pub-5238575981085443 CONTEXTO POLÍTICO.
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segunda-feira, 9 de novembro de 2020

Camus, amor e vertigem

Muito já se disse que Albert Camus – sempre envergando capa de gabardine e com cigarro pendente dos lábios – compunha uma persona semelhante a Humphrey Bogart. Mas o que pouco se sabe é que o escritor protagonizou uma cena digna de Casablanca, filme de 1942 em que o ator norte-americano vive uma história de amor cujo início se dá em Paris ao som dos canhões nazistas. Em 6 de junho de 1944, no mesmo dia em que os Aliados desembarcavam na Normandia, deflagrando a ofensiva final contra os exércitos de ocupação alemães, Camus começava, também em Paris, um relacionamento amoroso com a atriz espanhola Maria Casarès que duraria até sua morte. Há no episódio outras ressonâncias, embora desencontradas, do longa-metragem de Michael Curtiz. Editor do jornal clandestino Combat, Camus participava ativamente da Resistência – assim como o marido de Ilsa Lund, a personagem de Ingrid Bergman por quem se apaixona o cínico Rick, interpretado por Bogart. E a própria Maria Casarès tinha envolvimento familiar com o movimento anti-fascista. Seu pai, Santiago Casares Quiroga, foi um dos últimos chefes de governo da turbulenta Segunda República espanhola. Em sua breve gestão (maio a julho de 1936), eclodiu a sublevação militar que deu início à Guerra Civil, levando o general Franco ao poder e a Espanha a mais de 40 anos de ditadura. De origem catalã por parte de mãe, Camus projetou sobre Casarès a profunda identificação que sempre teve com a Espanha. Seu primeiro texto autoral foi a peça Revolta nas Astúrias, criação coletiva baseada na revolução operária de 1934, em Oviedo. E o teatro camusiano voltaria à Espanha com Estado de sítio, peça ambientada em Cádiz num passado impreciso, mas que remete aos autos sacramentais de Calderón de la Barca. Contraponto ao romance A peste, que Camus publicara em 1947, Estado de sítio também lança mão do contexto imaginário da cidade assolada por uma epidemia como alegoria da opressão. Detalhe importante: a peça estreou em 1948, quando a intelectualidade francesa se dividia ante as denúncias dos crimes de Stálin, prenunciando a ruptura entre Sartre (pró-comunista) e Camus (anti-totalitarista), que se daria após a publicação de O homem revoltado (1951), seu ensaio sobre a divinização da história e a justificação da violência pelas utopias revolucionárias, entre elas a utopia hegeliano-marxista que dera origem aos gulags soviéticos. Entretanto, é a Espanha – então governada pela extrema-direita – que fornece o cenário para Estado de sítio, da mesma maneira que A peste (ambientada em Orã, na sua Argélia natal), era uma evidente metáfora da Europa sob o nazismo. Peça, romance e ensaio, portanto, cobrem todo o espectro político na obra desse escritor mais fiel à concretude de suas percepções, ao ethos de suas origens mediterrâneas, do que às abstrações ideológicas. E, nesse sentido, a espanhola Maria Casarès será seu duplo nas fases subsequentes de sua trajetória. Esse enredo passional pode ser conhecido na intimidade com a publicação de Correspondência: 1944–1959, que a editora Record lança em 2020. Com 1.300 páginas na edição original da NRF/Gallimard, o volume reúne cartas trocadas pelos dois amantes, com texto estabelecido por Béatrice Vaillant e prefácio de Catherine Camus, filha do escritor. Nesse prefácio, Catherine conta como ambos se conheceram no dia 19 de março de 1944, na casa de Michel e Zette Leiris durante leitura dramática de O desejo agarrado pelo rabo, de Pablo Picasso. O encontro foi celebrizado por fotografia de Brassaï em que aparecem, além do pintor espanhol e do anfitrião, Camus (responsável pela mise en scène), Sartre, Simone de Beauvoir, o psicanalista Jacques Lacan e o poeta Pierre Reverdy. Entre outros convivas, também está presente uma atriz de 22 anos, descrita por Olivier Todd (biógrafo de Camus) como “magnífica, além dos cânones clássicos, olhos rasgados, queixo voluntarioso, voz rouca”. Pouco depois, Maria Casarès é convidada pelo diretor Marcel Herrand para integrar o elenco de O mal-entendido e descobre que o autor da peça é o mesmo jovem de “rosto altaneiro sem insolência”, com “ar de indiferença displicente”, cuja presença a impressionara na casa dos Leiris. Tornam-se amantes no Dia D, o dia do desembarque na Normandia. O último verão da guerra (que acabaria no ano seguinte) nada tem de idílico. Camus vê colegas de Combat serem deportados e, embora não integre diretamente as ações do grupo (do qual o jornal que edita é porta-voz), chega a participar de operações clandestinas, tendo a anti-franquista Casarès a seu lado. Desde 1940, Camus era casado com Francine Faure, que permanecera na Argélia durante a Ocupação. Com a libertação do território francês, ela pôde enfim reencontrar o marido. Diante das circunstâncias, Camus e Casarès se separam – mas voltam a se cruzar no Boulevard Saint-Germain em 1948, no dia 6 de junho, exatos quatro anos após o início do relacionamento. Camus e Casarès em Paris, no final da década de 1940 Camus e Casarès em Paris, no final da década de 1940 (©Collection Catherine et Jean Camus) Correspondência traduz tais intermitências. Em 1944, apenas cartas enviadas por Camus a Casarès. Durante o período de separação, silêncio quebrado somente pela mensagem de condolências que ele envia à atriz pela morte de sua mãe, em 1946. E, a partir de 1948, cartas trocadas regularmente pelos amantes. Na última, de 30 de dezembro de 1959, Camus anuncia seu breve retorno a Paris, partindo da casa de Lourmarin (Provença) onde se instalara com a família após receber o Nobel de literatura de 1957. O encontro não acontecerá. Em 4 de janeiro de 1960, Camus – que planejara ir de trem – viaja de carona no carro do amigo Michel Gallimard, da família de seus editores. No trajeto, o Facel Vega de Michel se estraçalha contra um plátano. Camus morre na hora. Entre os destroços, estavam os manuscritos do romance O primeiro homem, que só seria publicado em 1994. É arriscado situar o livro – póstumo e inacabado – na obra de Camus. Basta lembrar de A morte feliz, romance de juventude também publicado postumamente, mas que ele abandonou, conservando apenas (e com pequena variação de grafia) o nome do protagonista Mersault, que reapareceria como Meursault em O estrangeiro. Por um lado, é certo que O primeiro homem sofreria modificações até tomar forma final. Por outro, sente-se a escrita de um autor seguro, apesar de algumas repetições e discretas incongruências (mudança de foco narrativo no meio de um período; troca do nome de um personagem) que soam como atos falhos a revelar como o enredo é calcado em sua biografia, com episódios como a morte do pai na Primeira Guerra, a infância pobre em Argel ou a paixão pelo futebol. De todo modo, O primeiro homem, na forma que restou (incluindo as anotações fragmentárias ao final), associa dois elementos que correspondem aos últimos dos três ciclos que Camus esboçou para sua obra: uma antropologia do homem mediterrâneo e o tema mais geral do amor. Camus e Maria Casarès em 1948, Paris, rua de Vaugirard, 148 Camus e Maria Casarès em 1948, Paris, rua de Vaugirard, 148 (©Collection Catherine Camus) “Eu tinha um plano preciso quando comecei minha obra”, diz Camus em Estocolmo, por ocasião do Nobel. “De início, queria exprimir a negação. Sob três formas. Romanesca: foi assim com O estrangeiro. Dramática: Calígula, O mal-entendido. Ideológica: O mito de Sísifo. Eu previa o aspecto positivo também sob três formas. Romanesca: A peste. Dramática: Estado de sítio e Os justos. Ideológica: O homem revoltado. E já entrevia uma terceira camada, em torno do tema do amor.” E, numa anotação de seus Carnets, ele associa a cada um desses ciclos uma entidade mítica: Sísifo para o absurdo, Prometeu para a revolta e Nêmesis para o amor. Se a tarefa absurda de Sísifo fora esquadrinhada no ensaio que leva seu nome, e se em O homem revoltado é fácil entrever a ambiguidade do gesto prometeico de roubar o fogo dos deuses (que pode tanto emancipar os homens como reproduzir, no plano secular, a injustiça divina), a figura vingativa de Nêmesis adquire, na leitura camusiana, duplo sentido. É ao mesmo tempo a deusa que “vigia o equilíbrio” (punindo quem o quebra, como Camus afirmara no capítulo “O pensamento do meio-dia”, de O homem revoltado), mas também figura feminina, deusa-mãe, promessa de reconciliação dos contrários. As referências míticas de Camus nunca redundam (com exceção de Estado de sítio, com sua retórica de auto sacramental) numa escrita simbólica, como ocorre em Kafka, no plano ficcional, ou Nietzsche, no filosófico – dois autores admirados por ele. Aplica-se a sua obra o que ele mesmo celebrou em Melville: “o símbolo sai da realidade, a imagem nasce da percepção”, nunca se apartando “nem da carne, nem da natureza”; Camus, como o autor de Moby Dick, “construiu seus símbolos sobre o concreto, e não sobre a matéria do sonho”. Camus em Mont-Roch, nos arredores de Chamonix, alpes franceses, em 1956 Camus em Mont-Roch, nos arredores de Chamonix, em 1956 (©Collection Catherine et Jean Camus) Assim, ao recriar mitos, Camus faria da figura de Dom Juan uma das expressões cotidianas do homem absurdo, ou seja, aquele que exaure as possibilidades de uma vida assombrada pela vertigem da finitude – e que revelará sua face perversa, subjugadora, no sombrio Clamence de A queda. O próprio Camus se lançou, em sua vida amorosa, numa desesperada corrida contra essa vertigem. Paralelamente à paixão por Maria Casarès, manteve romances com a norte-americana Patricia Blake (que conhecera em Nova York), a atriz Catherine Sellers (de origem argelina como ele) e a desenhista dinamarquesa Mi (Mette Ivers). Mas, em consonância com as antinomias que percorrem sua obra (hedonismo individual e cumplicidade coletiva; núpcias inocentes com a natureza e culpa pela danação de dar curso à história), o donjuanismo absurdo – insinuado nas referências a outras mulheres em suas cartas a Casarès – deveria dar lugar a um amor sob o signo de Nêmesis. Um amor que, como o ethos mediterrâneo celebrado em O primeiro homem (no qual as “divindades do sol, do mar e da miséria” eram um contraveneno para as crenças na vida futura ou nas promessas da história), equilibrasse exaltação e sobriedade, nudez e esquecimento. Se a terceira fase da obra de Camus não chegou a se realizar, Maria Casarès permaneceu como expressão vital dessa fidelidade singular (tão singular quanto o acordo entre o homem e sua existência que ele sentia sob o sol da Argélia) em meio à “indiferença pelo futuro e a paixão de esgotar tudo o que é dado” (O mito de Sísifo). Talvez por isso, entre tantos amores, Camus se referisse a ela como “A Única”. MANUEL DA COSTA PINTO é jornalista e crítico literário, mestre em Teoria Literária e Literatura Comparada pela Usp e autor de Albert Camus: um elogio do ensaio (Ateliê) (Publicado originalmente no site da Revista Cult)

