pub-5238575981085443 CONTEXTO POLÍTICO.
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sexta-feira, 27 de outubro de 2017

Jessé Souza: É preciso explicar o Brasil desde o ano zero

                               
Amanda Massuela                                                                                 

Jessé Souza: É preciso explicar o Brasil desde o ano zero O sociólogo Jessé Souza, autor de 'A elite do atraso', lançado pela editora Leya (Divulgação)
 

Em A elite do atraso – Da escravidão à Lava Jato, Jessé Souza quer fazer o que, em sua opinião, nenhum intelectual da esquerda jamais fez: explicar o Brasil desde o ano zero. Isso porque se ideias antigas nos legaram o tema da corrupção como grande problema nacional – conforme defende no livro -, só mesmo novas concepções sobre o país e seu povo poderiam explicar, de uma vez por todas, que as raízes da desigualdade brasileira não estão na herança de um Estado corrupto, mas na escravidão.
Para tanto, o sociólogo confronta uma das principais obras do pensamento social brasileiro, Raízes do Brasil (1936), de Sérgio Buarque de Holanda – responsável por utilizar pela primeira vez a ideia de patrimonialismo para definir a política nacional. Jessé compreende que o conceito – segundo o qual o Estado brasileiro seria uma extensão do “homem cordial” que não vê distinções entre público e privado – serve para legitimar interesses econômicos de uma elite que manda no mercado, este sim a real fonte de corrupção e poder.
Doutor em sociologia pela Universidade de Heidelberg (Alemanha) e professor da UFABC, Jessé Souza é autor de 27 livros, incluindo A ralé brasileira: quem é e como vive (2009), A tolice da inteligência brasileira (2015) e A radiografia do golpe (2016). Presidente do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) entre 2015 e 2016, coordenou pesquisas de amplitude nacional sobre classes e desigualdade social. Em entrevista à CULT, o sociólogo critica a existência de uma interpretação dominante sobre o Brasil e aponta os motivos pelos quais a sociedade brasileira em 2017 não passa de uma continuidade da sociedade escravocrata de 500 anos atrás.
No livro você afirma que Sérgio Buarque de Holanda inaugurou uma forma de pensar o brasileiro como negatividade que se estende ao Estado, visão que teria influenciado de Raymundo Faoro a Sergio Moro. Por que essa chave de leitura tem tanta força?
Essa ideia foi montada para defender interesses econômicos. Às vezes me espanto como não se percebeu isso antes. Quando a elite paulistana perde o poder político para Vargas em 1930 – e perde para um movimento de classe média, que estava se formando no país naquela época -, ela começa a organizar um poder ideológico para condicionar o poder político a atuar conforme as suas regras. Isso foi dito, articulado, pensado. Esse pessoal já tinha fazendas de café, as grandes indústrias em São Paulo, já tinha controle sobre a produção material e aí constroem as bases para o poder simbólico – e a sociedade moderna vive desse poder simbólico. Essa elite cria a Universidade de São Paulo, que vai formar professores de outras universidades e que vai produzir conceitos importantes para que essa elite, tirando onda de que está fazendo o bem, faça efetivamente todo mundo de imbecil para que seus interesses materiais e políticos sejam preservados.
Que conceitos são esses?
São duas ideias que nos fazem de imbecis. Uma delas é a do patrimonialismo, em que há uma distorção da fonte do poder social real,  como se o Estado fosse montado para roubar, vampirizar e fazer o mal – e como se nada acontecesse no mercado. Embora seja uma instância de poder importante, no capitalismo quem comanda o poder é o mercado. Há uma tradição inteira, 99 de 100 intelectuais até hoje professam esse tipo de coisa. Sérgio Buarque inaugura [esse pensamento no Brasil], depois Raymundo Faoro dá uma profundidade histórica e Fernando Henrique Cardoso transforma isso em teoria; o programa político do PSDB é todo retirado de Raízes do Brasil. Mas também influenciou a esquerda. Sérgio Buarque foi um dos fundadores do PT, fez todo mundo de imbecil, da direita à esquerda. E como a esquerda não tem uma concepção autônoma de como a sociedade funciona, de como o Estado funciona, ela chega ao poder com um plano econômico alternativo, mais inclusivo, e acha que as pessoas por alguma mágica vão perceber que aquilo é bom pra elas. A esquerda nunca fez o que a direita e a elite fizeram.
Por que a esquerda nunca articulou uma narrativa contrária a essa?
Porque foi incapaz. Porque não foi inteligente, porque se deixou imbecilizar. Porque o tema do patrimonialismo é tratado como crítica social: “Olha, estamos descobrindo quais são as mazelas brasileiras, um gene da corrupção de 800 anos que nos toma a todos”. Isso significa que o Estado [teoricamente] vampiriza e não deixa as forças “emancipadoras” do mercado agirem – como se o mercado, em algum lugar do mundo tivesse sido emancipador por si próprio. Os países campeões do liberalismo como Inglaterra e Estados Unidos têm uma estrutura de Estado extremamente forte, foram protecionistas – e depois dizem a outros países serem o que eles mesmos nunca foram. Isso deu esse charme – o “charminho crítico”, como eu chamo – a esse tipo de ideia como o patrimonialismo, que muitas vezes a esquerda comprou.
O segundo conceito chave, também inventado na Usp, foi o populismo, que torna suspeito e criminaliza tudo aquilo que vem das classes populares – inclusive qualquer liderança associada a elas, que são também estigmatizadas e suspeitas de estarem manipulando a tolice “inata” dessas classes. Eu estudei por décadas os muito pobres e eles são muito mais inteligentes do que a classe média. Eles veem a política como o jogo dos ricos em que todo mundo rouba enquanto a classe média se deixa engambelar por esse tipo de coisa. A classe média foi montada para ser idiotizada, é uma espécie de capataz da elite entre nós.
Na história do pensamento social brasileiro nenhum intelectual chegou perto de romper com essas duas ideias, na sua opinião?
Florestan Fernandes saiu um pouco disso porque estudou dilemas e conflitos de classe; Celso Furtado foi outro genial que percebeu coisas importantes que não têm nada a ver com esses esquemas. Mas esses caras não reconstruíram a história do Brasil como um todo. Foi essa a ambição que eu tive nesse livro porque eu percebi que, para atacar esse negócio e dar nele um nocaute, é preciso fazer o que eles [a elite] fizeram: explicar o Brasil desde o ano zero. O que foi, como foi, por que somos hoje o que somos e o que isso implica para o nosso futuro. Eu tentei fazer o que esses caras não fizeram, apesar de termos tido críticos que discutiram aspectos parciais de modo extremamente importante. Mas se não reconstruirmos o todo, as lacunas do que construímos apenas parcialmente serão invadidas pela teoria dominante, daí Florestan usar o patrimonialismo e essa bobagem toda.
Esse pessoal diz que nosso berço é Portugal e que de lá vem a nossa corrupção – uma coisa que me dá raiva de tão frágil, já que corrupção é um conceito moderno que implica a noção de soberania popular que é coisa de 200 anos. O nosso berço é a escravidão, que não existia em Portugal a não ser para os muito ricos. Não era fundante, era marginal, nunca foi mais de 5%, enquanto nós fomos montados nela. Essa teoria sobre o Brasil, que se põe como científica, no fundo não vale um centavo furado. É montada a partir de ilusões do senso comum, como se a tradição cultural fosse transmitida pelo sangue. São instituições concretas que nos moldam, é a forma da família, da escola que faz com que sejamos o que somos.
No livro você comenta que um dos principais problemas do Brasil é que aqui não houve nenhum tipo de reflexão acerca da escravidão. Quais são os efeitos práticos disso na sociedade brasileira, hoje?  
Literalmente tudo. Primeiro há a naturalização da miséria e do sofrimento alheio. Todas as sociedades já foram um dia escravocratas, apenas a Europa, no Ocidente, quebrou com a herança escravista do mundo antigo. Isso significa que embora a pessoa seja socialmente inferior a você, ela não será tratada como uma coisa, mas como um ser humano. E com as lutas sociais por igualdade, são produzidos processos coletivos de aprendizado na qual a dor e o sofrimento do outro podem ser revividos em cada um. Nós, por outro lado, mantivemos essa subhumanidade. Nós não nos importamos com a dor e com o sofrimento dos pobres, as evidências empíricas são claríssimas como a luz do sol, inegáveis para qualquer pessoa de boa vontade. A polícia mata pobres indiscriminadamente – e faz isso porque a classe média e a elite aplaudem. Houve recentemente essa coisa completamente absurda e bárbara das matanças nos presídios, e a classe média aplaudiu. São provas de que temos, como sociedade, ódio aos pobres. Isso veio da escravidão, em que havia uma distinção muito clara entre quem é gente e quem não é. Por isso, não nos importamos com o tipo de escola e de hospital que essa classe vai ter, por exemplo, o que é uma enorme burrice porque estamos criando inimigos, ressentimento. A Alemanha fez um esforço extraordinário para incorporar os 17 milhões que viviam na Alemanha Oriental, tornando seu mercado mais forte, mas aqui a gente simplesmente joga no lixo esse tipo de coisa porque nunca criticamos a nossa herança escravocrata, porque acreditamos nessa baboseira de herança portuguesa da corrupção. Raymundo Faoro tratava a existência de senhores de escravos como algo banal, quando na verdade o senhor de escravo deve estar no centro [da análise], já que todas as outras instituições vão se montar a partir daí. É uma continuidade absurda de 500 anos e nós somos cegos a isso.
Como essa continuidade aparece?
A família dos muito pobres repete há 500 anos a família dos escravos e eles ainda fazem o mesmo tipo de serviço que faziam antes, são escravos domésticos. Fazem parte de famílias desestruturadas, uma vez que na escravidão não se estimulava que o escravo tivesse família porque era preciso humilhá-lo, abatê-lo. Exatamente como acontece hoje. A escravidão só prospera com o ódio ao escravo e o Brasil de hoje é marcado por uma coisa central que só um cego não vê, o ódio ao pobre. A humilhação do pobre. O PT caiu não por causa da corrupção – que pode ter existido, é bom ver as provas -, mas porque tocou no grande pecado de ter diminuído um pouquinho a distância entre as classes. A distância desses 20% para os 80% é a pedra de toque para esse acordo de classes absurdo no Brasil.
O único país que se assemelha a nós no planeta é a África do Sul. Vivemos um apartheid aqui. Governos de esquerda caem, acontecem golpes de Estado toda vez que tentam diminuir essa distância entre as classes. Com isso você constrói dois planetas dentro de um mesmo país, é isso o que temos hoje. Como a classe média não pode transformar esse seu ódio ao pobre em mensagem política – porque isso seria canalhice e temos essa influência cristã -, ela utiliza o pretexto da corrupção já dado pelos nossos intelectuais no tema do patrimonialismo. Todas as elites estudaram em todas as universidades essa mesma bobagem, todo jornal repetiu e repete em pílulas essa mesma imbecilidade, fazendo com que as pessoas internalizem isso como uma verdade absoluta.
Você afirma no livro que a crise atual do Brasil é “também e principalmente uma crise de ideias”. Partindo disso, quanto dessa crise a gente pode colocar na conta da própria esquerda, já que ela nunca se mobilizou para produzir outra interpretação do Brasil?
Ela nunca se mobilizou, isso é uma fraqueza e eu acho que temos que mudar isso. Eu decidi transformar a minha vida nisso, por exemplo. Tem que começar em algum momento. Eu tive sorte porque morei muito tempo fora do Brasil e de algum modo peguei um olhar externo. Tem um grande filósofo que diz que o que propicia o conhecimento é o fato de você conhecer aquele lugar, mas estranhá-lo, ou todas as coisas viram naturais. E se tudo é natural você não interroga, não há dúvida.
Um estudo recente do Instituto Fórum Brasileiro de Segurança Pública e do Instituto Datafolha mostra que, numa escala de 0 a 10, a sociedade brasileira chega num índice de 8,1 na predileção por posições autoritárias, principalmente entre jovens de 16 a 24 anos. Como interpreta esse dado?
É de fácil explicação. A partir de 1980 há um partido que nasce de baixo para cima. Nunca havia existido isso entre nós, um partido que congrega trabalhadores rurais e urbanos – eu tenho muitas críticas ao PT, mas é inegável que ele foi uma inflexão importante nessa história da escravidão. E ele passa a representar uma demanda por igualdade nessa sociedade perversamente desigual. Quando você afirma que esse partido é uma organização criminosa – usando no fundo aquela ideia do populismo, de que tudo o que vem das classes populares é estigmatizado – você está afirmando que a igualdade não é um fim, mas um mero meio, uma estratégia de assalto ao Estado. Ora, para onde vai a raiva justa dos 80% dos excluídos se ela não pode ser expressa de modo político e racional? Vai ser expressa de modo pré-político, ou seja, violência pura. A Globo e a Lava Jato criaram Jair Bolsonaro, só o cego ou o mal intencionado não vê. Esse namoro com o autoritarismo tem a ver com o ataque midiático, esse conluio entre Rede Globo e Lava Jato, e eu espero que esse pessoal pague por isso um dia.  
No limite, essa chave de leitura inaugurada por Sérgio Buarque serve para justificar golpes de Estado e a Lava Jato, por exemplo?
Sim, a Lava Jato não tem nada a ver com acabar com a roubalheira. Até porque a roubalheira aumentou, isso é visível agora que temos no governo uma turma da pesada. É claro que a corrupção dos políticos existe, mas é uma gota no oceano. Esses caras são meros lacaios do mercado, os office-boy, é o que o nosso presidente é. Se você disser que o sistema inteiro é corrupto e que ele foi montado assim para que o mercado pudesse comprá-lo, aí você estaria esclarecendo alguma coisa, mas quando se diz que apenas um partido, aquele das classes populares, rouba, isso é uma mentira e um crime.
Vê saídas para essa tendência autoritária observada na sociedade brasileira?
Não tem nenhum outro modo, os seres humanos precisam ter ideias, sem ideias não dá para ir a lugar algum. É claro que isso tudo pode ficar ainda pior, a gente pode chegar a formas fascistas, mas o que a elite quer é dinheiro, se for por uma ditadura militar, se for matando gente, não tem nenhuma importância. Fato é que nesse instante de crise estamos com as vísceras à mostra e isso é uma oportunidade de vermos a podridão desse esquema que foi montado por essa elite usando e imbecilizando não só a classe média, e retirando a possibilidade de levarmos a vida de modo reflexivo. O que esse pessoal nos tirou foi a possibilidade de aprendizado da sociedade brasileira baseado na reflexão. E isso é impagável.

