pub-5238575981085443 CONTEXTO POLÍTICO: outubro 2018
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segunda-feira, 29 de outubro de 2018

Observar a democracia com as lentes de Bobbio

                                           
Michelangelo Bovero
                                                                                                                                                             

Observar a democracia com as lentes de Bobbio


O filósofo e historiador italiano Norberto Bobbio (Foto: Divulgação)

A tradição de pensamento que alguns estudiosos quiseram chamar de “escola de Turim” tem, entre seus temas principais de reflexão, e não apenas de preocupação intelectual, mas também de compromisso civil, o problema da democracia. Trata-se na realidade de um problema complexo, ou de um nó de problemas particularmente intricado, que deve ser enfrentado, sobretudo, com os instrumentos teóricos da análise conceitual.
A teoria analítica da democracia elaborada dentro da escola de Turim, acima de tudo e eminentemente na obra de Norberto Bobbio, é em primeiro lugar uma teoria jurídica, distinta das teorias políticas, como, por exemplo, as de Giovanni Sartori ou Robert A. Dahl, e das teorias economicistas como as de Anthony Downs, e também de Joseph Schumpeter. A teoria de Bobbio é geralmente considerada a versão mais pontual e madura da chamada “concepção processual” da democracia, que, ao longo do século 20, para superar as ambiguidades e os equívocos das concepções “substanciais”, concentrou a atenção sobre as “regras do jogo”. Nos últimos tempos voltou-se a refletir sobre este núcleo interno da concepção bobbiana, a teoria das regras constitutivas da democracia, na tentativa de reconstruí-la, reformulá-la e empregá-la como instrumento de diagnóstico para medir o grau de democracia dos regimes políticos contemporâneos.
A tabela bobbiana das regras democráticas
1 – Todos os cidadãos que alcançaram a maioridade, sem distinção de raça, religião, condição econômica e sexo, devem desfrutar dos direitos políticos, ou seja, todos têm o direito de expressar sua própria opinião ou de escolher quem a exprima por eles;
2 – O voto de todos os cidadãos deve ter o mesmo peso;
3 – Todas as pessoas que desfrutam de direitos políticos devem ser livres para poder votar de acordo com sua própria opinião, formada com a maior liberdade possível por meio de uma concorrência livre entre grupos políticos organizados competindo entre si;
4 – Devem ser livres também no sentido de ter condição de escolher entre soluções diferentes, ou seja, entre partidos que têm programas diferentes e alternativos;
5 – Seja por eleições, seja por decisão coletiva, deve valer a regra da maioria numérica, no sentido de considerar eleito o candidato ou considerar válida a decisão obtida pelo maior número de votos;
6 – Nenhuma decisão tomada pela maioria deve limitar os direitos da minoria, particularmente o direito de se tornar por sua vez maioria em igualdade de condições.
Essas seis regras são chamadas de “procedimentos universais”, ou seja, as normas que estabelecem, de acordo com as fórmulas simples e iluminadoras de Bobbio, o “quem” e o “como” da decisão política – e que se encontram em todos os regimes geralmente chamados democráticos.
Todas as regras enumeradas por Bobbio dizem respeito, direta ou indiretamente, à instituição que caracteriza a democracia representativa: as eleições. Hoje, e não sem bons argumentos, tende-se a não considerar indissolúvel o nexo entre eleições e democracia. Que as eleições são um indicador insuficiente da democracia de um sistema político é algo evidente, até mesmo banal. Mas isso não deve levar à atribuição de uma importância secundária à instituição das eleições, nem mesmo a negligenciá-la ou desacreditá-la, como às vezes tendem a fazer alguns promotores da (assim chamada) “teoria deliberativa da democracia” atualmente em voga. Um leitor de Bobbio poderia se limitar a confirmar outra obviedade banal: em uma coletividade de grandes dimensões, a autodeterminação democrática não pode se realizar a não ser sob a forma da democracia representativa, e esta não pode sobreviver sem as eleições. Há quem pense que as eleições podem ser abolidas e substituídas pelas formas difusas de “deliberação” (seja lá o que isso signifique). É verdade que uma democracia “apenas” eleitoral pode ser uma democracia aparente, mas também é verdade que, abolidas as eleições, não se teria mais nenhuma democracia, nem aparente nem real.
Critérios de democratização
A tabela bobbiana das seis regras não é a tradução sintética em normas, ou em princípios inspiradores de normas, da concepção processual da democracia. Assim, as seis regras são apenas a explicitação articulada de sua definição mínima “segundo a qual por regime democrático se entende principalmente um conjunto de regras de procedimento para a formação das decisões coletivas, nas quais é prevista e facilitada a participação mais ampla possível dos interessados”. Também com o propósito de testar a validade e a fertilidade da teoria bobbiana, eu sugeri que esse “conjunto de regras” pode ser adotado e utilizado como um verdadeiro e apropriado critério de democratização, simplificado, mas eficaz, ou seja, como parâmetro essencial de um juízo que estabelece se este ou aquele regime político realmente merece o nome de democracia. Na perspectiva de Bobbio, na realidade, as “regras do jogo” valem como condições da democracia. Aplicando de um modo elementar e intuitivo a gramática do conceito de “condição”, pode-se dizer que, se essas regras encontrarem eco e aplicação real na vida política de uma coletividade, então essa coletividade pode se reconhecer e autodenominar democrática.
No capítulo da Teoria geral da política que assumi como texto de referência, Bobbio nos convida a considerar as seis regras como condições separadamente necessárias e apenas conjuntamente suficientes: “Não tenho dúvidas do fato de que basta a não observância de uma destas regras para que um governo não seja democrático”. Em outro texto, Bobbio parece muito mais flexível: “Nenhum regime histórico jamais observou completamente o conteúdo de todas estas regras; e por isso é lícito falar de regimes mais ou menos democráticos”.
Começo observando que Bobbio considera “graus diferentes de aproximação do modelo ideal”. Devemos esclarecer que o “modelo ideal” que ele menciona não é a soma das promessas e ilusões que a doutrina democrática moderna, de Rousseau em diante, associou à prefiguração da comunidade política ideal. Nesse sentido, Bobbio dizia que o distanciamento da prefiguração doutrinária e idealizada da sociedade democrática, verificada em todas as experiências concretas de “realização” da democracia, não foi a “de ‘transformar’ um regime democrático em um regime autocrático”. A fronteira entre os dois tipos de regime está no fato de que, e na medida em que, as regras do jogo democrático sejam respeitadas de alguma maneira e até certo grau.
O problema mais importante não é tanto o de definir o número de regras que devem ser respeitadas para que um regime concreto possa passar no teste da democracia, mas o da forma e do grau de sua aplicação. Então, adverte Bobbio, as regras do jogo são “aquelas listadas, simplíssimas, mas nada fáceis de aplicar corretamente”. Por isso, na análise de casos das democracias reais, “deve-se ter em mente o possível desvio entre a enunciação [das regras] de seu conteúdo e o modo pelo qual elas são aplicadas”. E isso permite reconhecer que há democracias reais mais democráticas ou menos democráticas. Mas em 1984 Bobbio não hesitava: “mesmo a mais distante do modelo”, ou seja, do paradigma de uma aplicação correta das regras do jogo, “não pode ser de modo algum confundida com um estado autocrático”. Então, afirmava ele, apesar das secas réplicas da história às promessas e ilusões da doutrina democrática moderna, “não se pode falar propriamente de uma ‘degeneração’ da democracia”.
Eu me pergunto: isso ainda é verdadeiro? Estamos dispostos a reconhecer essa afirmação, depois de 25 anos? Se mantivermos a formulação de Bobbio, que assumia como termo de comparação a “era das tiranias”, os totalitarismos do século 20, provavelmente sim. Porém, podemos nos perguntar: depois da análise de Bobbio, que outras transformações sofreu a democracia?
Vejamos: diante do problema dos imigrantes, hoje particularmente agudo na Europa – ou, em outras partes do mundo, como na América Latina, diante da interminável massa de cidadãos inexistentes, excluídos não apenas da vida pública, mas condenados a uma condição de existência miserável e sem resgate –, como fica a condição de inclusão posta como primeira regra da tabela de Bobbio? Diante dos efeitos distorcidos da representação política, produzidos por grande parte dos sistemas eleitorais atualmente em vigor nas democracias reais, como fica a condição de equivalência dos votos individuais definida pela segunda regra? Diante das grandes concentrações nas mídias, como fica a condição de pluralidade da informação exigida implícita mas claramente na terceira regra, para a livre formação das opiniões e das escolhas dos cidadãos? Diante da personalização da luta política e da administração do poder, da distorção das cúpulas e das “lideranças” da vida pública, das campanhas eleitorais reduzidas a duelos pela conquista monocrática dos cargos supremos, e do consequente empobrecimento das opções disponíveis, como ficam as condições de pluralismo político requeridas pela quarta regra? E diante da configuração da dialética política como um jogo de soma zero, no qual “quem ganha leva tudo”, não se poderia falar talvez de um abuso do princípio da maioria, postulado pela quinta regra como uma condição simples da eficiência da democracia? E, finalmente: diante das repetidas e difundidas violações dos direitos fundamentais, sobretudo dos direitos sociais, mas também dos direitos de liberdade, pelos mesmos governos das democracias reais nas mais recentes estações políticas, e diante das alterações na separação dos poderes, como ficam os “direitos das minorias” protegidos pela sexta regra como condição para a sobrevivência da democracia?
É supérfluo acrescentar que essas minhas considerações não pretendem de fato valer como uma crítica a Bobbio. Pelo contrário: elas pretendem mostrar a permanente validade, fertilidade e efetividade dos instrumentos conceituais que sua teoria da democracia nos oferece, mesmo se a aplicação desses instrumentos aos casos concretos da experiência política contemporânea nos cause uma preocupação, com relação aos destinos da democracia, maior do que aquela que o próprio Bobbio, o Bobbio “pessimista”, manifestava um quarto de século atrás.
Tolerância – debate livre – fraternidade
Pode parecer que uma teoria centrada nas regras do jogo seja a expressão de uma concepção puramente técnica da democracia, estranha a toda problemática ética, e distante do mundo dos valores. Não é assim. Bobbio sente a necessidade de responder a uma pergunta que ele mesmo reconhece como “fundamental”: “Se a democracia é principalmente um conjunto de regras de procedimento, como pode pretender contar com ‘cidadãos ativos’? Para que cidadãos ativos existam, não seria preciso que tivéssemos ideais? Certamente temos ideais. Mas como não se dar conta de quais grandes lutas ideais produziram essas regras?”. Em suma: Bobbio nos faz entender claramente que as mesmas técnicas processuais, “que tão frequentemente zombaram das regras formais da democracia”, são o fruto de escolhas de valores, e são postas como condições para a criação de uma forma de convivência desejável e aprovada com base em determinados valores.
