pub-5238575981085443 CONTEXTO POLÍTICO: dezembro 2020
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segunda-feira, 28 de dezembro de 2020

Nós, os brancos, e a nova partilha discursiva

 


Nós, os brancos, e a nova partilha discursiva
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The Libraries Are Aprecciated, Jacob Lawrence, 1960 (Foto: Reprodução/Philadelphia Musem of Art)

 

Mesmo tendo que ser muito cuidadosos com a “cultura do linchamento” e do “cancelamento”, há questões muito importantes no debate suscitado por uma figura respeitada como Lilia Schwarcz em relação ao direito de qualquer um de nós analisarmos criticamente a produção cultural contemporânea para além e independentemente do nosso “lugar de fala”. No caso, a produção é o álbum visual Black is king, de Beyoncé.

Hoje, as controvérsias em torno da noção de “lugar de fala” e das “pautas identitárias” atualizam e repetem as reações hostis contra as cotas raciais reproduzidas por intelectuais brancos, utilizando argumentações muito semelhantes.

O célebre e criticado “Manifesto contra as cotas raciais”, publicado em maio de 2006, tinha como título: “Todos têm direitos iguais na República Democrática”. Endossado por artistas e intelectuais reconhecidos como Lilia Schwarcz – que, em 2019 publicou em seu Facebook um pedido de desculpas pela adesão ao documento -, o abaixo-assinado invocava o “direito universal” para se contrapor à política de cotas proposta pelo Estado brasileiro: “A adoção de identidades raciais não deve ser imposta e regulada pelo Estado. Políticas dirigidas a grupos ‘raciais’ estanques em nome da justiça social não eliminam o racismo e podem até mesmo produzir o efeito contrário, dando respaldo legal ao conceito de raça, e possibilitando o acirramento do conflito e da intolerância”.

O manifesto cristalizou uma argumentação falaciosa de que as cotas raciais “iriam introduzir o racismo no Brasil”. Diante da eficácia da política de cotas raciais nas universidades, tornada uma das mais transformadoras políticas de combate à desigualdade e ao racismo do Estado brasileiro, o documento é hoje considerado um equívoco por muitos que o assinaram. Um equívoco que se repete quando intelectuais brancos acusam os movimentos identitários de produzirem, por meio do debate público e da noção de “lugar de fala”, discursos supostamente radicalizados e irreconciliáveis, responsáveis por “acabar com a empatia”, por criar “polarizações e antagonismos” entre negros e brancos ou ainda por “calar” o debate. A inversão é problemática.

O que os brancos escandalizados não percebem é que sem um desequilíbrio estrutural no poder discursivo não teríamos uma “cota de fala” ainda limitada para os muitos e para os não-brancos, pois naturalizamos o homem branco como o sujeito do suposto saber e do suposto falar. Nós, os brancos, falamos e calamos, e se existe um “lugar de cala”, ele esteve explicitado e/ou invisível nesses séculos de grupos silenciados.

O que está em jogo nos movimentos identitários, no “lugar de fala” tal como nas cotas raciais, é o poder de modular privilégios (mesmo que de maneira ínfima ou simbólica). É essa “desvantagem” temporária no discurso que enfurece os brancos e que faz com que apelem, como no caso das cotas, para um direito universal abstrato que sempre tivemos: o de falar para todos no espaço público.

O comentariado

“Eu posso falar de tudo”. Sim, sempre pudemos, mesmo quando havia ou há pessoas mais habilitadas e com repertório para tal. Nós sempre estivemos nesse lugar central de fala e parece bem doloroso sair dele. Por séculos e décadas os intelectuais brancos se viram como intelectuais públicos e universais, autorizados a falar sobre tudo enquanto acumulam capital simbólico e real.

Os especialistas consultados, os colunistas, os donos de opiniões, foram durante séculos e décadas nós, os brancos, a despeito de existirem centenas de outros sujeitos sociais, acadêmicos, científicos (negros, mulheres, minorias) com as mesmas habilidades que nós, ou melhores. Falar sempre foi um lugar de poder. Opinar, analisar, publicar constitui capital simbólico e real passível inclusive de monetização. Quanto mais eu falo e me exponho, inclusive falando gratuitamente, mais tenho possibilidade que alguém me veja e me pague adiante.