domingo, 8 de novembro de 2020

Le Monde: As eleições americanas e o futuro do mundo

por André Luiz Cançado Motta e Yury Machado de Moura 6 de novembro de 2020 A eleição presidencial nos Estados Unidos ocorre em um cenário extremamente polarizado. O pleito é visto por diversos analistas políticos, inclusive os escritores deste artigo, como uma batalha a ser travada por muitos cidadãos americanos pela retirada de um presidente com legado de ingerências na política exterior A crise de 2008 intensificou e evidenciou processos que vinham acontecendo desde a década de 1980, perpassando por todos os governos presidenciais estadunidenses, sendo eles democratas ou republicanos: o enfraquecimento de políticas sociais, reformas trabalhistas agressivas em detrimento dos direitos das e dos trabalhadores e a flexibilização de instituições regulatórias do mercado. Os direitos construídos e firmados no contrato social americano durante o período pós Segunda Guerra Mundial, que foram o pilar do american dream, agora são entendidos como empecilhos para o crescimento econômico e a geração de empregos em todo o mundo. A eleição do democrata Barack Obama para a presidência gerou esperanças de mudança desse cenário para seus apoiadores. Porém, apesar da eleição de um presidente afro-americano representar uma grande conquista para uma sociedade marcada por um histórico de segregação racial ainda muito recente e persistente, seu governo não favoreceu as necessidades econômicas dos trabalhadores da classe média e pobres. Isso não significa dizer, no entanto, que o governo Obama não trouxe conquistas para seus cidadãos. Seu governo implementou medidas para promover igualdade e justiça para a membros da comunidade LGBTQI+, sendo a legalização do casamento entre pessoas do mesmo sexo nacionalmente, em 2015, uma das medidas mais significativas nesse sentido. Além disso, o Obama Care – Affordable Care Act (ACA) ampliou significativamente a cobertura de saúde do país, regulamentando aspectos importantes dos planos de saúde e oferecendo cobertura para as populações mais vulneráveis economicamente. Ainda assim, o que grande parte do povo americano observava durante o governo democrata, tanto apoiadores quanto opositores, é que, ao mesmo tempo que viam suas garantias sociais desaparecendo, seu poder de consumo diminuindo e empregos se tornando cada vez mais escassos e precarizados, a Casa Branca ainda disponibilizava bilhões de dólares para evitar que grandes empresas do setor financeiro tivessem que lidar com crise que eles mesmos criaram. Somou-se a isso o constante aumento do consumo de recursos do Estado pelas forças armadas, para lidar com conflitos em terras estrangeiras e ameaças internacionais. Nesse sentido, ficou cada vez mais claro que, independentemente do partido na presidência, as questões econômicas tangentes a maior parte das e os cidadãos norte-americanos não seriam tratadas em seu favor. A principal evidência disso é que 93% do capital adicional criado em 2010 nos EUA, cerca de 288 bilhões de dólares, foi retido por apenas 1% dos contribuintes e 37% pelos 0,1% mais ricos do país, aumentando o capital desses indivíduos em 22%, ao passo que a classe média e os pobres tinham que lidar com precarização dos seus empregos e o aumento do estresse financeiro nas famílias e, por conseguinte, nas comunidades, desencadeados, em grande parte, pelo prolongamento das horas de trabalho e pela descontinuidade de auxílios sociais. Tudo isso em prol de uma recuperação econômica cujo ônus recaiu apenas sobre eles e o bônus apenas e tão somente em uma parcela minúscula da população – os 1% mais ricos, persistentes em todos os dados de análise de concentração de renda. Uma sociedade dividida A insatisfação com tal cenário vem diminuindo a confiança dos cidadãos na política para lidar com a situação, em especial entre os eleitores com as menores rendas, muito em função do acirramento da precarização da vida. O ressentimento contra o establishment político liberal é interpretado por estudiosos da área, como a professora de Ciência Política e Social da New School de Nova Iorque, Nancy Fraser, como uns dos principais propulsores da intensa polarização na atual política norte-americana. Aqui, essa aversão aos políticos tradicionais observa-se com o aumento da visibilidade de políticos que se caracterizam como outsiders do establishment político, como o democrata Bernie Sanders e, consequentemente, Donald Trump, eleito na corrida presidencial de 2016. Em seu artigo “Do Neoliberalismo Progressista A Trump – E Além”, Fraser discorre sobre formação de uma ambivalência na sociedade estadunidense entre dois movimentos chamados por ela de neoliberalismo progressista e neoliberalismo (ultra) reacionário. O primeiro seria a junção de políticas econômicas de cunho neoliberal a pautas identitárias progressistas, que formou o bloco hegemônico político até o governo Obama. Já o segundo, seria uma resposta ao primeiro, caracterizado por uma perspectiva nacionalista, anti-imigração, antiglobalização, pró-valores cristãos e fortemente crítica de quaisquer políticas associadas aos governos democratas – como o Obama Care. Essa ambivalência não diminuiu após a vitória de Trump. Muito pelo contrário, percebe-se uma significativa radicalização dos apoiadores do mesmo, em especial aqueles contrários aos apoiadores das manifestações realizadas pelo movimento Black Lives Matter (BLM). Estes, que levantam palavras de ordem contra a violência policial e racismo após a morte de George Floyd, em Portland em maio deste ano, confrontam-se recorrentemente com aqueles que apoiam Trump ou, se não, pautas ainda mais radicais e fundamentalistas – como o apelo pelo americanismo, isso é, os direitos fundamentais dos norte-americanos que, a despeito do avanço liberal, estaria morrendo. É neste cenário polarizado que mais uma vez, mas dessa vez ainda pior, a eleição presidencial nos EUA ocorre. O pleito é visto por diversos analistas políticos, inclusive os escritores deste artigo, como uma batalha a ser travada por muitos cidadãos americanos pela retirada de um presidente com legado de ingerências na política exterior, políticas discriminatórias e um das piores respostas à crise sanitária representada pela pandemia da Covid-19. No entanto, o desafio posto é de que Donald Trump ainda possui um grande contingente do eleitorado a seu lado. Uma verdadeira legião de apoiadores, que defendem suas políticas negacionistas em relação a pandemia e sua postura repreensiva com as manifestações do BLM. Biden e a alternativa progressista O apreço por candidatos que faziam fortes oposições as políticas econômicas neoliberais fizeram com que o senador pelo estado de Vermont, Bernie Sanders, ganhasse muito espaço entre os democratas no período de campanha das eleições primárias americanas. Assim como em 2016, o senador auto intitulado socialista, era visto com muito entusiasmo para disputar a presidência contra Trump, em especial por seus discursos que favoreciam políticas sociais de distribuição de renda, a saúde pública gratuita e ensino superior gratuito, ao mesmo tempo se mostrando fortemente combativo as políticas que beneficiavam os 1% mais ricos do país. Essas expectativas foram frustradas quando Sanders retirou sua candidatura e declarou apoio ao também senador e vice presidente na gestão Obama, Joe Biden. O democrata que, de acordo com as previsões do The Economist, possui 96% de chances de vencer a eleição, aposta sua vitória fortemente na oposição às ingerências do governo de Trump, em especial sua nociva gestão da crise do coronavírus, o intervencionismo em instituições políticas caras a democracia estadunidense e o enfraquecimento das relações internacionais dos EUA, que levaram ao comprometimento de sua hegemonia global. Ao contrário de Sanders, Biden não possui propostas para uma extensa reforma tributária. Sua perspectiva econômica é bem mais amena. O que Biden tenta fazer e, de acordo com previsões citadas, tem conseguido é conquistar os votos de trabalhadores que viram Trump como a solução, mas que se frustraram com a péssima gestão do presidente, em que não só falhou em cumprir suas promessas de campanha – entre elas aumentar o salário mínimo e aliviar os impostos para a classe média -, como aprovou uma reforma tributária que beneficiou ainda mais as camadas mais ricas da população. E se Biden ganhar? Cientistas políticos sempre se aventuram, com base nas suas análises de dados, a deduzirem hipóteses do que poderá ocorrer quando um candidato ou outro converta o resultado ao seu favor. Aqui, não faremos diferente. Com base nas evidências levantadas, podemos fazer uma reflexão acerca da vitória de Biden, e o que isso significa para os Estados Unidos e para o mundo. O candidato presidencial democrata dos EUA Joe Biden e sua esposa Jill Biden participam de um evento de campanha drive-in na Pensilvânia (REUTERS/Kevin Lamarque) A linha seguida por Trump, contrária a uma ordem liberal internacional, pode ser entendida como um tiro no próprio pé. O “America first” preconizado na agenda do presidente, apela por um retorno a um país livre de interesses ocultos, elitizados, distantes da população trabalhadora, que constrangem a “América” de ser “A verdadeira América”. A mensagem por de trás desse pensamento é, essencialmente, uma: devemos ser aquilo que não somos. Isso é, devemos mudar toda a estrutura que, até aqui, construímos. Desde 1945, as principais instituições criadas: Organização das Nações Unidas, Fundo Monetário Internacional, Bretton Woods, e tantas outras, serviram para construir relações e contatos entre países de todo o mundo, pelas vias multilaterais. O trauma do pós-guerra seguiu-se, no entanto, pela guerra fria entre a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS) e os Estados Unidos. No entanto, após 1991, a dissolução da URSS e a criação do Estado russo, a ordem norte-americana alegou-se, e podia alegar-se, vitoriosa e triunfante: hegemônica no que podia ser, unipolar na frente internacional. Não cabe aqui discutir as consequências imediatas disso, mas é necessário dizer que, apesar de tudo, esse é a inércia que trouxe a ordem liberal internacional ao lado dos Estados Unidos, a qual estabeleceu um ambiente incontestável a seu favor: um mundo onde a maior parte das instituições ou foram criadas pelos norte-americanos ou tinham sua presença. Essa inércia foi contestada por Trump, em sua plataforma política. O mundo não poderia, e nem deveria, ter a presença norte-americana em níveis como os formatados. Deveria, sim, abandonar a ordem criada por eles mesmos, em favor e benefício de voltar-se para dentro, novamente, e isolar-se e preocupar-se com seus próprios interesses, naquilo que interpretamos como uma forte aversão ao mundo globalizado. É nisso que seus eleitores acreditaram, e por isso hoje ele é candidato a reeleição. Caso seu nome seja o vitorioso, instituições se enfraquecerão ainda mais: afinal, temos um exemplo claro disso, que revelou-se com a forma com que os Estados Unidos lidaram com a crise da Covid-19, e a falta de liderança chave na Organização Mundial da Saúde (OMS) em benefício de uma estratégia unilateral de combate ao vírus que é, por natureza, de alcance global, revelando e expondo a fraqueza da ordem internacional em lidar com problemas globais de forma coordenada e pacífica. Biden, no entanto, poderá trazer de volta uma equipe com iniciativas progressistas, evitando a precarização das instituições internacionais e fortalecendo a presença norte-americana nos ambientes de negociação multilaterais. Isso, por conseguinte, será uma resposta positiva da fragilizada ordem liberal internacional, que se espera ser capaz, a partir de sua vitória, apaziguar conflitos e trazer de volta o protagonismo de liderança norte-americana. Espera-se, de maneira demasiada otimista, que isso facilite o consenso político e o diálogo para elaboração de propostas de solução de desafios globais que exigem coordenação e colaboração. Com isso, abandonam-se intenções e guinadas nacionalistas e isolacionistas, as quais provam ser decisões erradas dado ao nível de interação entre os países expostos pelo avanço globalizatório que apela por decisões integradas e multilaterais. Por conseguinte, com a derrota da agenda autoritária de Trump, é claro o retorno de um ambiente mais favorável a candidaturas progressistas por todo o mundo, não apenas nos Estados Unidos. Em um momento onde se vive uma pandemia global que causará (e já causou) danos graves na economia, educação e saúde, espera-se que discursos menos individualistas e mais universais ganhem força para, daí então, transformarem-se em ações políticas que atendam às necessidades de quem está sofrendo com os atuais acontecimentos. Para Biden, esse contexto será um desafio dada a necessidade de reconstruir o tecido social norte-americano – e global – por meio da criação de empregos com garantias trabalhistas para os países desenvolvidos e, principalmente, em desenvolvimento. Por fim, sabe-se que Biden é sujeito político passivo de muitas críticas. Não se espera dele nada mais que o fundamental: que se traga bons quadros do partido democrata para a o poder dos Estados Unidos e das instituições liberais. A esperança é que, numa ordem liberal consolidada, a história sopre os ventos mais a favor dos progressistas que dos reacionários. André Luiz Cançado Motta, graduado em Relações Internacionais pela Universidade Federal de Goiás (UFG). Mestrando em Política Internacional pela Faculdade de Ciências Sociais da Universidade Federal de Goiás (FCS-UFG) e Assessor Parlamentar na Assembleia Legislativa do Estado de Goiás. Yury Machado de Moura, graduado em Ciências Sociais com Habilitação em Políticas Públicas pela Universidade Federal de Goiás (UFG) e mestrando em Ciência Política pelo Instituto de Ciência Política da Universidade de Brasília (IPOL-UnB).

