pub-5238575981085443 CONTEXTO POLÍTICO.
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segunda-feira, 17 de setembro de 2018

Durval Muniz: Cristãos fascistas, como entender?

 

Um dos aspectos mais intrigantes e esdrúxulos do momento da sociedade brasileira é a adesão de setores religiosos, que se proclamam cristãos, à candidatura de extrema-direita de Jair Bolsonaro. Ainda recentemente, cerca de cem pastores se reuniram em Brasília e se definiram pelo apoio à candidatura do capitão. Havendo outros candidatos conservadores na disputa, inclusive que se dizem cristãos evangélicos, como Marina Silva, esses pastores resolveram orientar seus fiéis a votarem na candidatura mais extremista e que parece bastante distante dos valores pregados por Cristo. Enquanto Cristo pregou o amor ao próximo, amar o outro como a si mesmo, o capitão e seus seguidores tudo o que fazem é pregar o ódio, a intolerância, o desrespeito ao outro que pensa ou vive de modo diferente daquele que julgam ser o correto. Enquanto Cristo abominou tanto a violência a ponto de aconselhar que alguém uma vez agredido na face, deveria oferecer a outra a seu algoz, o candidato que se diz cristão incentiva a violência, a agressão, sugere que se deve matar seus adversários, tendo espalhado tanta raiva que ela acabou se voltando contra si. Afinal, Cristo também disse que colhemos aqui na terra o que plantamos.
Enquanto Cristo defendeu do apedrejamento a prostituta, desafiando que aquele que não tivesse pecado atirasse a primeira pedra, os cristãos bolsonaristas adoram atirar pedra sobre aqueles que vivem estilos de vida e têm comportamentos com os quais não concordam. O capitão é uma figura misógina e machista que trata as mulheres com desprezo, naturalizando a pretensa inferioridade delas. Diversas vezes fez apologia do estupro, e considerou uma derrapada ou uma fraqueza ter posto no mundo uma filha. Enquanto Cristo, ainda na cruz, perdoou o ladrão que estava a seu lado, o candidato da direita defende simplesmente a eliminação física, o assassinato de bandidos e malfeitores, o uso da violência, das armas e da matança para se resolver problemas sociais complexos. Enquanto Cristo pregou o perdão e a solidariedade, o capitão prega a vingança e a intolerância. Enquanto Cristo expulsou os vendilhões do templo, Bolsonaro, embora em adesivos seja considerado o último patriota, é o candidato do mercado porque tem um assessor para economia, Paulo Guedes, que se rege pela cartilha neoliberal e está disposto a vender o país para os interesses internacionais. Enquanto Cristo foi socorrido e teve sua sede aplacada por uma samaritana, uma mulher palestina que, já naquele tempo, era considerada pertencente a uma raça inferior aos judeus, o candidato de parcela dos militantes cristãos é explicitamente racista (embora os ministros do Supremo Tribunal Federal, possivelmente seus eleitores, não conseguiram ver racismo no capitão ter dito em alto e bom som que os moradores de quilombo nem para procriar prestavam), define os índios como vagabundos e como um entrave para o desenvolvimento do país, faz piadas de péssimo gosto com os grupos étnicos minoritários. Enquanto Cristo beijou leprosos e acolheu pessoas com toda sorte de enfermidades, que atendeu todos aqueles considerados párias da sociedade, o capitão faz da diferença um estigma, açulando os preconceitos sociais mais básicos contra os mais vulneráveis, açulando o ódio e a intolerância em relação a gays, lésbicas, travestis, transexuais, restituindo a ideia ultrapassada de que sejam doenças. Inúmeras vezes disse preferir que um filho nascesse morto a ser homossexual. A sua crueldade contra os mais vulneráveis é profundamente anticristão.
O mais chocante, no entanto, é ver pessoas que se dizem seguidoras e fiéis de um homem que foi vítima de tortura, que foi seviciado pelos seus inimigos e levado à morte infamante numa cruz, se colocar ao lado de um defensor da tortura, ter como candidato à vice-presidente um general que defende publicamente o assassinato de pessoas. Não sabemos qual a maior barbárie, se é daquele que defende tais ideias, ou se é daquele que segue e vota em uma pessoa como essa. Se é inegável que o pensamento cristão foi fundamental para o desenvolvimento do que chamamos de civilização ocidental, isso se deve pelo caráter humanista e generoso de muitas de suas formulações, independente do que os homens tenham feito ou façam com elas. Como seguidores de Cristo, um homem que foi flagelado a chicote, que teve sua fronte varada por espinhos de uma pretensa coroa, que teve que arrastar a pesada cruz de madeira onde iria ser morto por um longo trajeto em subida, que caiu algumas vezes, ferindo os joelhos, que teve pregos cravados nas mãos e nos pés, que padeceu fome e sede, que ao pedir água recebeu uma esponja embebida em vinagre, que teve seu flanco perpassado por uma lança e, mesmo assim, perdoou a todos, se colocam ao lado de um político que publicamente, num dos momentos mais tristes para a democracia brasileira, ofereceu o seu voto ao torturador da presidente da República, num gesto abjeto em que se reuniu machismo, misoginia e crueldade sádica.
Ainda hoje recebi em meu celular um print de uma conversa no Facebook em que uma mulher, o que causa mais pasmo, dizia que Bolsonaro iria dar vida e educação a seus filhos, quando ele nem sequer educação pessoal tem que dirá dar educação a alguém. Seus comportamentos e falas deseducam, são uma ameaça para nossas futuras gerações. Como alguém que só prega a violência e a morte pode dar vida a alguém? Cristo veio ao mundo para dar nova vida e foi morto pelas elites judaicas, pelos fariseus, os privilegiados da época, porque viram nele uma ameaça à ordem, um transgressor, um perigo para seus privilégios. Sua mensagem, pregando que os ricos teriam enorme dificuldade em entrar no reino da glória desagradou as elites econômicas, políticas e religiosas de seu tempo. Se existisse o termo, possivelmente ele teria sido considerado um comunista. No entanto, as ditas lideranças cristãs de hoje estão pouco dispostas a fazer o que Cristo aconselhou ao jovem rico que lhe procurou perguntando o que fazer para se salvar, ou seja, vender tudo o que tivesse e se juntar a ele. Ao contrário, muitos do que usam o seu nome, muitos dos que se juntam a Ele hoje é para enriquecer à suas custas, é para acumular fortunas em seu nome, construindo templos nababescos para alguém que passou sua vida a pregar em desertos, praias e montanhas, que dormiu ao relento com seus apóstolos e que no Sermão da Montanha ensinou a viver uma vida simples. Muitos desses que se dizem cristãos e apoiam Bolsonaro, como ele próprio, levam uma vida muito distinta daquela por ele ensinada. Enquanto ele amou os pobres, esses que bem poderiam ser nomeados de sepulcros caiados, como ele chamou aos hipócritas que também pululavam em seu tempo, se aproveitam das carências e da ingenuidade dos mais pobres, oferecendo milagres e graças em troca do pouco que possuem.
Cristo escolheu seus apóstolos entre os homens mais simples de seu tempo, entre os trabalhadores. Ele confiou seu legado e sua mensagem a um pescador. Enquanto hoje, aqueles que se reúnem em torno da candidatura de Bolsonaro o fazem para evitar que possamos ter um governo que volte a cuidar minimamente dos mais pobres, que reconheça os direitos dos trabalhadores, surrupiados pelo governo dos golpistas. Há no apoio a Bolsonaro uma clara recusa a um retorno a um governo preocupado mais com o trabalho do que com o capital, com o lucro, com a banca. Aquele candidato que pretensamente defende as famílias, porque se deixa levar por preconceitos moralistas em relação aos avanços civilizacionais realizados nas relações de gênero e nas próprias relações familiares, promete continuar realizando uma política econômica e desmontando as políticas sociais sem as quais não é possível sequer a existência de vida familiar. Políticas que jogam milhões de lares na miséria, no desespero, na falta de esperança, na violência, na criminalidade, podem ser tudo, menos favoráveis as famílias.
Mas, alguns elementos podem ser arrolados para que compreendamos de onde advém essa adesão de uma parcela expressiva dos cristãos e, mais particularmente, dos evangélicos à candidatura de Bolsonaro. Além do fato de que ele hipocritamente tenha ido se banhar no rio Jordão, se batizar e se dizer um evangélico, embora tudo que fale e muito do que faz seja uma negação desse cristianismo, ele atende a certos traços que, ao longo do tempo, marcou a produção de corpos e mentes entre os evangélicos que, durante muito tempo se constituíram em uma minoria religiosa, muitas vezes perseguida e estigmatizada no Brasil. A maioria das comunidades evangélicas surgiu a partir da atuação de missionários estrangeiros, que possuíam formas culturais diferentes e recusavam a se integrar a cultura brasileira, majoritariamente católica, considerada depravada e imoral, quando não diabólica. As comunidades evangélicas cresceram enfatizando suas diferenças em relação à sociedade inclusiva. O rigor das regras morais e de comportamento impostas visavam diferenciar essas comunidades dos católicos e, notadamente dos seguidores de religiões de matriz africana, contra os quais se tinha o maior preconceito. Esse isolamento e essa enfâse na diferença na construção da identidade evangélica, fez surgir entre os evangélicos uma ideia de pureza e superioridade em relação aos demais. Os convertidos a alguma religião evangélica, costumavam e costumam dizer que abandonaram o mundo, que se retiraram da vida mundana, passando a viver, pretensamente, uma vida sacralizada fruto da graça e da bênção. Esse pretensa aristocracia moral é um passo para a intolerância em relação a quem leva uma vida diferente ou tem valores e comportamentos distintos. O fechamento das comunidades evangélicas, agravado pelo preconceito que sofriam por parte dos católicos, se tornava e se torna um caldo de cultura para o desenvolvimento de uma subjetividade de grupelho, um investimento coletivo de desejo reativo a sociedade inclusiva e a quem a representa.
Diante da crescente fragilização dos vínculos sociais trazidos pela velocidade das mudanças em amplos aspectos da existência, diante da fragilização dos vínculos domésticos trazidos pela sociedade do capital, diante da destruição dos laços comunitários, com o crescimento da solidão e do isolamento, as denominações evangélicas, por não serem, em sua maioria, igrejas de massa como a Igreja Católica, podiam e podem oferecer um simulacro de vida comunitária e até de vida familiar alternativa. Pessoas sozinhas e perdidas encontram nas igrejas seus novos irmãos, constituindo subjetividades coletivas de fusão, marcadas por laços muito mais afetivos, passionais, do que racionais. Os outros, os diferentes, o mundo lá fora se torna aqueles que devem ser convertidos nesse dentro comunitário do qual não se considera mais possível sair ou viver sem ele. As comunidades evangélicas rapidamente se tornaram lugares em que um rebanho se forma em torno de um pastor que se intromete e dirige todos os momentos da vida do fiel. Isso foi um passo na direção de tornar as igrejas currais eleitorais dos pastores, com irmão votando em irmão, inclusive com o uso de recursos arrecadados entre os fieis para financiar campanhas. Uma instituição disciplinar e totalitária na qual só há obediência ou exclusão, expulsão. A busca por padronização das condutas, a vigilância constante que um passa a exercer sobre o outro, o medo do pecado, do demônio, das coisas do tinhoso, faz muitas pessoas se tornarem fóbicas sociais, com dificuldade de conviver com o estranho, com o distinto, disso é um passo para o ataque e agressão aquele que parece ameaçar de contaminação a pureza duramente conquistada, a custas de muita asceses e sacrifício de seus desejos. Os maiores inimigos se tornam aqueles que não se proíbem, que desfrutam de prazeres e alegrias que pretensamente comprometem uma vida verdadeiramente cristã. Esquecendo que Cristo fez questão de marcar a diferença de seu ministério ao iniciá-lo numa festa e realizando como primeiro milagre a transformação de água em vinho. Como muitos ao se tornar evangélicos transformam a água de sua vida em vinagre, só tem amargor e fel para distribuir para todos. Só pessoas muito infelizes e amargas podem pensar que um admirador de torturadores, um despreparado emocional e intelectualmente, pode vir a ser alguém que trará vida a nação.
Muitos evangélicos e cristãos se acham no direito de atirar pedra em quem não pensa como eles, como aconteceu com uma menina no Rio de Janeiro, apedrejada por evangélicos ao sair de um terreiro de candomblé. O calvinismo, uma das doutrinas que deu origem ao puritanismo, pregava a existência de pessoas predestinadas à salvação pelo próprio Senhor. Muitos entre os evangélicos se tornam pessoas pretensamente puras, predestinadas, uma espécie de casta privilegiada pelo divino, que se julgam no direito de discriminar, quando não de perseguir como sendo gente diabólica, os crentes de outras religiões, os homossexuais, os travestis, os transexuais, as feministas, os comunistas, etc. Essas subjetividades autoritárias e intolerantes se encontram e se veem no sujeito intolerante e autoritário que é Bolsonaro. Não há demonstração maior de autoritarismo do que o militante evangélico a querer converter a todos em qualquer lugar e hora, impondo sua fala a quem não o quer ouvir, impondo sua música a que não quer escutar, se achando no direito de ocupar o espaço do outro sem sequer pedir licença. Eles se pretendem possuidores de uma única Verdade, a verdade que leem, muitas vezes de forma equivocada e precária em partes da Bíblia, um livro que é uma reunião de textos de épocas, tradições e autores diferentes, cheio de contradições, do qual se escolhe a passagem que se quer e que permite embasar a atitude preconceituosa e intolerante daquele que se diz portador da Verdade. O capitão, até na forma de falar, também parece possuir a Verdade, ele é o dono da verdade, até porque foi o próprio Deus que a revelou. Muitas vezes ficamos perplexos vendo dois cristãos conversando e relatando as vontades de Deus, de forma a pensarmos que deve ter tido uma conversa íntima com Ele. Não há possibilidade de vida democrática e republicana sem o debate e confronto de ideias e, para isso é preciso que a verdade seja algo que não pertença a ninguém mas que se construa nas discussões. Aquele que se julga com a Verdade, também se julga no direito de julgar o outro, desqualificar suas ideias e suas falas. Daí porque Bolsonaro e seus seguidores serem uma ameaça à democracia e à República. O fascismo se alimenta desses desejos de pureza, de superioridade, de distinção, de segregação, de conversão do outro, se necessário à força, de eliminação do outro, de verdade absoluta. Podemos entender porque setores ditos cristão tenham aderido ao fascismo, isso já ocorreu no passado, tanto na Itália, quanto na Alemanha. Essa busca por um governo de escolhidos, de semelhantes, de irmãos na fé e na crença, moralmente superior e puro, um governo que garanta a ordem, a segurança das famílias, é um passo para a adesão ao fascismo que, como podemos ver na atual campanha, com a peixeirada que vitimou o próprio candidato da intolerância, é um passo também para um regime de força, para um regime antidemocrático e assassino.

