas dentro de um mesmo projeto; primeiro eu ouvi os trabalhadores sobre como era a discriminação no recrutamento, na seleção, na promoção, na demissão, e depois ouvi os brancos, chefes de recursos humanos e chefias intermediárias. A ideia foi construída desse jeito. Os trabalhos do CEERT, que começaram no conselho da comunidade, foram um suporte fundamental para esse conceito, pois quando você vai trabalhar com o movimento sindical, mesmo de esquerda, você está falando com brancos que também têm uma perspectiva que não considera a branquitude. Quando você vai falar com o Estado, você tem uma perspectiva de que as políticas para pobres já contemplam políticas para negros. As empresas tinham um discurso muito embrionário, mas o primeiro encontro que nós três fizemos com elas foi antes da década de 1990; já naquele período, com essas três forças, a gente discutia o perfil da força de trabalho, as diferenças de cargo, de salário, de oportunidade, e tivemos muitas ações de impacto. Denunciar o Brasil em 1992 foi uma ação bem importante, porque a denúncia apresentada pela Central Única dos Trabalhadores (CUT) e preparada por nós, junto com outras centrais sindicais e organizações do movimento negro, deflagrou vários processos. O governo brasileiro, através do Ministério do Trabalho [extinto em 2019], desenvolve uma série de ações para implementar a Convenção 111, por exemplo, que se referia à equidade na ocupação de empregos. Isso vem deste tempo, e foram criados núcleos em vários estados brasileiros, nas delegacias regionais do trabalho, para poder lidar com essa questão da diversidade e da equidade. Além disso, naquela época havia a pressão para se colocar o dado por raça na Relação Anual de Informações Sociais (Rais) e no Cadastro Geral de Empregados e Desempregados (Caged), que são de preenchimento obrigatório pelas empresas, mas nós não tínhamos esse dado. No movimento sindical, esses debates ajudaram a deflagrar a formação de núcleos que trabalhavam com este tema em todo o país, em várias categorias. Nós fizemos a primeira cláusula de promoção da equidade racial assinada nos acordos coletivos de trabalho, depois ela originou outras ações e cláusulas, mas ainda é muito pouco. Em 1996, começou o trabalho dentro das empresas, de fazer diagnóstico com censo de diversidade, fazer o trabalho com as lideranças e com as áreas estratégicas para mudar processos e programas, ou seja, mudar a instituição por dentro, verificar onde ela pode alterar seus processos para ficar mais equitativa. No campo da educação, produzimos muitos programas de formação de professores e lançamos o Prêmio Educar para a Igualdade Racial um ano antes da lei nº 10.639/2003 [que inclui no currículo escolar a obrigatoriedade do ensino de história e cultura afro-brasileira], e dá outras providências. Começamos a coletar práticas pedagógicas e de gestão de professores que trabalhavam a questão racial em sala de aula, que veio perpassando a nossa história; ao longo dos anos, chegamos a coletar mais de 3 mil práticas de 1.100 municípios brasileiros. Durante todo esse processo, fomos aprendendo sobre o lugar diferente de branco, porque quando você está trabalhando em um instituição, seja ela o MEC (Ministério da Educação), seja uma empresa, seja um sindicato, você sempre está falando com lideranças brancas, e elas sempre têm uma maneira de reagir àquilo que você está trazendo. Neste momento, em que há uma demanda pelo debate racial, você acredita que as pessoas estão buscando ser antirracistas sem romper com esse pacto? Algumas sim, não todas. Tem muita gente neste processo, em diferentes graus, em diferentes níveis e em diferentes ritmos. Mas eu acredito nessa mudança, não acho que estamos vivendo um modismo, de jeito nenhum. Trabalhando com grandes instituições há muitos anos, consigo perceber que nelas eu sempre encontro pessoas que não querem trabalhar esse tema, mas também encontro pessoas brancas que querem sim, só que muitas vezes ainda não se veem preparadas nem para reconhecer o seu privilégio. Por isso, acho que o trabalho institucional não é essa coisa de fazer um diagnóstico, uma palestra, um curso na melhor instituição do país sobre racismo, não se trata disso. Ajuda, mas o que você precisa fazer é exercitar com a pessoa, no espaço em que ela está, pensar uma atitude antirracista. É exercício dela, porque ela precisa se deparar com seus próprios conceitos de que aquilo que ela vive não é só resultado de mérito próprio, há uma história que faz homens brancos serem as principais lideranças das instituições brasileiras. A filósofa Djamila Ribeiro aponta caminhos construtivos para uma sociedade menos desigual Então, esse repensar “claro que eu tive mérito, eu lutei, eu estudava até de madrugada, para conseguir entrar na melhor universidade do país”… Bom, mas muitas vezes uma mulher ou um jovem negro, que também ficou estudando até de madrugada, não conseguiu aquele melhor emprego. Existe algo além do mérito, existe uma história que jogou cada grupo em seu lugar. O grande desafio é trazer o branco para dentro da história, porque ele foi pensado para “ver se dá uma forcinha para essa negrada, faminta, empobrecida”, como se ele não fizesse parte dessa história. Sempre digo que tudo começou para mim quando eu estava com o movimento sindical e as lideranças revolucionárias falavam: “A situação dos trabalhadores e trabalhadoras negras é uma decorrência da escravidão”, e a pergunta era “Qual é decorrência para os brancos? qual é a sua herança da escravidão?”