Mas quais valores? Para simplificar, sugiro dividir o mundo dos valores que são relacionados à ideia de democracia, fazendo dela um ideal a ser buscado, em dois hemisférios. No primeiro encontramos os valores implícitos nas mesmas regras processuais da democracia como objetivos ideais que esta apenas permite perceber, e então como critérios que a tornam preferível às outras regras políticas. São os valores democráticos no sentido estrito. Bobbio enumera explicitamente quatro: tolerância, não violência, renovação da sociedade pelo debate livre, e fraternidade. Mas não é difícil ver que na tabela das seis regras do jogo democrático (sobretudo nas quatro primeiras) estão implícitos também os outros dois valores da tríade francesa clássica, ou seja, igualdade e liberdade. Não a igualdade e a liberdade em geral, em cada significado e especificação possível, mas sim determinados tipos delas. Corretamente democrático é o reconhecimento da dignidade política igualitária de todos os indivíduos, da qual decorre a distribuição igualitária do direito/poder de participar da formação das decisões coletivas. Do mesmo modo, corretamente democrática é a liberdade positiva, que é a liberdade como autonomia, a capacidade de determinar por si mesmo suas próprias opiniões e escolhas políticas, e de fazê-las valer na arena pública.
Isso significa talvez que as liberdades (assim chamadas) negativas ou civis, de um lado, e as dimensões econômico-sociais da igualdade, de outro, não são valores, ou não têm nada a ver com a democracia? Não: elas são valores, e nós as encontramos no segundo hemisfério do mundo axiológico que permeia a ideia de democracia. Não valores democráticos no sentido estrito, que são analiticamente incluídos no conceito de democracia – tanto é verdade que por vezes têm sido assumidos e reivindicados mesmo sem e contra a democracia, respectivamente pelos movimentos liberais e socialistas. Contudo, são valores que devem ser reconhecidos como tais, e buscados para permitir a existência mesma da democracia e sua melhoria, e que por outro lado só a democracia permite realizar e garantir de formas não precárias ou distorcidas. Naturalmente, é preciso novamente distinguir e especificar: do ponto de vista democrático, nem toda forma de liberdade, nem toda forma de igualdade é um valor. Aquelas que Bobbio chama de “as quatro grandes liberdades dos modernos” – a liberdade pessoal, de opinião, de reunião e de associação – são valores de tradição liberal que um bom democrata deve fazer. As normas das constituições liberais que reconhecem essas liberdades como direitos fundamentais da pessoa, esclarece Bobbio, “não são propriamente regras do jogo: elas são regras preliminares que permitem a realização do jogo”. Poderíamos dizer que, se as regras do jogo são as condições da democracia, os quatro grandes direitos de liberdade negativa são suas pré-condições liberais. Mas devemos acrescentar que algumas dimensões não políticas da igualdade, também reivindicadas como direitos fundamentais das tradições socialistas, representam as pré-condições sociais das pré-condições liberais da democracia. Que sentido teriam os direitos de participação política se não fossem garantidos os direitos à livre manifestação do pensamento, à livre reunião e associação? Mas que sentido teria a liberdade de pensamento, de reunião, de associação, sem o direito à educação, de um lado, e às informações livres e plurais, do outro? Que valor têm os direitos de liberdade sem o poder concreto de fazer o que é permitido fazer? Para que têm valor esses direitos sem as condições materiais que colocam os indivíduos enquanto tais, todos os indivíduos, como livres?
Para retomar, simplificar ainda mais, e tentar fixar algum ponto principal de orientação teórica, proponho o seguinte esquema conceitual. Uma afirmação como “a democracia é o regime da igualdade e da liberdade política” deve ser considerada como um juízo analítico: o predicado deixa explícito qual é o conteúdo do (significado do) sujeito. Uma proposição (dupla) como “a democracia é o regime das liberdades individuais e/ou das igualdades sociais”, que à primeira vista pode parecer extravagante, contudo é diversamente reconduzida a algumas declinações históricas da noção de democracia. Tal proposição deve ser considerada, feitas as especificações oportunas, como um juízo sintético: a síntese entre a) liberdade e igualdade política, b) liberdades liberais e c) justiça social representa, de um lado, uma demanda imprescindível, já que diz respeito ao nexo entre as condições e pré-condições da democracia; por outro lado, constitui um horizonte normativo inesgotável para a melhoria contínua da democracia e a correção de seus defeitos.
A ideia de democracia também pode ser empreendida de uma perspectiva diferente, adotando o esquema conceitual da tríade daquilo que Bobbio chama de seus ideais: democracia, direitos do homem e paz. Esses três ideais estão interligados por um nexo de implicação recíproca que a história da segunda metade do século 20 revelou: “Os direitos do homem, a democracia e a paz são três momentos necessários do mesmo movimento histórico”. Hoje podemos dizer que a necessidade daquele tríplice vínculo é confirmada, em negativo, também pelo “movimento contra-histórico” que estamos sofrendo logo depois do fim do século. Nas últimas duas décadas parece realmente que a história mudou de direção, que a corrente do movimento inverteu sua marcha, ou que aquilo que Bobbio chamava de “matéria bruta” do mundo opôs uma dura resistência aos ideais de democracia, dos direitos e da paz: não apenas freou sua afirmação, mas também provocou sua crise.
Crise da democracia
Que a democracia hoje esteja em crise, nos vários significados atribuídos a esta palavra, é uma afirmação banal, mas não por isso menos verdadeira. Como já tive ocasião de mencionar, um dos aspectos dessa crise consiste na difusão, em escala planetária, de certas formas de atuação política que alguns estudiosos batizaram com um neologismo: “antipolítica”. Mesmo que o conceito ainda seja nebuloso, o termo designa com uma boa aproximação a visão e a estratégia dos partidos e movimentos que buscam agregar consenso ao redor de fórmulas demagógicas neopopulistas, caracterizadas pela contraposição da vontade “verdadeira” do “povo” àquela expressa pelas culturas políticas sedimentadas no sistema de partidos e das instituições de representação. Na Europa muitos atores políticos de direita, expressões do “chauvinismo do bem-estar” produzido pela globalização, obtiveram notáveis sucessos com métodos antipolíticos. Na América Latina também há alguns sujeitos (com presunções e pretensões) de esquerda, que viram nas vítimas da globalização uma oportunidade para assumir os esquemas da antipolítica. Com efeito: para designar ambos, os de direita e de pseudoesquerda, eu seria tentado a adotar, em vez do neologismo “antipolítica”, o termo mais explícito “antidemocracia”; também para sugerir que, apesar do consenso eleitoral obtido por esses atores políticos, trata-se de uma caricatura, de uma imitação de democracia: de uma democracia aparente que reveste e disfarça formas incipientes de autocracia eletiva.
A noção de antidemocracia contém um potencial explicativo maior. Em uma série de artigos dedicados à história política italiana, Bobbio elaborou um modelo conceitual baseado na dupla equação entre fascismo e antidemocracia, e entre democracia e antifascismo. A argumentação na qual esse esquema se desenvolve permite revelar a essencial negatividade lógica e axiológica do fascismo, cuja identidade se resolve na negação total da democracia. Sugiro que hoje isso pode, uma vez mais, revelar-se fértil para atingir esse modelo conceitual construído por Bobbio sobre a história italiana, para iluminar alguns dos derivados mais perigosos da política contemporânea.
Facismo pós-moderno
Ao risco de fazer tremer os historiadores de profissão, que já mal suportam o uso extenso do termo fascismo para designar realidades históricas distintas daquela originária da Itália, e se opõem decididamente à acepção genérica desse mesmo termo, que abrange vários tipos de regimes ditatoriais ou autoritários, eu proporia caracterizar as diversas manifestações da “antidemocracia” que estamos observando em muitas partes do mundo, embora em graus e formas diversas, como fascismo pós-moderno: que a mistura entre repressão violenta e ilusão demagógica própria do fascismo histórico privilegia (até agora?) o segundo ingrediente; que fomenta a hiperpersonalização da política e às vezes expressa figuras grotescas de poder carismático; que busca o fortalecimento do Executivo (depois de ter sido conquistado) debilitando vínculos e controles; que age de maneiras potencialmente (mas às vezes claramente) subversivas da ordem consolidada nas arquiteturas constitucionais. Um exemplo? Nos últimos anos de sua vida ativa, o próprio Bobbio sublinhou a analogia entre o Partido Fascista e a Forza Italia, o partido pessoal inventado por Berlusconi, mostrando a natureza essencialmente “subversiva” de ambos.
Em um dos artigos sobre a história italiana que acabo de mencionar, escrito em 1983, depois de lembrar o juízo irônico de Marx, de acordo com o qual certos fenômenos históricos ocorrem duas vezes, primeiro como tragédia e depois como farsa, Bobbio observava que o fascismo era ao mesmo tempo tragédia e farsa. A dimensão trágica não precisa ser ilustrada: basta mencionar a feroz repressão da oposição política e de toda forma de dissensão, e a miserável guerra ao lado da Alemanha nazista. Com relação à dimensão farsesca, da qual Bobbio naquele texto oferece vários exemplos, me limito a recomendar (sobretudo para os mais jovens, que talvez não a conheçam) a visão de certas imagens dos “jornais cinematográficos” da época, que nos passavam a figura do “líder” Mussolini na sacada do Palazzo Venezia, com os punhos na cintura e o maxilar levantado, enquanto se dirigia à multidão da “massa oceânica”: eu asseguro que elas são muito mais grotescas que a famosa sequência do filme de Charlie Chaplin na qual Hitler joga bola com o mapa-múndi. Portanto, como tragédia e farsa foram perfeitamente fundidas no regime de Mussolini, Bobbio conclui então que o fascismo não teria podido se repetir. Hoje, um observador desencantado com a realidade não hesitaria muito para julgar aquela conclusão como precipitada. E, se fosse particularmente pessimista, adiantaria a hipótese de que talvez um novo ciclo de tragédias e farsas se abriu, ainda que com termos invertidos: em resumo, levantaria a questão de que muitos episódios políticos ridículos do fascismo pós-moderno, dos quais somos em diversas medidas (e não apenas na Itália) os espectadores não divertidos, poderiam preceder novas tragédias.
Um escritor do século 19, Vincenzo Gioberti, dedicou uma obra para glorificar a primazia moral e cívica dos italianos. Nas mais recentes estações políticas, frequentemente fui tentado a reverter a retórica giobertiana, denunciando a primazia imoral e anticívica dos italianos, que ofereceram ao mundo o modelo do fascismo desde o início do século 20 e, não satisfeitos, antes do fim do milênio, quase como uma grotesca prefiguração do apocalipse, colocaram em cena uma variação inédita da antidemocracia baseada na idiotização dos cidadãos pela mídia. Bobbio se acostumou a repetir que a Itália é um laboratório político. Permito-me acrescentar: às vezes se assemelha ao laboratório de Frankenstein. Produz monstros. E como muitos produtos made in Italy demonstraram ser muito bem-sucedidos, eu recomendo a todos continuar observando atentamente aquilo que sai de nosso laboratório.
Tanto para o mal quanto para o bem. Nós também produzimos coisas boas. Acima de tudo – e não me canso de repetir –, a Constituição da República Italiana de 1948, que foi a primeira a ser elaborada no período imediato do pós-guerra, como fruto de uma assembleia constituinte eleita por sufrágio universal e pelo método proporcional, e que também pode ser considerada, a seu modo, como exemplar. Tanto é verdade que foi tomada como um ponto de referência, e sob muitos aspectos como um modelo mesmo, a exemplo dos redatores da Constituição espanhola pós-franquista. E então de muitos produtos da cultura, não apenas artística, mas também propriamente política: a necessidade de enfrentar tantas calamidades afia o talento. Aqui, como conclusão, só posso recomendar, inclusive como um meio de formarmos anticorpos contra o risco de uma nova forma de antidemocracia travestida de democracia eleitoral, e contra os perigos de um fascismo pós-moderno, a leitura atenta da obra de Norberto Bobbio: um produto da melhor cultura italiana. Tradução: BTS – Business Translation Services