quarta-feira, 25 de outubro de 2017

Drops político para reflexão: Brasil, um país suspeito





"Passei a ler com mais frequência os trabalhos do sociólogo Jessé de Souza, sobretudo a partir da leitura de um dos seus artigos sobre o pensamento do sociólogo Gilberto Freyre. O artigo ao qual faço referência tornou-se emblemático nos estudos sobre o autor de Casa Grande & Senzala, embora Sobrados e Mocambos seja o livro de Gilberto preferido por Jessé de Souza. Mas essa discussão a gente deixa para um outro momento, pois também estamos escrevendo um artigo científico sobre o assunto. Chamo a atenção, no entanto para um livro recém lançado por Jessé de Souza, com o sugestivo título A Elite do Atraso, onde o autor conclui que o problema do Brasil é o ódio ao pobre, ao destrinchar a pedra de toque da aliança antipopular construída no Brasil para preservar o privilégio, acesso aos capitais econômico e cultural, de 20% contra os 80% de excluídos. Antes de sair de casa no dia de hoje, 25, acompanhei a repercussão de uma extensa pesquisa acerca das condições e expectativas de vida da população de São Paulo. Assim como na década de 40 - quando o sociólogo Josué de Castro denunciava o drama da exclusão alimentar através do livro a Geografia da Fome - poder-se-ia falar aqui numa espécie de geografia sobre as perspectivas de vida da população de São Paulo, a partir do espaço geográfico onde ela está localizada. Ou seja, depende dos jardins. Se no Jardim Santa Ângela - um dos bairros mais pobres da periferia - ou se no Jardim Paulista, bairro nobre, de classe média-alta. 

Era ainda um jovem estudante da UFPE quando um dado nos chamou a atenção. O Recife possui um dos melhores pólos médicos do país. Creio que seja o 3º melhor do Brasil. Ele está localizado ali na Ilha do Leite, um bairro de classe média, onde os aluguéis de imóveis são supervalorizados. Mas, ali como alhures, não se foge à regra das desigualdades sociais do Brasil. Junto a este bairro está localizada uma das maiores favelas do Recife, no bairro conhecido como o Coque. Chegando-se à extremidade da Ilha do Leite, mais um passo e o indivíduo perde 20 anos de sua expectativa de vida. Isso diz muito sobre a nossa realidade social, historicamente marcada por uma elite forjada em 350 anos de trabalho escravo, que tornou-se a mais egoísta e cruel do mundo. Segundo Jessé, esse pacto de privilégios é construído com o apoio decisivo dos estratos médios da sociedade, que são os guardiões desse distanciamento em relação aos empobrecidos. A elite mesmo, essa apenas solta seus "cachorros" contra os pobres, consoantes os seus mais vis e mesquinhos interesses."