Charge! Jean Galvão via Folha de Sçao Paulo

sexta-feira, 6 de novembro de 2020

Crônica: Dois escritores num quarto de pensão.


José Luiz Gomes



Alguns anos atrás, por indicação de um amigo, li o livro de crônicas “Linhas Tortas”, do escritor alagoano Graciliano Ramos. Relutei um pouco, a princípio, por saber tratar-se de um texto não consagrado do escritor alagoano, a exemplo de Angústia, Caetés ou Vidas Secas. Depois, fui convencido por este amigo com a informação de que se tratava de um livro onde o autor faz algumas considerações sobre o ato de escrever. A melhor impressão possível. Gostei tanto que acabei produzindo uma série de outras crônicas, a partir dos assuntos abordados pelo alagoano. Graciliano, como se sabe, era muito exigente com o ato de escrever. Comparava-o ao ofício das lavadeiras, que lavam, enxáguam, batem as roupas nas pedras, voltam a enxaguar até concluírem o trabalho. O livro reúne as crônicas que o escritor publicou em alguns jornais do Estado de Alagoas, possivelmente escritos do início de sua carreira literária. Além dos inúmeros assuntos do cotidiano - algo inerente a qualquer cronista - se sobressaem nesses textos algumas reflexões de Graciliano sobre o ato de escrever, onde ele analisa alguns textos que lhes chegam às mãos, seja de candidatos a escritor ou de escritores já consagrados, como os amigos do círculo literário de Maceió, como José Lins do Rego, Raquel de Queiroz e Jorge Amado. Há poucas referências de publicações de crônicas do escritor Graciliano Ramos. Não nos parece ter sido um gênero com o qual ele guardasse maiores afinidades, diferentemente do conterrâneo José Lins do Rego, que nos surpreendeu pelo número de crônicas publicadas, inclusive crônicas esportivas, não raro com remissões à sua paixão, o Clube de Regatas Flamengo. A lembrança do cronista Graciliano Ramos, no entanto, fez algum sentido depois da leitura de uma resenha literária publicada numa revista comemorativa aos 40 anos de Vidas Secas, aquele livro que é considerada sua obra-prima. Durante o Estado-Novo, em razão de suas ligações com o Partido Comunista, Graciliano amargaria 08 meses de prisão nos porões da Ditadura Getulista, o que implicou, entre outras tantas sequelas, na perda do seu emprego e, assim, nas dificuldades de sustentar sua família. Contou com a ajuda do amigo José Lins do Rego, que teve um visto de entrada nos Estados Unidos negado em razão disso. O paraibano morreu sem nunca ter entrado naquele país, depois de impedido de acompanhar a cerimônia de casamento de uma de suas filhas. Neste período, em São Paulo, dividiu um quarto de pensão com o cronista capixaba Rubem Braga, onde se dedicava a escrever contos para jornais, como forma de superar aquelas dificuldades financeiras. Assim surgiu Vidas Secas, obra onde alguns críticos apontam uma certa “descontinuidade”, em razão da forma como foi escrita. Mas não são todos os críticos que defendem essa tese. Há aqueles que, inclusive, encontram no texto uma profunda sintonia e unidade entre os capítulos. Rubem Braga, este sim, o cânone da crônica brasileira, foi editor de um jornal do Partido Comunista quando esteve aqui no Recife. É o período de maior envolvimento político do escritor capixaba, embora nem ele, tampouco a família gostassem de falar sobre o assunto. Da província, talvez, apenas as lembranças dos sarapatéis compartilhados com Capiba e Gilberto Freyre no Mercado do Bacurau. Ele falava tão bem desse sarapatel que bate até água na boca quando trato do assunto. Um dia desses, não me contive e fui experimentá-lo no templo da gastronomia tipicamente pernambucana, o Mercado de São José. Fico imaginando aqui como teria sido a convivência entre ambos e as possíveis ideias que eles teriam trocados sobre literatura em noites insones. Pelo menos Rubem era um incorrigível notívago. O alagoano talvez fosse mais disciplinado. 

