pub-5238575981085443 CONTEXTO POLÍTICO.
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sábado, 1 de junho de 2019

Editorial: Um ranking do autoritarismo


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Faz algum tempo que não leio algum artigo alentador sobre a atual conjuntura política do país. Também pudera. O país vive um dos seus momentos políticos mais delicados, envolto numa crise institucional, política e social sem precedentes, agravada pela militarização do aparelho de Estado, uma combinação que pode tornar-se explosiva, numa situação aguda de gestão dessa crise. Nas últimas semanas, discutimos por aqui o quadro grave em que se encontra nossas instituições democráticas, apontando suas fragilidades.  Sabíamos, portanto, que o quadro era grave, mas, hoje pela manhã, li um artigo publicado pela revista Piauí, em sua edição de Março, escrito por Celso Rocha de Barros, onde ele tece uma avaliação bastante pessimista acerca de um outro indicador, aquele que indica o atual estágio de nossa depressão autoritária. 

Como já informamos por aqui, essa depressão autoritária é algo que se apresenta numa escala global, como uma crise da democracia liberal de um modo mais geral, com reflexos, naturalmente, aqui no país, como um rearranjo das forças conservadoras.Mas, o que chama a atenção é o grau de retrocesso autoritário enfrentado por diversos países, nessa onda que varre o planeta, também como reflexo do arranjo da economia capitalista ou, mais precisamente, de sua cada vez mais precária relação com as instituições da democracia liberal. Nesta escala, segundo os bons analistas da Ciência Política, o pais teve um retrocesso grotesco, ocupando o primeiro lugar da lista, ou seja, é o país onde esse retrocesso autoritário mais evoluiu dessa galeria, com indicadores observados cotidianamente pelos leitores mais perspicazes. Um dos indicadores apontados no texto - com o nosso endosso - é o absoluto desrespeito pelas posições dos organismos internacionais sobre o que ocorre no país.

Isso talvez se explique pelo nosso permanente estágio de vulnerabilidade democrática, como discutimos nos editoriais anteriores. Nossa democracia nunca consolidou-se, sempre foi de baixa intensidade, pelas razões ali apontadas. Hoje se fala em possíveis pactos ou soluções políticas que possam representar uma salvaguarda dos resíduos que ainda restaram desse tsunami autocrático, iniciado ali pelo ano 2013, culminando no golpe institucional de 2016. Como informo no início deste editorial, as notícias da área econômica também não são alvissareiras, o que contribui para agravar ainda mais a crise social. Desta vez, sem os amortecedores políticos, que permitiriam ao governantes saírem da inércia, da paralisia administrativa provocada pelas dificuldades de negociações com o parlamento, num ambiente de governança não ideal - com o presidencialismo de coalizão isso seria improvável - mas possível. 

Notícia boa, leitores, apesar do momento delicado, é que percebo que há alguns espaços onde os analistas sociais estão se debruçando sobre esses temas nevrálgicos, assumindo posturas mais consequentes, como, por exemplo, apontar os erros e acertos dos governos anteriores, como o governo de coalizão petista e a era tucana. Os tucanos, como observou Celso Rocha de Barros, neste mesmo artigo já citado, democratizou o PFL, um grupo político cevado nos estertores da ditadura instaurada no país com o golpe civil-militar de 1964. Foram arranjos institucionais que, bem ou mal, garantiram a governança e, de alguma forma, interditaram os assédios autoritários e os sobressaltos na condução da politica econômica, ao manter o processo inflacionário sob controle. Um ganho e tanto, convenhamos. Hoje, os tucanos se afastaram do jogo, praticamente entregando a legenda a um ator político identificado com o status quo do grupo que assumiu o poder, o governador de São Paulo, João Dória Júnior. 




Dória toma conta do ninho


Velha guarda tucana desiste de enfrentar governador paulista pelo comando do PSDB, mas Aécio Neves ainda briga por influência