O declínio desse intelectual público já vinha se dando com a ascensão da cultura digital e do comentariado: da massa que opina, publica, critica, dos intelectuais do Youtube, do Instagram, dos influenciadores e formadores de opinião do Twitter. Eles já colocavam em xeque a reserva de mercado de inteligência, opinião e análise do intelectual clássico, provocando uma redistribuição de capital simbólico.

Sim, o comentariado também produziu comportamento de manada, enxameamentos para o bem e para o mal, linchamentos, cancelamentos, destruição de reputações, desinformação global e fake news, um efeito colateral da cultura digital massiva imprevisível. Mas produz também outra desordem estrutural que possibilita uma nova partilha do sensível.

A emergência do comentariado e do cognitariado, essa nova força do capitalismo cognitivo, foi só a primeira ferida narcísica e abalo sísmico nos ambientes acadêmicos e entre os formadores de opinião e especialistas.

Beyoncé, influenciadores e os novos intelectuais

A noção política de “lugar de fala” e as pautas identitárias provocam uma nova partilha do sensível ao desnaturalizar e ao desnudar o privilégio branco de “falar sobre tudo” e “falar pelos outros” como sujeito universal de direitos e discursos.

O “lugar de fala” desequilibra as relações de poder que tem o homem branco universal como centro, daí provoca tanto escândalo e revolta. A primeira função do lugar de fala é se desalienar do lugar de onde falamos para entender as hierarquias, desigualdades e assimetrias que o nosso discurso produz, nega ou reproduz.

Então vamos combinar que a controvérsia em torno da análise de Lilia Schwarcz sobre o álbum visual de uma artista negra mainstream, Beyoncé, não é simplesmente o fato dela não ter gostado da linguagem da Disney ou de ter visto uma África clichê, ou ainda a “glamourização da negritude” com o uso de estampas de oncinha.

“Lugar de fala” é o que limita e expõe as perspectivas, justamente. Schwarcz viu clichês onde analistas e intelectuais negros e brancos viram um afrofuturismo potente, um ativismo mainstream, um imaginário colonial ressignificado e uma África mítica que performa a negritude na centralidade de um espetáculo suntuoso.

Da mesma forma que, no Carnaval, moradores de favelas se vestem de reis e rainhas, se cobrem de ouro, ou os remanescentes dos quilombos brasileiros festejam com as congadas a coroação de rainhas negras em cortejos majestosos, Beyoncé se apropria e “hackeia” a cultura colonial pop, remixando-a com infinitas tradições de matriz africana. Realezas tribais, outros reis e rainhas negras, outra nobreza popular, outras “monarquias” e reinados.

A questão, pois, dessa controvérsia está longe de se reduzir à análise propriamente dita: uma questão de linguagem, de gosto, de desinformação, se contém ou não racismo. A questão é que o intelectual branco não fala mais para seus pares com códigos cifrados e cumplicidade, fala para um comentariado que o desconhece (e desconhece a sua “reputação” e capital simbólico acumulado ou intocável); fala para os fãs fervorosos de Beyoncé, fala para movimentos ultrassofisticados que conceituaram o afrofuturismo, fala para outra intelectualidade negra que disputa a “reserva de mercado” do discurso acadêmico para brancos e que, sim, pode exigir outra partilha do sensível e dos discursos em que ser branco não seja mais uma vantagem discursiva. Nós, os brancos, e Beyoncé, falamos para intelectuais e ativistas que disputam narrativas.

The Library, Jacob Lawrence, 1978 (Reprodução)

O intelectual branco universal

Por isso pode soar tão “fora do lugar” a comoção de brancos com as críticas recebidas por Lilia Schwarcz, vindas de todos esses novos lugares e também dos movimentos negros e de intelectuais negros.