Durval Muniz de Albuquerque é historiador e professor titular aposentado da Universidade Federal do Rio Grande do Norte

(Artigo publicado originalmente no site Saiba Mais, Agência de Reportagem, aqui reproduzido com autorização do autor)

Charge! Duke via O Tempo

sábado, 15 de setembro de 2018

Crônica: Crônica de Jampa


 
José Luiz Gomes
 
Num desses encontros com o comendador Arnaldo, decidimos, em conjunto, escrever um guia histórico, turístico e sentimental da cidade de João Pessoa. O projeto caminha muito bem, porque, como já disse por aqui, Arnaldo, um jornalista com mais de 40 anos de batente, conhece cada palmo de Jampa, onde veio estudar ainda na condição de um adolescente. Aqui estudou, aqui se formou, aqui trabalhou, passando pelos principais jornais do Estado, pelo rádio e pela televisão. Pessoense convicto, curtiu bastante a cidade. Não apenas como profissional de imprensa, mas como um apaixonado pela cidade, suas ruas, suas pontes, seus becos e vielas, suas pensões, suas praças, seus recantos, seus redutos boêmios, seus botecos, suas casas de prazeres da carne. Como disse em outro momento, para se conhecer bem uma cidade é preciso senti-la, passeá-la, tocá-la, comê-la. Quem pode dizer que conhece o Recife sem ter comido uma rabada no Mercado de São José? ou conhece Belo Horizonte sem ter degustado um jiló com fígado no Mercado Central? Hoje esses points estão se constituindo em verdadeiras “sínteses” dessas cidades.
Olinda, por exemplo, sem um conceito muito bem definido para o mercado Eufrásio Barbosa, tornou-se uma cidade sem gosto, sem tempero, salvo apenas pelas tapioqueiras do Alto da Sé. É uma cidade turística onde os visitantes entram, visitam e vão embora sem dar uma passadinha pelo seu mercado central. Há bons restaurantes, não resta a menor dúvida, mas nada que se compare ao aconchego de um Mercado Central  e o Eufrásio Barbosa bem que poderia cumprir esse papel. Essa questão é tão séria que o conceito introduzido no Mercado do Rio Vermelho, em Salvador, está superando o tradicional Mercado Central, na cidade baixa. Assombração não há por ali, mas o fedor é perceptível, quando você sobe a escadaria para o pavimento superior. João Pessoa tem uns tantos deles. Além do central, ali no bairro da Torre, você poderá encontrar o do bairro de Mangabeira, de Tambaú, também conhecido como mercado das frutas. Pequeno, mas um pequeno que satisfaz, com sua variedade de frutas, carnes, frios e artesantos típicos da região.
 