THAIS BILENKY
28maio2019_11h59
INTERVENÇÃO DE PAULA CARDOSO SOBRE FOTO DE EDUARDO ANIZELLI/FOLHAPRESS
Na sexta-feira passada, 24 de maio, o governador de São Paulo, João Doria, jogou para a plateia. “A partir de agora, o partido não vai viver de história, vai fazer diferente”, discursou, em ato de filiação de novos membros ao PSDB. “Os que não concordarem peçam para sair”, intimou. Às vésperas de a nova executiva montada por ele assumir o partido, Doria afia a língua para dar o tom do “novo PSDB”, como definiu. Mas as brigas internas o educaram. Ele joga para a plateia em um dia e, no outro, trabalha nas coxias. No domingo, entre uma e outra reunião, recebeu, em sua casa, o senador José Serra. Conversaram sobre reforma tributária e outros temas técnicos relativos a São Paulo. Na saída, o ar na mansão do governador de São Paulo no Jardim Europa estava ameno. Aliados de Doria comemoraram. O PSDB, enfim, o engoliu.
Três anos depois de entrar para o cotidiano partidário, então como pré-candidato a prefeito da capital paulista, e encarar disputas ruidosas e fogo cruzado, o empresário, fundador do Lide e apresentador de televisão, finalmente se sentará à cabeceira dos banquetes tucanos. Políticos graduados do partido admitem reservadamente que foram frustradas as tentativas de fazer frente ao governador paulista, nunca inteiramente aceito pela cúpula partidária – Fernando Henrique Cardoso se referiu a ele como um balão em 2017, e Geraldo Alckmin insinuou que era traidor em 2018. Aventou-se um comando rotativo do PSDB, em que o presidente ficaria apenas alguns meses no cargo e passaria o bastão. Não houve adesão suficiente. Outra tentativa foi convencer nomes de mais consenso, como o senador mineiro Antonio Anastasia, a assumir a direção, mas nem ele, nem outros potenciais líderes quiseram segurar o rojão. Depois do tsunami antipolítico da eleição passada, o único projeto do PSDB com pretensões nacionais que restou de pé foi o de Doria.
Assim, na próxima sexta-feira, dia 31 de maio, em convenção nacional do partido, o grupo de Doria deverá levar os postos principais: o ex-deputado pernambucano Bruno Araújo deve ser empossado presidente do PSDB, com a senadora paulista Mara Gabrilli na primeira vice-presidência e o deputado paraibano Pedro Cunha Lima no Instituto Teotônio Vilela. A tesouraria ficará a cargo de um tucano de São Paulo da confiança do governador. Não que, ao indicar aliados para os principais postos, Doria reinará sozinho. Todos aqueles que passaram pela presidência nacional do partido são membros natos da executiva. O ex-governador paulista Alckmin deixará o comando do PSDB na sexta, mas permanecerá na primeira fileira do partido, assim como Serra, Tasso Jereissati e José Aníbal. Fernando Henrique Cardoso é presidente de honra da agremiação.   
O nó da questão é a secretaria-geral, cuja indicação caberá ao diretório de Minas Gerais. E aí Aécio Neves entra nessa história.
Ex-candidato a presidente da República, ex-governador e ex-senador, o hoje deputado federal trabalha com afinco para se reabilitar na vida política do PSDB e do país, depois de ser dragado pela Lava Jato com a delação de Joesley Batista. Reportagem da Folha de S.Paulo mostra que a maior parte dos inquéritos instaurados em 2016 e 2017 pelo Supremo Tribunal Federal sobre Aécio segue inconclusa. Só uma investigação resultou em denúncia e transformou Aécio em réu, e uma foi arquivada.
Ex-presidente nacional do PSDB, Aécio tem seu assento na executiva garantido, mas ele pleiteia mais. O diretório mineiro ainda negocia cadeiras extras na direção nacional para acomodar deputados como Domingos Sávio e Eduardo Barbosa como forma de ampliar a sua participação nas decisões do partido. O grupo sabe que o ambiente não será favorável. Doria deu o tom. Na sexta-feira, em seu discurso, o recado foi anotado. “Se alguém fez coisa errada, que pague por isso, que tenha seu julgamento e o direito de defesa pleno. Nós não vamos condenar ninguém antes. Mas peça licença, tenha grandeza, se afaste”, cobrou. “Faça sua defesa. Se for isento, volte, será bem-vindo, será aplaudido, será abraçado. Mas, enquanto [estiver] nesse processo, tenha dignidade e o respeito de fazer a sua defesa na plenitude, mas fora do PSDB.”
Investigado em nove inquéritos e réu em uma ação criminal por corrupção, Aécio está preocupado, relatam seus aliados, e se dedica à sua defesa com advogados para obter notícias positivas na esfera judicial que aliviem sua situação política. Enquanto isso, sem alarde, ele faz o que já provou dominar: política.
Abancada tucana na Câmara, que o recebeu em fevereiro com desconfiança e às vezes desprezo, já deixa escapar lances de simpatia pelo mineiro. Internamente Aécio costura um argumento segundo o qual a intolerância com investigados como ele pode acabar por minar projetos como o do próprio Doria, a eleição presidencial de 2022. Inúmeros prefeitos, deputados estaduais e federais e senadores respondem na Justiça por problemas de financiamento de campanha e acusações mais graves na esfera criminal. Qualquer candidato precisará de capilaridade para se erguer nacionalmente. Se investigados forem tratados como condenados, não se disporão a ficar no PSDB, sustentam aecistas. O mesmo se espera de potenciais aliados. Dirigentes de partidos com os quais o PSDB costuma se associar em campanhas eleitorais não terão simpatia por uma postura moralista se eles também se veem em meio a imbróglios judiciais, advogam tucanos ligados a Aécio.
O grupo mineiro, por fim, fia-se na expectativa de que Bruno Araújo tenha autonomia em relação a Doria. Em um primeiro momento pode até ceder aos ímpetos do governador paulista, calcula-se, mas com o tempo trabalhará pela pluralidade política e regional no PSDB.
Já a turma de Doria é menos conciliadora. Seus aliados dizem esperar que, passada a fase inicial do novo comando partidário, Aécio pedirá para sair. Citam como referência a desfiliação do ex-governador Eduardo Azeredo, preso no mensalão tucano, negociada pelo presidente do PSDB de Minas, deputado Paulo Abi-Ackel.
Encarregado de convocar reuniões, definir pautas, ordenar despesas, contratar e demitir pessoal, o secretário-geral do PSDB teve suas atribuições esvaziadas justamente na gestão de Aécio no partido (2013-17), com alterações no estatuto que fizeram acumular os poderes na caneta do presidente, acusam aliados de Doria. Quem está sentado na cadeira de secretário-geral até sexta-feira é o ex-deputado mineiro Marcus Pestana, que foi secretário estadual de Aécio no governo de Minas, mas hoje conquistou a confiança de tucanos para além das fronteiras de seu estado. Pestana foi convidado a ficar onde está, mas não quis. Ainda não ficou definido quem o sucederá, em uma disputa que mostrará a força ou fragilidade de Aécio no xadrez tucano.
Aliados do governador de São Paulo se referem com graça ao regramento do partido como estatutécio, o estatuto do Aécio. Uma nova redação do texto está em fase de finalização. Quando aprovada, passará a submeter automaticamente aquele que for denunciado na Justiça à comissão de ética do PSDB. Sem disposição de expulsar antes de uma condenação em segunda instância, a direção poderá aplicar sanções como afastamentos temporários ou cartas de reprimenda. Mas, como disse Doria, espera-se que o enrolado “tenha grandeza, peça licença” para sair.