. A resposta que recebíamos era: “Eu não fui escravocrata”. Bem, eu dizia que também não fui escravizada, mas que herança o meu segmento traz disso e o seu segmento traz disso? É preciso colocar o branco na história. Falamos muito do legado da escravatura para os negros. Existe um legado da escravatura para os brancos? A condição de superioridade, que está liderando todas as organizações brasileiras, públicas e privadas. Ter tido mais acesso à terra, ao trabalho, ao acolhimento, se pensarmos nos imigrantes – que, embora trabalhassem, tiveram um tipo de recepção pelo país que foi um empurrãozinho da meritocracia. Assim como a condição dos negros hoje tem a ver não só com o racismo de hoje, mas com a história do país, a situação do branco hoje tem a ver não só com o que ele é hoje, mas também com o que seus antepassados brancos vivenciaram e acumularam simbólica e concretamente. É sempre importante lembrar que o pacto narcísico é um instrumento de dominação, porque às vezes as pessoas pensam que ele se refere “a um monte de grupo de iguais”, como as mulheres negras, por exemplo, como se fosse algo relacionado a um pacto de igualdade. No entanto, o pacto narcísico diz respeito a quem tem um mundo construído para si, que atende a si próprio e que perpetua seu segmento numa condição de dominação. Por isso ele tem similaridades com a masculinidade, com a cisgeneridade, porque a sociedade funciona como se só existissem esses segmentos e os demais têm de ficar pressionando para serem considerados parte da sociedade; eles são parte, mas tudo caminha como se apenas os segmentos-padrão fossem os segmentos sociais. Vejamos como exemplo uma pessoa com deficiência, pense em um cadeirante. Imagine que eu estou num ônibus, ele para — e eu estava com pressa —, o motorista desce, opera o elevador, sobe com o cadeirante, vai até o espaço adequado, coloca o cinto de segurança nesse cadeirante e só depois ele volta a dirigir. Quem estava ali com pressa sabia que isso era possível, mas quem está numa sociedade onde a pessoa com deficiência não tem lugar, pensa “Nossa! Que demora, para que isso?”. Isto acontece porque a pessoa está acostumada com um mundo que funciona só para ela, é esse o conceito da branquitude e da masculinidade neste lugar em que o mundo funciona para atendê-los, porque eles estão na liderança e constroem tudo desse jeito. Por que você faz essa leitura de que o que estamos testemunhando não é um modismo? Porque não vem de agora e porque, com todos os desafios que estão colocados, esse movimento vem de muita luta, em uma conquista consistente; nós temos que mudar o país e não o estamos mudando apenas para nós, mas para toda a sociedade, tornando-o mais democrático. Quando vem esse tipo de debate, sobre como as instituições são bolhas brancas em um país tão diverso, podemos entender que a gente está dando passos muito concretos e esses debates não param. Além disso, há uma reação branca que não para de crescer, porque eles estão desesperados que nós estamos explicitando a apropriação e a dominação que eles praticaram por mais de quinhentos anos. Isso não quer dizer que todo branco é dominador, mas todos os dominadores foram ou são brancos. [Achille] Mbembe e [Frantz] Fanon já falavam que os brancos têm consciência da expropriação que foi feita com os negros, então quando a voz negra cresce, começa a apontar e a estar nos mesmos lugares, há um sentimento de ameaça muito grande, que eles respondem armando mais a polícia e resistindo à entrada negra nas instituições, de todas as formas possíveis. Você acha que essa onda conservadora que estamos vivenciando tem relação com isso? Tem. Ao mesmo tempo, crescem as vozes brancas em todo o país que buscam se juntar às vozes negras para enfrentar a mudança que a sociedade brasileira precisa fazer. Então, não significa que tivemos uma sensibilizada geral repentina, isso é reflexo da ação do movimento negro de muito tempo, é uma impaciência que está na voz das mulheres negras, da juventude negra, das pessoas que têm uma longa trajetória no movimento. Está todo mundo muito impaciente, todos se perguntam: “Quando é que vocês vão se mexer? Até quando vamos ficar nessa situação?” Cresce também o número de instituições que se sentem desconfortáveis em serem hegemonicamente brancas. Assim, eu não tenho dúvidas que isso veio para ficar. Existe um debate e uma tensão que não vão voltar atrás agora, para que os brancos fiquem todos sossegados e os pretos esqueçam tudo, isso não existe; podemos vivenciar momentos de mais tensão, momentos de recuo, mas o processo está em andamento, e eu vejo isso em muitas instituições por onde passo. Há um tensionamento, uma discordância, mas elas não param de caminhar. (Publicado originalmente no site da Quatro Cinco Um, a revista dos livros)

No terreiro da Bodega - Conversa com Dona Lia

O que diz o maior estudo sobre imunidade à Covid-19

O que diz o maior estudo sobre imunidade à covid 90% dos que contraíram o vírus parecem desenvolver defesa duradoura contra reinfecção. E mais: governo não tem planos contra segunda onda, reafirma o ministério da Economia. Alastra-se, na Polônia, revolta contra fundamentalismo OUTRASAÚDE NEWSLETTER DO DIA por Maíra Mathias e Raquel Torres Publicado 18/11/2020 às 08:13 - Atualizado 18/11/2020 às 10:36 Células T atacam uma célula infectada. Parte importante da defesa imunológica humana, as células T parecem perdurar em grande número, nos pacientes infectados pela covid ASSINE DE GRAÇA Esta é a edição do dia 18 de novembro da nossa newsletter diária: um resumo interpretado das principais notícias sobre saúde do dia. Para recebê-la toda manhã em seu e-mail, é só clicar aqui. O ESTUDO MAIS ABRANGENTE Quanto tempo dura a imunidade ao novo coronavírus? Ninguém sabe ao certo, mas um estudo publicado online ontem é, segundo o New York Times, o mais abrangente e de longo alcance já feito a esse respeito. Traz boas perspectivas: oito meses após a infecção, a maior parte das pessoas ainda parece ter células imunológicas