Graciliano Ramos: Linguagem literária e vida sociocultural

Linguagem literária e vida sociocultural Benjamin Abdala Junior e Luzia Barrosdisse: 8 de outubro de 2018 Linguagem literária e vida sociocultural 11 Graciliano na livraria José Olympio, Rio de Janeiro, 1942 (Foto KURT KLAGSBRUNN / Fundo Graciliano Ramos do Arquivo IEB/USP / GR-F01-001) Acusam-me de mágoa e desalento, como se toda a pena dos meus versos não fosse carne vossa, homens dispersos, e a minha dor a tua, pensamento. Carlos de Oliveira, in Mãe po Carlos de Oliveira, escritor neorrealista português que nos serve de epígrafe, foi um assíduo leitor de Graciliano Ramos. Em seus versos, ele se insere – como o escritor brasileiro – na perspectiva do artista em cujas produções a ênfase sociocultural se associa estreitamente com o trabalho estético sobre a linguagem. De um ângulo subjetivo, ao liberar o processo criativo, Graciliano Ramos descarta apriorismos de forma/conteúdo, procurando ter um máximo de consciência dos mecanismos de funcionamento da linguagem literária. Essa atitude, entendida como articulações, cria hábitos, que interagem com as múltiplas convenções da vida sociocultural. Há, nessa práxis artística de Graciliano Ramos, a ideia de que a consciência da realidade (referencial ou literária) depende das conexões do objeto (fatos representados ou o próprio texto) com um sistema mais amplo de conexões, que se articulam, por sua vez, com as tensões da vida social. Com o procedimento, a escrita de Graciliano procura transformar-se em um fato social ativo pelo desempenho de uma dupla função histórica: por um lado, através da práxis e da metalinguagem dos narradores, essa escrita define a si mesma; por outro, contribui para o processo do conhecimento sociocultural, definição da totalidade social, presente em sua escrita não apenas como representação referencial, mas como formas articulatórias capazes de entrar em tensão com as articulações culturais de seus leitores. Pela práxis, entendida assim não como prática, mas como movimento que vai do sujeito para o objeto e, deste, com impactos no sujeito, estabelece-se uma dinâmica que provoca criticidade no leitor. Graciliano Ramos rompe com a redução da subjetividade individual e coletiva que as imobiliza ao campo do objeto de referência, tal como foi entendido pelo realismo oitocentista e que se projetou no século 20. O seu sentido de representação objetiva pressupõe a participação ativa do sujeito em suas interações com as articulações socioculturais de sua situação histórica. Concretude, objetividade, assim, não são conceitos que se reduzem ao objeto, expulsando o sujeito, como ocorreu com o modo de pensar a realidade afinada com o “velho” realismo. Graciliano não se coloca, por outro lado, na perspectiva neorromântica de absolutizar o sujeito, quando poderíamos ter processos de esfumaçamentos da realidade referencial. Ao contrário, procura construir uma escrita que pressupõe a interação contrastante entre dados subjetivos e objetivos, que se concretizam nas redes de articulação do texto. Graciliano Ramos tensiona reflexivamente, em suas personae narradoras, níveis de consciência da enunciação (que traz marcas do próprio autor implícito no texto) e do sujeito do enunciado (personagem narradora), mostrando muitas vezes a consciência problemática dessas interconexões. Sua estratégia artística provoca impactos nos leitores, para que estes se conscientizem de emparedamentos que também são seus. Para tanto, os níveis de consciência dessas personae oscilam entre formulações da consciência “real” de suas personagens, em relação de homologia com as vividas muitas vezes por seus leitores, e os níveis mais amplos de consciência da situação histórico-social, possíveis de serem discernidos, para nos valer dessas categorizações de Lucien Goldmann. Como as personagens mostram-se alienadas desse sentido de totalização que envolve as articulações provenientes da enunciação, a dialética da dinâmica enunciativa evita, por exemplo, uma apreensão da realidade de “falsa consciência” (sentido mais usual do conceito de ideologia), como em Luís da Silva, personagem-narrador de Angústia. O processo de efetivo conhecimento desse narrador-personagem do que seria o objeto focalizado (a personagem Marina, por exemplo), através de atributos físicos e psicológicos, não é possível apenas pela visão fragmentada da personagem ou pela simples somatória das partes no todo (“os pedaços não combinavam bem; davam-me a impressão de que a vizinha estava desconjuntada”), mas pela experimentação do objeto em sua função de “máquina”. Ainda assim a visão de Luís da Silva continua reduzida, sem a percepção do sentido de totalização que envolveria outras atribuições socioculturais. Via-a, ainda de forma reduzida, como “máquina”, um objeto que se circunscreve reduzidamente a sua função sexual. Luís da Silva está alienado de si mesmo e transfere a sua visão reduzida para o objeto, uma mercadoria a ser consumida. Enquadra-se, sob este aspecto, na alienação social, que segue as convenções sociais dominantes, que preceituam valores a partir da valia de uso. Desconsiderou a personagem, entretanto, o fato de que, em sua perspectiva, Marina impregnou-se de atributos afetivos. Essa contradição na apreensão do objeto será intensificada posteriormente, quando Marina (como um produto sujeito às regras do mercado) lhe será alienada pelo poder de “compra” de Julião Tavares. Graciliano e a mulher, Heloísa, no bairro de Laranjeiras, Rio de Janeiro, 1949 (Fundo Graciliano Ramos do Arquivo IEB/USP / GR-F13-025) Graciliano e a mulher, Heloísa, no bairro de Laranjeiras, Rio de Janeiro, 1949 (Fundo Graciliano Ramos do Arquivo IEB/USP / GR-F13-025) Marina e Julião Tavares estão submetidos aos estereótipos culturais (hábitos) que estabelecem uma ponte comunicativa entre eles: gestos, vestuário, literatura, oratória. Luís da Silva tentou encantá-la imitando formas de impacto desses ritos convencionais, mas não possuía o poder maior que os enformava (dinheiro). Julião Tavares, ao contrário, é o símbolo desse poder e daí apropriar-se de sua mercadoria. Trata-se de um modelo de articulação simétrico ao que ocorre de maneira hegemônica em múltiplos campos da atividade social, em que toda forma de trabalho (físico, intelectual) é compelida para a sua transformação em mercadoria. Formam-se então nos campos de atividades humanas dos romances de Graciliano Ramos inter-relações hegemônicas que envolvem os objetos, uma rede opressiva que reproduz as convenções dominantes, que procura subordinar a si as demais, que vêm da experiência sociocultural. Qual a solução? Para Luís da Silva foi o assassinato de Julião Tavares, símbolo do agente da opressão. A solução individual, para a enunciação, não resolve o problema: Luís da Silva não se desvincula dos valores do conjunto social, mesmo nos momentos de grande emoção. O ato de paixão, isto é, sem o controle da razão, levou-o a um delírio anárquico, rejeitado pela ânsia de rigor e ordem de Graciliano Ramos. No nível da escrita de Angústia, quais seriam as homologias? Na desagregação da linguagem de Luís da Silva, nos momentos de delírio? A linguagem, como os fatos culturais, articula-se também em uma “rede” condicionadora não apenas da seleção vocabular, mas sobretudo da combinação sintática. Ela está associada de forma genética e estrutural com a situação social que a produziu, reproduzindo, por sua vez, congeminações ideológicas, dominantes ou não. É igualmente um campo de tensões. A ruptura passional da personagem narradora desse romance, de motivação psicossocial, vai ser registrada, então, através de uma acumulação de palavras em que não ocorrem hierarquizações de imagens. À desagregação psicossocial da personagem corresponde uma correlata desagregação de lógica discursiva. A situação de Luís da Silva, nesse momento, aproxima-se da anomia: os hábitos sociais parecem ter perdido sua força reguladora, mas estes padrões estão presentes, tensionando interiormente a personagem. Não ocorre uma ruptura total pelo controle da enunciação que explica a projeção das imagens, como a evitar uma ruptura total com o discurso lógico. A personagem continua a aceitar os valores dominantes do conjunto social: sua visão reduzida permite-lhe apenas a observação de dados particulares. Falta-lhe uma visão mais totalizadora que lhe propicie a determinação para optar, por exemplo e segundo a enunciação, pela escrita de um romance. Isto é, para construir novas articulações valendo-se dos escombros das velhas. Mas era muito para o burocrata Luís da Silva: preferiu libertar-se da prisão referencial para prender-se a uma cadeia sociológica mais sutil, onde continuaria a escrever artigos jornalísticos sob encomenda. Interessante a se destacar é o tópico da cadeia que ocorre no conjunto da obra de Graciliano Ramos. Para ele, os confinamentos/aprisionamentos do sujeito (dimensão individual e coletiva) não se limitam aos emparedamentos dos hábitos convencionais. Constituem também uma condição necessária para o exercício da atividade de escritor. Um horizonte mais amplo, que não se limita, pois, à particularidade de Luís da Silva. A situação narrativa de Luís da Silva é similar à de outras personagens dos romances de Graciliano Ramos que vivenciam estados passageiros de anomia. Em Caetés, João Valério perturba-se pela paixão amorosa. Poderia ter outra paixão: escrever um livro, mas pondera que isso não ficaria bem em um comerciante. De mediador artístico comprometido com a verdade (condição da verdadeira literatura, de acordo com a enunciação), desloca-se para mediador de mercadorias, isto é, produtos sociais que sofreram o processo de alienação, em face das inter-relações estruturais que os subordinam. A vinculação sociológica do alheamento psicológico torna-se mais enfática em S. Bernardo: a paixão de Paulo Honório por Madalena pode ser comutada pela paixão pela fazenda. Sua visão reduzida, que tudo subordina à ótica de uma espécie de “capitalismo selvagem” (Florestan Fernandes teorizaria uma década depois), segue a falsa consciência da redução correlata própria do seu pragmatismo. Paulo Honório, ao contrário das personagens protagonistas de Caetés e Angústia, conseguiu terminar o seu romance. Começou a escrevê-lo equivocadamente, pretendendo transformá-lo em uma mercadoria. A construção da narrativa de sua vida, em termos de autenticidade, exigia uma práxis mais de sentido totalizador e não aquela a que se habituara: a divisão social do trabalho, por meio da qual se apropriaria da produção alheia. As tensões provenientes de suas carências individuais compeliram-no a um processo de maior conscientização, através das interações contraditórias entre as vozes da personagem e do narrador-personagem, que problematizam sua vida/escrita. Casa onde nasceu Graciliano, em Quebrangulo, Alagoas, 1892 (Fundo Graciliano Ramos do Arquivo IEB/USP / GR-F11-040) Casa onde nasceu Graciliano, em Quebrangulo, Alagoas, 1892 (Fundo Graciliano Ramos do Arquivo IEB/USP / GR-F11-040) Prefeitura de Palmeiras dos Índios, 1960. Após uma série de reviravoltas, Graciliano elegeu-se prefeito do município interiorano, em 1927 (Fundo Graciliano Ramos do Arquivo IEB/USP / GR-F11-020) Prefeitura de Palmeiras dos Índios, 1960; após uma série de reviravoltas, Graciliano elegeu-se prefeito do município interiorano, em 1927 (Fundo Graciliano Ramos do Arquivo IEB/USP / GR-F11-020) A alienação da escrita-realidade dos narradores dos romances de Graciliano Ramos percorre setores sociais típicos: o burguês fazendeiro, o burocrata e o comerciante citadinos. Em Vidas secas, Fabiano, personagem proletária, não consegue “apropriar-se” da linguagem. Ela lhe foi alienada pela adversidade econômico-social. A perspectiva de Fabiano é lutar para que ela seja restituída pelo menos a seus filhos. Dominar a linguagem, para essa personagem, é uma forma de capital simbólico e de poder social. A linguagem, modelada pela práxis social, desempenha uma função cumulativa: ela traz na simbolização de suas formas o conhecimento “acumulado” pela humanidade. Reduzida a condições subumanas, os filhos de Fabiano (o Menino mais Velho e o Mais Novo: não aparecem com nomes próprios) colocam-se diante dos objetos como se estivessem no início desse processo histórico ainda impregnado de pensamento mágico. O palavrório dos bacharéis em direito, por outro lado, é marcado criticamente em todos os romances de Graciliano Ramos. Corresponde a um registro de linguagem estereotipado e que encobre a realidade dos fatos vivos. Como Julião Tavares (Angústia), são invariavelmente “reacionários e católicos” e, ao escrever, têm “linguagem arrevesada, muitos adjetivos, pensamento nenhum”. O catolicismo também está presente no conto “Um ladrão”, protagonizado por um indivíduo que vive na margem social e que busca, ironicamente, auxílio celeste para seu primeiro roubo à residência. No conto, Graciliano permeia a narrativa com a linguagem típica do mundo marginal, como o uso da expressão “caneta” (ferramenta para abrir fechaduras), respeitando o léxico dos indivíduos cujo universo procura retratar. O sonho do protagonista do conto é tornar-se proprietário de um bar, em seu comércio não permitiria frequentadores do mundo marginal, apenas pessoas da ordem e da lei; dessa forma, a personagem não prevê a ausência de senhores e sim a necessidade de se tornar um deles; em conformidade com Eric Hobsbawm: “Nesse sentido, os bandidos sociais são reformadores e não revolucionários”. Como parte das personagens de Graciliano, o Ladrão finda na prisão, dessa vez concreta, mas antes já se podia notar seu aprisionamento, uma vez que seus sonhos eram modelados pela “falsa consciência” aqui já referida. A ativação da linguagem dos romances de Graciliano Ramos pauta-se pela estratégia de desmascaramento, em nível do texto, das redes articulatórias cujos efeitos são a alienação do sujeito e do objeto. Esse método dos processos de efabulação atinge, de forma correlata, o leitor, implícito nesse trabalho prático de construção. Este leitor, implícito na própria codificação da narrativa, situado historicamente dentro das condições socioculturais brasileiras, identifica-se, por sua vez, com um leitor real, que deve trabalhar igualmente sobre o texto com consciência crítica. Graciliano Ramos não rejeita o código linguístico; ao contrário, procura vê-lo em processo de desenvolvimento, para aprofundá-lo. As transformações da linguagem são gradativas, pois as inovações dependem de um acordo social entre os falantes. Também sob esse aspecto a enunciação não se afasta da realidade. Ela parece suspeitar que uma violentação mais radical do código não teria efeitos sociais porque quebraria a cadeia comunicativa? Ou ele se vê, como nas Memórias do cárcere, preso inicialmente à gramática e depois noutra cadeia, a da polícia política? As situações mais próximas da anomia ficam restritas, em seus romances, ao nível do enunciado, nos momentos de alta tensão das personagens. Ela não atinge a enunciação: Graciliano afasta-se dos excessos narrativos das formas dispostas para “Épater le bourgeois”. Talvez considerasse que aqueles que costumam gritar muito alto muitas vezes procuram encobrir os seus próprios escrúpulos. Sua opção é por um compromisso com os objetos da realidade social. Procura vê-los como os da criação cultural, em especial a linguagem, num problemático e áspero processo de desenvolvimento, no momento histórico em que se efetiva a comunicação literária. Não procura recursos artísticos que poderiam ser interpretados como “modismos”, afeitos ao mundo das mercadorias, mas a efetiva busca do “novo”, isto é, aqueles procedimentos que sua práxis de escritor evidencia como eficazes para produzir efeitos controlados por sua consciência social. Benjamin Abdala Junior é professor titular da USP, autor de Graciliano Ramos: Muros sociais e aberturas artísticas (Record, 2017) Luzia Barros 
é doutora em Estudos Comparados pela USP (Puublicado originalmente no site da Revista Cult)

segunda-feira, 2 de novembro de 2020

Crônica: Quincas Berro D'Água no bairro do Pina.