THAIS BILENKY

Thais Bilenky é repórter na piauí. Na Folha de S.Paulo, foi correspondente em Nova York e repórter de política em São Paulo e Brasília.

(Publicado originalmente no site da Revista Piauí)

quarta-feira, 29 de maio de 2019

Ernst Jandl com visto de permanência


Ernst Jandl com visto de permanência
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Ernst Jandl em uma leitura em 1992 (Foto: Deutsches Theater / Divulgação)

Ernst Jandl (1925-2000) vem finalmente ao Brasil. Não pela primeira vez, já que algumas seleções menores ou maiores de poemas seus foram publicadas no país nas últimas décadas, mas vem finalmente numa antologia de fôlego, Eu nunca fui ao Brasil (Relicário Edições, 2019, edição bilíngue, tradução de Myriam Ávila), que perpassa em mais de 160 páginas alguns dos poemas mais significativos do autor, uma entrevista longa com o mesmo e, ainda, uma breve (porém deliciosa) nota introdutória da tradutora. Os poemas escolhidos pela tradutora fazem parte de quatro volumes: Lauto e laxo (Laut und Luise), idílios (idyllen), o totó do otto (ottos mops hopst) e de de pra pra (vom vom zum zum). O título – adaptado de um verso do próprio Jandl – dá o tom da antologia e do humor peculiar do autor, que vem, digamos assim, finalmente com visto de permanência.
É sabido que a poesia de Jandl causa furor – seja por admiração, seja por aversão, tão comum uma quanto a outra. De um modo ou de outro, seus poemas mobilizam há décadas quem os lê e quem os escuta, é raro que qualquer um consiga se manter morno frente às suas eletrizantes experimentações visual-linguístico-sonoras. Ecos desse “furor Ernst Jandl” são, por exemplo, as demissões em série sofridas por editores, redatores e curadores que ousaram publicar seus primeiros trabalhos de maturidade, as acusações públicas sofridas pelo autor (aquele que “corrompe a juventude”, autor de “provocações insuportáveis”) e até uma proibição de publicação instaurada em 1958. Num tempo e num país em que a poesia é cada vez mais tomada como desnecessária, acessória e incômoda, interessa-nos muito abraçar as potencialidades do incômodo e, a partir dele, retomar uma voz tão potente e desestruturante (política e linguisticamente) como a de Ernst Jandl.
Jandl nasceu em Viena, onde passou a maior parte de sua vida como professor de alemão do ensino secundário. De sua experiência profissional vem talvez sua atenção especial ao público infantojuvenil (atenção que o autor expressou em diversas cartas, entrevistas e até na publicação de um livro com imitações de seu poema “ottos mops” feitas por crianças) e certamente a acusação de “corrompe[r] a juventude”. Afinal, onde já se viu um professor de escola escrever sempre com letra minúscula em seus poemas, cometer propositalmente erros de alemão, perder a compostura a cada leitura pública? Não dar o exemplo, ensinar errado?
Todos esses crimes do professor Jandl são coerentes com seu trabalho literário, qual seja, o de levar sistematicamente a linguagem a extremos, e fazê-lo das mais diversas formas e a partir dos mais diversos meios. Por vezes experimenta com a sonoridade de um poema (nos chamados “sprechgedichte”, ou seja, “poemas falados”/”poemas sonoros”/”poemas fonéticos”), de modo que ele só se completa quando e se oralizado (ou parece completar-se, já que poema algum se acaba de fato numa primeira leitura); por vezes experimenta com o aspecto visual da mancha gráfica, com a iconicidade da palavra; por vezes rompe as regras da gramática normativa; por vezes introduz no poema dialetos do alemão; mas, no mais das vezes, faz isso tudo ao mesmo tempo. Jandl é um poeta consistente, mas jamais repetitivo. Cada poema seu é uma tentativa diversa de ataque, de ida ao extremo da linguagem. O projeto é o mesmo, mas os caminhos são muitos. Assim, insisto: a consistência em Jandl não é de forma alguma repetição.
Aliás, permito-me aqui um aparte: mesmo que não saiba alemão, o leitor brasileiro ganhará muito assistindo às dezenas de gravações do poeta disponíveis na internet – lá ele gesticula, balbucia, grita, sussurra, cala; leva, enfim, sua poesia aos olhos e ouvidos dos que falam e dos que não falam alemão.