(José Luiz Gomes, cientista político, em editorial publicado aqui no blog)

Publisher: A suspicious Brazil


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I began to read more often the works of the sociologist Jesse de Souza, mainly because of the reading of one of his articles on the thought of the sociologist Gilberto Freyre. The article I refer to has become emblematic in the studies on the author of Casa Grande & Senzala, although Sobrados and Mocambos is Gilberto's favorite book by Jesse de Souza. But this discussion leaves us to another moment, because we are also writing a scientific article on the subject. I would draw attention, however, to a book recently released by Jessé de Souza, with the suggestive title The Elite of Delay, where the author concludes that Brazil's problem is hatred of the poor, by unraveling the touchstone of the antipopular alliance built in Brazil to preserve the privilege, access to economic and cultural capitals, 20% against 80% excluded. Before leaving home today, 25, I followed the repercussion of an extensive research about the living conditions and expectations of the population of São Paulo. Just as in the 1940s - when the sociologist Josué de Castro denounced the Geography of Hunger - it could be said here in a kind of geography about the life prospects of the population of São Paulo, from the geographic space where it is located . That is, it depends on the gardens. If in Jardim Ângela - one of the poorest neighborhoods on the outskirts - or if in Jardim Paulista, noble neighborhood, middle-upper class.

If the individual lives in Jardim Paulista or Morumbi, he or she may have an average life expectancy of up to 24 years higher than those living on the periphery who are victims of unemployment; without basic sanitation of the residences; more vulnerable to being hit by a stray bullet; with precarious education; without adequate average assistance; "suspects" for the simple fact of being black or poor. In addition, it significantly reduces the life expectancy of the residents of this periphery. According to one of the researchers from the Our São Paulo Network, three questions need to be answered here: a) A few years ago this research was carried out and its historical series only confirms that nothing has changed during those years, which informs that the public power does not did much to change that reality; b) Since São Paulo is the country with the highest GDP in the country, what is happening there in terms of social indicators may perhaps be applied to other regions of the country, which seems to us quite sensible; c) To reverse this situation, public policies should be directed towards balancing this game, that is, making a preferential option for the poor, which in Brazil is a great utopia, since the state apparatus is also controlled by these elites.

He was still a young UFPE student when a fact caught our attention. Recife has one of the best medical centers in the country. I think it's the 3rd best in Brazil. It is located there on Leite Island, a middle-class neighborhood where real estate rents are overvalued. But there, as elsewhere, does not escape the rule of social inequalities in Brazil. Next to this neighborhood is located one of the largest favelas of Recife, in the neighborhood known as Coque. Coming to the end of the Island of Milk, another step and the individual loses 20 years of their life expectancy. That says a lot about our social reality, historically marked by an elite forged in 350 years of slave labor, which has become the most selfish and cruel in the world. According to Jesse, this pact of privilege is built with the decisive support of the middle strata of society, who are the custodians of this detachment from the impoverished. The elite itself, it only looses its "dogs" against the poor, according to their most vile and petty interests.

Editorial: Um Brasil suspeito


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Passei a ler com mais frequência os trabalhos do sociólogo Jessé de Souza, sobretudo em razão da leitura de um dos seus artigos sobre o pensamento do sociólogo Gilberto Freyre. O artigo ao qual faço referência tornou-se emblemático nos estudos sobre o autor de Casa Grande & Senzala, embora Sobrados e Mocambos seja o livro de Gilberto preferido por Jessé de Souza. Mas essa discussão a gente deixa para um outro momento, pois também estamos escrevendo um artigo científico sobre o assunto. Chamo a atenção, no entanto para um livro recém lançado por Jessé de Souza, com o sugestivo título A Elite do Atraso, onde o autor conclui que o problema do Brasil é o ódio ao pobre, ao destrinchar a pedra de toque da aliança antipopular construída no Brasil para preservar o privilégio, aceso aos capitais econômico e cultural, de 20% contra os 80% de excluídos. Antes de sair de casa no dia de hoje, 25, acompanhei a repercussão de uma extensa pesquisa acerca das condições e expectativas de vida da população de São Paulo. Assim como na década de 40 - quando o sociólogo Josué de Castro denunciava o drama da exclusão alimentar através do livro a Geografia da Fome - poder-se-ia falar aqui numa espécie de geografia sobre as perspectivas de vida da população de São Paulo, a partir do espaço geográfico onde ela está localizada. Ou seja, depende dos jardins. Se no Jardim Ângela - um dos bairros mais pobres da periferia - ou se no Jardim Paulista, bairro nobre, de classe média-alta. 

Se o indivíduo vive no Jardim Paulista ou Morumbi, pode ter uma expectativa de vida numa média de até 24 anos superior em relação aos moradores da periferia, vítimas do desemprego; sem saneamento básico das residências; mais vulneráveis a serem atingidos por uma bala perdida; com uma educação precarizada; sem uma assistência média adequada; "suspeitos" pelo simples fato de serem negros ou pobres. Isso somado, diminui sensivelmente a expectativa de vida dos moradores dessa periferia. Pela fala de um dos pesquisadores do Rede Nossa São Paulo, três questões precisam aqui ser postas: a) Há alguns anos essa pesquisa é realizada e a sua série histórica apenas confirma que nada mudou durante esses anos, o que informa que o poder pública não fez muita coisa para mudar essa realidade; b) Como São Paulo é o Estado de maior PIB do país, o que se passa por ali em termos de indicadores sociais talvez possa ser aplicados para outras regiões do país, o que nos parece bastante sensato; c) Para reverter esse quadro, as políticas públicas deveriam ser direcionadas no sentido de procurar equilibrar esse jogo, ou seja, fazer uma opção preferencial pelos pobres, o que no Brasil é uma grande utopia, uma vez que o aparelho de Estado também é controlado por essas elites. 

Era ainda um jovem estudante da UFPE quando um dado nos chamou a atenção. O Recife possui um dos melhores pólos médicos do país. Creio que seja o 3º melhor do Brasil. Ele está localizado ali na Ilha do Leite, um bairro de classe média, onde os aluguéis de imóveis são supervalorizados. Mas, ali como alhures, não se foge à regra das desigualdades sociais do Brasil. Junto a este bairro está localizada uma das maiores favelas do Recife, no bairro conhecido como o Coque. Chegando-se à extremidade da Ilha do Leite, mais um passo e o indivíduo perde 20 anos de sua expectativa de vida. Isso diz muito sobre a nossa realidade social, historicamente marcada por uma elite forjada em 350 anos de trabalho escravo, que tornou-se a mais egoísta e cruel do mundo. Segundo Jessé, esse pacto de privilégios é construído com o apoio decisivo dos estratos médios da sociedade, que são os guardiões desse distanciamento em relação aos empobrecidos. A elite mesmo, essa apenas solta seus "cachorros" contra os pobres, consoantes os seus mais vis e mesquinhos interesses. 

Charge! Renato Aroeira

terça-feira, 24 de outubro de 2017

Michel Zaidan: Por que Lula é tão perseguido?

 
Estive, nos   últimos dias, em Petrolina ministrando uma  palestra para os cristãos reformados da Igreja Batista sobre  a situação política do País. Nesta ocasião, pude fazer debates e alocuções em estações de rádio e blogs da terra. Também tive a oportunidade de receber um belo presente do bispo metodista, Jeová Jacinto da Silva,livro sobre a origem da formação teológica dos Presbiterianos, Batistas e  metodistas no Brasil e suas igrejas-mães na Europa e nos Estados Unidos. Embora não seja ministro religioso, não professe nenhuma confissão de fé e não tenha ido falar àquela comunidade cristã de qualquer assunto de natureza teológica ou doutrinal, admito que foi um aprendizado e tanto. Sobretudo, por sentir muito de perto o ressentimento de alguns fiéis de Igrejas evangélicas contra a figura do Presidente Lula. Fiquei me perguntando o que teria levado esses crentes a se voltarem contra Luis Inácio da Silva (LULA), ignorando o quanto ele teria feito pelo Nordeste (e Petrolina), durante a sua gestão presidencial. E  o que deixou como obra na democratização ao acesso do ensino superior. Pois é. Os crentes afirmavam que, como nordestino LULA era uma vergonha para todos nós e jamais deveria ter recebido o titulo de Doutor Honoris Causa pela  Universidade Federal de Pernambuco, entre outras instituições. Tudo isso deveria ser anulado, em reconhecimento às acusações que pesam sobre seus ombros feitas pelo juiz Sérgio Moro.

Já fui na minha vida mais anticlerical do que hoje. Aprendi, na convivência  fraterna e amiga de padres e pastores, a  ser mais tolerante e respeitador da integridade moral e da boa vontade de muitos desses ministros religiosos. Mas, mesmo assim, não consegui me conter diante de tanto preconceito, de tanta má vontade e ignorância juntas. Comecei a achar que o esforço de diferenciação social (alimentado por uma cultura de individualismo e puritanismo e de soberba e pretensão) fizeram desses fiéis  pessoas muito conservadores, anti-petistas e anti-comunistas, que odeiam tudo que se parece com pobre, preto, imigrante e nordestino. Da influencia originário do "Pietismo" das Igrejas-mãe estrangeiras  só restou a experiência pessoal da fé, o fundamentalismo bíblico e um individualismo exacerbado. É como se fosse possível recobrir o egoismo religioso como a racionalização doutrinária da Igreja, numa modalidade pobre, subdesenvolvida das lições trazidas pelas missões estrangeiras para o país, todas elas comprometidas ingenuamente com o "american way life". Será que o sonho desses crentes anti-petistas é serem americanos da periferia? - Inclusive em seu preconceito contra os pobres e negros?