Prometo aos leitores que voltaremos a tratar desses mercados com mais atenção. No momento, vamos começar pelo começo da cidade, quando ela ainda se chamava de Cidade Real de Nossa Senhoras das Neves, fundada pelos idos de 1585. Jampa é a 3ª cidade mais antiga do Brasil. Já nasceu cidade, sem passar pela condição de vila ou aldeia. Foi fundada pela Cúpula da Fazenda Real, uma Capitania da Coroa, desmembrada da Capital de Itamaracá, que então controlava uma grande extensão de terra da Paraíba. João Pessoa é uma cidade que expandiu-se para o litoral apenas a partir de 1940, como um projeto de intervenção na Lagoa dos Irerês, hoje Parque Solon de Lucena. A partir dessa intervenção urbanística, avenidas foram abertas em direção à orla, mais precisamente no sentido leste , em direção ao bairro de Tambaú. O historiador Gilvan de Brito assegura que a decisão de formar um núcleo populacional às margem do Rio Sanhauá, em sua margem direita, atendeu a um objetido militar dos mais notáveis, tornando João Pessoa uma fortaleza inexpugnável sob domínio da Coroa Portuguesa. Inexpugnável assim nem tanto, pois a capital da Paraíba esteve sob domínio holandês durante um determinado período de sua História. Mas isso eu conto para vocês nas próximas crônicas.  

Charge! Renato Aroeira

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Charge! Machado via Folha de São Paulo

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sexta-feira, 14 de setembro de 2018

Crônica: Rio Sanhauá





José Luiz Gomes 

O projeto de escrever um guia histórico, turístico e sentimental de João Pessoa, necessariamente, nos contingenciam a realizar visitas frequentes àquela cidade, o que não se constitui, naturalmente, num problema, mas algo que fazemos com grande entusiasmo. Ainda no domingo, estivemos na Praça João Pessoa, e o comendador Arnaldo, com aquele humor cáustico que o caracteriza, já sentencia. -Luiz, eu não sei se o puteiro aqui é maior durante o dia ou durante à noite. A analogia logo fica clara. Ali, nas suas imediações, ficam as sedes do Executivo e do Legislativo Estadual. À noite, a praça vira um reduto de prostitutas e travestis. Numa crônica recente, sobre o Recife, observo a necessidade de se conhecer uma cidade em seus distintos momentos. Durante o dia, à noite, madrugada a dentro. Não raro, são necessários alguns flagrantes, assim inusitados, onde se pode obter informações mais relevantes, dessas que escapam às primeiras impressões. Eis aqui uma lição que aprendi com o comendador Arnaldo, um profundo admirador da “bagaceira”, dos botecos, das ladeiras, das esquinas, dos escondidinhos da cidade.

A convite do “Mago”, até frequenta um Gulliver ou um Mangai, mas apenas de vez em quando, quando a necessidade obriga. Prefere mesmo é a comida do Mercado Municipal do bairro da Torre, acompanhada de uma caninha do Brejo e a prosa dos colegas da confraria. Na semana passada, a partir do sítio histórico, contemplamos uma vista magnífica do Rio Sanhauá, um afluente do Rio Paraíba, que banha a capital pessoense e a cidade vizinha, de Bayeux. Hoje bastante poluído pelos esgotos e dejetos jogados em seu leito pela população ribeirinha, cujas casas não possuem saneamento básico. Mesmo nessas condições degradadas, fornece o alimento para a sobrevivência dos pescadores que se dedicam à pesca artesanal. Alguns tipos de peixes, goiamuns, caranguejos e crustáceos ainda são possíveis de ser capturados em seus manguezais vistosos. Embora hoje desativado, dizem que o antigo lixão do bairro do Roger ainda  despeja o chorume no seu leito, contribuindo para agravar ainda mais o problema da poluição. 
Como disse antes, o Rio Sanhauá é um dos afluentes do Rio Paraíba, dos romances do escritor José Lins do Rego. Diante da crise hídrica que atravessamos, outro dia, aproveitamos a oportunidade para visitar a cidade de Pilar, por onde ele passa, bem pertinho do Engenho Corredor, onde o escritor viveu sua infância, batizando-se naquelas águas; apavorado com suas enchentes de outrora; e, nas estripulias típica de um menino de engenho, observando o molejo dos latifúndios dorsais das negras escravas que lavavam roupas no seu leito, como sugeria o amigo Gilberto Freyre. o Rio Sanhauá é uma referência histórica para a capital do Estado. João Pessoa nasceu ali, na sua vizinhança. Apenas depois - muito depois, aliás - é que o abandonou pelos encantos litorâneos de Tambau.

quinta-feira, 13 de setembro de 2018

Crônica: O Recife de Paulo Fernando Craveiro.

 
 
 
José Luiz Gomes
 
 
Hoje, logo cedinho, os correios - apesar das críticas e dos problemas que enfrenta - nos reservou uma bela surpresa. Um pacote de crônicas, escritas por dois monstros. Um paraibano, Paulo Fernando Craveiro - paraibano de pernambucano, é bem verdade -, e o papa capixaba, Rubem Braga. Difícil mesmo foi definir quem iríamos ler primeiro. Mas, sobretudo em razão de um projeto que desenvolvemos com o comendador Arnaldo, optamos por começar a leitura dessas crônicas pelo livro Prefácio do Recife, de Paulo Fernando Craveiro. Aliás, nossa relação com as crônicas do jornalista e escritor Paulo Fernando Craveiro é antiga, desde os tempos em que ele as publicava nos jornais recifenses. Um deleite ler essas crônicas sobre o Recife, sua história, suas ruas, seus bairros, sua gente, seus poetas, seus mangues, seus cajueiros. Ah! Os cajueiros do Recife, pelos quais o cronista era um apaixonado, colocando suas flores no mesmo patamar das famosas flores das plantas de Sevilha, na Espanha. De um tempo, Mauro Mota, onde se podia apreciá-los ainda num tom amarelado.
 
Há um tratamento especial do autor ao Rio Capibaribe, descrevendo sua trajetória até chegar à província, para molhar a cidade, entrando ali pelo bairro de Tejipió. Para a população ribeirinha, dos bairros alagados, o rio também chega para alimentá-la, fornecendo caranguejos, goiamuns, mariscos e crustáceos, que eles recolhem para o seu sustento. Craveiro é um cronista dotado de uma grande sensibilidade social. Descreve a miséria e a exclusão da população recifense com poesia, não permitindo que tais revelações comprometam sua narrativa, mas nos alerta para os problemas de uma grande cidade, com seus moradores de rua, seus ambulantes, ladrões, cheira-colas, putas e degredados de toda as espécie, Michel Foucault. Este é Recife de Paulo Fernando Craveiro, da Ponte Velha, das palafitas do Pina, do bairro de São José, da Rua da Harmonia, da Saudade, da Concórdia que, naqueles tempos, a população ainda mantinha o hábito de conversar sobre a vida alheia nas calçadas, no final de tarde. Bons tempos aqueles, diriam as fofoqueiras contumazes.
 
Em razão de suas atividades profissionais, Craveiro viajou bastante. Conheceu muito países, mas não esconde sua alegria ao retornar ao Recife, contemplar as flores do seu jardim, os cajueiros do quintal, ali na Rua São Salvador, no bairro do Espinheiro que, segundo ele, tinha um brilho todo especial. Há algumas décadas atrás, o bairro do Espinheiro era o bairro dos endinheirados do Recife. A leitura do livro do cronista nos proporcionaram a oportunidade de escrever bastante sobre o Recife, algo que devo compartilhar com os leitores daqui para frente, através deste espaço. Craveiro chegou ao Recife com apenas três meses de idade. A rigor, a rigor, é um recifense. Confidencia que uma de suas alegrias de infância era  embrenhar-se pelos mangues do bairro do Derby, banhado pelas águas do Capibaribe, depois das aulas, para capturar goiamuns e caranguejos, numa atividade pouco comum aos bem-nascidos, mas que deveria proporcionar alegrias indescritíveis ao cronista.
 
As crônicas de Craveiro nos revelam gratas surpresas, como a Mulher Deitada que ele encontrou ali no bairro de Casa Amarela. Craveiro descreve o Recife visto das suas pontes, pela lente dos seus poetas, como Carlos Pena Filho, Ascenso Ferreira, João Cabral de Mello Neto, Mauro Mota, Joaquim Cardozo. Um Recife molhado pelas chuvas de Agosto; observado de uma varanda de um quinto andar de um prédio; da praia de Boa Viagem, uma das poucas referências em crônica, que também escreveu quando esteve por aqui, o Sabiá. Só se escreve quando se lê e, ao que presumimos, Paulo lia bastante sobre o Recife. Mas não basta apenas ler, no caso de uma cidade, é preciso senti-la, passeá-la, examiná-la, comê-la em distintos momentos, para saber como ela reage de dia, de noite, madrugada a dentro, em seus redutos de boemia. Craveiro cumpriu fielmente esse rito. A melhor descrição do modo de vida da população dos mangues do Recife não está em Josué de Castro, mas no Moleque Ricardo, porque o seu autor, José Lins do Rego, conhecia muito bem o Recife, em suas andanças com o amigo sociólogo Gilberto Freyre.  

terça-feira, 11 de setembro de 2018

Quais as razões do seu voto?