É interessante pensar na raiz política do quase pânico que a poesia de Jandl causou na Áustria de alguns anos depois da Segunda Guerra Mundial, país que tentava ainda se reestruturar e estabilizar como centro cultural após a catástrofe; e em como, contra tudo e contra todos, a experimentação visual e sonora de sua linguagem se popularizou enormemente com o tempo e se tornou, assim, fator efetivo na desestabilização de um meio social que naquele momento era muito pouco afim ao novo, ao uso do incômodo como princípio estruturante, ou a uma experimentação tão extrema e limítrofe na poesia. Se é verdade que poucas décadas antes as experimentações das vanguardas europeias viviam ainda seu auge, é também verdade que elas foram logo afogadas, durante a guerra, numa torrente malcheirosa de poesia solene, eloquente, nacionalista – nazista. Diversos artistas seguiram experimentando dentro e fora da Alemanha e da Áustria, mas ao menos oficialmente o momento literário era mesmo o do péssimo poema programático, oficialesco e grandiloquente. Finalmente, após a guerra houve um esforço conjunto das vanguardas artísticas para distanciarem-se da poesia que marcara o período do nazismo, e esse esforço se deu por diversas vias: a da dessacralização do verso, da experimentação visual, da experimentação sonora, do humor, da sátira, e assim por diante. Nesse contexto, talvez o Wiener Gruppe (Grupo de Viena) seja aquele ao qual se possa ligar com mais segurança a poesia de Ernst Jandl, mas mesmo desse grupo o autor manteve uma certa independência, uma ligeira distância. Se tentarmos, no entanto, ligar sua escrita à de algum autor individualmente, será sem dúvida à de Friederike Mayröcker (1924- ) – uma das mais interessantes vozes poéticas de expressão alemã em atividade hoje, companheira de Jandl de 1954 até a morte deste em 2000 e, por ora, uma lacuna no mercado editorial brasileiro –, com a qual dividiu a autoria de algumas obras. Nas palavras do germanista Helmut Gollner em artigo publicado na Pandaemonium Germanicum (junho de 2015, tradução de Ruth Bohunovsky): “Tudo o que Ernst Jandl fez com a língua pode ser chamado de contestação cultural por excelência. Jandl nega/destrói dentro da cultura caída (a do humanismo burguês) a sua língua aprumada, ao tornar feio o que ela tinha de bonito, ao idiotizar o que ela tinha de inteligente, ao banalizar o que estava cheio de sentido e ao materializar seu lado espiritual. Jandl deforma a estrutura eufemística da nossa língua de cultura”.
Desse modo (e aí já está um belo motivo para lê-lo no Brasil de 2019), a poesia de Jandl é também, nesse contexto, poesia antifascista.
A implosão das antigas estruturas formais e mesmo sintáticas do poema dá lugar em Jandl não ao caos, é claro, e sim a um outro modo de estruturar o poema, um modo que, via de regra, leva ao extremo o trabalho com a sonoridade da língua e a visualidade da escrita – tornadas no autor o centro da experiência formal, não mais dois elementos entre muitos outros. Essa descrição da poesia jandliana é válida pelo menos na caracterização dos livros publicados até o início da década de 70, que são ainda hoje os mais populares do autor – com o tempo Jandl seguiu outros caminhos, mas, importante registrar, nunca perdeu seu impulso genuinamente experimental ou seu humor. Do trabalho privilegiado do autor com as dimensões sonoras e visuais da poesia se depreende a importância de Jandl no fortalecimento ou na validação dos movimentos de performance oral na poesia e também dos movimentos de poesia concreta dentro e fora da Áustria. Se a também austríaca Ingeborg Bachmann (1926-1973) sentencia que não pode haver um novo mundo sem uma nova linguagem (“Keine neue Welt ohne neue Sprache”, excerto do conto “Alles”), talvez seja Ernst Jandl quem leva a afirmação ao seu ponto mais ardente e radical. Como se apreende de todo grande autor, faça ele sonetos ou faça sprechgedichte, escreva sobre um copo d’água, sobre o fascismo ou sobre a própria escrita do poema: em Jandl a linguagem é, ela mesma, a busca e o encontro da poesia – e não simplesmente seu meio de transmissão.