Não sei se o leitor já passou por uma experiência do tipo, mas ontem, depois da leitura de Quincas Berro D'Água, acordei, durante a noite, sobressaltado com a expressão utilizada pelo Quincas, quando lhe ofereceram água, em vez de pinga. Não é a primeira vez que isso ocorre, o que passou a me preocupar, sobretudo em razão de manter, como livros de cabeceira, as obras do escritor theco Franz Kafka, consultadas com regularidade, em razão de um romance em construção, bem ao estilo kafkiano. Soma-se a isso os recorrentes assédios dos quais somos vítima hoje, como consequência desse momento insano e fascista que estamos presenciando no país. Basta ser um democrata, defender o Estado Democrático de Direito, colocar-se contra o fascismo para tornar-se alvo preferencial de uma trupe doente, pervertida, abjeta, incapaz de uma convivência civilizada e humanizada. O fascismo é destrutivo. Destrói as pessoas, as instituições, o meio-ambiente, o diálogo,o argumento, a razão, já que eles se dizem sempre os únicos donos dela. Nesta querentena imposta pela Covid-19, aproveitei o momento para me aprofundar sobre a origem dessa patologia política - profundamente relacionada ao romantismo alemão - suas estratégias, sua propaganda, seu programa. O fascismo tem tudo isso muito bem definido. O projeto de poder da ultradireita é muito claro, algo que parece ter sido substimado pelas forças do campo progressista. Num país como o nosso, onde as pessoas acreditam em perna cabeluda ou, como no passado, quando os agricultores eram convencidos a vir trabalhar em Paulista aos apelos dos aliciadores da Companhia de Tecido, afirmando que, no então distrito, eles encontrariam torneiras que jorravam leite, montanhas de cuzcus e paredes de rapadura, é bem possível dimensionar os efeitos maléficos de uma fake news, nesses tempos bicudos de pós-verdade. Jorge Amado viveu em Salvador, mais precisamente residindo nas ladeiras do Pelourinho, 68, ainda em sua juventude. Alí, convivendo com personagens locais, Jorge produziu um dos seus romances mais festejados: Suor, ainda sob forte influência do realismo socialista, quando o autor de Gabriela Cravo e Canela era uma espécie de seu representante aqui no país, ao lado do alagoano Gracilaino Ramos, autor de Vidas Secas. Quando deixou o local para residir no bairro do Rio Vermelho, sua residência foi transformada na Casa Museu Jorge Amado, que guarda alguns objetos pessoais do escritor. Como disse, Suor é um dos melhores textos de Jorge. Na minha modesta opinião e na opinião do escritor alagoano, Graciliano Ramos, cujo nível de exigência dispensaria maiores considerações. Uma das grandes sacadas deste texto de Jorge - assim como em Capitães da Areia - é a descrição fidedigna do cotidiano dos seus vizinhos de bairro, descrevendo, em minúcias, suas adversidades, sua luta diária pela sobrevivência, a promiscuidade, os embates frequentes dos seus moradores, o odor de inhaca dos cortiços. Até recentemente, um conhecido escritor pernambucano voltou a demonstrar um enorme entusiasmo por essa fase de arte engajada do escritor, sobretudo sobre seus reflexos na linguagem literária. Passada a refrega da experiência do socialismo real, o próprio escritor renegaria esse período, onde, segundo ele mesmo, ficava preso numa camisa de força, incapaz de desenvolver sua liberdade de escrever como gostaria, em razão dos limites impostos pela ideologia. O tema é tão polêmico que o dito escrritor resolveu programar uma de suas famosas oficinas para discutir o assunto. Ressalto aqui que, hoje, tem sido recorrente essa literatura, invocando problemas sociais, de violência de gênero, violência policial nas favelas. Mas, voltemos à Quincas Berro Dágua. A primeira vez que li este texto estava no ensino médio, por recomendação de um professor. Foi uma leitura de um fôlego só, assim como sua escrita. Amado teria escrito o texto em dois dias. Como já havia lido Suor, literalmente, voltei a Salvador do Pelourinho, seu casario, suas ruelas estreitas, seus monumentos tombados, a Baixa do Sapateiro, a rua da Baixinha, a Praça Castro Alves, suas pensões, seus tipos, como prostitutas, travestis e maconheiros. Mas recentemente, entretanto, fiquei surpreso com a informação de que Quincas Berro Dágua não seria um morador típico de Salvador, mas um pernambucano do bairro do Pina, aqui no Recife. Em suas férias, Jorge Amado costumava frequentar a província pernambucana, onde ficava hospedado na casa de um amigo, não deixando de apreciar seus encantos e recantos, como o restaurante Leite e a Praia de Maria Farinha, já na região metropolitana do Recife, na cidade de Paulista.Zélia relembra das frondosas mangueiras dessa residência, com seus frutos deliciosos. Jorge,possivelmente, experimentou o famoso licor de pitangas, no bucólico bairro de Apipucos, já que o sociólogo Gilberto Freyre era um habitué daquele restaurante, chegando a dar nome a um dos seus pratos: Medalhão à Gilberto Freyre. Numa dessas andanças, Jorge Amado teria ouvido o relato de um cidadão com tais características, que residia no bairro do Pina. A confissão teria sido feita pelo poeta Carlos Pena Filho. Quem poderia imaginar que Quincas Berro Dágua não seria um legítimo soteropolitano, dos becos e ruelas do Pelourinho, mas um pernambucano da gema, do bairro rebelde e alagado do Pina, frequentador dos seus bares, apreciador das belas bundas expostas ao sol, que tanto chamou a atenção do filósofo francês Michel Foucault quando esteve aqui na província? Mas este já é assunto para uma outra crônica, que compartilharei com vocês depois. José Luiz Gomes

Hegel como pensador do colonialismo?

Klaus Viewegdisse: 29 de outubro de 2020 Hegel como pensador do colonialismo? 37 Friedrich Hegel: para biógrafo, filósofo era 'tudo menos um colonialista eurocêntrico' (Foto: Reprodução) O absurdo da acusação de que Hegel seja um pensador colonialista começa pelo fato de que são usados, contra ele, princípios e padrões que ele mesmo defendia, dentre eles o universalismo, direitos humanos, liberdade e igualdade. Passa muitas vezes despercebido que a rejeição hegeliana a toda injustiça não é de maneira alguma condicionada cultural, ética ou geograficamente. A desumanidade, direcionada contra a razão e a liberdade, é atacada e deslegitimada independentemente do seu “lugar” de ocorrência – a escravidão na Grécia antiga e África pré-colonial, estruturas de clã na Europa bem como o sistema de castas indiano, a subjugação de outros povos e comunidades na África antiga ou Europa moderna. Tendo em vista o discurso hegeliano de que o “Pré ou Extra-histórico” representam déficits históricos, que existem em determinadas épocas, então estes são estágios do desenvolvimento a serem superados rumo à liberdade e ao direito, em qualquer continente e também qualquer cultura. Hegel se refere a estruturas políticas e estatais ainda não desenvolvidas e à sua relevância para o progresso da história mundial. Assim, na modernidade, devido à internacionalização e globalização, todos os povos, sociedades e culturas devem ser entendidos como atores da história mundial, essenciais à conquista da liberdade para todos. Que Hegel era tudo menos um colonialista eurocêntrico pode ser demonstrado, em termos bastante concretos, a partir de um dos mais famosos ensinamentos de sua filosofia: a temática do “senhor e do escravo”, unida à justificativa para superar essa relação através da “luta por reconhecimento”. Uma forma dessa estrutura de senhorio-escravidão reside no colonialismo moderno, discursivamente ligado à relação entre “metrópole e colônia”, entre “Estado-senhor e Estado-escravo”. O Estado-senhor possui uma estrutura política subordinada fora do seu próprio território nacional. De maneira alguma Hegel defende a legitimação dessa estrutura de submissão, e sim provê o oposto dessa justificação: porque essa estrutura não tem acordo com a razão, ela deve ser destruída. Tanto “escravo”, e o “Estado-escravo”, quanto o “senhor”, e o “Estado-senhor”, não são livres, mas estão ambos na mesma relação de não-liberdade, por meio de quê um não é mais livre do que seu diferente, o outro. A escravidão pode então ser considerada positiva em épocas históricas determinadas, e constituir um direito por lei, mas nunca um direito por razão. A estrutura do senhor-e-escravo representa uma extensiva perda de direitos que viola fundamentalmente e é contrária ao conceito do homem como um ser livre. Do mesmo modo, reside na estrutura do senhor-e-escravo ou na existência de Estados-escravos uma violação do conceito do Estado livre. Nenhuma dessas organizações políticas – o Estado-senhor e o Estado-escravo – possui legitimação ou soberania suficientes. Assim, pela perspectiva de Hegel, o colonialismo moderno não pode ser considerado racional. Ele é, como a antiga escravidão ou o posterior sistema de servidão, apenas direito positivo, que inclui a extensa perda de direitos humanos e opressão inumana de muitos atores. Nas palavras de Hegel: sob a cruz dos espanhóis, muitas gerações e povos da América foram assassinados; os ingleses cantaram músicas de agradecimento em ocasião da devastação da Índia; todos “crimes pavorosos”. A escravidão é “algo histórico – i.e., enquadra-se, pertence a um momento anterior à razão”. Em seu status de escravo, o homem não é reconhecido “em seus ‘valores infinitos’ e seus ‘direitos infinitos’”. Ele tem, por isso, o direito de, a qualquer momento, quebrar suas correntes. A fundamentação teórica dessa argumentação hegeliana reside em pensar o reconhecimento dos Estados especiais no âmbito do direito internacional – na terminologia de Hegel: direito constitucional externo, de que trata nos Princípios da Filosofia do Direito §§331-339. Seria decisivo aqui, particularmente, o §547 da Enciclopédia de Hegel e o discurso do “mútuo reconhecimento dos povos livres”, bem como a referência, localizada em um parêntese no §430 da Enciclopédia (e nos subsequentes §§432-437), do “princípio de mútuo reconhecimento”. Isso inclui o tratamento da questão da colonização (§248 da Filosofia do Direito): a sociedade burguesa tem, em si mesma, a dinâmica do lucro, e é incapaz de resolver internamente os seus problemas substanciais, especialmente o crescente vão entre riqueza e pobreza, sendo por isso “impulsionada para fora de si”. Uma forma disso se dar é a colonização operada “sistematicamente” pelos Estados, em decorrência de quê as colônias, enquanto Estados-escravos, não possuem os mesmos direitos que o Estado-senhor. É isto que Hegel vê como o fundamento para as guerras de libertação e emancipação serem entendidas como formas de “luta por reconhecimento”. O processo de reconhecimento é decisivo: “A libertação das colônias se comprova como sendo da maior vantagem para a metrópole, assim como a libertação dos escravos é da maior vantagem para o senhor”. Assim, a acusação de que Hegel seria colonialista demonstra-se sem fundamento. tradução Nina Auras Klaus Vieweg é professor da Universidade de Jena e autor de Pensamento da liberdade: linhas fundamentais da Filosofia do Direito (EDUSP) (Publicado originalmente no site da revista Cult)