Michelangelo Bovero é filósofo e escritor, assistente e colaborador de Norberto Bobbio. Professor de Filosofia Política na Universidade de Turim

(Publicado originalmente no site da Revista Cult)

quarta-feira, 24 de outubro de 2018

Charge! Duke via O Dia

O que é fascismo?

                               

    Vladimir Safatle 
                                                                                                                                                                 

O que é fascismo?

FacebookTwitterEmailPinterestAddthisO fascismo é a implosão da possibilidade de solidariedade genérica (Arte Andreia Freire/Revista CULT)

Nesta eleição, o termo “fascista” foi usado várias vezes para descrever formas de discurso e posições políticas. Mas infelizmente o termo não foi discutido naquilo que ele realmente significa. Como nós podemos identificar claramente um discurso fascista, uma forma fascista de vida?
Há quatro elementos que definem uma forma de vida fascista. O primeiro deles é o culto à violência. Trata-se de acreditar que a impotência da vida ordinária e da espoliação será vencida através da força individual daqueles que enfim teriam o direito de sair armado, sair às ruas de camisas negras, falar o quiser sem se preocupar com o que chamam de ditadura do politicamente correto. O fascismo, nesse sentido, oferece uma forma de liberdade. O fascismo sempre se construiu a partir da vampirização da revolta. Há uma anarquia bruta, um carnaval sempre liberado pelo fascismo.
Mas essa liberdade se transforma em liberação de violência por aqueles que já não aguentam mais ser violentados. O carnaval não é a reversão da ordem, mas a conjugação entre a ordem e a desordem. É a desordem com a fantasia da ordem. É o governo forte que me permite esfolar refugiado, atirar em comunista, falar para uma uma mulher “eu só não te estupro porque você não merece”, brutalizar toda e qualquer relação social. Esse vai ser sempre um dos piores efeitos de um governo fascista: criar uma sociedade à sua imagem e semelhança. Como lembra Freud, não são exatamente os povos que criam seus governos, mas os governos que criam seus povos.
O segundo traço do fascismo é o fato de não haver fascismo sem a ressurreição do Estado Nação em sua versão paranoica. Porque alguém tem que cuidar das nossas fronteiras completamente porosas. Alguém tem que ensinar educação moral e cívica para as nossas crianças para que elas tenham orgulho dessa pátria construída através do genocídio dos índios e da escravidão dos negros. Alguém tem que impedir que sejamos invadidos por mais uma leva de refugiados. O Estado Nação se mostra, aqui, como o último refúgio do que é meu, do que me é próprio. O meu território, o meu país, a minha língua, os meus costumes. Mas é também a minha miséria, a minha violência, é o meu sufocamento. Uma comunidade nacional que é o  avesso do comum. É apenas a figura alargada de uma propriedade que aparece como a expressão básica do medo como afeto político central.

O terceiro elemento do fascismo é que ele será sempre solidário à insensibilidade absoluta em relação à violência com classes vulneráveis e historicamente marcadas pela opressão. É a implosão da possibilidade de solidariedade genérica. Essa insensibilidade expressa o desejo inconfesso de que as estruturas de visibilidade da vida social não sejam transformadas. Porque toda política é uma questão de circuitos de afetos e estruturas de visibilidade. Trata-se de definir o que pode nos afetar, com qual intensidade, através de qual velocidade. E, para tanto, há de se gerir a gramática do visível, a forma com que as existências são reconhecidas. Na vida social, ser reconhecido é existir. O que não é reconhecido não existe. Mas ser reconhecido não significa apenas uma recognição do que já existia. Todo reconhecimento exige que aquele que reconhece mude também, porque ele passa a habitar um mundo com corpos que antes não o afetavam. E isso é o que aparece para alguns como insuportável.
E, por fim, o fascismo sempre será baseado na deposição da força popular em prol de uma liderança fora da lei. Ele é a colonização do desejo anti-institucional pela própria ordem. Esse desejo contra as instituições, quando é realmente liberado, poderia criar poderes que voltam às mãos do povo, democracias que abandonam a representação para transferir a deliberação e a gestão para a imanência do povo. Mas o fascismo faz dessa anti-institucionalidade um clamor pela mão-forte do governo. Expressa uma liderança que parece estar acima da lei, que parece poder falar o que quiser sem culpa, expor os seus piores sentimentos sem preocupação alguma com os efeitos, demonstrar desejos mais baixos de violência como expressão de maior liberdade conquistada. Por isso é necessário que esses líderes sejam cômicos, uma mistura de militar e palhaço de circo. Porque só assim, através dessa ironização, essas proposições podem circular com baixa fricção. Afinal, não é para levar a sério tudo o que eles dizem. Mas quem sabe o que se deve levar, então, exatamente a sério? O que é real e o que é apenas uma bravata? Ninguém sabe a não ser eles mesmos. Isso se chama misturar ordem e desordem, lei e anomia. Isso é fascismo.