Na busca pelos extremos da linguagem Jandl chega aos extremos da língua alemã, especificamente. Daí a enorme dificuldade de se traduzir seus poemas, visto que, é claro, uma outra língua se faz de e em outras estruturas: o “jogo” num poema traduzido é (espera-se) o mesmo jogo do poema de partida (ou quase o mesmo, como diria Umberto Eco), mas as regras a serem seguidas e quebradas são já outras. Como afirma o próprio Jandl em entrevista a Zimmermann, reproduzida ao final da antologia: “Essas serão então as regras do jogo, é com essas regras que terei de jogar. […] Porque o jogo segue regras. Podem ser, como no xadrez, regras que existem há séculos ou regras que eu mesmo crio na hora de escrever.”
No entanto, se a aderência muito rente do poema à língua alemã se mostra uma grande dificuldade na tradução de Jandl, vista por outro ângulo essa característica se torna uma bela oportunidade ao tradutor criativo. Como expõe Haroldo de Campos em seu “Da transcriação: poética e semiótica da operação tradutora”: “[…] quanto mais inçado de dificuldades esse texto, mais recriável, mais sedutor enquanto possibilidade aberta de recriação, […] do ponto de vista da transcriação, traduzir Guimarães Rosa seria sempre mais possível, enquanto “abertura”, do que traduzir José Mauro de Vasconcelos; traduzir Joyce mais viável, enquanto “plenitude”, do que fazê-lo com Agatha Christie […]”.
E justamente aí cabe louvar a tradução de Myriam Ávila, principalmente em poemas mais célebres, como “o totó do otto”, “dileção” ou “calipso”: da criação de uma estrutura paralela em outra língua, Myriam Ávila cria também novas rupturas, suspensões e confirmações de expectativa que, por sua vez, só funcionam na materialidade (sonora, mas não só) do português, assim como as de Jandl só funcionam na materialidade do alemão. Se Jandl leva a linguagem a seus extremos, o faz dentro dos limites daquilo que tem à mão, ou seja, a língua alemã. Ávila tem à mão os limites da língua portuguesa – e o mesmo projeto de levá-la às últimas consequências.
Mesmo jogo, outras regras. Assim, para falar aqui de “fidelidade”, termo muito caro ao discurso comum sobre a tradução e pouco caro ao meio acadêmico: justamente optando por partir de ou chegar a imagens diferentes daquelas de Jandl (mas criando estrutura visual-linguístico-sonora análoga àquela do autor) é que Myriam Ávila se mantém “fiel” à postura e ao projeto criativo de Ernst Jandl. Essa ideia da tradução como “criação de uma estrutura estética análoga” já estava, é claro, no pensamento tradutório de Haroldo de Campos pelo menos desde a formulação do “isomorfismo”, reformado e aprofundado depois no conceito da “transcriação”.
Toda tradução é a cristalização de uma possibilidade, não mais do que isso. Descontados eventuais erros incontornáveis, nascidos de lacunas de conhecimento linguístico por parte de um tradutor, toda tradução é uma proposta – uma proposta menos ou mais coerente consigo mesma. O leitor lusófono já podia encontrar belíssimas propostas tradutórias para Jandl pelas mãos de Fabiana Macchi, Ricardo Domeneck, Bruno Mendes, José Paulo Paes e até uma seleção pequena de 1999 pela própria Myriam Ávila. São seleções breves ou até poemas esparsos que de certa forma prepararam o terreno para a vinda de Jandl – foram escalas ou visitas diplomáticas, e graças a elas o autor vem agora de vez. Myriam Ávila nos apresenta em Eu nunca fui ao Brasil uma fortíssima e muito coerente tradução de Ernst Jandl, capaz, como os poemas em alemão, de tensionar, fazer gargalhar, mobilizar e incomodar seu leitor, seu ouvinte, seu leitor-ouvinte. Poemas tão engraçados quanto “o totó do otto”, “fodinha” e “pequeno manifesto geriátrico”, ou então tão desafiadores quanto “cenário de neve”, “dado: uma peça”, “[palavra pedra]” e “sete casos curtos” ganham corpo firme em português e – mais difícil ainda – funcionam em português.
Como afirma Jandl no documentário entschuldigen sie wenn ich jandle de Harry Friedl e Hermann Peseckas: “os poemas – ou qualquer outra forma artística – não são feitos para simplesmente existirem, e sim para existirem para outras pessoas. Eles são definitivamente um meio de alcançar o outro, de tocar o outro de algum modo. Ou então não se escreveria poema nenhum – só para si mesmo ninguém faria essa trabalheira toda. É parte do poema, da pintura, de qualquer forma artística, que ele seja exposto, que ele seja apresentado”.
Assim, a boa nova é que a tradução de Ávila agora existe para o leitor brasileiro. Ernst Jandl finalmente veio ao Brasil – e veio com seu visto de permanência.