E aí desembarco no Recife, informado que as intenções de voto de Marina Silva e Bolsonaro ultrapassam as  de LULA. Pronto, chegamos a uma conclusão inevitável: a desconstrução midiática do legado social, internacional,  pedagógico e regional do governo petista produziu o ovo da serpente, que poderá ser chocado nas eleições do próximo ano. Disse, na minha palestra, que a junção  da desesperança na política e o império da impunidade contra os ladrões da república produziria um voto que oscilaria entre a Cruz e a Espada. Em qualquer um dos cenários, morreríamos nós, republicanos, democratas e socialistas. Porque ambas as alternativas são conservadoras, intolerantes e têm a pretensão de salvar o mundo, ou pelo menos o Brasil. 
Meu apelo foi que nem Jesus, nem Deus aprecia os cristãos que se acovardam, se omitem ou deixam de tomar posição diante dessa  grave crise institucional  em que nos metemos. Nesta hora, ser cristão é assumir destemidamente uma defesa pública pelos valores da liberdade, da autonomia e do respeito ao direito das minorias. Amém!

Michel Zaidan Filho é filósofo, historiador, cientista político, professor titular da Universidade Federal de Pernambuco e coordenador do Núcleo de Estudos Eleitorais, Partidários e da Democracia - NEEPD-UFPE