(Publicado originalmente no site da Revista Cult)

terça-feira, 16 de outubro de 2018

A distopia 2019

                                          
Além da lei
                                                                                                                                                                 

A distopia 2019


Cena da série 'O conto da aia', baseada em romance da escritora Margaret Atwood (Divulgação)

Em O conto da aia, romance da escritora canadense Margaret Atwood lançado em 1985, um golpe de uma facção fundamentalista institui nos Estados Unidos a República de Gilead, uma ditadura violenta em que a religião é usada como estratagema para subtração dos direitos civis, e o corpo da mulher se torna propriedade de uma elite hipócrita e corrompida. A distopia de Atwood parece ganhar ares de premonição quando se atenta para o contexto mundial e do nosso próprio país.
No cenário internacional, impera a implosão dos organismos internacionais como espaços de distensionamento, diálogo e reafirmação dos princípios de direitos humanos e das relações entre os países. Práticas de exclusão e preconceito contra imigrantes, construção de muros e fechamento de fronteiras tem sido a tônica da política externa de muitos países. O outro é visto como ameaça ao emprego e à vida das pessoas. Se fosse para escolher um retrato perfeito do abismo em que estamos, este seria materializado em um barco à deriva cheio de imigrantes.
Em junho deste ano, a embarcação Aquarius, de uma instituição de caridade, resgatou 629 imigrantes ilegais que tentavam cruzar o Mediterrâneo, vindo da costa da Líbia. Entre os imigrantes, havia 123 menores desacompanhados, outras 11 crianças com famílias e sete mulheres grávidas. Eles são de 26 nacionalidades diferentes, sendo 23 africanas e três asiáticas (Afeganistão, Bangladesh e Paquistão). A Itália, país que estava mais próxima da embarcação proibiu que ela atracasse em seus portos. A Espanha acabou acolhendo.
Sob as regras do direito internacional, qualquer navio que receba pedido de ajuda no mar deve prestar auxílio, e o país responsável pela área deve fazer o resgate. No caso, Itália e Malta tinham os portos mais próximos ao Aquarius. Às favas as regras do direito internacional.
Ou seja, cada vez mais, regras, documentos normativos e acordos internacionais valem pouco ou quase nada. Os esforços de construção de grandes pactos e acordos normativos do pós-guerra entre os países se esfarelam sob a batuta de líderes irresponsáveis e do populismo de caráter autoritário.
Por aqui, desde o golpe de 2016, tem feito mais sentido falar em distopia do que em utopia. A desesperança, o rebaixamento do debate público, a ascensão de grupos políticos fundamentalistas, o incremento a níveis absurdos do medo, a banalização da violência contra o outro, a ausência de alteridade, a dessacralização da vida, a pilhagem do patrimônio público por décadas e o abandono paulatino da tentativa de construção de um país mais justo sendo substituído pela ideia da ordem, faz com que um abatimento profundo atinja as forças progressistas.
O julgamento e deposição de uma presidente legitimamente eleita mediante uma farsa jurídica, as ilegalidades e as violências praticadas por operações que a pretexto de combater a corrupção se tornaram o local privilegiado da quebra de direitos individuais e da naturalização de ilegalidades, e a reprodução nauseante desses fatos contribuíram para disseminação do caos e da desesperança.
A canalização desses movimentos políticos, somado a uma profunda crise econômica, social e ambiental acabou se tornando o substrato para o atual quadro político. Para as forças de esquerda, primeiro foram cortes drásticos na esperança com derrotas seguidas no campo jurídico, depois veio a incredulidade e, na sequência, a angústia fruto do questionamento sobre o que será do futuro.
Não há outra palavra para descrever a distopia de 2019 do que crise. Crise econômica porque a política não será a de geração de empregos, industrialização e desenvolvimento, mas sim aprofundamento da cartilha neoliberal com a venda de “todas as estatais” ou da maior parte delas para conter a dívida pública. Na questão ambiental, o Brasil poderá assistir a uma das maiores catástrofes da sua história com a entrega de órgãos de controle, como IBAMA e CNTbio, para ruralistas. E, no campo social e das relações humanas, a consolidação da barbárie.
A crescente militarização da vida cotidiana, com guardas municipais ganhando cada vez mais status de polícia e agindo como se assim o fosse – Dória inclusive tentou mudar o nome em São Paulo -, o empoderamento das polícias pelo discurso que prega uma política de extermínio, aumentará ainda mais os números da letalidade policial nos Estados, notadamente nas regiões mais pobres. Acrescente a esse trágico enredo a liberação do uso de armas indiscriminadamente para a população civil.
A alteração de leis como o Estatuto do Desarmamento, da Criança e do Adolescente, Lei das Execuções Penais e a condução das propostas de alteração de códigos em tramitação no Parlamento elevará os patamares de recrudescimento penal a níveis ainda mais desumanos e teratológicos. Progressão de regime, ressocialização, penas alternativas, serão palavras de museu. O saldo será o Brasil próximo de se tornar o país que mais encarcera no mundo e o custo se traduzirá em palavras como dor, injustiça, sofrimento, atentados diários e constantes à dignidade da pessoa presa e da sua família.
Diante da incapacidade de gerir uma nação como o Brasil, se apostará nessas para desviar a atenção da população. Somado a isso, haverá um avanço preocupante das pautas relativas ao corpo da mulher, sua saúde e sua autonomia de decidir. Da mesma forma, no campo dos direitos civis e da livre orientação sobre o amor.
E, infelizmente, não se esgota aqui a projeção de cenários no caso de vitória do candidato que lidera as pesquisas. Ao tentar realizar esse tenebroso exercício de visualizar o que pode ser do futuro, tem-se como ainda mais imperdoável a covardia de lideranças políticas, intelectuais e artistas que simplesmente lavam as mãos, muitas vezes bem distante do próprio país, pensando em 2022, como se ele pudesse existir depois do que se desenha para 2019.
Neste contexto, não há outra saída que não recolocar a utopia no centro da ação política, no sentido de recuperar a esperança de um rearranjo e ruptura num curto prazo, pois se há algo que ainda não nos retiraram é a capacidade de sonhar e projetar um mundo melhor, ainda que isso pareça tão distante dos nossos dias. Ainda que a insanidade do tempo presente cubra de névoas, quase ao ponto de cegar, a nossa própria visão.

PATRICK MARIANO é advogado criminalista, mestre em direito pela UnB e integrante da Rede Nacional de Advogados e Advogadas Populares – RENAP

(Publicado originalmente no site da Revista Cult)

Poder e fé






 
     É visível o crescimento dos chamados “evangélicos” na política nacional. Vale salientar, que a relação entre religião e política não é de hoje e muito menos algo restrito ao Brasil. Ao longo da história, as questões da fé sempre foram utilizadas como um apêndice para chegar-se ao poder.

     A falta de credibilidade da chamada classe política tem proporcionado a uma parcela do eleitor, adotar como ponto de partida para escolha do candidato, quem corrobora da fé ou pelo menos se diz ter uma agenda que se assemelha aos seus ideais. Há até aqueles que desejam que o Estado seja uma extensão do que ele acredita ser sagrado. Com efeito, o que se deve perguntar, é qual tem sido a contribuição dada pelos que se dizem cristãos  ao país? O fato de escolher candidatos alinhados ao pensamento cristão significa ser suficiente para solução dos problemas nacionais? Se a resposta for sim, então se deve eleger apenas líderes religiosos alinhados ao cristianismo. Acontece que, o fato de alguém se apresentar como seguidor de alguma Igreja, não deve ser ponto inquestionável para receber a adesão a sua candidatura.