suficientes para responder ao vírus e se proteger da covid-19. Mesmo que o nível de anticorpos caia um pouco, como tem sido relatado em várias pesquisas. Foram analisadas 185 pessoas de 19 a 81 anos que tiveram covid-19 (a maioria com sintomas leves), e os cientistas procuraram ao mesmo tempo por quatro componentes do sistema imunológico: anticorpos, células B (que produzem mais anticorpos quando necessário), e ainda dois tipos de células T, que destroem células infectadas. Viram que normalmente havia reduções modestas nos anticorpos após seis a oito meses (e essa queda foi muito heterogênea, variando até 200 vezes entre os participantes), enquanto as células T mostraram uma queda muito leve e lenta. A surpresa ficou por conta das células B, que aumentaram em número. Os pesquisadores ainda não sabem o porquê. Essas informações ainda não são suficientes para prever a duração da imunidade, porque não se conhecem os níveis de cada célula imunológica necessários para garantir a proteção. Mas sua duração em níveis altos é uma boa coisa, e essa memória imunológica “provavelmente impediria a maioria das pessoas de contrair doenças hospitalizáveis, doenças graves, por muitos anos”, segundo disse o co-líder do estudo Shane Crotty, virologista do Instituto de Imunologia La Jolla, ao NYT. Os olhos brilham quando o vemos falar em “muitos anos”, mas é preciso atentar também para a expressão “maioria das pessoas”. Isso porque cerca de 10% dos participantes do estudo não apresentaram uma proteção tão robusta. Segundo Crotty, isso levou à conclusão de que “pelo menos uma fração da população infectada com SARS-CoV-2 com memória imunológica particularmente baixa seja suscetível à infecção de forma relativamente rápida”. Precisamos também acrescentar que em nenhum momento o estudo aponta para a viabilidade de se pensar em imunidade coletiva por via das infecções. Não custa repetir: no caso da covid-19, deixar a população se infectar a esse ponto significa aceitar mortes em massa. O trabalho ainda não foi revisado por pares, mas “bate” com evidências de outros estudos recentes (por exemplo este, este e este). Já comentamos alguns deles por aqui, como o que mostra que sobreviventes de SARS ainda carregam células T mesmo 17 anos depois da infecção. Ao mesmo tempo, é consistente com os poucos casos de reinfecção já relatados. CONTRA TODAS AS EVIDÊNCIAS Na semana passada falamos de como os técnicos do Ministério da Economia rechaçam a possibilidade de a pandemia recrudescer no Brasil porque acreditam que vários estados já alcançaram a imunidade “de rebanho”. A aposta é um tanto frágil, porque se baseia em estudos que mostram 20% de infecções em certos estados – um percentual alto o suficiente para provocar muitas mortes e crise nos sistemas de saúde, mas baixo para garantir imunidade coletiva. Mas a pasta não tem nenhuma reserva em reconhecer publicamente esse palpite mais do que duvidoso: “Vários estados já atingiram ou estão próximos de atingir imunidade de rebanho. Acho baixíssima a probabilidade de segunda onda“, disse o secretário de Política Econômica do ministério, Adolfo Sachsida. A Folha obteve o tal estudo no qual eles se baseiam. É um um artigo publicado por três integrantes da Secretaria de Política Econômica pela UFPel que trata da subnotificação de casos de covid-19 no Brasil, e estima que a taxa de infectados pode variar de 5,8% no Rio Grande do Sul a 30% em Roraima. Questionado sobre se haveria um plano a ser adotado em caso de nova onda, Sachsida se absteve de responder porque se trata de uma pergunta “hipotética”… É verdade que alguns pesquisadores já chegaram a aventar a possibilidade de uma proteção coletiva com um percentual relativamente baixo de infecções, mas isso nunca foi consenso. E agora a tese parece ter caído por terra, com locais que já foram atingidos em cheio pelo coronavírus e começam a se ver em maus lençóis de novo. No Brasil, o maior exemplo disso é o Amazonas, que já precisou reabrir leitos de UTI depois do aumento recente nas hospitalizações e mortes. Lá fora, a Suécia teve um crescimento de sete vezes nas internações em relação a outubro e suas UTIs estão 70% cheias. Destacamos ontem como o governo, que sempre se baseou só em recomendações de distanciamento e não em imposições, colocou regras mais rígidas pela primeira vez, proibindo reuniões públicas com mais de oito pessoas. “Não vão à academia, não vão à biblioteca, não organizem jantares. Cancelem“, implorou à população o primeiro-ministro Stefan Lofven. RAMPA DE INCERTEZAS O Brasil registrou ontem 676 mortes em 24 horas – os números nos últimos dias têm sido muito superiores aos que vinham sendo observados antes, mas é difícil dizer o quanto disso ainda se deve ao apagão de dados que gerou o represamento dos registros em alguns estados. A média de mortes dos últimos sete dias ficou em 557, utrapassando as 500 pela primeira vez no mês. É um aumento de 52% em relação a 14 dias atrás. O aumento pode ser porque o apagão baixou a média nas duas últimas semanas e, depois que ele acabou, concentrou registros nos últimos dias. Da mesma forma, se os números diminuírem em breve, não saberemos se houve redução real ou só o fim dos registros atrasados. Em várias cidades e estados, porém, a piora é visível. Já mencionamos o Amazonas, onde o número de hospitalizações por dia dobrou de outubro para novembro. Em Santa Catarina, os principais hospitais públicos e privados de Florianópolis estão com 90% de suas UTIs cheias. No Paraná, Curitiba está perto do seu recorde diário de casos e a prefeitura suspendeu cirurgias eletivas por tempo indeterminado. ATAQUE À OMS Jair Bolsonaro parece querer seguir adiante com o bastão de Trump, disseminando dúvidas sobre a atuação da Organização Mundial da