Charge!Laerte via Folha de São Paulo

Laerte

domingo, 22 de outubro de 2017

Charge! Jean Galvão via Folha de São Paulo

Jean Galvão

Durval Muniz: Carência e cidadania

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Desde a Revolução Francesa, quando surgiram as noções de esquerda, de direita e de centro para nomear posições políticas, a partir da localização dos parlamentares na Assembleia Nacional, que discutia a proposta de Constituição que poria fim ao regime absolutista, que aqueles que se colocam à esquerda do espectro político se definem por uma maior preocupação com que o exercício da atividade política, com que o exercício da cidadania se faça em nome do atendimento aos interesses daqueles que compõe as maiorias da sociedade (na época o Terceiro Estado ou o povo), aqueles que se definiriam pelo deficit de representação política, portanto de cidadania, mas que, sobretudo se definiriam por viverem em situação de carência econômica e social. Foi como repercussão do ideário da Revolução Francesa, sobretudo na busca pela igualdade entre os humanos, que as utopias socializantes surgiram, ao longo do século XIX. As experiências, que foram chamadas pelos marxistas, de socialismos utópicos, e que resultaram em episódios como as tentativas revolucionárias de 1848, em alguns lugares da Europa e de 1871 (a chamada Comuna de Paris), na França, além da constituição de experiências comunitaristas e socializantes de várias espécies, foram inspiradas nesse afã de busca de respostas para solucionar desigualdades e carências. Enquanto as experiências anarquistas enfatizavam muito mais a questão da liberdade, tomando a igualdade como uma resultante dela, o pensamento marxista enfatizava primeiro a igualdade, tomando ela como pré-condição da liberdade. Os famosos desentendimentos entre marxistas e anarquistas no seio da Primeira Internacional dos Trabalhadores tem nessa discrepância um de seus motivadores, embora a luta por poder e controle do movimento operário também seja muito relevante. A prevalência do marxismo, sua vitória, tanto em relação ao que chamou de socialismos utópicos, quanto em relação ao anarquismo, fez as esquerdas se tornarem majoritariamente marxistas, embora com leituras diversas dessa tradição. Por seu turno, essa prevalência do marxismo no interior das esquerdas tornou o tema da igualdade e o tema da carência, notadamente de ordem econômica e social, como o cerne da elaboração de projetos políticos e da prática política das esquerdas ocidentais.
Uma visão economicista da ordem capitalista e burguesa e dos próprios projetos de transformação social tendeu a negligenciar outras dimensões da vida social. As propostas políticas das esquerdas, inclusive quando elas começam a chegar ao poder de Estado, seja através de processos revolucionários, como ocorreu com os bolcheviques na Rússia ou com os maoistas na China, seja através de eleições legislativas ou executivas, como ocorreu com a chamada social-democracia, em países como a França ou a Alemanha, ou mesmo com os comunistas na Itália ou socialistas na Espanha, Portugal, Chile, sempre enfatizaram as dimensões econômicas e sociais, em detrimento das dimensões culturais, subjetivas ou de valores, como as propostas anarquistas e algumas propostas chamadas de utópicas, como aquela encanada na figura de Charles Fourier, traziam em suas formulações. A centralidade dada as carências econômicas e sociais nas plataformas de governo das sociedades ditas socialistas e dos governos de esquerda no Ocidente, negligenciou em algumas, inclusive, a questão da liberdade, como nas chamadas ditaduras do proletariado à medida que se reduzia o político ao econômico, numa equiparação retórica e falaciosa entre socialização dos meios de produção e democracia. A chamada democracia liberal burguesa era denunciada como uma farsa por ser assentada na desigualdade e na defesa da propriedade privada. Por outro lado, essa centralidade do econômico resultou em muitos casos no dirigismo cultural e ideológico e na tentativa de padronização das subjetividades, com exigências terríveis como as levadas à efeito pela chamada Revolução Cultural chinesa.
O que assistimos nos últimos treze anos no Brasil, e o que estamos vivendo agora, se deve ao fato de que, uma vez chegando ao poder de Estado, o Partido dos Trabalhadores não conseguiu romper com essa longa tradição da esquerda marxista de achar que as camadas populares só têm carências de ordem econômica e social. O discurso de posse de Lula a esse respeito é emblemático: sua grande ambição era que ao final de seu mandato todo mundo no país pudesse tomar café, almoçar e jantar. Num país em que milhares de pessoas passavam fome, esse discurso fazia todo sentido, mas era redutor das carências das pessoas, inclusive dos pobres. Mesmo os grandes investimentos feitos em educação, em ciência e tecnologia, em cultura foram atrelados a essa lógica da carência econômica e social. Nos governos Dilma, o discurso tecnocrático e desenvolvimentista se tornou hegemônico nas discussões de programas e políticas educacionais e culturais, a educação foi pensada como fator de desenvolvimento econômico, na lógica dos discursos sobre educação das agências internacionais, inclusive engolindo o mito da meritocracia e da internacionalização, se esquecendo da formação política da população, de políticas de produção de subjetividades voltadas para enfrentar elementos culturais arraigados no país, como o autoritarismo, o desapreço pela democracia, o racismo, a visão senhorial, a saudade da escravidão, a misoginia, a homofobia, o preconceito contra a pobreza. Se, no governo Lula, ainda se deu passos tímidos nessa direção, o fato do Pronatec e do Ciência Sem Fronteiras terem se tornado os programas vitrines do governo Dilma, diz bem do giro tecnocrático e economicista que sua política educacional sofreu. Faltou, aos governos do PT, desde o inicio, a percepção de que o ser humano é existencialmente carente, por ser mortal, por se saber finito, por saber da possibilidade de adoecimento, pela possibilidade da perda do que lhe é mais caro, pela possibilidade do fracasso. Faltou, aos governos do PT, uma política de produção de subjetividades, o que não significava, como dados setores da direita queriam fazer crer, que os governos do PT deviam ter políticas de dirigismo cultural e ideológico, mas devia ter efetivamente disputado esse campo, não se acovardado diante das acusações de estalinismo, de promover censura, de promover lavagem cerebral. A inação do PT diante do monopólio da mídia no país, seu abandono da educação de base, a falta de clareza em relação a políticas de educação e cultura, ao lado de outros eventos ocorridos nesses últimos anos, no país, explica a onda conservadora que estamos vivendo e na qual naufragou a própria experiência petista.
Ao achar que as principais carências das pessoas são de ordem econômica, as esquerdas marxistas nunca saíram de fato do domínio das subjetividades produzidas pelo próprio capitalismo. O capitalismo não é apenas um modo de produzir mercadorias, como pensava Marx, mas uma forma de produzir subjetividades, como já defendia Max Weber. A ordem capitalista se mantém porque captura os desejos e as carências afetivas, emocionais, existências, biológicas dos seres humanos e as colocam a seu serviço. O capitalismo molda os corpos dos humanos às suas necessidades e as suas subjetividades também. O grande truque do capitalismo é transformar, justamente, carências de toda ordem em carências de consumir, de trabalhar, de lucrar, de acumular, de poupar, de investir, tornando-se o próprio sentido da vida humana. O capitalismo, embora no início tenha recriado a escravidão e se utilizado da servidão – ainda as utiliza em certas circunstâncias, desde que não sofra resistência – não necessita delas pois bastou encontrar formas de que as pessoas, os trabalhadores internalizem o feitor e o chicote. Quando achamos que o trabalho é que dá sentido ao existir, quando achamos que só se é feliz sendo proprietário de algo ou de alguém, quando nos submetemos aos maiores sacrifícios para consumir, quando nos proibimos de inúmeras coisas para poupar ou para investir, estamos subjetivamente dominados pelo capital, que não existe apenas como valor de uso ou de troca, mas como valor cultural, moral, éticos e estético. O dinheiro não é apenas um equivalente geral, aquilo que se troca por tudo, no plano econômico, mas até no plano afetivo, sexual, desejante. As pessoas gozam com o dinheiro, somente isso explica perversões como fortunas que são maiores do que qualquer um pode gastar em toda vida e que ainda busca sempre mais, apelando inclusive para a corrupção. Quando Marx aproximava o operário da prostituta, embora houvesse muito de misoginia e preconceito nisso, ele não deixava de estar correto, pois no capitalismo, até o desejo é canalizado para o capital, a propriedade, a posse. Os movimentos de prostitutas ao reivindicar serem consideradas trabalhadoras do sexo expõem não só essa equivalência, mas a captura desse movimento pela lógica do capital. Quando o dinheiro pink se torna expressão do que seria o novo poder homossexual, nada mais está explicitando do que a captura do desvio e da transgressão pelo capital, que passa a oferecer lugares de encontro, divertimento, pegação, sexo, etc, separando, inclusive, as bichas ricas das bichas pobres, vistas com desprezo e desdém.
Ainda no início do século XX, Freud já relacionava o sentimento religioso e a carência ontológica, ou seja, constituinte do próprio humano. O desamparo, ao contrário do que tendem a pensar as esquerdas, não é apenas de ordem econômica ou social, mesmo as pessoas mais privilegiadas do ponto de vista social ou da fortuna podem se sentir desamparadas e carentes. As religiões surgiram e proliferam, até hoje, para dar respostas as carências básicas do homem: carências de ordem biológica (representadas pelo adoecer e pelo morrer), carências de ordem existencial (os medos de falhar, de perder, de não ter) e as carências de reconhecimento (a necessidade de se sentir alguém ou de ser alguém para si e para os outros). Hoje vemos que, na ausência de políticas de subjetivação levadas a efeito pelas esquerdas, essas carências passaram a ser capturadas por um discurso religioso, cada vez mais conservador e retrógrado. A medida que o capitalismo deu origem a uma ordem social onde a sensação de insegurança não para de crescer, as pessoas buscam se agarrar em discursos e instituições que vendem segurança e certezas. O capitalismo já nasce através de um brutal processo de desterritorialização, com a destruição das comunidades tradicionais, com a destruição dos laços comunitários, com o processo de expropriação em massa, com o processo de migração e tráfico de pessoas para a escravidão, com o lançamento das pessoas numa vida cada vez mais incerta e desconhecida. O capitalismo gera, como nenhuma outra ordem social, a sensação de carência, insegurança e incerteza e oferece a mercadoria, o consumo, inclusive de seus produtos culturais, de suas crenças, como a saída. Vende comunidades imaginárias como as nações e as regiões, como os clubes esportivos, como substitutas da vida das aldeias, das cidades, das vilas, das comunidades tradicionais que destrói. As religiões, desde o protestantismo histórico, tendem a associar sucesso material e salvação eterna. As crenças se individualizam e, depois, se tornam mercadorias, que se vendem num aquecido mercado religioso. Há duas semanas, fui surpreendido com um carro de som, desses que fazem propaganda, a anunciar pelas ruas do bairro onde eu moro, a abertura de uma nova igreja, o texto em nada se diferenciava dos textos que anunciam abertura de lojas comercias: – Chegou, chegou em nossa cidade, venham, venham, compareçam a inauguração, serão ofertados brindes a quem comparecer, estará presente a inauguração o pastor, venham ouvi-lo, tragam a sua família e os amigos, depois de muito êxito em outras cidades, finalmente chega a Natal!. As religiões não exploram hoje apenas o medo de morrer, as carências biológicas (as doenças, prometendo milagres e curas), mas também as carências econômicas (a teologia da prosperidade, bem afeita a um modo de produção subjetiva capitalista faz as pessoas amarem o dinheiro e buscar na mercadoria e no dinheiro, inclusive, na doação do dízimo, ao mesmo tempo a salvação e o sucesso material), mas também carências de ordem afetiva e de reconhecimento (dando a elas uma fraternidade ou uma comunidade alternativa à sua solidão e as colocando em lugares de destaque que por sua condição social e, inclusive, étnica não desfrutam em outro lugar).
Em certo momento, a chamada Teologia da Libertação, no interior da Igreja Católica e de algumas religiões protestantes, articulou em suas mensagens e práticas, as carências de ordem econômica e social, com as carências de ordem existencial, subjetiva, afetiva da população e isto teve como resultado o aparecimento de inúmeras lideranças, nos meios populares e mesmo na classe média, capazes de articular a luta por cidadania social e econômica, com a luta por direitos humanos, por cidadania política entendida como luta por liberdades e valores, inclusive com militância no campo da cultura e das artes. A chamada macropolítica, foi articulada com o que o filósofo francês Félix Guattari chamou de micropolítica, a política entendida como investimento no sentindo de redirecionar nossos desejos, nossas subjetividades, não apenas nossas maneiras de pensar, mas de sentir, de imaginar, de desejar. A dura repressão perpetrada contra essa teologia pelos dois últimos Papas, conservadores, foi fatal para que, ao lado do abandono da militância de esquerda nesses campos, até por estarem no poder de Estado, o que sempre foi outro mito, vindo desde a Revolução Francesa, a ideia do Estado como demiurgo, capaz de tudo mudar e transformar de cima para baixo, o bonapartismo esquerdista, que se acentuou com o leninismo e o estalinismo, levou a essa onda conservadora que, também advém em todo momento que uma crise do capitalismo acontece. Quanto mais inseguras e carentes estão as pessoas mais facilmente elas são capturadas em seus desejos por discursos e personagens que prometem segurança e um mundo em preto e branco, um mundo maniqueísta em que tudo é certo, simples e nítido. Um mundo cheio de bruxas e bodes expiatórios a serem caçados e responsabilizados pela infelicidade, pela carência, pela solidão, pelo desamparo de cada um: o PT, Lula, Dilma, a corrupção, o homossexual, o petralha, o mortadela, o coxinha, o feminismo, a imoralidade, os políticos, etc. Bolsonaro, Malafaia, Feliciano, Moro, aparecem como objeto de desejo de carentes de todos os matizes.
Numa sociedade que nos diz, todos os dias, na TV, que só somos felizes se consumirmos dados produtos e, ao mesmo tempo, concentra riqueza, produz miséria e desigualdade, produz desemprego e trabalho precário, dá origem a uma massa de frustrados que projetam suas frustrações em dados alvos apontados pelo próprio discurso midiático, fazendo assim suas catarses coletivas. Mas também é uma sociedade que ao produzir indivíduos, ao produzir subjetividades egóicas e egoístas, como não acontecia em sociedades anteriores, onde era inconcebível alguém sobreviver sozinho ou fora de uma coletividade, gerou laços sociais cada vez mais frágeis, as chamadas relações líquidas, tratadas em ensaio fotográfico de Mayse Medeiros, nesse portal, onde a solidão e a carência afetiva e sexual é a tônica. As sociabilidades de esquerda, as políticas culturais críticas, a oferta de formas de expressão dos desejos que se dirijam para a aceitação da mudança, que se pautem pela criatividade e pela inventividade deram lugar a sociabilidades microfascistas, fragmentadas e alienadas através das redes, conectando o desejo à violência, promovendo o ódio, a raiva, o desejo de vingança e punição, o desejo de morte, gerando subjetividade reacionárias e reativas, levando ao gozo com a destruição e a agressão. Não pode haver cidadania, não pode haver projeto de transformação social que não leve a sério e discuta a produção social do desejo e a produção coletiva de subjetividades.

Durval Muniz é professor titular da Universidade Federal do Rio Grande do Norte

(Publicado originalmente no site Saiba Mais, Agência de Reportagem, aqui reproduzido com a autorização do autor)

sábado, 21 de outubro de 2017

O xadrez político das eleições estaduais de 2018, em Pernambuco: Fernando Bezerra parte para o confronto com Paulo Câmara.