     O Brasil vive um verdadeiro comércio da fé, praticamente em cada esquina existe um local onde um grupo se reúne por convicções religiosas e principalmente por questões de identificação “doutrinária”. Em um cenário tão dividido em que vive o Brasil, engana-se quem acredita que não se tem um debate acirrado entre os religiosos. Em momentos assim, a responsabilidade aumenta. Daí, acreditarmos que é possível se ter cautela com o critério da escolha dos representantes nas esferas públicas. Para tanto, é necessário que se tenha cuidado para que os membros das igrejas não venham sofrer do mesmo problema da frente parlamentar evangélica no Congresso Nacional, onde o corporativismo tem ditado à conduta de boa parte dos representantes. Como por exemplo, não utilizar o voto como moeda de troca para beneficiar a si ou a igreja que pertence; entender que o Estado deve ser democrático de direito e não teocrático.

P.S. Este artigo é um resumo da palestra proferida na IBC em Jaboatão dos Guararapes.

 

Hely Ferreira é cientista político.

 

quinta-feira, 11 de outubro de 2018

Le Monde Diplomatique: Violência, subjetividades e projeto de vida e cidadania no Brasil

Mesmo diante das evidências dos limites dessa política, alguns candidatos seguem prometendo mais do mesmo remédio-veneno. Defendem só construir prisões e endurecer as penas; defendem e louvam a violência como resposta à violência, em uma vendeta que parece longe de acabar
Nas salas de aula do ensino médio da rede pública, professores costumam reclamar dos desafios para prender a atenção dos jovens. Numa mistura de ceticismo e fatalismo, muitos alunos preferem abandonar a escola para ganhar dinheiro e se sustentar, como se soubessem dos obstáculos que teriam para escapar do futuro insosso que os espera. É como se as escolas não fossem capazes de despertar em muitos jovens a capacidade de sonhar; não fossem capazes de interagir com múltiplas moralidades e estimular um novo padrão ético pautado na cidadania e na vida como valor público supremo.
Escolas que poderiam servir como portas de entrada da rede de acolhimento, atendimento social e cidadania isolam-se em seus edifícios cada vez mais vilipendiados e ameaçados pelo crime, que parece seduzir principalmente as subjetividades masculinas em formação, oferecendo a possibilidade de uma vida de aventura, insubmissão, consumo, satisfações desenfreada das pulsões e desejos, e luta contra um sistema que oprime e humilha, mesmo que ao preço de morrer jovem ou de perder a liberdade numa prisão lotada.

Como convencer os adolescentes a duvidar das ilusões e promessas da vida no crime? Como despertar nesses jovens sonhos de contribuir para o bem-estar coletivo do mundo em que vivem? Como gerar empatia diante de tantas injustiças e desigualdades? Como fazer frente ao imaginário social que divide a sociedade entre “cidadãos de bem” e “bandidos” e aceita que estes últimos sejam matáveis?
Em vez de despertarem sonhos e vocações, as instituições passaram a agir como se estivessem em conflito aberto contra os jovens pobres. Em 1990, o país tinha 90 mil presos, total que passou para 726 mil em 2016. Mesmo com a escalada vertiginosa de encarceramento, que dependeu também de investimentos crescentes no policiamento ostensivo militarizado nos bairros pobres, a situação degringolou.
A prisão passou a ser uma das poucas políticas públicas universais para os jovens brasileiros pobres e negros, independentemente de ela ser hoje o principal celeiro do crime e da violência no país. Vivemos em um transe, em que se acredita que o veneno que nos sufoca como nação democrática é o remédio para nossos males.
Em 2005, no primeiro levantamento feito pelo Anuário Brasileiro de Segurança Pública, o país tinha registrado 40.975 homicídios. Em 2017, foram 63.880 casos. Isso para não falar dos mais de 60 mil registros de estupros e das mais de 220 mil ocorrências de violência doméstica contra mulheres. As prisões superlotadas, em vez de controlarem o crime, se tornaram locais de articulação e formação de redes para as lideranças criminais. O rápido fortalecimento e espraiamento das facções dentro e fora dos presídios mudou a cena do crime no Brasil, ampliando o mercado de drogas e de armas em escala inédita.
Mesmo diante das evidências dos limites dessa política, alguns candidatos seguem prometendo mais do mesmo remédio-veneno. Defendem só construir prisões e endurecer as penas; defendem e louvam a violência como resposta à violência, em uma vendeta que parece longe de acabar. Poucos olham para os custos econômicos e sociais dessas opções político-ideológicas.
As incursões cotidianas das polícias militares nos bairros pobres, prendendo muitas vezes usuários de droga ou pequenos vendedores, geram violência desnecessária e excessiva. Um policial é morto todos os dias no país. Em sentido inverso, as polícias brasileiras mataram ao menos 14 pessoas por dia em 2017 e, mesmo que entre estas haja casos legítimos, pouco se divulga acerca das investigações e das razões que motivaram essas mortes. Em vez de controlar o crime e a violência, isso aumenta a sensação de raiva e de impotência daqueles que passam a se enxergar como inimigos.
Se a educação é a maior “arma” da cidadania, a frustração ajuda a sabotar a tarefa dos educadores de abrir portas para o futuro dos adolescentes. A segurança passa a ser vista como tema exclusivo das polícias e vira presa fácil de discursos pautados no medo e na exploração da desesperança e na falta de perspectivas. O mata-mata é estimulado pela covardia política e pela valentia retórica de quem se arvora porta-voz da virtude.
Nas prisões lotadas, as lideranças criminais se aproveitam para engrossar suas fileiras, criando um discurso sedutor. “O crime fortalece o crime” é um dos motes dos grupos criminosos. Como o sistema os enxerga como inimigos, sujeitos a serem exterminados ou trancafiados sem direitos, cabe se organizar para ganhar dinheiro no crime e “bater de frente” com o sistema.
Uma política de segurança precisa desmontar essa máquina de guerra e de encarceramento que ajudou a promover a expansão do crime e fortaleceu as facções. Para isso, as polícias devem agir com estratégia e foco, de forma inteligente, para fragilizar economicamente as tiranias armadas financiadas pelo dinheiro ilegal, que gera violência no tráfico de drogas, nas milícias e nos grupos de extermínio que matam e cobram para oferecer proteção, entre outras atividades.
A vitalidade de democracias modernas depende da capacidade do Estado de preservar o monopólio do uso legítimo da força. A engrenagem de guerra, além de produzir revolta nos jovens perseguidos, vem criando grupos paramilitares que, ao terem carta branca para matar, acabam se voltando contra o Estado em defesa de seus interesses financeiros e corporativos.
Mais do que o esforço brutal de prender em flagrante nos bairros pobres, os alicerces estratégicos e financeiros dessa atividade devem ser fragilizados. Isso depende do compartilhamento de informações entre as instituições policiais e de justiça desde Polícia Militar e Civil, passando pelo Ministério Público, secretarias de administração penitenciária, instituições de investigação econômica e penal, em âmbito estadual e federal.
Quem são os chefes e grandes financiadores, onde o dinheiro é depositado e lavado, de onde vêm as mercadorias ilegais, quais são as conexões com autoridades, onde compram armas. A capacidade de sedução das facções e quadrilhas vai diminuir com a queda do lucro gerado nessas atividades. Para tanto, a batalha urgente a ser travada é aquela para emperrar a engrenagem financeira do crime. Não precisamos de mais guerras para alimentar os senhores da morte, encarcerar e/ou exterminar jovens pobres e negros.
Mais importante, contudo, é a disputa das subjetividades masculinas na transição da adolescência para a vida adulta. O desafio é liderar e apontar caminhos para esses corações e essas mentes. Para construir sonhos e seduzir, as instituições do Estado devem abrir portas, estimular a vontade de compartilhar uma vida comum e solidária. Isso é feito com escola, arte, cultura, esporte, lazer, saúde de qualidade, debates, conversas, incluindo aqueles que um dia se iludiram com as promessas do crime até perceber que estavam sendo enganados. Enganam-se aqueles que acreditam que a autoridade e o poder são exercidos com o uso desmedido da violência. Conseguem liderar e fortalecer numa democracia aqueles que percebem que, na verdade, estão construindo sonhos e disputando o futuro.

*Bruno Paes Manso é doutor em Ciência Política pela USP, jornalista e pesquisador do Núcleo de Estudos da Violência (NEV-USP); Renato Sérgio de Lima é doutor em Sociologia pela USP, professor da FGV-Eaesp e diretor presidente do Fórum Brasileiro de Segurança Pública; Samira Bueno é doutora em Administração Pública e Governo pela FGV-Eaesp e diretora executiva do Fórum Brasileiro de Segurança Pública.