Quais são as razões do seu voto?
Tarso de Mel
                                                                                

Quais são as razões do seu voto?
Se há consenso entre quem não quer ver a vida por aqui piorar, é que temos que agir (Reprodução/Revista CULT)

Retrocesso após retrocesso, derrota após derrota, tragédia após tragédia, ouço meus amigos perguntarem até quando vamos tolerar tanto retrocesso, tanta derrota, tanta tragédia. Não achamos respostas e, a cada nova pancada, as perguntas ficam ainda mais pesadas. Alguns dizem logo: tudo vai ficar ainda pior – e nisso não há uma resposta. Outros preferem se alienar do debate político – e aí também não há uma resposta. Dizer, instruidíssimo, que nada vai barrar essa onda terrível ou, alienadíssimo, tapar os ouvidos para levar sua vida pessoal em frente, no fundo, são posturas com o mesmo efeito prático. Retrocessos, derrotas e tragédias não escolhem suas vítimas apenas entre aqueles que resistiram: atingem a todos que não puderam fugir.
No entanto, entre aqueles que não querem apenas assistir à vida por aqui se tornar ainda mais insuportável, se há algum consenso, é que temos que agir com urgência. É claro que toda essa onda vai bem além da eleição e o resultado das urnas não trará soluções mágicas, mas é inevitável que, neste momento, a pergunta “o que fazer?” se reduza à simples “em quem votar?”. Num certo sentido, as mesquinharias da eleição adiam debates e tarefas mais importantes para a esquerda (a propósito, escrevi sobre essa questão na CULT que chega às bancas nesta semana).
Quando nos perguntamos “em quem votar?”, tendo no horizonte retrocessos, derrotas e tragédias, é como se estivéssemos, enfim, diante da oportunidade de dar uma contribuição verdadeira para resolver alguns (e evitar outros) problemas do país. Com a proximidade do momento em que apertaremos as teclas na urna eletrônica, não é mais possível se esconder detrás daquele “nós” indeterminado que pergunta, a cada notícia ruim, “quando é que vamos fazer alguma coisa?”. Eu, meu título de eleitor e a cabine, enfim, fechamos um circuito em que expressões abertas como “os brasileiros”, “o povo”, “os trabalhadores”, “os pobres” não me socorrem mais.
É claro que não estou falando aqui de quem afirma “voto porque sou obrigado” ou “o voto é secreto, então é problema meu”. Refiro-me aos eleitores que, a despeito da obrigatoriedade, pensam com responsabilidade em seu voto e, a despeito do segredo, querem poder declarar e defender as razões do seu voto neste ou naquele candidato. A meu ver, essa é a parte do eleitorado que está neste momento buscando respostas para as questões que fiz no início do texto e, mais que tudo, perguntando com sinceridade a si próprio: “do que não abro mão na hora de decidir meu voto?”
Sem dúvida, esta é uma questão difícil. De início, apesar do seu caráter subjetivo, as razões do voto deveriam se limitar por alguns parâmetros objetivos. Por exemplo, se o voto é próprio da democracia, minhas razões para votar jamais poderiam ser antidemocráticas, mas estamos muito distantes disso. Não apenas no Brasil, parte expressiva dos votos tem sido uma espécie de reação à democracia, porque, basta surgir algum avanço democrático, logo aparece um candidato que surfa na defesa dos valores que, supostamente, foram atingidos por aquele avanço. Lembremos, para ilustrar, de tantos candidatos que se projetam defendendo “a família” contra o que afirmam ser a “degeneração dos valores tradicionais”, quando, na verdade, tal avanço decorre apenas do respeito à igualdade, à diversidade e a tantos outros direitos fundamentais.
No mesmo sentido, é lamentável que, após 30 anos de Constituição democrática, as campanhas eleitorais, em todos os níveis, apresentem uma participação crescente de candidatos que ostentam patentes militares (cabos, sargentos, tenentes) ou credenciais religiosas (bispos, pastores, missionários) e, mais que isso, são bem-sucedidos nas urnas em razão de propostas francamente antidemocráticas.
E o mesmo vale para outros parâmetros, também fixados na Constituição, que temos sido obrigados a debater novamente a cada eleição, como se não existissem, nos campos da economia, da cultura, dos direitos sociais, entre outros. Por conta disso, somos levados a debater as razões do voto num ambiente completamente sem margens, em que todos os posicionamentos têm o mesmo valor a despeito de corresponderem a ou, frontalmente, ofenderem diversos direitos e garantias.
No caso da eleição presidencial, chega a ser hilária a forma como discursos e programas dos principais candidatos atropelam quaisquer limites (entre as instituições, entre os países, entre o real e o sonho), como se, começando a frase com “no meu governo…”, ao eleito tudo fosse permitido – e possível. E, entre os efeitos perversos desse descolamento entre o que verdadeiramente está em jogo na eleição e as pirotecnias da promessa, está fazer com que, a cada eleição, vários eleitores se digam desiludidos e migrem para o bloco dos que não querem saber de política ou votam “contra tudo que está aí”. E a presidência é apenas a ponta desse triste iceberg.
Neste ano, em especial, a disputa pela presidência está sufocando, mesmo entre os eleitores mais dedicados, a atenção para os demais cargos, num momento em que, além da chefia do Executivo federal, estão em disputa todos os cargos de governador, deputado federal, deputado estadual e dois terços do Senado. Bem sabemos que é principalmente no Legislativo que retrocessos, derrotas e tragédias costumam ser promovidos ou evitados. Ainda que o Executivo seja decisivo para nossas alegrias e tristezas (Lula e Temer que o digam, respectivamente), bem pouco acontece sem passar pelo Legislativo e, cada vez mais, pelo Judiciário, que, não obstante, segue blindado a quaisquer formas de democratização de sua própria estrutura.
O nó, portanto, é dos mais complexos, porque entre as razões de cada voto deve estar a compreensão de que, por mais insignificante que seja nossa decisão pessoal no todo do eleitorado e, mais ainda, na correlação de forças dentro do Estado e da sociedade, o voto integra um esforço coletivo para que seja respeitado um determinado conjunto de decisões políticas protegidas constitucionalmente, que não podem ser simplesmente descartadas a cada eleição, porque, sem respeitá-las, não faz mais sentido qualquer uma das instituições. Por isso, votar em quem quer destruir até mesmo a possibilidade do voto ou em quem quer negar direitos e realizar políticas mirabolantes contra o núcleo fundamental da Constituição Federal, não é apenas um contrassenso. É uma forma de tornar nossos males ainda maiores.

(Publicado originalmente no site da revista Cult)

sábado, 8 de setembro de 2018

Tensas relações entre arte e política: as vanguardas e o modelo etnográfico

Tensas relações entre arte e política: as vanguardas e o modelo etnográfico
Alessandra Parente

Tensas relações entre arte e política: as vanguardas e o modelo etnográfico
Out of Bounds, 2015, Ibrahim Mahama (Foto: Divulgação/Alex John Beck/Artsy)