domingo, 1 de novembro de 2020

Exclusão crônica

Paulo Roberto A caminho de casa, o cronista para num bar. “Na realidade estou adiando o momento de escrever”, confidencia ele, íntimo do leitor. “Gostaria de estar inspirado”, lamenta-se, numa das habituais e charmosas digressões de um gênero que ele mesmo define, linhas depois, como “perseguição do acidental”. Pensa no Manuel Bandeira de “O último poema” e, resignado, entrega os pontos: “Não sou poeta e estou sem assunto. Lanço então um último olhar fora de mim, onde vivem os assuntos que merecem uma crônica”. “A última crônica” saiu na Manchete em janeiro de 1963. Criada dez anos antes para concorrer com a Cruzeiro, a revista misturava imagens exuberantes, pitadas de sensacionalismo e, ingrediente indispensável à época, um respeitável time de cronistas. Fernando Sabino, nosso torturado autor, era parte de um elenco que incluía ainda Rubem Braga, Paulo Mendes Campos e Henrique Pongetti. E, naquele dia sem inspiração, deixou que seu olhar pousasse realmente fora do que era familiar a ele e seus companheiros de ofício: “Ao fundo do botequim um casal de pretos acaba de sentar-se”, escreve, encontrando seu “assunto” numa mesa em que também está “uma negrinha de seus três anos, laço na cabeça, toda arrumadinha no vestido pobre”. A família dos “três seres esquivos” está desconfortável. A mulher “suspira, olhando para os lados, a reassegurar-se da naturalidade de sua presença ali”, e espera o pedido “vagamente ansiosa, como se aguardasse a aprovação do garçom”. Em torno de uma fatia de bolo e um refrigerante, os três balbuciam um “parabéns pra você” e a criança sopra três velinhas usadas, trazidas pela mãe. “A negrinha agarra finalmente o bolo com as duas mãos sôfregas e põe-se a comê-lo”, observa. “A mulher está olhando para ela com ternura — ajeita-lhe a fitinha no cabelo crespo, limpa o farelo de bolo que lhe cai ao colo.” Depois de um tempo, cruzam-se o olhar do cronista e o do homem negro. “Ele se perturba, constrangido”, escreve Sabino, “vacila, ameaça abaixar a cabeça, mas acaba sustentando o olhar e enfim se abre num sorriso”. E aí o cronista faz seu milagre cotidiano, eternizando um efêmero sem arestas: “assim eu quereria minha última crônica: que fosse pura como esse sorriso”. Espelho Sob a rubrica “Aventura do cotidiano”, Sabino registra como extraordinária, digna portanto de seu olhar, a presença de negros onde não se supunha estarem e o fato de lá estarem à toa, como qualquer outro frequentador, preparando-se para “algo mais que matar a fome”. Deslocada no bar da Zona Sul carioca, a família também o é na crônica. O gênero que costuma ser festejado como uma das melhores expressões de um Brasil otimista e pacificado das décadas de 1950 e 1960 faz jus à fama pelo que mostra — e pelo que ignora. A crônica é sem dúvida espelho dessa sociedade, mas também é um dos tijolos que a sustentam, é reflexo e argamassa de uma divisão social implacável em que ao negro é permitido o protagonismo eventual na música, no esporte ou em um ou outro concurso de beleza. Na literatura, nem pensar. Em abril de 1950, ano eleitoral que terminaria com Getúlio Vargas no Catete, Emanuel Vão Gôgo declarava nas páginas do Cruzeiro sua plataforma política. Além de garantir o direito de greve e da prisão perpétua dos grevistas, a criatura mais célebre de Millôr Fernandes promete avanços: “será incrementado o racismo, à semelhança do que se faz em países muito mais adiantados”. Quando abordava o tema, a revista mais vendida do Brasil em geral tratava-o como problema dos outros — e, como sugere o sarcasmo de Millôr, o que vinha de fora costumava ser sinônimo de progresso num país que acreditava viver seus golden years. Entre os conselhos pedestres de Maria Teresa e as teses de Freyre, a crônica funcionou como anestesia para as dores da classe média branca Ainda nas páginas da Cruzeiro, Maria Teresa, titular da coluna “Da mulher para a mulher”, declara no consultório sentimental a opinião cristalina dos que se julgavam livres de preconceito. Respondendo à singela angústia de Sidney — “Não consigo uma namorada” —, fala-nos um pouco mais do consulente. “Você está com complexo de inferioridade por causa da cor”, observa ela. “Não diga que é moreno. É um pouco mais do que isso. Admita essa verdade como ponto de partida”. Citando Machado de Assis e José do Patrocínio como exemplos de homens que brilharam por mérito próprio, conclui: “E esqueça esta questão de raça. Estamos num país onde não há racismo. E nem poderia haver, pois todo bom brasileiro deve orgulhar-se de ser o que é, isto é, descendente de brancos, pretos e índios”. A atualidade de “Memórias do Cárcere", de Graciliano Ramos Entre 1948 e 1967, sempre que era possível, Gilberto Freyre fazia da coluna “Pessoas, coisas e animais” uma tribuna de defesa de sua tese da “democracia racial”. Incluindo-se entre “velhos adversários do preconceito racial”, Rachel de Queiroz vira e mexe voltava ao tema em sua prestigiada “Última página”. Em 1961, a cronista que tanto exaltava a Lei Afonso Arinos, que criminalizava o racismo, tinha entre suas aflições as atitudes afirmativas que resultavam no improvável “racismo reverso”. “Numa verdadeira democracia racial”, escreve ela em “A cor”, “não há como a gente se preocupar com a cor ou a origem racial de qualquer concidadão; formar grupos separados de negros é tão errado quanto admitir grupos isolados de brancos. Ninguém é branco nem ninguém é preto, tudo é brasileiro.” Entre os conselhos pedestres de Maria Teresa e as teses de Freyre, a crônica funcionou, e muito bem, como anestesia para as dores da classe média branca. Em “Cores do preconceito”, publicado em agosto último no Portal da Crônica Brasileira, Humberto Werneck, editor do site e também editor sênior desta Quatro Cinco Um, faz um apanhado de como o racismo figurou nos textos de Rubem Braga, Otto Lara Resende e, é claro, Rachel. Todos eles intelectuais humanistas, sensíveis às causas sociais, em algum momento se pronunciaram sem rodeios em defesa da população negra, ainda que as dores do racismo sejam tematizadas mais na clave da empatia do que da emancipação. Não é à toa que, em 1953, numa sofisticada análise que remete às origens da crônica ao familiar essay inglês, Vinicius de Moraes imagina o corpo humano como metáfora do jornal, estando o “coração” reservado ao gênero que também praticava. “Matéria tácita de leitura que desfoca o leitor da tensão do jornal e lhe estimula um pouco a função do sonho”, a crônica é, portanto, cordial, pouco afeita às determinações frias da objetividade e infensa às discussões mais indigestas — o fígado, na mesma metáfora, é o lugar que caberia ao “artigo de fundo”. A promessa de felicidade de Vinicius encerra um princípio básico: as amargas, não. Em seu auge, a crônica terminaria por cristalizar-se na fórmula que, décadas mais tarde, dela deduziria Antonio Candido: “um fato miúdo e um toque humorístico, com o seu quantum satis de poesia”. Ainda que envolto em fumos metafísicos e candidato à atemporalidade, o “fato miúdo” lembra que o Brasil dos cronistas é muito, muito pequeno. Não é diverso na geografia, no ponto de vista ou na raça. Com as exceções de Rachel, Dinah Silveira de Queiroz ou Clarice Lispector, a crônica é assunto de homem, de homem branco, que vive de frente para o mar, no conforto da classe média alta carioca. No lirismo de crepúsculos e paixões, o “brotinho” não é uma jovem negra, como negro não é aquele que, à beira da piscina, afoga as mágoas num gim. No clássico de Paulo Mendes Campos, o amor acaba em todos os lugares que se possa imaginar, sempre circunscritos ao exíguo perímetro social, imaginário e afetivo de seus protagonistas. Sendo a crônica em geral um ramal auxiliar, o ganha-pão de romancistas e poetas com obras a zelar no mundo da “alta literatura” — Rubem Braga continua até hoje a exceção —, não espanta que o gênero se consolide alheio à autoria negra. João do Rio, um dos mais notáveis cronistas da história, morre em 1921; Lima Barreto, no ano seguinte. Ambos adentram a década de 1950 esquecidos — ainda que em 1956 Francisco de Assis Barbosa publique a obra completa de Lima, os dezessete volumes de capa dura asseguram ao autor de Os bruzundangas um lugar perto do cânone e longe do grande público. Sendo a crônica o ganha-pão de romancistas com obras a zelar no mundo da “alta literatura”, não espanta que se consolide alheia à autoria negra Na minuciosa pesquisa que resultou em Silêncios prEscritos — estudo de romances de autoras negras brasileiras (1859-2006) (Malê), Fernanda Miranda registra que entre 1923 e 1944 não se publicou romance de nenhuma autora ou autor negro, intervalo dramático e eloquente que se repetiria entre 1951 e 1963. Em 1960 Carolina Maria de Jesus entra em cena com Quarto de despejo, na melhor das hipóteses catalogado precariamente como “documento sociológico” e, na pior e mais corrente, relato de um mundo exótico e distante. Exceção A exceção que por muito tempo passou batida é Antonio Maria. Em fins de 1964, quando morreu, aos 43 anos, ele não era identificado e tampouco se identificava como negro. Mais de uma vez, e com insistência, leituras nostálgicas desse Brasil dourado listam como características negativas de Maria a corpulência e a raça. Sempre suado, mal-ajambrado em ternos amarrotados, admira a certo tipo de narrador que o compositor e cronista tivesse sucesso com mulheres, por inconcebível que fosse um galã gordo e mulato, termo que destaco para marcar o caráter pejorativo da descrição. É esse o Antonio Maria que aparece na dissertação de mestrado recém-defendida pelo editor e pesquisador Guilherme Tauil na Faculdade de Letras da Universidade de São Paulo (USP). Vento vadio, título da pesquisa, homenageia o livro que Maria planejou e que, derrotado por sua insegurança e indisciplina, jamais publicaria. Dentre seus colegas de ofício, ele foi o único a não resgatar suas crônicas da efemeridade dos jornais e revistas. O sentimento de exclusão não era estranho ao autor de “Ninguém me ama”, que escreveu versos como “Sou uma coisa infeliz/ Que num copo de uísque disfarça alegria” ou “Ninguém é mais triste do que eu”. Na superfície, a história de Maria é a de um “cardisplicente”, sempre interessado em quem não gostava dele, sempre flertando com o abismo. Mas me pergunto se não estaríamos aí diante de uma história em que os padrões de infelicidade advêm da exclusão de diversas formas e se refletem uns nos outros: pernambucano pobre entre gente bem posta do Sudeste, gordo entre esbeltos, atrapalhado entre elegantes, radialista criado no esporte entre cronistas curtidos na literatura, cronista entre escritores reconhecidos, letrista de música popular entre poetas e romancistas. E, talvez à sua própria revelia, negro entre brancos. Didier Eribon parte de sua trajetória para analisar a despolitização de um mundo Em “Summer Jacket”, crônica pinçada na revista A noite ilustrada e inédita em livro, Tauil analisa um episódio exemplar. Numa festa de luxo em que o smoking era exigido, Maria aparece de summer jacket e, em seu paletó branco, é logo confundido com os garçons. “Sofria tanto aquele apoucamento, horas de lentos minutos, sem um pensamento ou lembrança na cabeça, gosto de passa velha na boca, suor na testa”, escreveu Maria, talvez por enxergar com uma nitidez mais comum em nossos dias que o mal-entendido não se devia apenas a uma transgressão do dress code. Maria não é, no entanto, uma exceção virtuosa que confirma a regra da exclusão. Num outro achado da pesquisa, Tauil lembra que, em 1957, o cronista aparece de forma pouco lisonjeira na Introdução crítica à sociologia brasileira, de Alberto Guerreiro Ramos. No apêndice “Patologia social do ‘branco’ brasileiro”, o combativo intelectual negro analisa as formas como o racismo se entranha na sociedade. E cita a coluna “Mesa de pista”: “Nortista (sic) é também um inteligente redator de O Globo, jornal em que escreve diariamente uma crônica sobre a vida noturna do Rio. Na edição de 18/1/55 daquele jornal, o referido redator publica a fotografia de uma artista de night club, seguida desta legenda: ‘A moça de hoje — Esta é a bonita bailarina negra, Nilza, do elenco do Béguin. Bela de corpo e de cara. Dela se poderia dizer: ‘Isso em branco…’”. Entre os jardins suspensos da mítica cobertura de Rubem Braga, em Ipanema, e as ruas em que Antonio Maria minerava personagens e casos do “Romance Policial de Copacabana”, a crônica cumpriu e muito bem a função de suavizar a dureza da notícia com apurado tempero literário. Nos anos 1970, o título de uma excepcional série de antologias publicada pela Ática definiu-a com precisão: trata-se de um gênero Para gostar de ler, mas que também merece atenção pelo que deixou de mostrar. O colunista escreve quinzenalmente na revista dos livros. (Publicado originalmente no site da Quatro Cinco Um, a revista dos livros)