O que disseram as urnas

                                         
Tarso de Melo 
08                                                                                 

O que disseram as urnas                                                                            
(Arte Andreia Freire/ Revista CULT)

É difícil sair com alguma esperança após a leitura dos resultados das eleições do último domingo. Mesmo com vitórias pontuais e importantes de candidatos de esquerda para Executivo e Legislativo, o saldo geral é terrível: uma enxurrada de candidaturas conservadoras – ou pior que isso – levou a maior parte do eleitorado, colocando nas cadeiras de deputados e senadores algumas das figuras mais bisonhas que surgiram no cenário político brasileiro dos últimos anos, desde o “ator pornô em defesa da família” até a “advogada do impeachment”, passando pelos palhaços de sempre e uma infinidade de candidatos que ostentam credenciais militares e religiosas.
Nada muito novo nesse movimento das urnas, mas o sucesso eleitoral de figuras francamente antidemocráticas e a configuração do segundo turno presidencial deixam claro que estamos diante da escolha entre civilização e barbárie, de um modo bastante angustiante. É como se estivéssemos vivendo a estranha situação de decidir, nas urnas, se vamos continuar tendo uma democracia ou não. Como se fossemos chamados para decidir justamente sobre a destruição do nosso direito de decidir.
Nesse sentido, ao menos pelos votos válidos do primeiro turno, a indicação é de que a maioria dos brasileiros não quer mais – ou não faz tanta questão assim de – uma democracia, insinuando, ao contrário, que a identifica como causa dos problemas todos que nos assolam, nomeadamente a corrupção, a violência, a pobreza, entre outros, daí a decisão de usar seu voto para entregar o poder para candidatos que não escondem seu autoritarismo e a intenção de reduzir as mais diversas liberdades.
O ataque à democracia vem, assim, como uma espécie de salvação, como se dissessem que “a democracia nos trouxe até aqui, então é hora de voltar à ditadura”. No entanto, curiosamente, para fazê-lo por meio das urnas, a candidatura antidemocrática atribui à esquerda a pecha de autoritária, fazendo circular como convincente até mesmo uma “ameaça comunista” que em nada corresponde ao histórico do Partido dos Trabalhadores, muito menos aos governos petistas e à configuração atual da chapa presidencial. Mas o cotejo com a realidade não importa para um debate gelatinoso, que se alimenta do ódio e do medo (“filha do medo, a raiva é mãe da covardia”) e promove uma gritaria tremenda, capaz de abafar qualquer ponderação ou desmentido.
O que as urnas disseram, assim, foi um terrível cala-boca para quem insiste em defender a democracia como pré-condição para qualquer outro debate. Aliás, um cala-boca para quem diz o óbvio: que só há debate na democracia e que só há democracia se houver debate. Muito significativo, aliás, que os eleitores do candidato antidemocrático não tenham dado importância para a forma como ele se negou a participar dos debates com os demais candidatos, ainda antes da facada e depois da alta médica.
Parecem dizer, assim, seus eleitores, que os problemas do país vêm justamente dessa “coisa democrática” de debater, votar, protestar etc., dessa coisa de ter liberdade para se expressar, para viver como bem entende, para votar em quem bem entende. Não é por acaso que o candidato, ciente do perfil majoritário do seu eleitorado, rapidamente se pronunciou contra as urnas, que simbolizam a democracia, e prometeu, sem fazer rodeios, “botar um ponto final em todos os ativismos do Brasil”.
Não é tão difícil imaginar o que ele quis dizer com “todos os ativismos”. Quem tem por objetivo tomar medidas econômicas que vão tornar ainda mais difícil a vida da maioria da população (não por acaso, estava bem ao seu lado, no pronunciamento após o resultado do primeiro turno, o economista que só abre a boca para bater nos direitos sociais) sabe que, antes de qualquer coisa, precisa tirar as condições de resistência de quem será atingido. Sem dúvida, um governo demolidor dos direitos sociais vai dar vazão a muitos “ativismos” e, portanto, coibi-los é constitutivo de sua proposta.
Essa combinação espúria entre liberdade econômica e autoritarismo político não é novidade alguma para quem conhece um pouco da história do capitalismo. Mas, no caso brasileiro, essas medidas “liberais” e antidemocráticas, que normalmente são barradas pela impopularidade, estão bem perto de serem chanceladas nas urnas. Parece-me que é algo inédito, mesmo na nossa estranha democracia, que tantos eleitores se atraiam por uma proposta de governo que diz, por exemplo, que os brasileiros terão que escolher entre ter emprego e ter direitos. E mais ainda: apoiem um candidato que diz abertamente que não vai tolerar quem não aceite suas propostas.
Até aqui, lamentavelmente, as urnas disseram que esse candidato pode vir a ser o presidente do país. A luta ainda não acabou e temos três semanas para convencer a maioria dos brasileiros de que esse não é o caminho que devemos seguir. O eleitorado brasileiro saiu desse domingo dividido em três grandes fatias na casa dos 40 milhões de votos: a primeira abraçada ao fascismo, a segunda dividida entre os demais candidatos e a terceira composta por votos em branco, nulos e abstenções. É daí que vai sair a decisão sobre nosso destino, não apenas para os próximos quatro anos. É daí que vamos ter que tirar urnas que digam que podemos continuar apostando na democracia e, com ela, construindo um país mais justo, mais livre, mais igual.

(Publicado originalmente no site da Revista Cult)

segunda-feira, 8 de outubro de 2018

"A personalidade autoritária" hoje: Por que o fascismo volta a fascinar?

                                           
Douglas Garcia Alves Júnior
                                                                                

‘A personalidade autoritária’ hoje: por que o fascismo volta a fascinar?
Theodor Adorno, Frankfurt, 1963