Saúde, enquanto enaltece a sua própria. “Desde o início também critiquei a politização do vírus e o pretenso monopólio do conhecimento por parte da OMS, Organização Mundial da Saúde, que necessita urgentemente sim de reformas“, declarou ontem durante a cúpula do Brics. “Temos que reconhecer a realidade de que não foram os organismos internacionais que superaram desafios, mas sim a coordenação entre os nossos países”, disse o presidente da segunda nação com mais mortes por covid-19 do planeta que, dentre tantas declarações, recentemente afirmou que “tudo agora é pandemia” e o Brasil “tem que deixar de ser um país de maricas”… SEM MARCO INICIAL O G1 fez um bom trabalho de compilação sobre o que se sabe – e o que se especula – sobre o início de transmissão do novo coronavírus. Isso porque ontem, 17 de novembro, pode ter sido o dia em que o governo chinês identificou o primeiro paciente com covid-19 na província de Hubei. A informação foi divulgada ainda em março pelo South China Morning Post. Baseado em Hong Kong, o jornal diz ter tido acesso a documentos oficiais que relatam o caso de um homem de 55 anos. A China nunca confirmou a história. A linha do tempo da pandemia feita pela OMS começa no dia 31 de dezembro, quando a organização foi informada pelo país sobre um surto de casos de uma misteriosa pneumonia em Wuhan. Coincidentemente foi nesse mesmo dia que o médico Li Wenliang enviou uma mensagem pelo WeChat a um grupo de colegas alertando-os sobre a possibilidade de circulação de um vírus da família do causador da SARS. A mensagem de Wenliang foi rastreada pelo governo e ele teve de ir à polícia assinar um termo se comprometendo a não “espalhar rumores”. Ele se tornou uma espécie de herói nacional depois da confirmação da existência do novo coronavírus, especialmente porque ele próprio se infectou em janeiro atendendo pacientes e acabou morrendo em fevereiro, aos 34 anos. Perguntado pelo New York Times se faria diferença para a proteção dos profissionais de saúde o governo ter divulgado as suspeitas sobre a circulação do patógeno antes, ele respondeu: “Acho que teria sido muito melhor. Deve haver mais abertura e transparência”. Na China, a cronologia oficial indica como 29 de dezembro o dia em que foram reportados os quatro primeiros casos da doença, todos ligados ao mercado de animais da cidade. Mas pesquisadores franceses observaram que estudos filogenéticos feitos por cientistas chineses poderiam indicar que o vírus circulava em estado de latência desde outubro – mês em que Wuhan sediou os Jogos Mundiais Militares. Atletas franceses que participaram do torneio divulgaram em maio que tiveram sintomas parecidos com os da covid-19 depois da realização dos Jogos. Ainda há muito mistério rondando o início das transmissões, principalmente depois que estudos indicaram que o vírus poderia estar circulando em outros países antes de dezembro – caso do Brasil, onde partículas do patógeno foram encontradas em amostras de esgoto colhidas em Florianópolis em novembro do ano passado. UM MÊS DE PROTESTOS Há quase um mês, depois que uma decisão do Tribunal Constitucional da Polônia restringiu ainda mais o acesso ao aborto no país, milhares de pessoas foram às ruas protestar. A questão era séria, porque eliminava a possibilidade de interrupção legal da gravidez em caso de má-formação grave do feto – e essa é a justificativa da maioria esmagadora dos abortos legais por lá. Mas os protestos não foram pontuais. Eles continuam acontecendo até hoje, levando às ruas centenas de milhares de pessoas em mais de 500 cidades e vilas. Não são apenas mulheres, mas gente comum de toda parte. E o escopo foi ampliado: agora, ao que parece, o objetivo é derrubar nada menos que o governo do Partido Lei e Justiça (PiS), que comanda a nação desde 2015. Várias ativistas estão chamando a onda de protestos de “revolução”, por conta da magnitude das demandas. Organizadoras dos atos fizeram pesquisas para ver os tópicos de maior preocupação entre os manifestantes e chegaram a temas como separação entre Estado e Igreja, educação, saúde e mudanças climáticas. É tudo isso que está em pauta. A longa reportagem da New Yorker conta como a revolta ganhou tanta magnitude. O texto trata da construção dos últimos atos, ao mesmo tempo em que explica as reviravoltas do passado recente da Polônia, com polarização política exacerbada e o crescimento do PiS – as medidas do partido de extrema-direita, no fim das contas, parecem ter gerado um caldeirão pronto para derramar. A luta pela manutenção dos direitos em relação ao aborto, aliás, não é recente. Em 2016, também foi preciso ir às ruas quando o governo queria a proibição total. “A Polônia se tornou um importante ator no movimento internacional pelos chamados valores tradicionais e contra o que o movimento e o governo polonês chamam de ‘ideologia de gênero’, um termo genérico para ameaças percebidas à família tradicional, que incluem direitos reprodutivos, estudos de gênero e direitos LGBTQ. Nos últimos anos, cerca de cem municípios poloneses se declararam’zonas livres de LGBT’ ou, mais burocraticamente, ‘zonas livres de ideologia LGBT’, uma referência à crença de que direitos iguais para pessoas LGBTQ equivalem a doutrinação, particularmente de crianças pequenas”, escreve o jornalista Masha Gessen. A parlamentar Magdalena Biejat explica que “a principal forma de existência do partido no poder na cena política é criar conflito”, e que “eles sempre precisam encontrar um inimigo, alguém que possam excluir da comunidade nacional”. Qualquer semelhança com o Brasil não é mera coincidência… Por lá, organizadores acreditam que uma repressão forte da polícia é mais provável do que a derrubada do governo. Mas “nada será como antes”, acredita Marta Lempart, uma delas. MAIS