Charge!Jean Galvão via Folha de São Paulo

sexta-feira, 30 de outubro de 2020

Encrencas abolicionistas: por uma ética das tensões produtivas

Aline Passosdisse: 27 de outubro de 2020 Ao que chama de feminismo carcerário, a filósofa Angela Davis opõe o feminismo abolicionista (Foto: Divulgação) Arreda homem que aí vem mulher! Algumas interlocuções abolicionistas são bastante embaraçosas. Particularmente, eu fico desanimada quando vejo um(a) abolicionista tentando ensinar a feministas que a prisão não resolve o problema da violência e que o sistema de justiça criminal é racista. Tudo que me ocorre nessas horas é balbuciar “elas sabem”. Vejam bem, se existem forças autoritárias no conjunto incomensurável dos feminismos, não tenho qualquer interesse em dialogar com elas. Tudo que pode se instaurar aí é uma tensão improdutiva que se caracteriza pela pretensão de submeter a interlocução divergente à derrota. Não vejo como, nem porque, eu deveria dispender energia em uma relação desse tipo, sobretudo se eu posso, se tenho acesso, a conversações feministas comprometidas com as lutas abolicionistas e antirracistas, mas que nem sempre entendem os processos de criminalização da mesma forma que eu. Neste caso, a partir das nossas divergências, é possível instaurar uma tensão produtiva em que as pessoas envolvidas estão empenhadas no fortalecimento mútuo, pessoal e político. Dito de outra forma, não vejo muito sentido em criticar, por exemplo, demandas punitivas do feminismo radical, se eu posso dialogar com as demandas de feminismos negros, decoloniais, queer. Portanto, quando me deparo com a defesa de um processo de criminalização (primária ou secundária) por parte das feministas com as quais posso estabelecer uma relação produtiva, assumo a compreensão de que elas sabem perfeitamente do que estão falando. Mais do que isso, entro no debate consciente de que, sabendo de todas as questões envolvidas, sobretudo raciais, elas fizeram uma opção que não se resume a simplório punitivismo. Dito isto, reciprocidade é bom e todo mundo gosta. Recentemente, passei a ler elaborações feministas que respeito muito, mas que produziram em mim um certo desapontamento. Por isso, demorei a me manifestar. Mas o fato é que me refiro à crítica que algumas feministas, negras, decoloniais, queer, ou seja, de vários campos que considero de tensão produtiva, vem tecendo aos abolicionismos a partir do conceito de esquerda punitiva, cunhado por Maria Lúcia Karam. Não vou fazer aqui um histórico da pertinência deste conceito. Limito-me a dizer que foi importante na trajetória de muitas gerações de abolicionistas, mas recentemente, quando voltado contra as demandas punitivas de minorias, não tem produzido nada interessante, salvo um imenso desgaste dos(as) interlocutores. A autora, inclusive, parece fazer questão de se manter distante das formulações feministas mais atuais. É por isso que eu me pergunto por que o desgaste e o que pode surgir de interessante quando, para criticar os abolicionismos, apela-se para o conceito de esquerda punitiva e o quanto ele é insuficiente para responder às demandas de minorias em processos de criminalização. Existem formulações mais recentes, mais mobilizadas por pesquisasdores/as e ativistas mais jovens, e que são da cepa de abolicionistas interessados/as na interlocução produtiva com os feminismos ou que habitam, ao mesmo tempo, abolicionismos e feminismos. É o caso do feminismo carcerário, noção utilizada por Angela Davis, intelectual, militante, abolicionista e feminista negra. Segundo Davis, o feminismo carcerário “infelizmente acredita que problemas como a violência contra a mulher podem ser efetivamente resolvidos pelo uso da força policial e da prisão”. A este feminismo, ela opõe o feminismo abolicionista. Ao mesmo tempo que Davis possui, portanto, sensibilidade, acúmulo teórico e histórico militante incontestáveis para as lutas feministas, ela se recusa a apostar em demandas punitivas e elabora sua crítica a estas últimas de maneira bastante generosa, perspicaz e, o mais importante, disponível às contradições que o debate suscita. Desta forma, volto à pergunta, por que insistir em criticar os abolicionismos por meio do conceito de esquerda punitiva, se existe um conceito como feminismo carcerário se opondo às demandas punitivas em nome da proteção das mulheres? Não seria um atalho, um caminho fácil, tentar enfrentar a crítica que abolicionistas fazem aos feminismos por meio do conceito de esquerda punitiva? E, uma vez que se consiga desbancar este conceito, eventualmente demonstrando que, hoje em dia, ele é usado como forma de desqualificar feminismos, não restaria a questão proposta por Davis, com muito mais pertinência? Não desconheço as formas pelas quais abolicionistas se servem do conceito de esquerda punitiva para desqualificar discursos feministas e não acho descabido que se responda a este tipo de ataque. Ao mesmo tempo, quando me volto para o campo da crítica – que não é o mesmo que ataque – fico pensando que o cerne da questão, ou seja, as demandas punitivas vindas das minorias, e mais especificamente, dos feminismos, permanece intocado. As encrencas nos limiares de abolicionismos e feminismos envolvem questões sobre pertinência, eficácia, eficiência, racismo, dentre outras, que os processos de criminalização agenciam. No final das contas, a impressão que me dá é que partilhamos um estado geral de fuga do problema. De um lado, abolicionistas que ainda não entenderam que certas mobilizações punitivas de movimentos de minorias não significam, por parte destes grupos, um desconhecimento sobre o sistema de justiça criminal ou sobre a prisão. Mais do que isso, não significa uma aposta em sua legitimidade, mas uma medida emergencial. De outro lado, muitas feministas parecem bastante dispostas a enfrentar Karam, mas não Davis, cuja crítica vai no mesmo sentido, porém, delineando uma tensão produtiva, interessada no fortalecimento mútuo, em meio a diferenças e divergências, e que não será superada caso o conceito de esquerda punitiva seja tornado obsoleto, pois ainda nos restará lidar com o feminismo carcerário. De certa forma, o que estou propondo aqui é que nossas críticas recíprocas assumam o compromisso de não buscar um atalho nas interlocuções mais frágeis e que não partem do reconhecimento mútuo da pertinência de abolicionismos e feminismos dedicados à ampliação de vidas vivíveis. Que as nossas reflexões possam trabalhar com o que há de mais sofisticado em cada uma das forças em luta porque elas não apenas não pretendem se destruir, mas se percebem vitais uma a outra. Assim, vamos ao que interessa: feminismo carcerário é um conceito pertinente? Aponta um problema real entre feminismos? Em que medida abolicionismos têm dificuldade em responder às demandas urgentes de vítimas? Existe produção abolicionista com “propostas concretas” para as vítimas? No nosso próximo encontro, vou deslocar a vítima para o centro do debate abolicionista como forma de tentar conversar com as críticas mais pertinentes aos abolicionismos, vindas, sobretudo, de movimentos de minorias e, exercitando o que proponho hoje: situar o debate em tensões produtivas, buscando conceitos, instrumentos de análise, chaves de leitura, autores e autoras que, ao trabalharem entre abolicionismos e feminismos, reconheçam uns aos outros como sujeitos de suas próprias formulações e, ainda além, como aliados. Aline Passos é doutoranda em Sociologia pela UFS, mestre em Ciências Sociais pela PUC-SP, graduada em Direito também pela UFS. Professora de Direito Penal, Processo Penal e Criminologia (Publicado originalmente no site da Revista Cult)

Charge! Benett via Folha de São Paulo

quinta-feira, 8 de outubro de 2020

A ficção do real: as esquivas relações entre a literatura e o mundo

 

A ficção do real: as esquivas relações entre a literatura e o mundo
a cena originária que articula a estética e a política é contemporânea: trata-se do nosso mundo, hoje (Foto: Ryoji Iwata)

 

1.Como numa cena originária em que são enredadas a estética e a política, lemos na Arte poética de Aristóteles que “imitar é natural ao homem desde a infância” e que, por meio da imitação, que se apresenta a todos como uma experiência prazerosa, segundo o filósofo, também os conhecimentos são adquiridos.

No cerne desse argumento encontramos, por um lado, a problemática equiparação das noções de mímesis e imitação: espécie de domesticação conceitual que é, aliás, indissociável da tradição romana e de reinterpretações do texto aristotélico no período renascentista, como mostrou Luiz Costa Lima. Por outro lado, e fundamentalmente, reconhecemos a proposição legitimadora dos fazeres miméticos: trata-se de um salvo-conduto concedido às artes da representação; um gesto que se contrapõe à censura imposta por Platão, para quem, como sabemos, a mímesis é degradante, e mesmo subversiva, já que perturbadora das disposições, das emoções e da razão: um obstáculo, portanto, ao conhecimento franqueado pela contemplação filosófica e à ordenação ideal da sua república.