Caros amigos brancos, parem de se defender! É inútil repetir que todos têm “direitos iguais” de fazer crítica cultural sobre quaisquer objetos da cultura, e que uma intelectual branca não pode ser cerceada no seu direito, pois não é disso que se trata. Somos solidárias a Lilia e repudiamos as expressões ofensivas e violentas de alguns comentários, discursos de ódio que vão da extrema-direita ao campo das esquerdas. Mas é só isso: debate público com novos sujeitos do discurso e novos sujeitos políticos que analisam as limitações da brancocracia. Falar de “cancelamento” no caso de Lilia Schwarcz me parece um exagero de brancos. O “cancelamento” é uma estratégia que conforme a modulação pode ir de um honesto e necessário debate público até o seu extremo, que é o linchamento e destruição de reputações.

Qual o risco de “cancelamento” sofre uma intelectual branca, bem sucedida, autora prestigiada de livros acadêmicos e coordenadora de coleções que versam justamente sobre o antirracismo? Coleções e mercado editorial que só foram possíveis pela nova partilha do sensível e da luta dos movimentos antirracistas?

Lilia está longe de ser “cancelada” e seria deplorável se o fosse, já que soube muito bem se desculpar e aceitar as limitações discursivas apontadas. Não precisa de mais defensores brancos indignados reafirmado nossos direitos universais e nossa liberdade de expressão.

Intelectuais negros inventam linguagens

Quem são as novas e novos intelectuais negros e negras? Figuras como a filósofa Djamila Ribeiro popularizaram justamente a noção de “lugar de fala” e outros conceitos acadêmicos decisivos para esse debate. Autoras como Sueli Carneiro conceituaram o feminismo negro no Brasil. Conceição Evaristo traz para a academia e para a literatura a noção de “escrevivências” para contar, a partir de uma vivência e singularidade, uma história coletiva. Exatamente tudo que a tradição universitária nega como escrita científica ou acadêmica: conceitos e noções forjados em meio a lutas e não em território seguro e distanciado.

As intelectuais negras são frequentemente “reduzidas” ao discurso “militante” ou ativista, porque são sujeitos que, ao falar de si ou narrar uma trajetória, falam dos outros. Com uma escrita coletivizada de si, trazem uma real contribuição ao ensaísmo. Um encanto que ensina a nós, brancos acadêmicos universais, a nos narrar assumindo a nossa branquidade, branquitude ou brancocracia.

Pois sim, a minha trajetória de mulher branca, nascida em família de classe média periférica de Parintins, Amazonas, crescida em Rio Branco, Acre, com pais comerciantes que migraram em busca de melhores condições de vida, e minha vinda para o Rio de Janeiro, me proporcionaram uma trajetória de vida e construção de reputação – sem sobrenome, família ou status prévio no Rio – só possível pela minha entrada em uma universidade pública e gratuita, e pelo fato de ser branca. Me identifico com os “novos ricos” do capital simbólico por ter construído meu quinhão vinda das periferias do Brasil para os centros, e sabendo que ser branca me deu incontáveis privilégios, inclusive esse de ocupar um espaço de escrita.

A revolta de intelectuais brancos contra o “cancelamento” de Lilia Schwarcz diz também do “lugar de cala” secular exercido silenciosamente pelos brancos enquanto foi conveniente, da invisibilidade social e acadêmica de intelectuais negros, mulheres e outros. Não é mais e não somos nós que estamos sendo calados. Estamos em meio a uma emergência e “o lugar de fala” recentemente conquistado e performado pelos negros no Brasil é uma ferramenta, um conceito, um instrumento de luta para se celebrar.

a biblioteca, jacob lawrence
The Library, Jacob Lawrence, 1960 (Reprodução)

Ativismo mainstream

O problema na análise de Schwartcz sobre o álbum visual de Beyoncé é também o de certa intelectualidade branca. Existe uma dificuldade dos intelectuais e das esquerdas entenderem os ativismos mainstream que vêm atravessados por estratégias de marketing, marca, e que produzem efeitos extraordinários em termos de comportamento. É preciso entender o papel da cultura pop nas disputas conceituais e de comportamento.