UMA CHANCE E o presidente da Argentina, Alberto Fernández, cumpriu ontem uma promessa de campanha ao enviar ao Congresso um projeto de legalização do aborto . A proposta deve ser votada pelos deputados ainda este ano e, pelos senadores, no início do ano que vem. Em 2018, o país quase chegou lá: depois de a Câmara aprovar um projeto que garantia o direito irrestrito ao aborto nas 14 primeiras semanas de gestação, ele foi derrotado no Senado, numa votação apertadíssima. Os principais pontos da nova proposta estão reunidos aqui. AMAZON VENDERÁ MEDICAMENTOS Ontem Jeff Bezos deu mais um passo em direção à meta de que a Amazon seja uma “loja de tudo”. A companhia anunciou sua entrada direta no lucrativo ramo das farmácias. Começa já essa semana a venda online de medicamentos em 45 estados dos EUA. Serão comercializados apenas remédios com receita – com exceção daqueles que são definidos como de alto risco de abuso, como opioides. E é claro que a Amazon Pharmacy vai capturar dados. Para acessar, os clientes precisam preencher um perfil com opções que vão das informações do seguro de saúde às alergias. Quem é assinante Prime vai ganhar descontos. E, neste primeiro momento, a Amazon parece querer arrasar a concorrência com a promessa de preços 80% menores em medicamentos genéricos e 40% nos de marca. As medicações podem chegar em até dois dias nas casas desses consumidores, sem taxa de frete. Lembramos que não é a primeira notícia que damos por aqui envolvendo a Amazon e farmácias. A empresa de tecnologia comprou em junho de 2018 a farmácia online PillPack, por US$ 1 bilhão exatamente com o objetivo de entrar no mercado de medicamentos por prescrição, avaliado então em US$ 450 bilhões. Tampouco é a primeira notícia envolvendo a gigante do varejo e a saúde. Amazon, JPMorgan e Berkshire Hathaway anunciaram, também em 2018, a criação de uma empresa chamada Haven com o objetivo de proverem, elas mesmas, assistência médica para seus mais de 1,2 milhão de empregados. Mas a Haven também teria outra pretensão: mudar a forma como os trabalhadores usam os serviços de saúde. Como? A partir de algoritmos capazes de fazer análises de dados dos trabalhadores. Mas não se sabe muita coisa sobre como anda o empreendimento. MOVIMENTOS DE MERCADO Na segunda-feira, a Rede D’Or lançou sua oferta pública de ações. E a companhia, que opera a maior rede independente de hospitais privados do país, pode entrar para a história da Bolsa de Valores brasileira. Isso porque a faixa de preço estabelecida por ação vai de R$ 48,91 a R$ 64,35. Se a demanda foi alta, o IPO da Rede D´Or será o maior desde a estreia do Santander. O banco captou R$ 13,2 bilhões em 2009. A empresa de hospitais pode movimentar até R$ 12,6 bilhões, considerando o valor máximo por papel. O caixa levantado com a oferta será usado para arcar com os custos de construção de novos hospitais ou expansão das 45 unidades existentes. O grupo D´Or fechou o ano passado com lucro líquido de R$ 1,2 bilhão. E esse não foi o único movimento no mercado da saúde privada. A Qualicorp, empresa que atua no ramo da administração de benefícios – ou seja, intermedia a relação entre operadoras de planos de saúde e clientes, anunciou a compra de 75% da Plural e da Oxcorp por R$ 202,5 milhões. A companhia, que já era a maior do gênero no Brasil com 2,3 milhões de beneficiários. Com o negócio – que ainda precisa ser aprovado pela ANS – adicionou a sua carteira 96 mil usuários de planos por adesão, ligados a 21 operadoras, incluindo 11 Unimeds. André Pimentel, sócio da Performa Partners, analisou a aquisição da Plural em entrevista ao Globo: “Ambas as empresas focam planos coletivos por adesão, que não são tão afetados pelas demissões quanto os planos empresariais, que hoje representam a maior parte do mercado de saúde suplementar. Os planos coletivos por adesão são uma alternativa a quem não tem vínculo empregatício diante do reduzido número de planos individuais e também por oferecer preços mais baixos. A vantagem desses planos coletivos por adesão é que eles sofrem muito menos redução do número de beneficiários por aumento do desemprego ou pelo menos demoram mais a ter impacto. Nesse momento de pandemia e crise econômica, uma aquisição como essa diminui o risco de redução de beneficiários que são administrados pela Qualicorp”. Na segunda-feira, a empresa havia informado que seu lucro líquido foi de R$ 130,9 milhões no terceiro trimestre do ano, um aumento de 18% em relação ao mesmo período do ano passado. Entre janeiro e setembro, o montante chegou a R$ 326 milhões – um avanço de 4,5% em relação a 2019. O bom resultado se deve principalmente à queda das despesas operacionais durante a pandemia (-7,4%), já que os clientes de planos de saúde usaram menos os serviços com o adiamento de cirurgias eletivas, exames e consultas. SEM RESPOSTAS Como virou praxe, mais uma vez a lei de acesso à informação foi usada para obter dados que não têm motivo algum para serem escondidos do público. Desta vez, O Globo obteve o relatório final da Marinha sobre o vazamento de óleo na costa brasileira. Assinado em 9 de outubro pelo almirante Marcelo Francisco Campos, o documento não aponta a origem do vazamento. Mas faz um balanço quantitativo do desastre, dando conta de que foram coletados cinco mil toneladas de resíduos e encontrados 159 animais oleados, sendo 112 mortos. O governo federal gastou R$ 187,6 milhões com a contenção dos resíduos e envolveu 16,8 mil servidores públicos, a maioria militares. O óleo chegou ao litoral paraibano em 30 de agosto de 2019 e foi se espalhando nos meses seguintes até alcançar o estado do Rio de Janeiro. (Publicado originalmente no site Outras Palavras)

Charge! Folha de São Paulo

Editorial: O compromisso com a democracia acima de tudo.

