pub-5238575981085443 CONTEXTO POLÍTICO: Editorial: O moleque Ricardo era alfabetizado
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sábado, 3 de outubro de 2020

Editorial: O moleque Ricardo era alfabetizado

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Há um consenso entre os críticos literários no sentido de aceitar a tese de que o romance o Moleque Ricardo, do escritor paraibano José Lins do Rego, seja um dos mais importantes de sua carreira literária - até mais importante mesmo do que os romances que se inscrevem, diria que mais organicamente, no chamado ciclo da cana-de-açúcar, caso de Fogo Morto - considerado por alguns analistas como sua obra-prima - uma vez que o escritor estaria mais solto, mais desvinculado dos escritos memorialistas, ambientados na bagaceira. De fato, Ricardo abandona o engenho para conhecer de perto, movido pelas circunstâncias, as agruras do povo pobre do Recife, principalmente das periferias dos bairros alagados. Cumpre pena em Fernando de Noronha, tendo uma passagem pela Companhia de Tecidos Paulista. 

Em sua volta ao Engenho Santa Rosa, já transformado em usina -Ricardo passa a romancear o passado idílico - tão exaltado pelo autor, inspirado em Gilberto Freyre, seu grande amigo e inspirador - concluindo que o advento das usinas estava destruindo aquelas relações , antes tão cordiais, entre senhores e ex-escravos. Ricardo era um moleque alfabetizado, um dado inusitado entre os descendentes das senzalas. Aprendera a ler em razão do esforço de sua mãe. Faço essas considerações iniciais para fazer algumas observações, por ocasião do dia nacional de alfabetização, comemorado recentemente. 

O país atravessa um momento delicado no campo político, econômico, institucional e de saúde pública, o que justifica em parte a apatia do transcurso dessa data. Na realidade, não há muito o que comemorar mas haveria, sim, muitos motivos para preocupações. Principalmente na região de Ricardo, o Nordeste, que ostenta os maiores índices de analfabetismo do país. Nunca houve um esforço sério para erradicar o analfabetismo, que ainda atinge 11 milhões de brasileiros, colocando o país num escore internacional vergonhoso. 

Exceto, talvez, nos idos da década de 60, quando havia um propósito de enfrentar o problema adotando o metido de alfabetização de adulto do educador pernambucano Paulo Freire, um pensador que produziu uma material teórico não apenas importante para pensar o país, mas o próprio continente latino-americano. Como se sabe, as reformas de base foram abortadas por um golpe de Estado. Sintomaticamente, num país de passado escravagista e machista, estabelece-se uma relação consequente entre o perfil do analfabeto brasileiro: nordestino, mulher, negro, idoso, pobre. O Moleque Ricardo aprendeu a ler por uma dessas circunstâncias furtuitas, coisa rara entre a molecada da senzala, conforme já afirmamos.Esse não era um direito reconhecido aos ocupantes da senzala. 

Antes como hoje, a julgar pela ausência de esforços do Estado, através de políticas públicas dirigidas, nossa conclusão é que se trata de um direito de cidadania ainda não reconhecido no país, trazendo, em sua essência, como não poderia ser diferente, o seu componente racista, de classe, de gênero, sem deixar de mencionar o dado relevante das desigualdades regionais. O Moleque Ricardo teve uma biografia marcada por grandes desajustes, conhecendo as dificuldades da vida no Engenho Santa Rosa, assim como no Recife e sua periferia. Em muitos aspectos, é também um pouco as vivências do autor, na condição de estudante de direito na Faculdade de Direito do Recife, período em que conheceu o sociólogo Gilberto Freyre, que se orgulhava bastante de tê-lo encaminhado na vida literária.

Embora com uma narrativa imbricada dos valores da Casa Grande, reconheço em José Lins do Rego alguns lampejos de sensibilidade ao drama daqueles ocupantes da senzala. Dá voz à bela Maria Alice, em Banguê, que se queixava da exploração dos cabras do eito do coronel José Paulino.O caso do Moleque Ricardo é um outro desses momentos. Nos tempos áureos do Santa Rosa, observa ele, contava-se nos dedos os moleques que tiveram acesso a um banco escolar. O descaso é histórico. 520 anos depois, ainda somos um país de analfabetos, caracterizado pela ausência de um esforço sério para debelar essa chaga. Que arremedo de país é este?



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