O fascismo está em alta no Brasil e no mundo. Em Chemnitz, na Alemanha, neonazistas mostram abertamente nas ruas o seu ódio contra os imigrantes. Em Charlottesville, nos Estados Unidos, supremacistas brancos desfilam sua ira contra os negros. No Brasil, mostram-se sem maiores pudores louvores à tortura, à execução sumária de “bandidos” e o elogio do “cidadão de bem”, que estaria prestes a eleger aquele que “daria um jeito” à “corja” unicamente responsável por todos os males do país: em primeiro lugar, os LGBTs, mas também os “comunistas”, as mulheres que não se conformam com o papel a elas atribuído pela dominação patriarcal, os negros (sobretudo os quilombolas, por uma estranha lógica fetichista que os transforma em alvo especial de ódio), os índios (vistos como “vagabundos” e alvos de contestação quanto à demarcação de suas terras)… a lista está pronta para ser ampliada indefinidamente, sempre segundo a lógica do “nós”, “de bem”, “trabalhadores” contra “eles”, “vagabundos” e “imorais”.
Corte temporal: anos 1930 do século passado, ascensão do nazismo na Alemanha. Um grupo de intelectuais se inquieta com o apoio popular às plataformas políticas – diríamos hoje, a “agenda” – de Adolf Hitler. Essa agenda parece fazer sentido para muita gente, em diversos setores da sociedade: trabalhadores na indústria e comércio, estudantes, médicos, professores universitários. O que diz essa agenda? Para a Alemanha voltar a ser grande, é preciso dar cabo dos “parasitas”, dos que não trabalham e só “sugam os recursos” do país: sobretudo os judeus, mas também os comunistas, os homossexuais, os ciganos e quem mais se pusesse no caminho da suposta unidade racial da nação. Era preciso botar essa gente no seu “devido lugar”, e destacar o “bom alemão”, trabalhador, honesto, limpo e saudável. É essa figura imaginária que vai ser criada e estimulada a gritar o seu “nós somos diferentes deles”, “este país é nosso”. Toda essa situação social e cultural parecia instaurar quase da noite para o dia um pesadelo no meio da realidade, na visão desses intelectuais alemães. Quem são eles?
Antes, um parêntese terminológico. O que se quer dizer quando se usa o termo “fascismo”? Aqui é preciso fazer distinções. O uso mais corrente do termo remete àqueles que expressam em palavras e ações uma atitude de recusa de direitos, de desvalorização política e social e de negação de valor individual a pessoas vindas de determinados grupos tidos como minoritários, seja pelo seu número reduzido em relação ao todo da população (os moradores estrangeiros em um país, por exemplo), seja pela sua posição subalterna em relação a um grupo humano tido como padrão normativo (as mulheres, em relação aos homens, por exemplo). Ao lado dessa acepção, seria oportuno indicar um uso do termo ligado à ciência política, que registra o seu lastro histórico, e tem sua referência maior no fascismo italiano e no nazismo alemão, da primeira metade do século passado. Segundo essa acepção, o fascismo é uma forma política caracterizada por uma série de elementos que se apoiam mutuamente: o culto a um líder carismático, dotado de propriedades quase sobre-humanas; nacionalismo expansionista; etnocentrismo (o “nós” da comunidade nacional, definida racialmente, de modo excludente); valorização da violência como elemento criativo e regenerador do corpo político; eliminação de partidos políticos dissidentes; terror policial organizado estatalmente contra todos aqueles vistos como inimigos do regime; projeção imaginária de uma ideia de identidade nacional sem fissuras; mobilização permanente da sociedade civil em torno da projetada unidade mística da nação.
Voltemos ao contexto histórico do fascismo alemão. Quando o fascismo se instala na Alemanha, sob a designação de nacional-socialismo (nome do partido nazista), a pesquisa científica autônoma, a imprensa livre e a liberdade de opinião e de publicação passam a não existir mais. Livros são queimados num ritual sinistro que, volta e meia, tem os seus adeptos no Brasil. O nazismo se choca frontalmente com o trabalho de um grupo de intelectuais alemães, a maioria deles de origem judaica, que escrevem e pesquisam junto ao Instituto de Pesquisa Social, da Universidade de Frankfurt, inaugurado em 1923. Dedicado inicialmente à pesquisa do movimento operário alemão, o Instituto tomará uma orientação muito singular de pesquisa, que será chamada mais tarde de Teoria Crítica da sociedade. O nazismo, como fenômeno social e político alemão, não poderia ser deixado de fora do trabalho intelectual do Instituto. As múltiplas facetas do fenômeno nazista, simultaneamente econômicas, políticas, culturais e psíquicas, exigem um enorme esforço de elaboração reflexiva daqueles que querem entender a singular imbricação de irracionalidade e sistematicidade racional que o nazismo representa. As características básicas dessa empreitada intelectual já estavam sendo constituídas no início dos anos 1930 pelo Instituto. Aqui ganha destaque a figura do filósofo Max Horkheimer (1895-1973) e seu projeto de um materialismo interdisciplinar como ideia-guia.
Será preciso citar um trecho do texto seminal (de 1931, dois anos antes de Hitler ascender ao poder) de Horkeimer, A presente situação da filosofia social e as tarefas de um Instituto de Pesquisa Social: “pouco a pouco as discussões sobre a sociedade se cristalizaram sempre mais claramente em torno de uma questão: o problema da conexão que existe entre a vida econômica da sociedade, o desenvolvimento psíquico dos indivíduos e as transformações que tem lugar nas esferas culturais em sentido estrito – às quais pertencem não somente os assim chamados conteúdos espirituais da ciência, da arte e da religião, mas também o direito, os costumes, a moda, a opinião pública, o esporte, as formas de divertimento, o estilo de vida etc.” Aqui cabe ressaltar três aspectos do que desde então foi chamado de materialismo interdisciplinar da Teoria Crítica: 1) economia, cultura e subjetividade são postas como realidades dialeticamente interdependentes, sem postular a primazia de qualquer uma sobre a outra; 2) realidades eminentemente culturais como a moda e o divertimento são assumidas como possuindo um conteúdo substancial, no sentido de poder de gerar efeitos consideráveis na realidade, uma vez que a elas é atribuído um estatuto sociológico comparável ao da religião e da ciência; 3) a vida psíquica dos indivíduos é pensada como realidade eminentemente dialética, em estreita conexão de sentido com as formas econômicas e culturais. Isso significa que ela é pensada não como a fonte primeira das demais, mas também não como uma esfera a reboque das outras – ela tem uma densidade própria que convém investigar.
É no espírito do materialismo interdisciplinar que a A personalidade autoritária (1950) é pensada como um amplo conjunto de trabalhos de investigação psicossocial sobre preconceito e autoritarismo. Trata-se de uma pesquisa inteiramente feita nos Estados Unidos, para onde o Instituto e a maioria de seus membros haviam emigrado, após o início do regime nazista. Ela faz parte dos “Estudos sobre o preconceito”, uma série de pesquisas levadas a cabo pelo Instituto nos anos 1940, sob os auspícios do American Jewish Comitee. Os co-autores da pesquisa envolvida em A personalidade autoritária eram psicólogos e cientistas sociais da Universidade da Califórnia em Berkeley – e, portanto, pesquisadores “externos” ao Instituto –, cujos nomes devem ser justificadamente indicados: Else Frenkel-Brunswick, Daniel J. Levinson e R. Nevitt Sanford. Trata-se de uma investigação cujo objetivo é mapear tendências subjetivas básicas, configurações psicodinâmicas relacionadas a atitudes de expressão de preconceito antissemita, etnocentrismo, conservadorismo político e econômico e, finalmente, potencial fascista. O trabalho empírico nessa pesquisa foi maior do que em qualquer outra do Instituto, mobilizando um processo que durou vários anos de confecção, teste e aperfeiçoamento de questionários, escalas, entrevistas clínicas individuais e interpretação interdisciplinar dos resultados.
É preciso ressaltar que a confecção das escalas de aferição de preconceito em A personalidade autoritária respondeu aos protocolos mais rigorosos da psicologia acadêmica americana da época, de modo que não se pode minimizar seu processo de gênese. Essa reconstituição não poderia ser feita aqui, de modo que gostaria de remeter o leitor aos trabalhos de Iray Carone, que são de uma clareza notável a esse respeito. Interessavam aos autores da pesquisa o estudo de correlações empiricamente observáveis (e clinicamente investigáveis) entre a expressão de atitudes em diferentes dimensões da relação com o outro e a autoridade social. Em termos muito sucintos, o estudo mostrou correlações significativas nos resultados obtidos nas escalas de medida de preconceito contra os judeus (AS, de antissemitismo) e etnocentrismo (E), bem como entre ambas e a escala F, de potencial fascista. A correlação entre as duas primeiras e a escala de conservadorismo político e econômico (PEC) mostrou-se significativa apenas para alguns sujeitos da amostra, mas não para todos, razão pela qual essa diferença precisou ser investigada por entrevistas clínicas, e levou à proposição de uma distinção entre o “pseudoconservador” (com alta pontuação na escala PEC e nas escalas de preconceito) e o “conservador genuíno” (com alta pontuação na escala PEC, mas com baixa pontuação nas escalas de preconceito). E quanto a escala F, de potencial fascista?
A escala F é o principal achado metodológico de A personalidade autoritária. Trata-se de testar a ideia segundo a qual predisposições políticas vinculadas a ideologias autoritárias, antidemocráticas (fascistas, no limite) apresentam um correlato no nível das tendências psíquicas mais profundas, pouco conscientes ou inconscientes. A escala F propunha aos sujeitos um questionário formado por uma série de itens que seriam indicadores dessas tendências psíquicas, sem confrontá-los diretamente a agendas políticas, econômicas ou sociais (na acepção da atitude de preconceito contra grupos específicos). Com a devida ressalva de que esses itens não podem ser entendidos fora da história (e não devem ser, portanto, transportados imediatamente para o Brasil atual, uma vez que resultaram de pesquisa empírica com sujeitos de uma condição social e cultural específica) seria útil apresentar três exemplos de itens que constavam da escala F: 1) “as pessoas só aprendem algo realmente importante por meio do sofrimento”, 2) “as pessoas podem ser divididas em duas classes: os fracos e os fortes”; 3) “hoje em dia, quando tantos tipos diferentes de pessoas circulam e entram em contato umas com as outras, cada um tem de se proteger cuidadosamente para não pegar uma doença”.
Antes de tudo, cabe uma observação: não é a resposta isolada a um item que configura um tipo de disposição psíquica autoritária. Uma análise complexa da inter-relação entre os itens é pressuposto da interpretação do resultado de cada sujeito na escala F. Se, de acordo com o primeiro item anteriormente citado, “as pessoas só aprendem algo realmente importante por meio do sofrimento”, a interpretação levada a cabo em A personalidade autoritária vai situar a resposta afirmativa a esse item como indicador de “submissão autoritária”, isto é, de “atitude submissa e acrítica em relação às autoridades morais idealizadas do grupo”. A concordância com a formulação do segundo item, de que “as pessoas podem ser divididas em duas classes: os fracos e os fortes” indicaria, na formulação dos pesquisadores, não só uma tendência no sentido da “superstição e estereotipia”, a saber, “crença em determinantes místicos do destino individual; disposição a pensar em categorias rígidas”, mas também uma inclinação para “poder e ‘dureza’”, isto é, “preocupação com as dimensões dominação-submissão, forte-fraco, líder-seguidor; identificação com figuras de poder; ênfase exagerada em atributos convencionais do ego; afirmação exagerada de força e dureza”. Finalmente, a concordância com a terceira asserção, “hoje em dia, quando tantos tipos diferentes de pessoas circulam e entram em contato umas com as outras, cada um tem de se proteger cuidadosamente para não pegar uma doença”, seria indicativa de “projetividade”, entendida como “disposição a acreditar que acontecem coisas selvagens e perigosas no mundo; projeção no exterior de impulsos emocionais inconscientes”.
Qual seria o significado psíquico da concordância com os itens da escala F? A pontuação alta significaria que o sujeito “é” uma “personalidade autoritária”? Em outros termos: existe mesmo uma personalidade autoritária? E, não menos importante: estariam os autores da pesquisa assumindo que a causa última da adesão ao autoritarismo é psicológica? A resposta a essas questões é mais complexa do que pode parecer à primeira vista. Em primeiro lugar: uma pontuação alta na escala F, segundo os autores do estudo, apresenta correlações significativas de pontuação alta nas escalas de antissemitismo e de etnocentrismo, sendo, assim, um indicador confiável do que os autores chamaram não de “personalidade autoritária” (como no título do estudo), mas de “síndrome fascista”. Trata-se de uma dinâmica psíquica que os autores buscaram configurar em termos de “tipos psicológicos”. Assim, o sujeito com pontuação alta na escala F teria uma grande chance de apresentar uma dinâmica psíquica marcada pela rigidez, pela pouca plasticidade da consciência e pela rejeição da assimilação de vivências de alteridade – retrato sucinto do que os autores chamaram de “tipo autoritário”.
Dito de outro modo, esse sujeito não “é” uma personalidade autoritária, ele apresenta (no momento do teste) uma dinâmica psíquica marcada por traços libidinais e ideacionais que se associam a atitudes de preconceito e autoritarismo. Por fim, isso não significa dotar a esfera psíquica do poder causal último na configuração de atitudes políticas anti-democráticas e preconceituosas. Uma discussão mais ampla dessa questão levaria às críticas de Adorno à psicologia do Ego (e mesmo ao conceito de “personalidade”!), desde Minima moralia até trabalhos dos anos cinquenta e sessenta – algo que não pode ser feito aqui. Contudo, é necessário assinalar que Adorno e os pesquisadores de Berkeley, sem “psicologizar” fenômenos ideológicos e políticos complexos, abriram caminhos importantes para a consideração da mediação subjetiva de atitudes extremas como o preconceito e o entusiasmo por regimes de força.
Como Susan Sontag notou certa vez, é preciso reconhecer que há para muitas pessoas um fascínio peculiar e sombrio no fascismo. O legado de A personalidade autoritária reside em apontar para os riscos de situações em que a propensão ao autoritarismo e ao preconceito é estimulada pela dinâmica social dominante e pelas formas culturais com maior poder de disseminação. Em outros termos, em dadas situações, certas pessoas não terão de fazer um grande esforço subjetivo para aderir a pautas discriminatórias e antidemocráticas, uma vez que elas já estarão instaladas nos seus modos subjetivos de reação ao mundo. Seria o caso de se perguntar, hoje, se as tendências subjetivas estruturantes que a pesquisa de Berkeley encontrou estariam sendo estimuladas hoje pela sociedade e pela cultura: convencionalismo, agressividade, oposição a tudo que é intelectual e subjetivo, submissão autoritária, ênfase em estruturas rígidas de poder e dureza, tendência ao pensamento estereotipado, tendência a uma desconfiança geral de tudo que é “outro”. Este seria um trabalho a ser feito, não exatamente repetindo os itens e as escalas da pesquisa, mas recuperando as suas intuições originais e a sua abordagem interdisciplinar.
Nossa opção hoje em dia é entre esclarecimento ou barbárie. Ou lutamos para nos tornarmos conscientes de tudo que apela à agressão e ao preconceito em nós mesmos e nos outros, ou abraçamos o fascinante fascismo daqueles que tiram sua sobrevivência psíquica da vã satisfação de odiar.