As mulheres e atrizes e atores brancos e negros usaram Hollywood, a moda, o glamour e a grana para o combate ao machismo no movimento Me Too de forma extraordinária. Beyoncé usa uma estética pop, glamorosa e de apropriação do luxo para o ativismo mainstream negro. O luxo (afrofuturismo suntuoso) não combina com a estética negra ativista?

Para além da questão do lugar de fala – “intelectual branco ou branca dando lições aos movimentos negros e outros” –, hoje as falas acadêmicas são passíveis de serem refutadas ou refinadas no espaço público em diálogo com não intelectuais. Não havia esse espaço. Nós falávamos sozinhos ou entre pares. Então, antes de tudo, celebremos a inclusão conceitual dos não universitários e ativistas no debate público brasileiro.

O direito de ser “neutro”, científico e argumentar criticamente sobre tudo continua, caros amigos e amigas brancas. Mas apenas a “autoridade” intelectual ou o capital conceitual não bastam e não impedem mais que outros sujeitos do discurso digam de forma bem explícita: seus conceitos, suas análises “desinteressadas”, sua argumentação crítica e ilustrada, seu Foucault finíssimo, seu Deleuze sofisticado, seu (completem com todos os nomes maravilhosos que amamos tanto) não servem para a minha luta.

E pasmem, tenho sim visto a intelectualidade branca desqualificar os movimentos identitários ou reduzi-los a um “essencialismo” simplório com bases nos filósofos da diferença. Exatamente como antropólogos e antropólogas prestigiadas da UFRJ e de outras universidades usaram seu capital científico e acadêmico para se posicionarem contra as cotas raciais, desqualificando uma política pública urgente porque ela supostamente revertia e utilizava o conceito de “raças” para beneficiar um grupo.

Disseram os antropólogos no “Manifesto contra as cotas raciais” que “a invenção de raças oficiais tem tudo para semear esse perigoso tipo de racismo, como demonstram exemplos históricos e contemporâneos. E ainda bloquear o caminho para a resolução real dos problemas de desigualdades”.

Conceitos não estão “acima” das lutas, e as lutas forjam, revertem, ressignificam, se apropriam de conceitos, como diz meu filósofo branco preferido, Gilles Deleuze, ou serão caixas de ferramentas ou ficarão em um céu de ideias fixas. E aqui uso e cito os intelectuais brancos que me formaram (Deleuze, Foucault, Negri etc.) sabendo que ao serem relidos ou criticados, não estão sendo “cancelados”, mas ampliados, potencializados por intelectuais negros como Achille Mbembe, por um pensador trans como Paul B. Preciado ou deixados de lado por outra tradição intelectual que prefere partir de outras matrizes conceituais mais enegrecidas.

Bem vindos ao início do fim da “reserva de mercado da inteligência” para nós, os intelectuais universitários brancos “acima” das urgências do presente. Elas sempre existiram, mas muitos de nós preferimos produzir papers destinados a pontuar nosso Currículo Lattes ou a dialogar em congressos de pares, espaços tão gentilmente mudos. Estivemos falando sozinhos durante séculos ou para “os mesmos”, por isso não fomos mais refutados e questionados.

Celebremos a ruidocracia e o embate conceitual, de valores, celebremos! Precisamos tanto de conceitos e análises gourmets, quanto de mais filmes de Beyoncé. 

Ivana Bentes é pesquisadora do Programa de Pós Graduação da Escola de Comunicação da UFRJ

(Publicado originalmente no site da Revista Cult)

Charge! Duke em O Tempo

 


quarta-feira, 23 de dezembro de 2020

Charge! Duke via O Tempo

 


Desconfinar o amor

 

O Ocidente aprisionou-o na esfera privada. Porém, como força social, ele é transgressor, inconformista, hostil à Razão de um mundo insensível. Para libertar seu erotismo subversivo, será preciso vivê-lo como experiência comunitária

Por Antoni Aguiló, no Público | Tradução: Rôney Rodrigues

Em O mal-estar da civilização, Freud defendeu que a sociedade europeia dos princípios do século XX era uma sociedade reprimida e repressora. Reprimida porque praticava um moralismo hipócrita baseado na inibição sexual e afetiva. Repressora porque criou uma mentalidade e alguns códigos de conduta com a intenção de vigiar e punir a satisfação das pulsões eróticas que fossem além da norma estabelecida. No entanto, nos últimos tempos a sociedade reprimida se transformou em uma sociedade hipersexualizada, onde o amor e o sexo se converteram em produtos descartáveis do consumo de massas.