Mas afinal o que Aristóteles salienta a respeito da mímesis/imitação? A pergunta é mesmo crucial. Debates ao longo do último século parecem ter consolidado uma interpretação para a mímesis que a diferencia da simples imitação da natureza. Em jogo há algo talvez mais complexo e interessante; algo distinto da mera referência a um exterior já dado, ou ainda, algo diverso da cópia ou da reprodução especular de uma realidade factual prévia e que, desse modo, estaria garantida a priori.

2.A Arte poética afirma que “aqueles que imitam, imitam pessoas em ação”, e que a tragédia, ápice na hierarquia dos gêneros aristotélicos, “é imitação, não de pessoas, mas de uma ação, da vida, da felicidade, da desventura; a felicidade e a desventura estão na ação e a finalidade é uma ação, não uma qualidade”. Destacar que o foco da mímesis é uma ação nos permite recolocar os termos da discussão a respeito das esquivas relações entre a literatura (a ficção) e a realidade (o mundo).

Isso porque, a partir daí, a mímesis/imitação pode ser entendida como uma articulação, um encadeamento, um arranjo de processos; arranjo não verdadeiro, mas sim verossímil, e que, não existindo previamente, é produzido com a própria técnica mimética, vale dizer, com a ação da linguagem. Nesse sentido, imitar uma ação é efetivamente uma questão de arte poética, já que em sua etimologia poiesis remete à potência do que é fabricado, construído, produzido ou preparado, como afinal é a manufatura de um texto: sua costura, sua trama.

Afastada dos tributos identitários à idealidade da ideia ou da natureza, a mímesis se maquina em montagem, sintaxe, composição; envolve, de fato, a criação de uma realidade absolutamente contingencial, por isso provisória, cuja validação repousa, em suma, não em um suposto referente essencial ou objetivo, seja ele modelo primeiro ou último, mas em certos sentidos e efeitos que são possíveis em razão do próprio artifício que os organiza e dissemina, muitas vezes à revelia do controle do autor (ou de qualquer autoridade). Em poucas palavras:

 

com a literatura (com as artes), a reprodução
da identidade dá lugar à produção da diferença.

 

 

Com isso poderíamos afirmar que, para além dos estritos gêneros aristotélicos, a realidade apresentada com o verossímil da representação é, verdadeiramente, e a cada vez, a realidade não-hierárquica da linguagem em processo; e ainda que, em suas manifestações mais heterogêneas, e valendo-se, cada uma a seu modo, da mobilização de recursos narrativos e descritivos muito plurais, as ficções realistas (ou que assim poderiam ser chamadas) ocupariam, afinal, o vértice do artificialismo.

3.O fantasma naturalista parece já ter sido bem analisado. Assim, o recobrado fôlego realista que atravessa parte considerável da ficção contemporânea pode partir de proposições que assumem seus próprios artifícios. Claro, há muitíssimas narrativas que retomam as fórmulas realistas consagradas pela literatura moderna (ordenação cronológica ligada ao princípio da causalidade, clara caracterização espacial e histórico-social, personagens-tipo, onisciência seletiva, estabilidade na perspectiva, valorização estilística do discurso indireto livre, fatura textual com poucos ornamentos etc.).

Mas existem também experimentações que desdobram as rupturas propostas pelo novo romance e o entendimento da escrita como vertiginosa produção de um lugar atópico, onde ecoa uma voz impessoal, sujeita a todos os atravessamentos, sem início ou fim. E há ainda as performances críticas em torno da indecidibilidade entre arte e vida, com variados efeitos de sentido e sobreposições de presença e ausência. Assim como há as escrituras tateantes do paroxismo ou dos “restos do real”, como escreveu Florencia Garramuño, desprendidas da “pretensão de pintar uma ‘realidade’ completa regida por um princípio de totalidade estruturante”; textos que operam como apresentações de realidades elusivas ou descontínuas, com as quais toda reprodução da “natureza” (seja biográfica, humana, social, nacional, cultural) é minada e ao mesmo tempo exposta como uma construção. E há também as escrituras “traumáticas”, que articulam a possibilidade da diferença com a repetição compulsiva de um elemento simbólico reconhecível, mas com o qual emerge, enfim, um real sempre resistente à simbolização.

(E com esse largo gesto – algo anárquico ou genérico, por certo insuficiente em seu contorno – poderíamos apontar, no Brasil, poéticas tão díspares como as de Clarice Lispector, Ana Cristina Cesar, Waly Salomão, Silviano Santiago, Cristóvão Tezza, João Gilberto Noll, Evandro Affonso Ferreira, Veronica Stigger, Ricardo Lísias…).

Agora, em outros textos, se o realismo é igualmente um ponto de partida, o procedimento, diverso, consiste em reeditá-lo, como sugere Luz Rodríguez Carranza em “O efeito Duchamp”: apropriando-se do imaginário mais estereotipado, dos seus clichês mais imediatos, como um ready made, tais ficções parecem reforçar o artificialismo do processo, mas de tal modo que ele opera esvaziado, sem lastro ou profundidade, numa espécie de produtividade improdutiva que, no entanto, designa o vazio do presente, não raro de forma risível.

 

Vale dizer: é como se a produção da diferença fosse
tensionada, nesses casos, por um excesso
inassimilável, ou seja, pela produção da indiferença.

 

 

4.Dois exemplos, apenas. No livro Reprodução, de Bernardo Carvalho, a narrativa começa com um “estudante de chinês” que “decide apren­der chinês” – pois essa seria “a língua do futuro”. E o que esse estudante de chinês gostaria de dizer em chinês – “só que não pode, porque não chegou a essa lição” – é o seguinte: “É um lugar-comum viajar para esquecer uma desilusão amorosa, mas é impossível escapar ao lugar-comum”.

Após essa primeira página, e já perfeitamente advertidos do seu inescapável funcionamento, entramos na máquina anestésica que é – digamos dessa maneira – o wikimaginário desse personagem, o perfil do “estudante de chinês”. Ele é interrogado pela Polícia Federal de um aeroporto, e nós acompanhamos, por páginas seguidas, seu quase-monólogo, repleto de perversas platitudes:

“Se a gente pudesse, também acabava com a privacidade pra combater o terrorismo; também se aliava com Arábia Saudita, Bahrein e o escambau; também defendia tortura fora das nossas fronteiras, em nome da democracia. Vai dizer que não defendia? Agora, peguei o senhor! Eles estão certos. O problema é a porra da contradição. A contradição é uma merda. Desculpe. Na Arábia Saudita, ladrão é amputado; aqui, é deputado. Não preciso de ladrão pra me representar. Tenho opinião própria. É só o que o senhor tem a dizer? Eu já esperava por isso. Ninguém aguenta contradição. É isso aí. Ninguém quer se ver no espelho. A contradição é a força e a fraqueza da democracia. Por isso é que não pode durar. Por isso é que a democracia está condenada a degringolar em fascismo e religião. Leia os colunistas. A gente só não faz porque não pode. Eu, se pudesse escolher, ficava com os americanos. Mas agora é a vez dos chineses.”

Luiz Ruffato, por sua vez, escreveu uma abertura que é, em certo sentido, didática. Em Eles eram muitos cavalos – essa sorte de livro-série, livro-instalação, livro-constelação, livro-caleidoscópio, talvez, em que a cidade de São Paulo é arranjada – encontramos não o estudo, mas sim, ao que parece, a lição já aprendida com uma pedagogia da indiferença, a começar do começo:

1. Cabeçalho

São Paulo, 9 de maio de 2000.
Terça-feira.

2. O tempo

Hoje, na Capital, o céu estará variando de nublado a parcialmente nublado.

Temperatura – Mínima: 14°; Máxima: 23°.

Qualidade do ar oscilando de regular a boa.

O sol nasce às 6h42 e se põe às 17h27.

A lua é crescente.

3. Hagiologia

Santa Catarina de Bolonha, nascida em Ferrara, na Itália, em 1413, foi abadessa de um mosteiro em Bolonha. No Natal de 1456, recebeu o Menino Jesus das mãos de Nossa Senhora. Dedicou sua vida à assistência aos necessitados e tinha, como única preocupação, cumprir a vontade de Deus. Morreu em 1463.

Por um lado, a cidade surge como presença ausente no entremeio dos fragmentos: tramada como uma cartografia de paixões apáticas ou insensíveis, híbrido de uma poética do zapping com o mais errático e desejoso dos hiperlinks. Protagonista, ela é fundamentalmente um efeito da ação em curso: um produto da articulação das narrativas e das quase-narrativas do livro – do seu processo.

Não obstante, essa ação coordena: listas de emprego, de biblioteca, de garotas e garotos de programa; cartas, horóscopo, mensagem em secretária eletrônica; acidentes, migrantes, trabalhos, roubos, miseráveis, bandidos, burgueses; interior de casa de periferia, de barraco, ratos, negro que bate, negro que apanha; rezas, orações, pragas etc. etc. etc. Nesse sentido, numa miríade de clichês, a cidade já estava pronta, parece dizer Ruffato: só faltava assinar.

5.As realidades produzidas pelas artes poéticas inevitavelmente retomam e modulam a tensão originária entre estética e política. Não é um acaso, portanto, que tenhamos herdado, na contemporaneidade, os impasses da representação que acompanham, lado a lado, as crises da representatividade.

Com o realismo do século 19 processou-se a disseminação de uma estética generalizada, altamente produtiva, que impugnou o regime hierárquico e normativo dos gêneros clássicos, tributários da tradição restritiva da imitação. Mas não foi só isso.

A emergência do protagonista “qualquer”, isto é, do sujeito singular ou mesmo anônimo, que deve narrar a si mesmo num mundo em que deus se retirou, as tradições estão fora do lugar e a razão tende a disciplinar todos e cada um; a indistinção entre as ordenações narrativas da literatura e as ordenações narrativas dos demais fenômenos históricos e sociais; a produção de formas de vida cada vez mais dependentes dos meios de comunicação e exposição – em suma, entre muitas outras, tais condições demarcam não somente a ruptura com um regime representacional regulatório das artes; elas igualmente significam uma alteração nas formas de entendimento e de exercício da representatividade política.

Ou seja, a cena originária que articula a estética e a política é uma cena contemporânea: trata-se do nosso mundo, hoje; mundo que permanece fundado em uma ficção que tende a apagar a divergência entre a igualdade das demandas mais singulares e a máquina não igualitária que é o consenso democrático. As muitas poéticas da produção, expondo e levando adiante essa tensão irresoluta, mobilizam seus recursos para a proposição de realidades que possam ser verdadeiramente comuns. Elas afirmam – diríamos – que o desejo se move entre restos e performances, vertigens e vazios, repetições e reedições, escritas e leituras; e que se estamos exaustos – como tantas vezes parecem estar exaustas as nossas palavras –, ainda assim, seguimos narrando.

Artur de Vargas Giorgi é doutor em Literatura pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e professor de Teoria Literária da mesma instituição.

(Publicado originalmente no site da revista Cult)