Resultado de imagem para Bruno Araújo/Mendonça Filho/FBC

José Luiz Gomes da Silva

Cientista Político


O senador Fernando Bezerra Coelho(PMDB) assume o protagonismo político de quem, de fato, é candidato ao Governo do Estado nas próximas eleições estaduais. Em entrevistas concedidas durante esta semana, aproveitou para alfinetar o governador Paulo Câmara(PSB), com ironias do tipo "Pernambuco está em câmara lenta". Como se sabe, o nome que deverá encabeçar a chapa da Frente de Oposição - ou Conspiração Macambirense, como prefiro - ainda não é prego batido de ponta virada. Em alguns cenários possíveis, o senador poderia liderar a chapa. Este núcleo político reúne gente com a experiência da direita, que normalmente não briga naquilo que é essencial. E, para este grupo, o essencial é mesmo conquistar o Palácio do Campo das Princesas em 2018, seja lá com que cara for. A resposta do governador não tardou muito, depois que teria sido divulgado um índice em que Pernambuco lidera, no momento, o ranking nacional de geração de empregos formais. Ué, Fernando Bezerra Coelho não disse que o Estado estava parado?
 
Na realidade, esta foi uma semana de farpas trocadas entre governistas e oposicionistas. Na ALEPE, por exemplo, durante uma audiência pública sobre segurança, o deputado Joel da Harpa(Podemos) e José Maurício(PP) quase foram às vias de fato, com direito a dedos em ristes e aqueles palavrões conhecidos. Mesmo neste clima, líderes da oposição conseguiram dialogar e propor um conjunto de sugestões ao Governo do Estado, que estava ali representado pela cúpula de segurança pública. Voltou a ser discutida a criação do Conselho de Gestão do Pacto Pela Vida, uma velha reinvindicação dessa política de segurança pública, que nunca foi materializada. Escrevi um longo e denso editorial tratando deste assunto, mas deixo esse debate para um momento mais oportuno, embora ninguém tenha a menor dúvida de este será o mote da campanha de 2018 no Estado.

O senador Fernando Bezerra Coelho parece convencido de que as liminares concedidas pela justiça em favor dos peemedebistas Raul Henry e Jarbas Vasconcelos serão revogadas pela Direção Nacional da Legenda. Ou seja, em algum momento ele terá o controle da legenda no Estado, o que o permitiria aplicar dois golpes no Campo das Princesas: retirar o PMDB da composição governista, assim como fortalece-lo na disputa entre os novos companheiros de aliança política. É conhecida a indisposição da justiça em imiscuir-se nessas contendas. Em todo caso, como ele mesmo afirmou, não existe partido regional. Pelo menos não formalmente, senador, uma vez que o PMDB, na verdade, é uma federação de partidos regionais, cada qual hegemonizado por uma liderança política local.

A Conspiração Macambirense, até o momento, age com um padrão de integração que muito nos surpreende. Ninguém é assim tão ingênuo para acreditar que haja um padrão de harmonia entre eles. Não há. No entanto, os recados ainda são sutis, como, por exemplo, a presença de pefelistas históricos no ato de desagravo a Jarbas Vasconcelos(PMDB). Seus líderes se referem sempre ao conjunto de forças que devolverá o protagonismo político nacional ao Estado de Pernambuco. FBC, embora não admita, assume contornos de um possível cabeça de chapa; o ministro Bruno Araújo(PSDB) já foi lançado candidato ao Governo do Estado, num evento recente na cidade de Gravatá; Embora um pouco retraído nos últimos meses, o senador Armando Monteiro(PTB) continua no páreo desde as eleições passadas. Mas observem, sobretudo que, independentemente de um cabeça de chapa definido - ou pelo menos ainda não informado - eles desenvolvem projetos políticos muito bem articulados. Um pouco menos Armando Monteiro(PTB), mas Bruno Araújo(PSDB), Fernando Bezerra Coelho(PMDB) e Mendonça Filho(DEM) sempre estão juntos em grandes eventos políticos no Estado relacionados às suas pastas.

Hoje acompanhei uma entrevista com o ex-governador Joaquim Francisco(PSDB). Joaquim Francisco construiu sua carreira política ligada aos Democratas. É um político ali de Macaparana, um homem de "saudade de bosta", do meio-rural, do plantio da cana, do leite quente tirado do peite da vaca. Joaquim Francisco tem algumas tiradas políticas curiosos, oriundas de sua experiência rural. Uma das mais famosas é aquela onde ele afirma que está "meditando sob a maçaranduba do tempo", ao informar ao seu interlocutor que a decisão sobre determinado assunto ainda não foi amadurecida. "Cobra que não anda não engole sapo" é outro dito popular que ele costuma usar com frequência. Durante o programa, ele afirmou que o caboclo que não se movimenta perde o bonde da história. Além dos movimentos políticos equivocados, o governador Paulo Câmara(PSB), ao que nos parece, meditou bastante sob a maçaranduba do tempo, se é que vocês nos entendem. 
 

Charge! Renato Machado via Folha de São Paulo

Renato Machado

quinta-feira, 19 de outubro de 2017

A sopa de letrinhas do autoritarismo brasileiro

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Uma das formas mais fáceis de reconhecer um comportamento autoritário é aquele que busca impedir a existência do outro. / Pixabay

"Fui ameaçada de estupro e de morte via redes sociais."
Em seu livro “A Batalha pela Espanha”, o escritor Antony Beevor faz uma classificação bastante útil (e óbvia) sobre as disputas em torno da Guerra Civil Espanhola: não se tratava apenas de uma batalha entre direita e esquerda, como em um primeiro momento podia parecer, mas entre um governo autoritário contra propostas libertárias.
Vivemos no Brasil uma complexidade classificatória semelhante: temos posições distintas no espectro político que podem, sendo de direita, centro ou esquerda, se colocar ao lado de certa liberdade ou de um autoritarismo.
Há, porém, uma confusão para entender quem é quem porque as siglas enganam. Afinal, temos um partido que se chama “Democratas” cuja origem histórica de suas lideranças remonta à Arena da Ditadura Civil-Militar. Ou um movimento que diz que é “livre” e fica tentando fechar exposições de museus e censurar a arte. E há ainda herdeiros de banco defendendo mantê-las abertas.
Uma das formas mais fáceis de reconhecer um comportamento autoritário é aquele que busca impedir a existência do outro, seja física – como no genocídio da juventude negra, no martírio dos povos indígenas, nos feminicídios ou nos assassinatos de LGBTs – ou subjetivamente – no apagamento dessas histórias e das vozes que reclamam seus direitos.
De acordo com o sociólogo português Boaventura de Sousa Santos, poderíamos compreender essas situações como uma espécie de fascismo social, que ocorre quando “pessoas ou grupos sociais estão à mercê das decisões unilaterais daqueles que têm poder sobre eles”. “São formalmente cidadãos mas não têm realisticamente qualquer possibilidade de invocar eficazmente direitos de cidadania a seu favor”, explica Santos.
Semana passada vimos mais um exemplo de um impedimento de debate: uma matéria veiculada – vejam só – pela Rede Globo sobre a divisão de brinquedos entre meninos e meninas – e que tinha como uma das entrevistadas esta que vos escreve – foi motivo para uma onda de ataques e violências contra as pessoas envolvidas naquela pauta. Fui ameaçada de estupro e de morte. “Cachorra”, “pedófila”, “nojenta”, “retardada” e “comunista imunda” foram algumas das alcunhas que recebi via redes sociais.
A compreensão de parte da sociedade era que as desigualdades deveriam sim ser mantidas. Queriam, portanto, sustentar a “ideologia de gênero”, aquela que diz que as mulheres estão condenadas a serem inferiores aos homens. E por quê? Bom, aí a lista de explicações é grande, variando de repressão sexual até obedecer ordens de lideranças religiosas. Só que a forma utilizada para fazer isso foi essa que eu descrevi aí em cima: buscando anular a existência do outro, se for possível a ponto de eliminá-la.
Ainda citando Boaventura, “quanto mais vasto é o número dos que vivem em fascismo social, menor é a intensidade da democracia”. E é esse o caminho que estamos seguindo.
O debate entre direita e esquerda só pode acontecer dentro de uma democracia radical e plural – que também está longe de ser a que vigorou no Brasil pós Constituinte de 1988. Fora da democracia, não há disputa de ideias. Nós não podemos, de forma alguma, engolir essa indigesta sopa de letrinhas do autoritarismo.
* Maíra Kubík Mano é jornalista e doutora em Ciências Sociais pela Unicamp. Professora do departamento de Gênero e Feminismo da Universidade Federal da Bahia (UFBA), pesquisa a participação e representação política das mulheres.
Edição: Daniela Stefano
(Publicado originalmente no site Brasil de Fato)

Pós-democracia instalou-se "docilmente" no Brasil, diz jurista


Pós-democracia instalou-se ‘docilmente’ no Brasil, diz juristaFrancisco Goya, da série ‘Os provérbios’, 1815 a 1823 (Reprodução)