Apesar das mudanças, seguimos vivendo em uma sociedade fortemente repressora. Sistemas de poder como o capitalismo, o patriarcado e o heterossexismo reprimem potencial humano. Os homens, por exemplo, fomos confinados emocionalmente pelo heteropatriarcado. A masculinidade tóxica nos ensinou a ser psicologicamente (ou patologicamente?) fortes, a não sentir, a não sofrer em público. Nosso valor se reduz a quanta merda podemos engolir sem derramar uma só lágrima. Algumas vezes, devido a preconceitos homofóbicos ainda existentes, quando meninos expressam determinados sentimentos e preferências, se exerce contra eles um tipo de violência psicológica que lhes infunde sentimentos de culpa ou vergonha. Nos educam para dominar, para controlar, para fingir, para competir e acumular riqueza e poder às custas dos outros – não para amar, cuidar ou compartilhar.

Diante deste quadro, podemos propor algumas perguntas desafiadoras: que papel o amor pode exercer no atual contexto de crise sanitária global, em que a sobrevivência física e emocional se torna cada vez mais precária? Por acaso, em tempos de incerteza, em que se corre o risco de se recolher em si mesmo e desconfiar do outro, o amor não seria mais que “um fósforo queimado descendo pelo vaso sanitário”, como escreveu Hart Crane? Há lugar para o amor no espaço público organizado sob os parâmetros da nova normalidade, onde os corpos e os afetos obedecem o imperativo do distanciamento interpessoal e grande parte de nossa vida se desenvolve na internet? Como tomar medidas de proteção social e individual sem erodir os laços de cooperação e solidariedade?

O problema é que, no Ocidente moderno, o amor sempre ocupou uma posição subordinada em nossas vidas. O patriarcado se encarregou de confiná-lo na esfera privada. Tende-se, assim, a vê-lo como um sentimento que não vai além do apetite sensível e das emoções individuais, não como um fator de transformação social e espiritual.

Como força social, o amor é um sentimento transgressor, capaz de alimentar o inconformismo, despojar os poderosos de seus privilégios e enriquecer aquilo que é público. É preciso recuperar a ideia de que o amor é uma prática ética e política, de que o emocional é político. Nessa afirmação reside grande parte do poder transformador dos movimentos LGBTI+, feministas e antirracistas. O “eros alado” com que Alexandra Kollontai combateu a discriminação das mulheres trabalhadoras pelo machismo proletário; o amor integrador com que sonhou Luther King, que expôs a realidade crua do racismo e da supremacia branca; e o “amor eficaz” pregado por Camilo Torres, que mostrou sua opção preferencial pelos pobres, são exemplos que apontam nesta direção.

Com força espiritual, o amor é uma energia que existe no interior de cada um e que lhe permite expandir-se para além do eu individual, criar comunidade e fazer surgir em nós um sentido transcendental de união. Necessitamos de uma sabedoria que faça do amor uma experiência enraizada no comunitário. Sobonfu Somé explica que, para o povo dagara, o amor é um fenômeno que se vive coletivamente. A intimidade, o amor e o cuidado são inseparáveis de um mundo cósmico e natural em que tudo está interconectado: a água, o fogo, a terra, o mineral etc. “O avô costumava chamar a chuva de ritual erótico entre o céu e a terra”, explica. Justamente é essa interação entre o ser humanos e os elementos cósmicos o que gera e transmite o amor comunitário.