Douglas Garcia Alves Júnior é doutor em filosofia pela UFMG, professor associado do departamento de filosofia da Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP), autor Dialética da vertigem: Adorno e a filosofia moral (Escuta), entre outros.

(Publicado originalmente no site da Revista Cult)

Michel Zaidan Filho: Um olhar sobre as eleições


 
Obtivemos, no dia de ontem, um resultado surpreendente nas eleições presidenciais do Brasil. Os maiores colégios eleitorais do país, onde se concentram as elites mais estudadas, ricas e mais poderosas em termos de influência e poder de persuasão (Sul, Sudeste, Centro-Oeste) votaram em peso num candidato que representa a negação do que chamamos “civilização”: direitos humanos, reconhecimento das identidades, políticas redistributivas, respeito às leis e a Constituição, respeito à vida humana, ao meio-ambiente, a diversidade cultural e religiosa, às liberdades democráticas etc. E o Nordeste, região sempre identificada com o atraso, a pobreza, a dependência econômica e social, o fanatismo e a ignorância, foi quem optou pela democracia e os direitos. Região sempre preterida pelas políticas públicas de desenvolvimento regional, fonte da perpetuação das oligarquias familiares, revelou-se um bastião da resistência à barbárie a galope, comandada por ex-capitão do Exército que faz da tortura e do extermínio o bordão de sua propaganda eleitoral.

Podemos até perder a eleição, mas chegar ao 2º Turno foi uma vitória inestimável diante dos enormes obstáculos enfrentados pelo candidato da civilização. Muitas dificuldades se contrapuseram a esta candidatura laica, republicana e socialista. Primeiro o seu deslanchar tardio, quando os demais candidatos já estavam em campanha e com farta exposição pública de seus portfólios político-partidários. Segundo, a corajosa e desassombrada aproximação com a imagem e o legado do ex-presidente LULA. Terceiro, a ofensiva da mídia eletrônica e impressa, francamente anti-petista. Quarto, a política de terra arrasada praticada pela Operação Lava-Jato contra o Partido dos Trabalhadores e seus candidatos. Quinto, o posicionamento das Igrejas neopentecostais e pentecostais, representadas em seu apoio a Bolsonaro pelos seus bispos e pastores. Seis, a falta de responsabilidade política dos partidos de centro, em destruírem o capital político do PT, ajudando com isso ao candidato da extrema-direita. Isso sem mencionar os poderosos grupos que estão alavancando essa perigosa candidatura: as bancadas da bala, do boi e da Bíblia.

Não fosse o trabalho de sapa contra as instituições, com a complacência ou cumplicidade dos tribunais superiores, a figura desse candidato lúgubre, desengonçado e falastrão não passaria de uma personagem folclórica, de mau gosto, mas risível, ridícula. Infelizmente, o diabo não se apresenta como tal, quando aparece. Teria que vir com um uniforme militar, segurando uma metralhadora e apontando para seus adversários políticos. Na imagem desse anticristo, os democratas, defensores dos direitos humanos, ambientalistas, feministas ou militantes das causas LGTBI, são bandidos, criminosos, terroristas, inimigos da família, da Igreja e da propriedade privada. A criminalização recorrente do “outro”, da “alteridade” é um recurso conhecido dos políticos fascistas, da extrema-direita. Não se admite o respeito à diferença, de quem pensa diferente ou é diferente. Estaríamos diante de uma grave ameaça à secularidade e laicidade do Estado brasileiro e rumando para uma modalidade de fundamentalismo apoiado pela espada e a religião. O pior casamento possível. Personagem tosco, primário, mas perigosíssimo. Porque instrumento da ignorância de uns, do ressentimento de outros e da ganância de uma minoria, que sabe exatamente o que está fazendo.

Bem-vindo o segundo turno. Vamos esclarecer a sociedade sobre aquilo que está em jogo neste momento. Obrigar a besta a mostrar sua cara, dizer o que pretende sem papas na língua. Quem quiser acompanha-la rumo à barbárie, que o faça, mas conscientemente do que está ajudando a fazer. Nada de Brasil, Deus, Jesus Cristo. Barbárie, pura e simplesmente a serviço de interesses que não ousam dizer o nome. Viva o Nordeste e os nordestinos!

Michel Zaidan Filho é filósofo, historiador, cientista político, professor titular da Universidade Federal de Pernambuco e coordenador do Núcleo de Estudos Eleitorais, Partidários e da Democracia - NEEPD-UFPE






segunda-feira, 1 de outubro de 2018

Vocação à brasileira


 
     Entre os anos de 1898 e 1914, foi o período do ápice da oligarquia no Brasil. É bem verdade, que desde o período da era colonial brasileira, já havia lampejos significativos por parte da elite agrária. Entretanto, tornou-se incontrolável durante o período da lavoura cafeeira.

     Naquele período, as oligarquias exerciam o poder de maneira direta. Mas a crise do café ocorreu justamente no período em que a oligarquia cafeeira estava controlando de maneira plena o país. Visando preservar o seu poder, a oligarquia do café não mediu esforços para utilizar os proventos do Estado.

     Amparados na Carta Política de 1891, o “regime” oligárquico exercia o controle federal, estadual e municipal.

     No que tange a esfera federal, era exercido pelo presidente da República, objetivando controlar a presidência e defender os interesses privados da política do café-com-leite. Com relação ao estadual, era chamada de “política dos estados”. Basicamente consistia um acordo envolvendo o presidente da República e os governadores. Tratando da esfera municipal, a prática da República Velha sustentava-se na fraude, até porque o exercício do sufrágio não era secreto. Assim o coronelismo se sustentava na prática do clientelismo, fazendo com que a população carente, vivesse da influência do coronel sem patente.

     Embora o período do governo de Hermes da Fonseca seja considerado o início do declínio das oligarquias, ela sobrevive atualmente com outra roupagem. Basta observar a quantidade de famílias que se perpetuam no poder pelo Brasil a fora. Existem famílias que nunca precisaram usar desodorante, pois não suam. Vivem do poder público, e se apresentam como se fossem o novo. É bem verdade que na idade sim, mas a forma de fazer política se assemelha a dos coronéis. Representam os interesses de suas famílias, mas discursam como se fossem representantes do povo. A vocação deles é viver do poder público, entendendo mais da casa grande do que da senzala.

 

Hely Ferreira é cientista político.