Matheus Guménin Barreto é poeta e tradutor mato-grossense. Doutorando em Língua e Literatura Alemã (subárea tradução) na USP, publicou os livros de poemas A máquina de carregar nadas (7Letras, 2017) e Poemas em torno do chão & Primeiros poemas (Carlini & Caniato, 2018). Edita a revista literária Ruído Manifesto.

(Publicado originalmente no site da Revista Cult)

O simbolismo do Exu na produção de uma filosofia do trágico no Brasil


O simbolismo de Exu na produção de uma filosofia do trágico no Brasil
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(Célia Sodré/Reprodução)

Baraperspectivismo: conceito que crio a partir do simbolismo dos mitos de Exu, configura uma visão trágica da existência, caracterizada pela afirmação irrepreensível do corpo na vida da realidade empírica. A noção de perspectivismo, que vem da filosofia de Nietzsche, relaciona-se à ideia do conhecimento que não tem por pretensão enunciar a verdade última das coisas, pois não crê na verdade absoluta; que não se arvora no princípio da universalidade; que enxerga precisamente um fundamento moral nos discursos tradicionais da metafísica no Ocidente; e que se constrói eminentemente como apenas uma interpretação da realidade. Daí, uma interpretação que parte de um lugar, de um ponto de vista, uma perspectiva. Acrescentar a um conceito a noção de perspectivismo enuncia que a ideia de conhecimento ali proposta não se instaura como um centro ao redor do qual gira o mundo, mas sim como um olhar que está ao redor da coisa, admitindo a complementaridade do maior número possível de ângulos de visão. Pois não se trata de desvelar o sentido oculto da realidade, mas de adorná-la com o maior número possível de véus. Já o prefixo bara remete diretamente ao simbolismo de Exu, pois é um dos nomes pelo qual é conhecido. Daí, a cosmovisão da cultura yorubá, principalmente a que apreendemos através de seus mitos, se encontra no cerne da elaboração desse conceito.
Seria sua criação, portanto, um modo de submeter a experiência cultural da sociedade tradicional yorubá às categorias do pensamento ocidental? Será que se apropriar das representações simbólicas produzidas no seio dessa cultura, para criar uma filosofia do trágico, constitui um trabalho de dominação e usurpação, reproduzindo e reinventando os tentáculos do imperialismo ocidental sobre os saberes africanos? Minha resposta é: talvez. Porém, no caso do baraperspectivismo, a interpretação serve muito mais ao propósito da criação de um conceito e de uma filosofia que denunciem os prejuízos do logocentrismo, ou seja, os prejuízos de um racionalismo exacerbado e eminente em relação à vida que foi suprimida; um conceito e uma filosofia que sirvam de alternativa aos valores científicos e morais que caracterizam a hegemonia da cultura ocidental, a partir do estabelecimento da “situação colonial” no século 19. O baraperspectivismo, assim, quer se impor como arma de guerra contra o “complexo de inferioridade” assinalado por Frantz Fanon como a doença que tem suprimido as forças de africanos, africanas e seus descendentes – assim como as das populações nativas dos territórios colonizados nas Américas há quinhentos anos.
A palavra bara, de acordo com Juana Elbein dos Santos, significa “rei do corpo”: “bara = Oba (rei) + ara (corpo)”, potente modo de se pensar uma oposição à hegemonia do lógos, ou da razão, que, na história da filosofia ocidental, implica o alijamento dos sentidos e do corpo dos processos de legitimação do conhecimento e da verdade; o que Nietzsche caracterizou muito bem em um de seus textos sobre a razão na filosofia com a expressão, “fora com o corpo, essa deplorável idée fixe dos sentidos! acometido de todos os erros da lógica, refutado, até mesmo impossível, embora insolente o bastante para portar-se como se fosse real”.
Na filosofia, Exu, rei do corpo, é capaz de fundamentar uma ética, uma estética, uma teoria do conhecimento e uma filosofia da cultura alternativas às que já foram criadas no Ocidente; e, ainda, contar, ou melhor, cantar uma história da filosofia, do seu próprio ponto de vista. E precipuamente brasileira, talvez, posto que o berço do conceito é a própria experiência da diáspora africana. Daí, o diálogo, o jogo, a relação, a troca com pensadores ocidentais, como Nietzsche, que por si já fizeram a crítica do lógos. Não se trata de submeter Exu a Dioniso, portanto, mas de elaborar o discurso que eles poderiam enunciar juntos.
Mas não nos atemos apenas a Nietzsche: acompanham-nos aqui pensadores e filósofos negros como Wole Soyinka, Paulin Hountondji, Molefi Asante, Kabengele Munanga, Frantz Fanon e Aimé Césaire. Nesse percurso que busca enfatizar, enaltecer e defender a potência criativa dos povos pretos, que se mede inclusive pelo interesse de cientistas e missionários europeus que se lançaram sobre suas experiências culturais estimulados, basicamente, pela “força misteriosa”, senão pela “grandeza”, como diria Jacob Burckhardt, que emana das fontes de nossas culturas negras, ora gerando atração, ora repulsa. A atribuição de animalidade e da falta de história aos povos pretos, desde pelo menos Kant e Hegel, gerou consequências irreversíveis para os pretos de agora e do porvir. Entretanto, diante da falência das instituições modernas, estou convicto de que o apelo à animalidade do ser humano, a releitura do que Nietzsche denominou como “texto básico homo natura”, encontra um modesto aliado no baraperspectivismo. Exu e sua ligação com o corpo, com os instintos e com a palavra, é capaz de restituir ao ser humano uma experiência análoga àquilo que o autor de O nascimento da tragédia definiria como a Erlebnis par excellence, a vida a partir de uma perspectiva trágica.
As chagas do século 19 continuam abertas. O projeto colonial da Europa e dos Estados Unidos segue imperialista, racista e sexista. Além da violência perpetrada pelas guerras, pela fome, pela sede e pelas epidemias, a violência da tecnologia atinge coletividades inteiras preparadas para servir como animais de corte. Se os animais de rebanho de Nietzsche sustentaram uma civilização socrática no século 19, agora são os animais de corte que sustentam a civilização contemporânea. Para impor um “basta!” aos desmandos do matadouro, a modesta contribuição do baraperspectivismo procura reavivar o desejo, a alegria, o ímpeto, a festa e o instinto. Diante de uma coletividade constituída por indivíduos tão ludibriados em sua capacidade de querer, tão vilipendiados no âmago de seus desejos, a tal ponto que se tornaram incapazes de criar, incapazes de pensar, o baraperspectivismo quer que não se deixe esquecer o simbolismo de Exu, posto que o rei do corpo é o dono do desejo da palavra, que desperte e que anime as forças sempre renovadas de uma vida.