Crise democrática é um conceito docilizador que serve para disfarçar o que realmente acontece na vida política: a derrocada de valores democráticos que obstruem a expansão do mercado. Essa é a tese que Rubens Casara, juiz do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro (TJ-RJ) sustenta no livro Estado pós-democrático: neo-obscurantismo e gestão dos indesejáveis, cujo lançamento acontece nesta terça (17), em São Paulo.
“A democracia, que antes já havia sido transformada em mercadoria, se tornou um obstáculo ao projeto neoliberal”, afirma o jurista em entrevista à CULT. “Limites e constrangimentos democráticos tornaram-se fatores de instabilidade para o mercado e à livre circulação do capital, razão pela qual, em nome da manutenção do capitalismo, precisam ser ‘relativizados’ ou descartados.”
Nesse panorama forma-se o que Casara denomina ‘Estado pós-democrático’. Em sua análise, diversos acontecimentos contemporâneos caracterizam essa mudança de paradigmas – como a ascensão de partidos conservadores, a crise migratória na Europa, a acentuação da violência de Estado, a hostilidade a moradores de rua e operações contra a corrupção no Brasil.
Outra face que esse processo assume, aponta, é a identificação do poder político e econômico, uma nova gestão política dos “indesejados” pelo capitalismo e a transformação do judiciário em mecanismo de ordenação da lógica de mercado. Leia entrevista abaixo.
CULT – A pós-democracia está se tornando uma realidade global?
Rubens Casara – O Estado pós-democrático nasce em razão das necessidades do capitalismo em seu atual estágio. A pós-democracia, portanto, é um fenômeno global e uma consequência da elevação da razão neoliberal a nova razão do mundo, nos termos desenvolvido por Christian Laval e Pierre Dardot. Em todo o mundo, em nome do crescimento do lucro e da circulação do capital, desaparecem limites éticos e jurídicos e a democracia torna-se dispensável. A desconsideração dos valores democráticos se tornou uma realidade nos países ricos e nos países pobres.
Quais os principais fatores que desencadearam esse fenômeno?
O principal fator foi a necessidade do capitalismo de se ver livre de limites ao lucro e à circulação do capital. Os interesses das grandes corporações, dos detentores do poder econômico, não se mostram compatíveis com a concepção de democracia forjada após a Segunda Guerra Mundial. Assim, por exemplo, a razão neoliberal leva a uma nova percepção acerca dos direitos e garantias fundamentais. Antes, esses direitos eram vistos como obstáculos ao arbítrio e aos abusos de poder, como limites intransponíveis ao surgimento de um novo Auschwitz. Agora, esses mesmos direitos e garantias, construídos como limites à barbárie, passaram a ser percebidos como óbices ao desenvolvimento do mercado e à eficiência repressiva do Estado. Os detentores do poder econômico precisam lucrar cada vez mais e o Estado precisa conter e exterminar todos aqueles que não interessam ao projeto capitalista. Em certo sentido, o Estado pós-democrático assume uma feição pré-moderna, isso porque o poder econômico volta a se identificar com o poder político, o que pode ser percebido tanto na Itália de Berlusconi quanto no Brasil de Temer e Doria.
E quais são, especificamente, no contexto brasileiro?
A tradição autoritária em que se encontra lançada a sociedade brasileira, que se caracteriza pela crença no uso da força para resolver os mais variados problemas sociais somada ao medo da liberdade, e os pactos elitistas que remontam à escravidão, facilitaram a consolidação da pós-democracia. Em países que não conseguiram forjar uma verdadeira cultura democrática, como é o caso do Brasil, foi mais fácil relativizar garantias constitucionais, extinguir direitos, perseguir os indesejáveis. Aqui, a pós-democracia instaurou-se docilmente.
Como a pós-democracia se relaciona com os últimos acontecimentos políticos brasileiros, como o impeachment e as operações contra esquemas de corrupção?
Uma das principais características do Estado pós-democrático é a inexistência de limites rígidos ao exercício do poder, de qualquer poder. No Estado condicionado pela razão neoliberal, o voto popular e a garantia do devido processo legal, apenas para citar dois exemplos, podem ser desconsiderados. Se no modelo do Estado democrático de direito o impeachment é medida de exceção e só pode se dar diante da existência incontestável de um crime de responsabilidade, no Estado pós-democrático o impedimento de um presidente eleito pode ser consumado em desconsideração aos requisitos impostos pela Constituição da República. Na pós-democracia, torna-se desnecessária a demonstração cabal da existência de um crime de responsabilidade, basta o desejo dos detentores do poder político e do poder econômico para que as regras do jogo democrático sejam desconsideradas. Vigora o que Ferrajoli chama de “poderes selvagens”, poderes sem controle ou limites. Da mesma maneira, violações ao devido processo legal, provas ilícitas, vazamentos ilegais de interceptações telefônicas, prisões desnecessárias, espetacularização da investigação e outros atos antidemocráticos passam a ser naturalizadas e utilizadas contra os indesejados aos olhos dos detentores do poder econômico. Os pobres e os inimigos políticos são as principais vítimas. Contra esse “indesejáveis”, os significantes “corrupção”, “trafico de drogas”, “associação criminosa”, dentre outros, passam a ser manipulados para justificar o afastamento de direitos, garantias fundamentais e a violação ao projeto constitucional democrático.
Rubens Casara (Foto Moisés Martins / Divulgação)
O juiz do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro (TJ-RJ) Rubens Casara (Moisés Martins/Divulgação)
É comum ouvirmos que crise pressupõe uma oportunidade de progresso. No entanto, você acredita que o Estado democrático de direito não passa por uma crise, e sim por uma nova ordem pós-democrática. Nesse sentido, você tem uma perspectiva negativa do desenvolvimento desse panorama?
A palavra crise retrata o momento em que um determinado quadro histórico, físico, espiritual ou político pode se extinguir ou, ao contrário, se recuperar e continuar a existir. Crise é um significante que procura dar conta de uma excepcionalidade. Se há crise, algo pode desaparecer ou, se as contradições forem superadas, continuar a existir. Agora, se o que caracteriza o Estado democrático de direito desapareceu, pois o que era mera exceção se tornou regra, e continua a se falar em crise, o que há é a ocultação de uma mudança paradigmática. Em outras palavras, o discurso atual da existência de uma “crise do Estado democrático de direito” tem uma função docilizadora, tem a finalidade de ocultar que os direitos e garantias individuais, o conteúdo material da democracia, não servem mais de obstáculo ao exercício do poder, em especial do poder econômico.
Ainda é possível pensar em antigos paradigmas, como o socialismo, para superar esse momento? 
Superar a pós-democracia exige ressignificar o mundo a partir de uma perspectiva ao mesmo tempo anticapitalista e antiautoritária. As coisas e as pessoas precisam ser desmercantilizadas. O poder precisa ser controlado por marcos democráticos. Para isso, há toda uma história que precisa ser resgatada. Tanto o projeto marxista de emancipação humana quanto a máxima da democracia liberal de respeitar as “regras do jogo” não podem ser desprezados. Aprender com o passado, com os erros e os acertos da caminhada em busca de vida digna me parece mais importante do que especular em busca de uma solução inédita e desvinculada das contradições sociais. Os socialistas, os anarquistas, os liberais, bem como a crítica romântica da civilização, a tradição judaica, os feminismos e o ecossocialismo produziram lições que serão indispensáveis nas tentativas de romper com a pós-democracia. Socialismo? Marxismo libertário? Democracia liberal ou social? O nome que vai ser dado a essa caminhada não é importante. Não há pretensão de originalidade em reconstruir os valores democráticos. Seria um equívoco abandonar a contribuição de Hobbes e Kant, Marx e Lenin, Rousseau e Rawls, Flora Tristan e Simone de Beauvoir, Adorno e Benjamin, Emma Goldman e Rosa Luxemburgo, José Martí e Enrique Dussel, Bobbio e Ferrajoli, dentre tantos outros.
Em que medida a democracia torna-se ‘ultrapassada’ frente às exigências do capitalismo mundial integrado?
O capitalismo sempre impôs constrangimentos ao funcionamento de um regime democrático. A igualdade que sustenta o conceito de democracia choca-se com a desigualdade produzida necessariamente pelo modelo capitalista. Uns chegam a falar em incompatibilidade entre o projeto capitalista e a democracia, enquanto outros passam a defender uma “democracia domesticada”, em que tudo aquilo capaz de produzir atrito com a ordem capitalista acaba eliminado. Nesse novo livro, sustento a hipótese de que a democracia, que antes já havia sido transformada em mercadoria, se tornou um obstáculo ao projeto neoliberal. Os limites e constrangimentos democráticos, típicos das Constituições do Pós-Guerra, tornaram-se fatores de instabilidade para o mercado e à livre circulação do capital, razão pela qual, em nome da manutenção do capitalismo, precisam ser “relativizados” ou descartados.
Qual o papel do sistema judiciário nesse panorama?
No Estado democrático de direito, cabia ao Judiciário assegurar o respeito às regras democráticas e, em especial, aos direitos e garantias fundamentais. Na pós-democracia, ele deixa de exercer a função de assegurar a concretização do projeto constitucional para se tornar, por um lado, um mero homologador das expectativas do mercado e, por outro, um instrumento de gestão dos indesejáveis, daqueles que não interessam à razão neoliberal. O sistema de justiça pós-democrático, portanto, passa a reforçar o neo-obscurantismo na medida em relativiza os direitos, espetaculariza os processos e trata os valores “verdade” e “liberdade” como mercadorias e, portanto, como objetos que podem ser sacrificados ou negociados.
(Publicado originalmente no site da Revista Cult)