Quando o mundo está de pernas para o ar e há quem ranja os dentes, babe de ódio ou até enalteça armas de fogo na vida política, não raro imagina-se que a melhor forma de resistência seja pender, tão rápido quanto possível, para outro lado, no qual ainda restam intactos sinais de bom-senso e sanidade. Renuncia-se às sutilezas, aos detalhes, à complexidade e aceita-se de pronto tudo que preserve feições civilizadas. Dito de forma sucinta: ante circunstâncias tão insólitas, advoga-se a irrelevância das minúcias. Primar pela reflexão cuidadosa ou atentar para pequenas diferenças emerge, então, como sinal de futilidade – não é incomum que tenazes análises da situação sejam vistas como veleidades. O que passa a interessar é um bem maior, contrário a qualquer marca de barbárie.
Falar sobre arte parece ainda mais grave – luxo descabido, disparate excêntrico. Violar juízos dessa natureza, porém, é uma das razões deste texto. Outra é uma aposta de que o gesto de zelar pelos pormenores torna-se, em si, espécie de antídoto contra a barbárie. Igualar arbitrariamente diferenças ou simplificar dificuldades implica renunciar à árdua tarefa de garimpar os mais preciosos afetos e ideias – o medo do pior pode levar tudo de roldão, até as melhores coisas.
Falemos, pois, sobre arte. Tratemos, em verdade, de aspectos ainda mais particulares: certas sutilezas psíquicas em processos de produção e recepção de obras artísticas e algumas diferenças formais atreladas às peças de arte que resistem à barbárie ou que se pretendem mesmo revolucionárias.
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Depois de ter sido duramente criticado por Theodor Adorno em sua Teoria estética (1970), o conceito freudiano de sublimação atravessa as balizas exclusivamente clínicas da psicanálise; ainda que atacado, penetrou irreversivelmente o campo da Estética.
O conceito de sublimação era, como Freud fora em termos de arte, anacrônico até mesmo para as primeiras décadas do século 20. Guardava sabores conservadores que, junto ao ar novo, também compunham o gosto da Belle Époque. Seu mérito, de todo modo, foi radiografar, pela primeira vez, detalhes da engenharia psíquica no ato da criação ou da recepção da obra.
Mas traçar o conceito de sublimação não foi o último passo dado por Freud no campo da Estética. Logo após a guerra, Freud desenhou uma nova categoria que, ao contrário da sublimação, vibra potente ainda hoje: das Unheimliche.
Talvez não seja exagero considerar que o grupo de críticos americanos, reunido em torno das publicações da revista October, seja aquele que mais sistematicamente utilizou conceitos da psicanálise para suas análises da arte contemporânea. Coordenada por Rosalind Krauss e Annette Michelson, a revista conta, entre outras, com a contribuição de Hal Foster, proeminente nome da crítica de arte. A articulação entre obras artísticas e as teorias freudiana e lacaniana abriu caminhos verdadeiramente inéditos no campo da Estética. Entre o vasto trabalho de Hal Foster, o fenômeno unheimlich ganha lugar especial no estudo sobre o surrealismo em Beleza Compulsiva.
Seguindo Freud, Foster percebe a íntima relação entre trabalhos surrealistas e a experiência do trauma: “se o maravilhoso como leitmotiv do surrealismo envolve o Unheimliche, e se a experiência unheimlich, como o retorno do reprimido, envolve trauma, o trauma deve, de alguma forma, estar no interior da arte surrealista […]”.
Na psicanálise, o trauma está ligado à temporalidade (Nachträglichkeit) e ocorre em dois estágios: seguindo a ordem cronológica, o tempo 2 ocorre antes e se refere às marcas do recalque originário, e o tempo 1 é o do aprèscoup ou o da nachträglich (só-depois). O trauma é a única maneira de estabelecer elos entre impressões mnemônicas do infantil e a força do presente. Ou seja, para que seja possível conceber alguma ordem temporal, o tempo 1 – que ocorre só-depois – deve incidir sob a forma de um golpe sobre os nós psíquicos do tempo 2 – que ocorre cronologicamente antes. Só pelo golpe do trauma estabelece-se a lógica psíquica do antes e depois, só ele torna possível a articulação de uma representação temporal.
Como efeito do trauma, muitas obras expressionistas, dadaístas ou surrealistas embaralharam a narrativa temporal que prevalecia na tradição e pressionaram antigos contornos formais e discursivos para novas configurações. Daí que seja possível observar como a engrenagem psíquica entre aqueles que produzem obras expressionistas ou surrealistas e aqueles que com ela se defrontam está muito próxima da descrita por Freud em das Unheimliche.
Não é difícil notar, que o recurso do estranhamento traumático ainda integra fortemente obras artísticas contemporâneas. Basta lembrar de alguns dos elementos agrupados por Freud em seu texto para reconhecê-los também no campo das artes – o duplo, o palhaço, a boneca, os autômatos, os fantasmas, os animais, a vagina etc. Por mais diferentes que sejam, Eduardo Berliner, Cindy Sherman, irmãos Chapman, Jane Alexander são alguns artistas que poderiam entrar no registro unheimlich. Cenas ou imagens que provocam asco, terror, medo, repulsa, mas que ao mesmo tempo atraem o olhar e incitam à reflexão – ao contrário do que atestava Gotthold Ephraim Lessing, essas peças grotescas ou monstruosas impactam e exigem mais da imaginação justamente ao escancararem violentamente os limites do repertório previamente existente.
O vigor dessas obras é incontestável, mas talvez caiba hoje a pergunta: como elas, guardando esse teor vanguardista de choc traumático, se posicionam no cenário contemporâneo da produção artística? Talvez quem melhor expresse esse impasse seja Ricardo Fabbrini, que inspirado nos escritos de Otília Arantes, expõe a seguinte passagem:
Não é possível restituir à imagem o seu poder de choc […] no sentido da modernidade artística, pois no correr do tempo esse efeito de choc rotinizou-se, perdendo assim todo efeito emancipatório – ou seja, “não liberou os potenciais cognitivos supostamente aprisionados nos domínios confinados da cultura afirmativa”. A “estética do choc”, em síntese, não configurou […] “o embrião materialista de um novo iluminismo” visado pelas vanguardas artísticas internacionais, “que finalmente desaguaria na conformação de uma ordem social superior”, a Utopia.
Vanguardas e modelo etnográfico: questões atuais
Levando em conta o quadro apresentado, cabe a questão: será mesmo que tudo o que restou hoje foi o fracasso das vanguardas? Voltemos alguns passos antes de responder à essa pergunta. Alguns críticos (Arthur Danto e John Roberts) sugerem que, após a proliferação dos ready-made nos anos 1960, finalmente tivemos o que Hegel antecipou ainda no século 19: o fim da arte. Para John Roberts, nas últimas décadas esse anúncio tornou-se uma espécie de fantasma tenebroso. Em Hegel, argumenta, o fim da arte corresponderia a dois pensamentos, nenhum deles muito terrível: 1) sob novas condições pós-românticas, a força centrípeta anteriormente ligada à beleza e à mimesis acaba liberada para a abstração (conceituação) nas artes; 2) destrói-se qualquer noção de arte ligada a algo natural e, com isso, nasce um idioma próprio ao reino artístico.
De qualquer maneira, serenidade não é o que acompanha a ideia de uma arte pós-histórica. Ora vista como libertação, ora como pesadelo de declínio absoluto, o fim da arte é tópico inebriante, do qual dificilmente se escapa.
Fugindo dos termos articulados por John Roberts ou Arthur Danto e, por outro lado, admitindo como incontornável o anúncio sobre o “fim da arte”, impasses atuais podem ser divididos da seguinte maneira: 1) aqueles que interpretam o “fim da arte” como algo emancipatório, exaltando o “pluralismo estético” e o fim da lógica da autoria como conquistas a serem expandidas até a implosão do sistema capitalista, baseado no imperialismo de viés identitário e; 2) outros que veem advir, com o fim da arte, um percurso condizente com os interesses do mercado e, portanto, um retrocesso em relação ao momento anterior, no qual estava estabelecida a autonomia da arte. Vejamos melhor esses dois diferentes prismas.
Ágora: OcaTaperaTerreiro, 2016, Bené Fonteles (Foto: Divulgação/32º Bienal São Paulo)
Ágora: OcaTaperaTerreiro, 2016, Bené Fonteles (Foto: Divulgação/32º Bienal São Paulo)
Pela ótica daqueles que comemoram a queda da redoma de vidro que preservava a arte em sua condição de autonomia formal, bem como a suposta eliminação dos últimos restos heroicos do artista, fundados na ideia de autoria-criadora, a arte está a poucos passos de integrar-se aos destinos políticos e sociais compartilhados pelos demais cidadãos do mundo. Fazer cada vez mais parte da experiência cotidiana e do domínio da técnica não-artística seria, por conseguinte, caminho desejável. Inversamente a esse viés, há aqueles que veem nas ruínas da l´art pour l´art um fatal desastre, do qual só pode resultar a mais completa decadência.
Trocando em miúdos: no primeiro caso, a perda da autonomia da arte é vista como conquista, apesar do mercado de arte; no segundo, trata-se de recuperar a força inerente à autonomia da arte, supondo sua validade, enquanto o sistema burguês persiste em vigor. Seguindo este último argumento, a resistência aos moldes atualmente defendidos – contrário ao caráter heroico do artista e favorável a certo “pluralismo estético” – se deve ao pressuposto de que ainda haveria um poder da arte, quando preservado o seu lugar de autonomia. Só deste espaço isolado, supõe-se, seria possível forçar a tensão negativa contra o sistema burguês e assegurar a força revolucionária capaz de se opor a ele.
Do outro lado, o “pluralismo estético” é tratado como uma das realizações mais importantes do período pós-histórico nas artes. Como Andy Warhol, Arthur Danto comenta que todos os estilos são de igual mérito. Nenhum deles poderia se sobrepor ao outro. Claro que reconhecer tal pluralismo não significa limitar o papel da crítica – a questão do “pluralismo estético” se opõe, em verdade, à normatividade inerente à lógica ainda presente no período das vanguardas. Com elas, era comum que um estilo ou um manifesto sempre se sobrepusesse a outros. Compreender a arte como pós-histórica, como fez Arthur Danto, implica substituir a noção de sucessão temporal pela ideia de simultaneidade. Nessa espécie de relativismo cultural e de valores, a ideia de universalidade se dilui e, por outro lado, abrem-se canais inéditos para a arte de outras culturas, distantes dos cânones colonialistas ocidentais.
Dentro desse espectro, O artista como etnógrafo (1993), escrito por Hal Foster há mais de vinte anos, preserva sua vigorosa atualidade. Out of Bounds de Ibrahim Mahama (2017), exibido na última Bienal de Veneza ou Ágora: OcaTaperaTerreiro (2016) de Bené Fonteles na última Bienal de São Paulo, são apenas dois exemplos de trabalhos recentemente produzidos com estratégias e temas que poderiam ser abrangidos pela categorização estabelecida por Hal Foster. Ou seja, a técnica etnográfica ou antropológica permaneceu sólida nas artes visuais.