Rodrigo dos Santos é ator, mestre e doutorando em Filosofia pela UFRJ e membro do Laboratório KHORA de Filosofia da Alteridade.
(Publicado originalmente no site da Revista Cult)

Quem é a mulher negra no Brasil? Colorismo e o mito da democracia racial



Quem é mulher negra no Brasil? Colorismo e o mito da democracia racial

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A antropóloga Lélia Gonzalez é das vozes que desconstrói o mito da democracia racial (Arte Andreia Freire/Revista CULT)

Minha pele não é retinta. Tenho a cor da miscigenação brasileira, que tantas vezes foi utilizada para reafirmar o mito da democracia social. “Você precisa escrever sobre isso. Precisa falar sobre colorismo”, declarou Sueli Carneiro da última vez que nos encontramos. E se Sueli declara, a gente obedece.
Colorismo significa, de maneira simplificada, que as discriminações dependem também do tom da pele, da pigmentação de uma pessoa. Mesmo entre pessoas negras ou afrodescendentes, há diferenças no tratamento, vivências e oportunidades, a depender do quão escura é sua pele. Cabelo crespo, formato do nariz, da boca e outras características fenotípicas também podem determinar como as pessoas negras são lidas socialmente. Pessoas mais claras, de cabelo mais liso, traços mais finos podem passar mais facilmente por pessoas brancas e isso as tornaria mais toleradas em determinados ambientes ou situações.
É isso. Mas não é só isso. Poder ser vista como branca, ou melhor, como não negra, me permitiu oportunidades que provavelmente eu não teria se tivesse a pele mais escura, como ocupar um cargo de coordenação em um colégio europeu, de elite, onde um dia precisei argumentar fervorosamente que era uma mulher negra e que essa era uma afirmação importante. Mas não se pode perder de vista que na cidade onde vivo, São Paulo, empregos subalternos, o trabalho doméstico, os presídios têm a minha cor de pele.
Tarefa difícil essa de escrever sobre colorismo, que certamente não se esgota neste texto. “Como determinar a cor se, aqui, não se fica para sempre negro e/ou se ‘embranquece’ por dinheiro ou se ‘empretece’ por queda social?”, perguntou certa vez a antropóloga e historiadora Lilia Moritz Schwarcz. Para falar sobre colorismo precisamos considerar classe, escolarização e outros marcadores sociais da diferença. E uma breve genealogia do termo pardo pode ser útil. Nos memes de redes sociais, pardo é papel, não gente. Mas o termo se refere a pessoas desde o Brasil colonial, com múltiplos usos e significados.
No século 17, era utilizado em São Paulo para designar indígenas escravizados ilegalmente. Já no Nordeste açucareiro do mesmo período, onde africanos eram a maior parte da população, tendia a ser sinônimo de mestiçagem, ou do fruto da união entre europeus, africanos e indígenas. Mais tarde, no Sudeste, o termo aparece não só como referência à mestiçagem, mas também como sinônimo de pessoa livre, independentemente da cor de pele. O termo pardo no Brasil Colônia, portanto, indicava, além da cor de pele, o status social de pessoas não brancas livres, em um universo escravista. Segundo Hebe Mattos, o termo era uma possibilidade de diferenciação social, variável conforme o caso. “Assim, todo escravo descendente de homem livre (branco) tornava-se pardo, bem como todo homem nascido livre que trouxesse a marca de sua ascendência africana – fosse mestiço ou não”, escreveu a historiadora.
Da mesma forma, os termos preto e negro também apresentavam diferenças semânticas no período escravocrata: negro era o escravo insubmisso, e preto, o cativo fiel. Mas é possível perceber variações de significados em diferentes períodos: até a primeira metade do século 19, crioulo era exclusivo de escravos e forros nascidos no Brasil, preto designava africanos.