Lançamento ‘Estado pós-democrático: Neo-obscurantismo e gestão dos indesejáveis’
Quando: 17/09, às 19h
Onde: Livraria da Vila, alameda Lorena, 1731, São Paulo – SP


Charge! Benett via Folha de São Paulo

Benett

quarta-feira, 18 de outubro de 2017

Drops político para reflexão: A Lista Suja do Trabalho Escravo

 
  
"Além da polêmica portaria assinada recentemente pelo presidente Michel Temer (PMDB)- que cria enormes dificuldades para as ações dos órgãos e agentes de fiscalização do Estado atuarem nesta questão - há um conjunto de outras medidas, igualmente nocivas, que apenas reforçam a tese de que a agenda regressiva imposta pela bancada escravocrata está assumindo uma capilaridade assustadora no aparelho de Estado golpista. Neste cipoal, podemos mencionar a demissão recente do senhor André Espósito Roston, chefe do DETRAE (Divisão de Fiscalização do Trabalho Escravo); a proibição da divulgação da chamada Lista Suja do Trabalho Escravo; a diminuição sensível dos recursos destinados aos órgãos de fiscalização e; por fim, essa portaria que é uma verdadeira excrescência, pois, mesmo em se comprovando o trabalho em condições insalubres e subumanas, somente em casos onde esses trabalhadores estejam sendo vigiados por homens armados ou com seus documentos retidos poderiam ser configurado o trabalho escravo. Um retrocesso sem tamanho. Mesmo nessas circunstâncias, tudo deve estar devidamente documentado - através de um boletim de ocorrência - com o acompanhamento de homens da Polícia Federal, já que os fiscais perderam a autonomia de autuarem. Ou seja, o propósito é dificultar ao máximo a atuação dos órgãos de fiscalização e controle do Estado, tudo consoante o figurino imposto pela bancada do boi.

Vejamos o que escrevi a este respeito, quando o Brasil foi denunciado à ONU, em razão da não divulgação da Lista Suja do Trabalho Escravo no país, um dos indicadores dos mais importantes para a sociedade e para as entidades de direitos humanos: "Quando se trata da legislação sobre o trabalho escravo, sabe-se que há um forte lobby da bancada da "Berlinda" - este "B" é um crédito nosso, depois de saber que a bancada escravocrata teve um papel decisivo na conspiração e sustentação do golpe institucional - no sentido de amolecer as regras que tratam desta questão, criando uma licenciosidade no sentido de anistiar os infratores e, consequentemente, permitir novas violações. Os avanços que o país conquistou nas últimas décadas estão todos retroagindo para um patamar bastante preocupante. A agenda regressiva é ampla e atinge sem piedade os estratos que ocupam o andar de baixo da pirâmide, preservando os privilégios de uma elite econômica e rentista que, ao longo dos anos ,se notabilizaria como a elite mais cruel do mundo, forjada em três séculos e meio de trabalho escravo." 
(José Luiz Gomes, cientista político, em editorial publicado aqui no blog)

terça-feira, 17 de outubro de 2017

Editorial: O escárnio da volta do trabalho escravo




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Num primeiro momento, gostaria de recomendar a vocês a leitura do texto do professor Durval Muniz, publicado aqui no blog. É um texto para ser lido com uma xícara de café e um bloquinho de anotações, para que não se perca nenhum detalhe de suas observações sobre um país onde a inteligência é suspeita. Arguto observador do nosso cenário histórico e político, Durval Muniz articula diversos episódios e tendências recentes que se inserem à engrenagem que mói em favor do recrudescimento do golpe institucional levado a efeito no país em 2016, que afastou Dilma Rousseff(PT) da Presidência da República. Feita essa recomendação, pelo menos dois temas seriam interessantes para uma discussão no editorial do dia de hoje, como o "golpe" que estaria sendo urdido contra o presidente Michel Temer(PMDB) - que, em carta aos Deputados Federais, se diz vítima de uma grande conspiração - e, naturalmente, as medidas que praticamente institucionalizam o trabalho escravo no país, concebida sob medida pela bancada ruralista, que a barganhou sob a promessa de votar a favor da rejeição da segunda denúncia contra o presidente, poupando-lhes o mandato, mas conduzindo o país ao fundo do poço que, além da ética, perde também com isso aquele mínimo de sensibilidade, como observa o jornalista Josias de Souza.   

Além da polêmica portaria assinada recentemente pelo presidente Michel Temer (PMDB)- que cria enormes dificuldades para as ações dos órgãos e agentes de fiscalização do Estado atuarem nesta questão - há um conjunto de outras medidas, igualmente nocivas, que apenas reforçam a tese de que a agenda regressiva imposta pela bancada escravocrata está assumindo uma capilaridade assustadora no aparelho de Estado golpista. Neste cipoal, podemos mencionar a demissão recente do senhor André Espósito Roston, chefe do DETRAE (Divisão de Fiscalização do Trabalho Escravo); a proibição da divulgação da chamada Lista Suja do Trabalho Escravo; a diminuição sensível dos recursos destinados aos órgãos de fiscalização e; por fim, essa portaria que é uma verdadeira excrescência, pois, mesmo em se comprovando o trabalho em condições insalubres e subumanas, somente em casos onde esses trabalhadores estejam sendo vigiados por homens armados ou com seus documentos retidos poderiam ser configurado o trabalho escravo. Um retrocesso sem tamanho. Mesmo nessas circunstâncias, tudo deve estar devidamente documentado - através de um boletim de ocorrência - com o acompanhamento de homens da Polícia Federal, já que os fiscais perderam a autonomia de autuarem. Ou seja, o propósito é dificultar ao máximo a atuação dos órgãos de fiscalização e controle do Estado, tudo consoante o figurino imposto pela bancada do boi.

Por vezes eu me pergunto se os "coxinhas" que saíram às ruas para apoiar o afastamento da presidente Dilma Rousseff(PT) possuem algum remorso sobre a enrascada institucional em que meteram o país. Uma enrascada onde o fio da meada foi completamente perdido, uma vez que o Executivo encontra-se sendo conduzido dessa forma; o Legislativo completamente necrosado, capaz de preservar a liberdade e o mandato daquele senador; e um Judiciário desmoralizado. O chefe do Executivo, para salvar o seu pescoço, emite uma portaria com o teor acima, praticamente reintroduzindo a famigerada e abominável figura do trabalho escravo no país. Outro dia, num dos seus depoimentos, o ex-operador do PMDB, Lúcio Funaro, que teve a sua delação premiada homologada, ofereceu alguns elementos para se entender melhor o conjunto de forças políticas, econômicas, midiáticas e jurídicas que atuaram no projeto de deposição da presidente Dilma Rousseff. Os fatos são tão cabeludos que até a ex-presidente, que parecia resiliente, passou a cogitar sobre a possibilidade de pedir uma revisão de provas. Mesmo na condição de professor - daqueles que não veem problema algum neste direito dos alunos - embora entendendo suas razões, não a estimulamos por entender que se trata de um caso completamente perdido. Estamos numa outra rodada do jogo, quiçá num vertiginoso processo de endurecimento do golpe institucional iniciado em 2016. Hoje, é o Temer que fala numa suposta conspiração para apeá-lo do poder. 

Vejamos o que escrevi a este respeito, quando o Brasil foi denunciado à ONU, em razão da não divulgação da Lista Suja do Trabalho Escravo no país, um dos indicadores dos mais importantes para a sociedade e para as entidades de direitos humanos: "Quando se trata da legislação sobre o trabalho escravo, sabe-se que há um forte lobby da bancada da "Berlinda" - este "B" é um crédito nosso, depois de saber que a bancada escravocrata também deu sustentação ao golpe - no sentido de amolecer as regras que tratam desta questão, criando uma licenciosidade no sentido de anistiar os infratores e, consequentemente, permitir novas violações. Os avanços que o país conquistou nas últimas décadas estão todos retroagindo para um patamar bastante preocupante. A agenda regressiva é ampla e atinge sem piedade os estratos que ocupam o andar de baixo da pirâmide, preservando, os privilégios de uma elite que, ao longo dos anos se notabilizaria como a elite mais cruel do mundo, forjada em três séculos e meio de trabalho escravo." 

Charge! Renato Aroeira

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Charge! Montanaro via Folha de São Paulo

João Montanaro