Uma grande raposa da política pernambucana ensinava que política era a arte do possível. Exímio articulador, segundo pessoas mais próximas, sacrificava até mesmo a vida pessoal para manter-se ao telefone, costurando alianças, negociando apoios, indicando nomes de sua confiança para ocupar postos na administração pública. Por essa lógica eu seria um péssimo político, por guardar princípios identitários que jamais nos permitiram tamanha flexibilidade em busca do poder ou alguma vantagem pessoal. Ainda ontem comentamos por aqui que princípios são inegociáveis, assim como a plataforma política do partido ou candidato. Chegar ao poder abdicando desses princípios ou comprometendo a linha programática da agremiação ou do candidato seria um suicídio político. Com o Partido dos Tabalhadores ocorreu um pouco isso, ao aliar-se com setores atrasados da nossa elite, impedindo a materialização de reformas importantes, como a reforma política, agrária, tributária, dos meios de comunicação. Em setores estratégicos, o partido ficou paralisado, exceto nas politicas públicas de corte inclusivo, na distribuição de renda e no atendimento de demandas repremidas de minorias de gênenro, raça e sexuais. Nos últimos quinhentos anos, o único indicador da raça negra que avançou foi o da inserção de jovens negros no ensino superior. Isso graças a política de cotas. Por isso reafirmo aqui que o PT deu uma enorme contribuição para a nossa democracia substantiva, a despeito dos inúmeros equívocos no campo político. Quando a nossa elite torpe, entreguista e asquerosa se cansou dessas concessões ao andar de baixo, retomou o poder, de onde, na realidade, para ser mais preciso, nunca saiu. Essa preocupação vem a respeito do leque de alianças que está sendo montado no Recife em torno da candidata Marília Arraes(PT), que disputa, no segundo turno, com o candidato do PSB, João Campos, a Prefeitura da Cidade do Recife. Marília, que aliás, tem o DNA de um outro grande político pernambucano, o ex-governador Miguel Arraes. Quando dos estudos universitários, conversei com diversos políticos pernambucanos acerca da política de alianças do ex-governador. Por mais hábil que ele fosse nessas costuras aliancista - como a estratégia de cindir os redutos conservadores da elite estadual, principalmente a aristocracia açucareira, que ele passou a conhecer tão bem como presidente do IAA - jamais negociou as políticas sociais que sempre o caracterizou, inclusive celebrando acordos importantes no campo, juntando capital e trabalho. Um exemplo disto é que a FETAPE sempre foi uma aliada incondicional do Dr. Miguel Arraes. Um outro fato observado pelo atual vice-prefeito, Luciano Siqueira, é que, apesar desses apoios de setores conservadores, Arraes nunca abandonou os comunistas. De fato, justamente naqueles tempos de comunistas autênticos, Arraes sempre esteve com eles, permitindo que eles participassem dos seus governos. Apesar da inegável simpatia por sua candidatura, passei a ter dúvidas se Marília foi uma boa aluna do professor Arraes. Ontem, inclusive, afirmávamos ser improvável que os eleitores da delegada Patrícia(Podemos) e de Mendonça Filho(DEM) estejam disposto a votarem numa candidata do PT. Insufladas por inúmeras campanhas depreciativas, essa turma passou a nutrir uma espécie de ojeriza ao PT. Mesmo que seus dirigentes acenem para uma composição - caso já definido pelo Podemos - é muito pouco provável que seus filiados e simpatizantes sigam a orientação dos seus dirigentes. Muitos criticaram a postura de Mendonça Filho neste segundo turno, mas ela é, no mínimo coerente. Ele não teria motivos para pedir aos seus eleitores que votassem no PSB, tampouco no PT, que ele até se orgulhava, durante a campanha, de ter ajudado a tirar do poder. No intervalo entre o primeiro e o segundo turno, certamente, não tempo suficiente para costuras de alianças bem amadurecidas, onde as cartas sejam devidamente apresentadas. Dizer que estará com Marília porque o PSB já deu o que tinha que dar é muito pouco. Esse momento político que estamos vivendo é crucial para o futuro da democracia no país. Embora a eleição seja municipal, convém não negligenciar as questãos da macro política que estão em jogo neste momento. Quem não tem compromisso com a democracia não pode integrar um jogo democrático. Tenho dúvidas sobre se Marília está atenta a essas questões.