Essa reviravolta etnográfica na arte contemporânea, marcada principalmente pelos estudos pós-coloniais, pelos debates em torno do biopoder, pela segunda e terceira ondas feministas e movimentos LGBT, assim como pela pesquisa material no mundo artístico, não se restringe mais às instituições clássicas (estúdio, galeria, museu etc.) e amplia-se como uma rede discursiva de práticas voltadas para outras subjetividades e comunidades, bem como intervenções em espaços geográficos inusitados. O texto de Hal Foster é uma tentativa de delinear um novo paradigma, correspondente atual ao que foi o modelo da esquerda avançada, desenhado por Walter Benjamin em O autor como produtor (1934). Foster expõe a ideia do artista como um etnógrafo trabalhando em nome de um Outro cultural ou étnico. Para Foster, “embora possa parecer extremamente sutil, essa troca de um assunto definido em termos de relação econômica por outro definido em termos de identidade cultural é bastante significativa”.
Parece que, como Benjamin queria, a arte transbordou, em muitos casos, os limites circunscritos da l´art por l´art. Tornou-se um modo de estudo cultural. Depois das ousadas rupturas das vanguardas que atacavam critérios e cânones nascidos na Europa, o campo artístico ousou ultrapassar suas fronteiras, tendo como norte essa modalidade de pesquisa, a etnográfico-antropológica.
O problema do modelo etnográfico de produção artística reside no fato de que ele pode ser a mera repetição do trauma e não sua ruptura temporal, como era a produção vanguardista de teor unheimlich. Ou seja, ao invés de a arte etnográfica abrir o circuito temporal dentro da lógica do trauma, para rearticular traços reprimidos, essas tentativas de lidar com o passado oprimido repetem inadvertidamente a violência traumática no presente.
Dito com todas as letras: o viés etnográfico pode ser uma reiterada colonização traumática do Outro – mulheres, povos indígenas, africanos, LGBTs. Apresentá-lo como um objeto exótico dentro das instituições, cujos quadros foram criados para promover obras clássicas ou de vanguarda tanto do período europeu quanto do tardio, pode ser não apenas regressivo, mas extremamente violento. O risco não é menor quando artistas-mulheres ou artistas-africanos, por exemplo, recebem uma aura-fetiche ao entrarem nos sistemas de exposição e mercado artísticos. Essas poderiam ser, aliás, algumas das razões pelas quais existem resistências legítimas e justificadas ao modelo etnográfico nas artes visuais.
Recentemente, por exemplo, Ernesto Neto foi à Bienal de Veneza acompanhado por indígenas para fazer o que chamou de “ação coletiva” em uma das mais regressivas e violentas “obras”. Não se trata de exceção – muitas seguem esse método. O problema pode ser sintetizado nos seguintes termos: por um lado, é feita uma tentativa de restaurar nos ambientes artísticos uma imagem ou situação anterior à incidência da opressão – tarefa impossível, uma vez que o trauma já aconteceu (colonização, genocídio, violência misógina, racismo, etc.). Por outro lado, a defesa de um retorno ao modelo disruptivo e revolucionário das vanguardas não deixa de ser também uma posição conservadora, dado que a insurreição inerente às obras estava visivelmente voltada contra os códigos burgueses europeus anteriores à Segunda Guerra Mundial.
Como disse Peter P. Ekeh sobre a África: “Nosso presente pós-colonial foi moldado por nosso passado colonial”. Nessa breve frase, fica claro como não é possível simplesmente apagar o que já aconteceu, assim como também não é possível voltar às velhas estratégias subversivas, quando os problemas já foram colocados sob novos prismas – o que foi mérito, diga-se, de trabalhos vanguardistas.
Daí que o olhar tem que ser ainda mais fino. Não se trata, então, de descartar o modelo etnográfico. Ainda que guarde alguns problemas, ele preserva uma potência vigorosa nas estratégias artísticas atuais. Por outro lado, deve-se repensar a função do trauma incrustado nas bases formais das obras artísticas/intelectuais.
Em O autor como produtor (1934), Benjamin trata como infrutífera a velha polêmica em torno das relações entre forma e conteúdo – permito-me aqui ousar outro prisma. Longe de ser infecunda, a articulação dialética entre forma e conteúdo exige que se considere esses dois elementos separada e alternadamente, observando atentamente ora um, ora outro em suas intenções, mediações e contradições. Com isso, são engendradas as cruciais questões: a forma de uma determinada obra contradiz o conteúdo revolucionário que ela pretende trazer? A intenção revolucionária do artista é observável também nas mediações da produção e na forma assumida pelo trabalho? A forma de exposição da obra, por sua vez, elimina ou fortalece aquela intenção?
Série Debret, de Vasco Araújo, 2013 (Divulgação)
Série Debret, Vasco Araújo, 2013 (Divulgação/Bienal do Mercosul)
Como diz Walter Benjamin: o trabalho [do intelectual ou do artista revolucionário] “não visa nunca a fabricação exclusiva de produtos, mas sempre, ao mesmo tempo, a dos meios de produção.”. Acresce ainda que a “utilidade organizacional [das obras bem como de suas técnicas de produção] não precisa de modo algum limitar-se à propaganda. […]. Aliás, diz ele, “a melhor tendência é falsa se não prescreve a atitude que o escritor deve adotar para concretizar essa tendência”. Longe da propaganda barata, o artista ou intelectual “só pode prescrever a atitude [revolucionária] em seu próprio trabalho, isto é, escrevendo [ou produzindo obras de arte].
Justamente essa passagem contradiz a afirmação, feita por Benjamin, sobre o caráter estéril do debate forma-conteúdo. Dito de maneira simples: tratar da técnica implica necessariamente observar o caráter formal assumido por uma obra e sua relação com o conteúdo nela trabalhado. Forma emerge aqui como resultado da própria técnica ou meio de produção da obra. Se, como diz Benjamin, é na técnica de produção que o artista ou o intelectual tem que operar para que a obra seja tida como efetivamente revolucionária, é necessário que o olhar crítico se volte detidamente para a forma assumida por uma peça de arte ou para a obra escrita.
Deixar de olhar para os meandros da produção e tratar a obra somente enquanto produto último são atitudes que também trazem certos riscos. Um deles é a estratégia equivocada de fazer da “miséria um objeto de consumo” ou pior: transformar “em objeto de consumo a luta contra a miséria”. Ao escrever essa observação, Benjamin tinha em mente artistas da Neue Sachlichkeit que, em sua visão, exemplificam bem a aparência revolucionária a serviço da diversão ou da distração burguesa. Nesse caso, a vontade de decidir no interior da luta política converte-se em artigo ofertado como objeto de consumo – nada diferente disso poderia ser dito sobre algumas obras contemporâneas.
Por isso, seria necessário analisar singularmente cada obra, vendo-a em relação ao conjunto de trabalhos do artista e, ainda, como tal produção se articula no campo no qual se situa. Tudo isso em zonas de atritos e tensões dialéticas permanentes.
Há um elemento suplementar, porém, que a estratégia etnográfica introduziu no campo cultural contemporâneo e que definitivamente deve ser levado em conta: a voz concreta daqueles que antes integravam as obras apenas como objetos-temas.
Para dizer da forma mais simples possível: pode ser que, vivo hoje, Paul Gauguin tivesse que responder a delicadas questões levantadas pelos espectadores, representados na própria pintura. Questões sobre colonização, sobre lugar de fala e de representação, sobre limites da atual configuração acadêmica de arte e de produção intelectual estão na ordem do dia. São incontáveis os exemplos recentes de embates entre público e artista/intelectual (tensões como as vividas a partir dos debates entre Daniela Thomas e Juliano Gomes, Dana Schutz e Hannah Black, Mirna Anaquiri Kambeba Omágua-Yetê e Lúcia Hussak van Velthem, Erinma Ochu e Judith Butler são apenas poucos exemplos).
Falas que brotam da plateia de forma profundamente intensa e vibrante, muitas delas cheias de dores e marcas traumáticas que ultrapassam a experiência singular do enunciador. Palavras às vezes desarticuladas, outras vezes visceralmente engajadas, trazem a carga de histórias compostas de feridas atuais e longínquas – catástrofes incalculáveis. Do lado do palco, a inquietação não é menor – ante os limites de suas categorias, de seus olhares, de suas palavras, aqueles que detêm poder de fala espantam-se, defendem-se, fragilizam-se, estremecem. E desde que prevalece o “pluralismo estético”, vozes antes inauditas irrompem e ganham os palcos, mostrando os limites vergonhosos de algumas análises que preservam resquícios colonizadores, misóginos ou racistas. É verdade que desencontros acontecem, é verdade que os endereços das falas nem sempre são precisos, é verdade que são momentos delicados, mas vamos mesmo querer defender outros modelos depois de termos alcançado patamar tão fundamental?
O estrangeiro como horizonte
Correspondentemente ao campo etnográfico da Estética, a esfera psíquica talvez precise ser reajustada, agora em outra inscrição, diferente da noção freudiana de Unhemliche. Surge, ainda no velho Freud, outra categoria que, entrelaçada ao âmbito estético, permite observar a engenharia psíquica nos atos de recepção e produção artísticas na atualidade: o estrangeiro, tal como aparece em O homem Moisés e a religião monoteísta. Com ela, ao contrário do trauma psíquico ante o choc da imagem, há o gesto de encarar fantasmas, arriscar passos imprecisos em territórios indeterminados, fazer soar, ainda incerta, uma voz de contestação – como é cada palavra do espectador que se dirige ao autor/artista ante as tensões que brotam a partir da obra. São ímpetos de uma racionalidade oriunda das marcas do inconsciente – eles penetram espaços fronteiriços, atuam em tempos anacronicamente sobrepostos e articulam balbucios que se esforçam por traduzir os mais intensos afetos e marcas históricas. A estrutura formal dessas manifestações não é menor por carregar, junto de si, sua precariedade – ao contrário, seu vigor está alocado exatamente aí.
Conceder estatuto de cidadania aos rudimentos da obra e ao que dela ainda vibra impreciso é uma das características do caráter etnográfico, que opera pelas funções do estrangeiro pensado por Freud. Do lado do espectador, fagulhas e tensões na recepção das obras são partes centrais do próprio encontro com elas – como, aliás, já previra, de certo modo, Marcel Duchamp. Nesses registros, cabe a cada um abandonar elementos narcísicos e arriscar formas inconsistentes daquilo que estremece desconhecido em nós e na cultura que sustenta pilares, muito frequentemente, nada confiáveis.