Os censos evidenciam, no quesito cor, como essa semântica é negociada no Brasil de forma complexa, muitas vezes intencionalmente confusa. O primeiro e o segundo censos do país, em 1872 e 1890, registraram a população preta, branca e mestiça; no de 1872 acrescida à informação da condição de escravo ou livre. Nos censos de 1900, 1920 e 1970, o item cor foi retirado. Diante da constatação de que o Brasil era um país mestiço e negro, o terceiro e quarto censo simplesmente deixaram de registrar a informação sobre a população, assim como o primeiro censo do regime militar, quando se reforçava a ideia de homogeneizar o país. No censo de 1950, a população foi distribuída entre brancos, pretos, amarelos e pardos. Indígenas não possuíam uma categoria classificatória. Em 1960, indígenas deveriam ser declarados como pardos. Em 1980, havia uma explicação para pardos: “mulatos, mestiços, índios, caboclos, mamelucos, cafuzos etc.”.
Em 1976, o IBGE fez a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio em que deixou a categoria cor como uma pergunta aberta. Cento e trinta e seis cores diferentes foram registradas, que iam da acastanhada à vermelha.
Esse uso flexível e maleável na cor que se observa no Brasil desde o período da escravidão, tão explicitado na pesquisa de 1976, está relacionado à imagem negativa da mestiçagem propagada explicitamente até a década de 1930, seguida pela extensa propaganda oficial do mito da democracia racial. Desde o século 19, teóricos das raças enalteciam “tipos puros” e colocavam a miscigenação como sinônimo de degeneração racial e social. O termo eugenia, criado em 1883, propagava a visão de que as capacidades humanas estavam exclusivamente ligadas à hereditariedade. A criminalidade, por exemplo, era vista como fenômeno físico e hereditário. Raça se tornou, nesse período, um conceito para discriminar e hierarquizar povos. Na metade do século 20, geneticistas e biólogos moleculares afirmaram que as raças puras não existem cientificamente. Mas pouco antes disso, na década de 1930, ganhou relevância no Brasil uma interpretação social, e não biológica, das relações raciais brasileiras. Gilberto Freyre afirma que a miscigenação teria acomodado conflitos raciais no Brasil, corrigindo a distância social entre a casa-grande e a senzala.
Lélia Gonzalez é das vozes que desconstrói o mito da democracia racial denunciando que o sistema escravista-patriarcal brasileiro não se constitui sobre bases harmônicas, mas na violência racial e sexual que se reproduz desde a colonização na sociedade brasileira. Uma década depois, Sueli Carneiro cunha o “estupro colonial” da mulher negra pelo homem branco como as bases para a fundação do mito da cordialidade e da democracia racial brasileira.
O movimento negro vem buscando conscientizar quem sofre discriminações por sua aparência física e origem racial – seja quem se declara preto ou pardo ao IBGE – em torno de uma mesma identidade racial de negro. “Trata-se, sem dúvida, de uma definição política embasada na divisão birracial ou bipolar norte-americana, e não biológica. Essa divisão é uma tentativa que (…) remonta à fundação do Movimento Negro Unificado, que tem uma proposta política clara de construir a solidariedade e a identidade dos excluídos pelo racismo à brasileira”, explicou o antropólogo Kabengele Munanga. Da mesma forma, o movimento de mulheres negras, que nasce dentro do movimento negro, busca conscientizar mulheres, desde a década de 1980, de sua identidade de mulher negra.
Como já escreveu tantas vezes Sueli Carneiro, o projeto em curso no Brasil ainda é o de uma hegemonia branca. Ele opera pela exclusão e a violência contra pessoas não brancas, especialmente as negras e indígenas. No imaginário social, este projeto também aparece em uma leitura de passado que omite a violência e a resistência à escravidão; encoberta as estratégias de branqueamento e do silenciamento de vozes e memórias da população negra. O mito da democracia racial branqueava negras e negros miscigenados. É importante, ao falarmos sobre colorismo, não cometermos o mesmo erro. Afinal, a quem isso poderia interessar? Como escreveu Lélia “(…) a gente nasce preta, mulata, parda, marrom, roxinha etc. Mas tornar-se mulher negra é uma conquista”.
(Publicado originalmente no site da revista Cult)