terça-feira, 17 de novembro de 2020

O cinema revolucionário de Fernando Solanas

O cinema revolucionário de Fernando Solanas (I) Morto por covid há dez dias, cineasta filmou uma Argentina e uma América em luta contra a persistente colonização. E esta mesma busca refletiu-se em sua estética rebelde, intensamente criativa, desejosa de romper os padrões eurocentristas OUTRASMÍDIAS POÉTICAS por A Terra é Redonda Publicado 17/11/2020 às 10:26 Por Luciano Monteagudo, no Página12, traduzido em A Terra é Redonda É impossível pensar no cinema argentino do último meio século sem a presença de Fernando “Pino” Solanas, que faleceu na madrugada de 7 de novembro em Paris após várias semanas de internação depois ter contraído o coronavírus. Sua figura foi determinante em todos os campos do cinema argentino: documentário e ficção, teoria e prática, direção e produção. Premiado nos grandes festivais internacionais – Berlim, Cannes, Veneza –, Solanas nunca fez, contudo, um filme que não estivesse relacionado com o país ao qual também dedicou seus conhecimentos, energia e compromisso como militante e dirigente político. Se tivesse que definir numa só palavra o tema essencial de seu trabalho como cineasta, essa palavra seria “Argentina”. O país como um todo – com suas lutas e contradições, riquezas e misérias, trabalhadores e intelectuais – foi sua paixão e obsessão, do primeiro ao último filme, de La hora de los hornos (1968) até Tres en la deriva del caos (2020), ainda inédito devido à pandemia. Neste enorme arco, que vai de um extremo ao outro de sua filmografia, em que prevaleceram o filme-ensaio e o documentário, houve também grandes marcos no campo da ficção, como Tangos – El exilio de Gardel (1985) e Sur (1988), dois filmes cruciais do primeiro período da recuperação democrática, que deram conta respectivamente das experiências de exílio estrangeiro e interno que viveu o povo argentino sob a ditadura civil-militar. Estes dois filmes fora do comum também abriram caminhos impensáveis para o cinema nacional, até então prisioneiro – com raras exceções – de um costumbrismo ao qual Solanas sempre deu as costas para arriscar novos experimentos estéticos, com os quais ele foi criando uma poética própria, única. Nascido em Olivos, na Província de Buenos Aires, em 16 de fevereiro de 1936, numa família de classe média simpatizante da União Cívica Radical, Solanas fez algumas disciplinas nos cursos de Direito e Letras, mas seus primeiros estudos decisivos foram piano e composição musical, antes de se formar no Conservatório Nacional de Arte Dramática, em 1962. Essa experiência seria determinante em sua obra cinematográfica porque confirmou em Solanas a noção de encenação como a arte da convenção, uma abordagem metafórica da matéria representativa. Nesse tempo, Solanas frequentava o que ele considerava ser “na prática, minha pequena universidade”: os círculos intelectuais que se agitavam em torno dos escritores Gerardo Pissarello e Enrique Wernicke, locais de encontro que reuniam os jovens núcleos culturais da esquerda independente da época e onde eram discutidos os textos de Leopoldo Marechal, Raúl Scalabrini Ortiz e Arturo Jauretche. Nessa época, Solanas animou-se a tentar a sorte com dois curtas-metragens, a ficção Seguir andando (1962), que participou do Festival de San Sebastián, e Reflexión ciudadana (1963), uma crônica irônica da posse presidencial de Arturo Illia, com textos de Wernicke. Mas também tinha que ganhar a vida e Pino fez um anúncio para um creme bronzeador que fez tanto sucesso que nos três anos seguintes fez por volta de 400 curtas publicitários. Esse exercício intenso permitiu-lhe uma formação em todas as áreas do cinema (fotografia, montagem, som, música) e que juntasse dinheiro para fazer o que se tornaria um dos filmes mais influentes na história do cinema latino-americano: La hora de los hornos. Desde 1963, quando conheceu Octavio Getino (“Um daqueles encontros que deixam uma marca na vida de um homem e o estimulam a criar e experimentar”, Pino dixit), Solanas vinha recolhendo reportagens e documentários sobre a Argentina com a ideia embrionária de fazer um filme que abordasse o problema da identidade do país, de seu passado histórico e de seu futuro político. Em junho de 1966, quando Solanas e Getino começaram a fazer o filme que se tornaria La hora de los hornos, o golpe militar de Juan Carlos Onganía derruba o governo civil de Illia e antecipam-se, assim, as eleições de 1967, nas quais se presumia que o peronismo, há muito proscrito, sairia vencedor. O filme então é filmado em condições clandestinas, não apenas fora das estruturas convencionais de produção, mas também dos controles policiais da ditadura. Na origem de La hora de los hornos, havia um orçamento inalienável, que respondia menos a motivações estéticas do que ideológicas, mas que inevitavelmente se manifestaria de modo decisivo na forma do filme. Se La hora de los hornos pretendia ser uma obra que apresentasse a tese da libertação como única alternativa frente à dependência (política, cultural, econômica), então o filme deveria renunciar aos modelos cinematográficos estabelecidos pelo sistema dominante. Sem ter desenvolvido ainda a teoria do “Terceiro Cinema”, que seria posterior à filmagem de La hora de los hornos, Solanas e Getino já tinham claro que aspiravam a fazer um cinema que tendesse à libertação total do espectador, entendida como seu primeiro e maior ato de cultura: a revolução, a tomada do poder. E, para isso, o filme teria que romper com a dependência estrutural e linguística que o cinema latino-americano tinha em relação ao cinema estadunidense e europeu. O filme teria que surgir de uma necessidade própria, latino-americana. “Temos que descobrir, temos que inventar…” era um lema do ideólogo da libertação Frantz Fanon que La hora de los hornos sempre teve como emblema e que pôs em prática como nenhum outro filme latino-americano tinha feito até então, exceto os de Glauber Rocha no Brasil, em quem Solanas reconhecia um companheiro de viagem. Com estreia no Festival de Pesaro, em junho de 1968, La hora de los hornos não apenas ganhou o prémio máximo, tornou-se também um acontecimento político e cultural. Não tinha passado sequer um mês das revoltas do “maio francês”, e a chama de Paris estava apenas começando a espalhar-se por toda a Europa. Neste contexto, o aparecimento de um filme latino-americano como La hora de los hornos, que era um chamado declarado à revolução e concluía sua primeira parte com um plano fixo e continuado do rosto imóvel de Che Guevara (cujo fuzilamento não fazia