Alessandra Parente é psicanalista e pesquisadora de pós-doutorado do Departamento de Filosofia da FFLCH-USP

(Publicado originalmente no site da Revista Cult)

Charge! Machado via Folha de São Paulo

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sexta-feira, 7 de setembro de 2018

Quando a memória pega fogo

 


Em 1999 eu viajei à Grécia. Era meu último ano no curso de Filosofia da UFRN e queria conhecer in loco a terra em que Sócrates, Platão e Aristóteles teriam andado, mais de dois mil anos antes de meu nascimento. Lembro que, ao visitar a Acrópole, fomos, eu e minha esposa, Ana Cláudia, a um pequeno museu perto do Paternon, templo da deusa Atena (ou o que sobrou dele após os turcos terem dinamitado boa parte da construção durante a guerra da independência grega no século XIX). Lá chegando identifiquei de imediato um grupo de brasileiros que estava, como eu, fazendo turismo pelas ruínas. Ao me aproximar, no intuito de trocar algumas palavras em um idioma conhecido, ouvi um sujeito de aproximadamente minha idade, com um forte sotaque paulistano, dizer em alto e bom som algo do tipo: “Não acredito que a gente pagou pra ver esse monte de pedra”.
A frase me doeu nos ouvidos. Foi suficiente para recusar qualquer tipo de interação com compatriotas até o fim da viagem.
Mesmo diante desse tipo muito usual de ferida turístico-narcísica, que muitas vezes nos acomete quando nos deparamos com outros brasileiros em viagens pelo exterior, não deveríamos cair em mitologias culturalistas redutoras diante da tragédia que transformou em cinza milhares de anos de história das Américas em pouco menos de quatro horas. Não deveríamos ser nós, “o povo brasileiro”, essa abstração ideológica, os culpados pela catástrofe que destruiu o Museu Histórico Nacional da Quinta da Boa Vista. Quando a memória de um país pega fogo, culpar todo mundo é a melhor forma de não responsabilizar ninguém.
Mesmo assim não há como negar que o brasileiro médio dá pouco valor a história e não entende que cultura e ciência fazem parte de um capital imaterial de valor incalculável.  Em um país em que proliferam doutrinas ideológicas do tipo “Escola sem partido” que tratam professores como bandidos, em que gente nas redes sociais pede o fim dos cursos de humanas nas universidades federais (supostamente antros de formação de “esquerdopatas”) ou que vibram com força diante do anúncio do desaparecimento de disciplinas como filosofia e sociologia dos currículos do ensino médio, parece fácil entender o porquê de um patrimônio incalculável como o Museu Nacional vinha sendo negligenciado a tanto tempo.
Desde 2014 o museu não recebia os 520 mil reais necessários para sua manutenção. Em 2015, com o corte de gastos e a adoção por parte do governo Dilma da agenda FIESP, que abriu alas para o austericídio do governo Temer, o orçamento caiu para 257 mil. Em 2016 subiu um pouco para cair novamente em 2017 e desabar de modo vergonhoso para 54 mil liberados até agora em 2018.
Se fizemos um passeio pelos arquivos jornalísticos vamos ver que sobram reportagens sobre as más condições do museu, com mofo, goteiras, ameaça de desabamento e infiltrações pelo menos desde 1978.
Por isso, o que todos os governantes que já passaram um dia pelos palácios desse país deveriam fazer de honesto diante dessa tragédia anunciada seria pedir perdão ao povo brasileiro ajoelhados no milho, de preferência se autoflagelando com chicotes de prego.
Mas a santa iniciativa privada não fica por menos. Para a decepção dos adeptos da religião do mercado, que acreditam piamente na competência virtuosa do empresariado brasileiro, fica o gosto de barro na boca quando a gente descobre que entre 2010 e 2018 o Museu Nacional teve 06 projetos aprovados para a captação de recursos pela lei Rouanet no total de 17 milhões de reais mas que conseguiu receber recursos privados em apenas um desses projetos, captando aproximadamente 10% do montante proposto nos oito últimos anos.
Nenhuma empresa privada apoiou o Museu quando a direção tentou ampliar o acesso a seu acervo virtual ou quando tentou reabrir nove salas fechadas há mais de 15 anos. Também não teve empresário que se dispusesse a fornecer dinheiro para a recuperação do telhado do prédio ou a criação de um sistema novo de prevenção de incêndios. Diante de uma queda de 34% no volume de visitas entre 2013 e 2017 os gentis homens do capital tupiniquim talvez não acreditassem que relacionar suas marcas a um museu seria um negócio lucrativo.  
O lado terrível e irônico disso tudo, é que o BNDES programou para esse ano a liberação de 21 milhões de reais para a reforma do museu.
O fogo chegou antes do dinheiro.
Dizem os cronistas antigos, que Heráclito, o grande pensador de Éfeso, teria escrito em pedra seu livro “Sobre a natureza” e afixado suas palavras nas paredes do templo da deusa Hécate. Mesmo assim, a pedra na qual seu livro estava escrito ruiu com o colapso do templo da deusa e tudo que resta de seu pensamento hoje são fragmentos citados por outros autores.
É a consciência dolorosa da impermanência de todas as coisas que faz o ser humano recolher as ruínas da história em pedras, vasos partidos, antigos manuscritos, ossos de animais fossilizados ou estátuas mutiladas. A busca de preservar essas ruínas não apenas é uma espécie de desobediência humana contra o tempo, mas também é uma forma de recuperar os traços de uma narrativa que nos compõe nossa experiência comum. Uma narrativa que explica a nossa origem, cria as impressões de um destino coletivo e lança as bases de um futuro possível.
Museus são como templos. Espaços de desobediência contra o efeito cauterizador da história que reduz toda memória, como em um imensa tempestade de fogo, às cinzas da silenciosa imobilidade do esquecimento.
Ver o Museu Nacional desaparecer no fogo da negligência queima a esperança de todos nós que labutamos diariamente com as humanidades, a ciência  e a cultura em um país onde esquecer parece ser uma obsessão nacional.
Por isso, vou confessar uma coisa, amigo velho, é muito difícil não desistir de um país como esse numa hora dessas.

(Texto originalmente publicado no site Saiba Mais, Agência de Reportagem)
 

Charge! Leo Villanova via Gazeta de Alagoas

Nenhum texto alternativo automático disponível.

Charge! Jaguar via Folha de São Paulo

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quarta-feira, 5 de setembro de 2018

Charge! Renato Aroeira

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No táxi com Michel Foucault

                                          
José Castilho Marques Neto
                                                                                                                                                             

No táxi com Michel Foucault


Detalhe do pronunciamento de Michel Foucault na Assembleia Universitária da USP, 1975 (Reprodução)