um ano), causou uma verdadeira comoção no campo do cinema, que nesse tempo questionava não só a sua linguagem, mas também a sua função política e social. Enquanto o filme – concebido como um filme-ensaio em três partes que totalizavam 4 horas e 20 minutos – viajava pelo mundo, na Argentina do Onganiato, sua exibição só foi possível na clandestinidade, em sessões organizadas em sindicatos e organizações sociais, que eram concebidas como atos políticos de resistência. E as trocas dos rolos das cópias em 16mm eram aproveitadas para o debate, debaixo de faixas que traziam outro lema de Fanon: “Todo espectador é um covarde ou um traidor”. A partir de La hora de los hornos, Solanas e Getino criaram o Grupo Cine Liberación, que incluía o diretor Gerardo Vallejo, o produtor Edgardo Pallero e o crítico Agustín Mahieu, dentre outros. Dali saíram vários manifestos teóricos sobre o “Terceiro Cinema”, que incluíam definições sobre o cinema militante, e que, em 1971, resultaram em dois famosos “instrumentos” intitulados Actualización política y doctrinaria para la toma del poder e La revolución justicialista, que consistiam em entrevistas pessoais aprofundadas com Juan Domingo Perón na sua residência no exílio em Madri. Tratava-se de “contra-informação”, para divulgar – em “atos” semelhantes aos de La hora de los hornos – não só a palavra mas também a imagem do líder proscrito. Em Los hijos de Fierro (1975), seu primeiro longa-metragem de ficção, Solanas enfrentou uma complexa operação cultural e simbólica: uma versão do poema nacional de José Hernández de um ponto de vista peronista. Os filhos de Fierro no título são os descendentes daquele gaúcho rebelde, a classe trabalhadora peronista suburbana, perseguida pelo poder como o próprio Martin Fierro era no seu tempo. O protagonista deixa assim de ser um herói individual e solitário para converter-se num ator coletivo, o que fez do filme de Solanas uma experiência inédita no cinema argentino. Terminado em 1975, só pôde, contudo, ser visto no país uma década mais tarde, porque tanto Solanas como quase toda sua equipe técnica e artística foram perseguidos, primeiro pela Triple A e depois pela ditadura civil-militar, que levaram o diretor ao exílio. Dessa dolorosa experiência, Solanas extrairia uma das suas criações mais duradouras, Tangos – El exilio de Gardel, que estreou no Festival de Veneza de 1985, onde ganhou o Grande Prêmio do Júri, ratificado alguns meses mais tarde pelo prêmio principal do Festival de Havana. Ao contrário de seus filmes anteriores, que tentavam provocar um processo de reflexão crítica, El exilio de Gardel exigia sobretudo um compromisso emocional do espectador com seus personagens, homens e mulheres à deriva numa cidade estrangeira, que procuram refúgio no imaginário cultural da Argentina, a qual tiveram que forçosamente deixar para trás. A polifonia que já estava presente em La hora de los hornos e Los hijos de Fierro encontra em El exilio de Gardel uma forma de expressão mais livre e espontânea, com espaço para a música, a dança e até o humor. Para falar de seu filme, Solanas (como seu alter ego no filme, interpretado por Miguel Angel Solá) utiliza o termo “tanguédia”, expressão que subsume Tango + comédia + tragédia e revela o desejo do cineasta de salvar as barreiras que separam os diferentes gêneros e criar uma forma original que rompa com as estéticas tradicionais. Realizou uma operação simétrica com Sur, prêmio de melhor direção no Festival de Cannes de 1988 e que funciona como a outra face da mesma moeda. O cenário já não é Paris, mas a paisagem suburbana à qual regressa o protagonista (novamente Miguel Angel Solá), após anos de prisão por sua militância sindical, uma situação que reflete metaforicamente o retorno do país à democracia. “Sur é uma viagem: da prisão e da morte à liberdade; da ditadura à democracia; da noite e do nevoeiro ao amanhecer”, dizia então Solanas, que, como no seu filme anterior, voltou a contar com a cumplicidade de Astor Piazzolla na trilha sonora original, à qual acrescentou um colar de tangos clássicos que – na voz de Roberto Goyeneche – vão comentando a ação. Em comparação com estes clássicos modernos, El viaje (1992) e La nube (1998) não foram filmes de tanto sucesso, mas em ambos estava claro que correspondem por si mesmos a um conjunto de obras com uma singularidade absoluta no cinema argentino como é a de Solanas. No primeiro, tratava-se do percurso iniciático de um adolescente da Terra do Fogo, que parte da cidade mais ao sul do mundo numa aventura de formação por todo o continente sul-americano. No segundo, o tom tornou-se confessional e Solanas, de alguma forma, se via refletido nesse veterano teatrólogo interpretado por seu amigo Eduardo “Tato” Pavslovsky, que resistia não apenas aos embates do tempo, mas também à modernidade crua e sem memória do crasso menemismo. A obra de Solanas recebeu um novo impulso a partir de Memoria del saqueo, quando recebeu o Urso de Ouro pelo conjunto da obra na Berlinale de 2004, um documentário que foi também a pedra angular de um enorme afresco que ele foi compondo durante mais de quinze anos. Os títulos desta grande panorâmica da realidade social, política e econômica do país são eloquentes para cada um dos temas que foi abordando. La dignidad de los nadies (2005), Argentina latente (2007), La próxima estación (2008), Tierra sublevada: oro impuro (2009), Tierra sublevada: oro negro (2010), La guerra del fracking (2013), El legado estratégico de Juan Perón (2016) e Viaje a los pueblos fumigados (2018) deram conta da resistência do povo trabalhador, do potencial científico e criativo do país, do abandono da ferrovia como instrumento de comunicação e progresso, da cobiça extrativista, dos ensinamentos do líder e da contaminação brutal da terra pelos agrotóxicos. Nada do país era alheio a Solanas, que deixou pendente um documentário sobre a pesca e a plataforma oceânica argentina e terminou Tres en la deriva del caos, um diálogo íntimo e socrático com dois de seus muitos e grandes amigos do mundo da arte, o pintor Luis Felipe “Yuyo” Noé e o dramaturgo “Tato” Pavlovsky. “Falta ao cinema argentino contato com o real”, refletia nos últimos anos. Para compensar essa falta, Solanas decidiu – com aquela nobre ambição e essa prepotência no trabalho que o caracterizavam – cuidar ele mesmo de todos os aspectos da complexa realidade argentina, que ele abraçou como ninguém. *Luciano Monteagudo é jornalista e crítico de cinema. (Publicado originalmente no site Outras Palavras)

Gastronomia exótica é vendida a céu aberto em Hanói, no Vietnã