Naqueles primeiros anos da década de 1970 de reconstrução democrática após a dizimação sangrenta de toda resistência ao arbítrio e à brutalidade da ditadura civil-militar, nós, que recomeçávamos a resistência contra a opressão, não sabíamos pensar ou agir no singular. O plural e o coletivo nos inspiravam e orientavam nossas ações, a despeito das diferenças entre os poucos e aguerridos grupos que reconstruíam o movimento estudantil (ME) na USP.
Escrever um depoimento na primeira pessoa, como me pede a CULT, sobre um inesquecível encontro com Michel Foucault em 1975, é uma difícil tarefa. Além, é claro, da lembrança incômoda de um período no qual muitos de nós tivemos parte da juventude ceifada pela onipresença do arbítrio e da usurpação dos direitos mais fundamentais.
A verdade é que tínhamos muito medo e do medo tiramos uma força solidária que nos fazia vibrar a cada colega que se juntava a nós tornando-se companheiro de luta e resistência, unidade indivisível que expressava uma vontade de liberdade cada vez mais plural. Queríamos mais do que sobreviver, queríamos viver plenamente.
Com esse espírito e vontade comecei meu curso na Filosofia da USP em 1972. O convívio entre os estudantes acontecia em ritmo lento, as conversas contidas se aprofundavam conforme o ritmo da confiança que ganhávamos entre nós pouco a pouco. Os colegas da pós-graduação se achegavam, procuravam nos influenciar sobre as questões do país e da necessidade de reerguer o ME. Engajar-se ou se alienar tentando manter distância dos tímidos movimentos de recriação de espaços representativos como os Centros Acadêmicos foram as primeiras dúvidas quase filosóficas que tive que enfrentar.
Eram tempos de censura às notícias e opiniões políticas nos diários e, ao mesmo tempo, de explosão cultural e transgressões da ordem imposta. Livros proibidos de humanidades eram comprados em outros idiomas na banca do Raul Castell nos “Barracos” da USP ou em algumas livrarias no centro velho, como a Duas Cidades, a Brasiliense, a Avanço, capas embaladas em papel pardo para o caso de alguma “batida” nas ruas paulistanas. Ao mesmo tempo surgiram novos ares na imprensa: “Brasil Mulher”, “Lampião”, “Em Tempo”, “Movimento”, “Nós, mulheres”, “Versus”, “Bondinho”, “ex”, “Jornal da República”, os chamados “nanicos” eram contra a censura e a ditadura, se alinhavam à contracultura, à argumentação oposicionista, aos direitos das mulheres e homossexuais.
Tempos de medo, mas tempos de reação. Tomei a decisão de juntar-me aos colegas que reconstruíam o Centro Acadêmico de Filosofia – CAF, batizado por nós “João Cruz Costa”, o inesquecível professor aposentado da USP que nos acolheu algumas vezes em sua casa para contar histórias da faculdade e nos animar com sua erudição filosófica.
Éramos poucos, mas irmãos quase siameses. De todos, eu e Vânia, e mais tarde Jorge, éramos os mais inseparáveis. No CAF fazíamos murais de notícias, fomentávamos grupos de debates, montávamos mesas-redondas com professores da casa e outros aposentados compulsoriamente, como José Arthur Gianotti. A Filosofia foi a primeira unidade da USP a proclamar um CA livre. Não tínhamos uma diretoria hierárquica, mas um grupo de lideranças que coordenavam os trabalhos.
Pronunciamento de Foucault, 1975
Pronunciamento de Michel Foucault na Assembleia Universitária da USP, 1975 (Reprodução)
Na pauta de lutas estudantis a autonomia universitária, o Decreto 477, o combate ao ensino pago ganharam maior densidade em 17/03/1973 quando os órgãos de repressão assassinaram o nosso colega Alexandre Vanucchi Leme. A missa na Catedral da Sé em sua memória, celebrada por D. Paulo Evaristo Arns, mobilizou 3.500 pessoas que enfrentaram o enorme aparato repressivo que se formou na região. O passar pelo corredor de PMs para entrar na Sé naquele início de noite foi uma das experiências mais assustadoras por que já passei. Mas o ar de solidariedade e revolta ativa que recebíamos ao entrar na catedral enchia nossos pulmões de vontade e força para seguir resistindo.
Desde então o ME avançou em lutas por liberdades democráticas. Em 1974 constituiu-se o Comitê de Defesa dos Presos Políticos e, em 1975, a famosa “greve da ECA” marcou a USP com a primeira concentração estudantil desde o AI-5.
Foi nesse contexto de repressão, medo e resistência ativa, que conheci Michel Foucault em 1975, não como aluno ou pesquisador de sua obra, mas como jovem militante e estudante de filosofia combatente da ditadura militar.
À ousadia das manifestações estudantis em 1975, a ditadura reagiu efetuando várias prisões de estudantes, e fez o mesmo com a resistência civil ao golpe, prendendo jornalistas, professores e sindicalistas, alguns deles membros de partidos clandestinos de esquerda.
Em setembro e outubro essas prisões se intensificaram e, justamente nesse período, Michel Foucault, que acabara de lançar uma de suas mais importantes obras – Vigiar e punir –, estava ministrando um concorridíssimo curso na Psicologia da USP, nos mesmos “Barracos” em que estudávamos.
A primeira vez que eu o vi foi atendendo a um chamado de socorro dos organizadores que me procuraram, e à Vânia, para convencer nosso colega Luiz Gonzaga, que sofria de alguns distúrbios emocionais, a se retirar da frente da mesa onde Foucault ministrava sua conferência. Com uma garrafa de cachaça na mão, já alterado, Luiz falava alto: “Bobagem”, “Mentiras”, para espanto do culto auditório. O clima estava quase hostil para com ele e entre os poucos olhares de compreensão e de aceitação daquela contravenção explícita da ordem, estava o de Foucault. Delicadamente conversamos com nosso amigo e o conduzimos para seu habitat naqueles anos, o CAF. Mas me sobrou o olhar não discriminatório do ilustre palestrante.
A repressão se intensificou, o clima estava tenso e o medo à flor da pele. No dia 22 de outubro a Profa. Marilena Chaui nos procurou e nos informou que Foucault estava disposto a se manifestar contra a repressão de Estado que estávamos sofrendo e gostaria de saber o que sugeríamos enquanto ME. Lembro que de pronto afirmamos que renunciasse às aulas, denunciasse a ditadura militar no exterior e expressasse sua solidariedade aos presos. No dia seguinte, 23, teríamos uma Assembleia Universitária no Salão Caramelo da FAU-USP contra as prisões e convidamos Foucault, que prontamente aceitou. Apenas pediu uma conversa prévia antes do evento.
Coube-me fazer essa conversa e por volta das 8 h do dia 23 de outubro de 1975, às vésperas da prisão e antevéspera do assassinato de Vladimir Herzog, lá estava eu, com 22 anos, em um banco na Praça Roosevelt, aguardando o famoso filósofo e seu colega (e nosso professor) Gerard Lebrun.
Recordo-me de que preparei esse encontro com toda a apreensão do mundo, não porque iria encontrar um filósofo de renome internacional, mas porque o assunto era por demais importante e estratégico para a nossa luta democrática. É incrível como a juventude e a força da época de combate ao arbítrio podem tornar-nos, mesmo muito jovens, avessos ao deslumbramento.
Novamente a atitude de um verdadeiro mestre se impôs perante a notoriedade do filósofo estrelado. Tive dele diálogo objetivo, questionador, respeitoso e atento a um jovem estudante que o escutava, o compreendia em francês, mas que precisava de um tradutor (Lebrun) para fazer-se compreender. Não era um diálogo de intelectuais, entre pares, mas o respeito cidadão se impunha e tivemos uma longa conversação sobre o que estávamos construindo no ME, no foco de nossas lutas, na situação dos presos políticos e no horror cotidiano de estudar e trabalhar sob uma ditadura sanguinária. Ele ouvia, argumentava, questionava. Ao final disse-me: “vamos, estou pronto, podemos ir, farei lá uma declaração renunciando às aulas e denunciarei no exterior o que está se passando no Brasil”.
Tomamos o primeiro táxi que passou, um fusca apenas com o banco traseiro. Sentei-me ao meio, ladeado por Lebrun e Foucault e, naquele momento, senti “cair a ficha”, como se dizia na época. Subia a Consolação com um dos pensadores mais polêmicos e inovadores daquele período e o sentia próximo a nós, à nossa luta, à nossa identidade. Como tantos professores que estavam conosco naqueles tempos, Michel Foucault também era um dos nossos.
A chegada à FAU criou um justificado murmúrio na assembleia que já estava acontecendo. Levei-o aos bastidores onde alguns colegas já nos esperavam. Ele pediu papel, sentou-se à mesa e rapidamente escreveu um pequeno texto de dois parágrafos. Glauco fez a tradução para o português, alguns revisaram e me coube ler a versão para a assembleia ao lado de Foucault que leu o texto em francês. Aplausos emocionados, vibração genuína pelas palavras fortes do filósofo que se recusava a continuar dando aulas num país que prendia e torturava intelectuais e trabalhadores.
No manifesto, o prenúncio do que viria a se tornar realidade nos anos vindouros, a de aproximação do ME com o novo sindicalismo que já se anunciava em 1975 no ABC: “Na defesa dos direitos, na luta contra as torturas e a infâmia da polícia, as lutas dos trabalhadores intelectuais se unem à dos trabalhadores manuais”.
Terminada a leitura nos demos as mãos com energia e olhos emocionados. Nunca mais o vi, apenas o acompanhei ao longe, nas leituras e nas incontáveis polêmicas de sua vida. Mas o garoto aguerrido de 22 anos, ainda em formação, recebeu de Foucault outro tipo de lição que certamente o ajudou a marcar sua própria trajetória intelectual como professor e cidadão. Tempos duros, mas de grandes lições!

JOSÉ CASTILHO MARQUES NETO é doutor em Filosofia pela USP

(Publicado originalmente no site da Revista Cult)