Assim o entenderam também feministas como Gloria Anzaldúa e Audre Lorde, que nos ensinaram a descobrir a presença de uma espiritualidade erótica na vida cotidiana. “Da mesma forma que meu corpo se abre à música, respondendo a ela, e escuta com atenção seus mais profundos ritmos, assim também o que sinto pode abrir-se a uma experiência eroticamente plena, seja ela dançar, construir uma estante, escrever um poema, examinar uma ideia”, afirma Lorde.

Porém, para grande parte da cultura ocidental, espiritualidade é uma palavra que gera sentimentos de rechaço, devido ao preconceito racionalista que a considera um fenômeno oposto à razão e à realidade material, em nada relacionada ao erotismo. De fato, a indústria do sexo habilmente nos enganou para confundir o erótico com o pornográfico.

Trata-se nos nos liberarmos das heranças emocionais que dificultam amar(-nos). Arundhati Roy afirmou recentemente que a pandemia é “um portal, uma porta entre um mundo e o seguinte”. Podemos escolher manter a porta fechada e confinar o amor nas estreitas margens em que fomos socializados. Ou podemos escolher abrir a porta para transitar para uma experiência mais enriquecedora do amor, uma experiência que resgate as possibilidades esquecidas. Parece-me a melhor escolha para começar a desconfinar o amor no cenário da “nova normalidade”, que, desconfio, pode ser bem pouco amorosa.

(Publicado originalmente no site Outras Palavras)

segunda-feira, 21 de dezembro de 2020

Tijolinho: As reuniões mineiras do PT pernambucano.

Ficou célebre no folclore político uma expressão para designar aquelas reuniões arranjadas de véspera, que fogem de pautas importantes, onde tudo parece ser acertado com antecedência para evitar surpresas. É assim que começo a ver as reuniões programadas pelo Partido dos Trabalhadores aqui em Pernambuco. Há uma reunião programada para esta segunda-feira, mas a situação de apoio ou não ao Governo Paulo Câmara(PSB-PE) não entraria na pauta dos debates. O PT foge dessa discussão como o Diabo foge da cruz. E olha que citei aqui o Diabo e não os seus secretários. Mais uma vez elogio aqui a postura assumida pela Juventude do Partido, que, sem muitos rodeios ou tergiversações, se pronunciou sobre os petistas que abandonaram a candidatura do partido para continuarem no Governo Paulo Câmara. Concluiu que, se eles desejarem continuar com o Governo, que peçam,antes, desfiliação do partido. Nada mais coerente. O que não se pode permitir é que, uma vez o partido tendo um candidato oficial, haja esse tipo de postura por parte de alguns dos membros da legenda. 

Escrevi recentmentee um longo editorial sobre possíveis críticas à candidata Marília Arraes, em função de uma visita sua ao prefeito Anderson Ferreira, do PL, prefeito de Jaboatão dos Guararapes. Tenho profundas diferenças com esse grupo político, mas, sinceramente, eles foram mais confiáveis à então candidata do que certos integrantes do partido que, durante a campanha, até pronunciamento fizeram contra Marília Arraes. Como diria o velho Dr. Miguel Arraes de Alencar, pelo admiração que tenho por ela, não gostaria que Marília entrasse nesse "mal caminho". Por outro lado, para uma pessoa que parece-nos que alimenta ambições majoritárias, seus pleitos dentro da agremiação serão sempre solapados. Como afirmo naquele editorial, Marília é uma espécie de estranha no ninho petista. Há um grupo bastante satisfeito com a condição de força auxiliar dos socialistas no Estado, o que significa dizer que estão priorizando interesses individuais em detrimento do interesse coletivo.  

Velho estudioso do partido, observo que uma das marcas "daquele PT de outrora" era a coerência. Ao longo desse período, o partido oligarquizou-se e perdeu bastante em termos de manutenção de uma linha de coerência que o diferenciava em relação a outros grêmios partidários. Hoje são poucos os atores políticos do partido que se mantém fiéis a essa característica. Salvo, talvez, por um texto que li recentemente, onde um integrante da legenda lembrava a incoerência de o partido apoiar o nome indicado pelo atual presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia, que teve sua origem no PFL, hoje no DEM, cujo grêmio  apoiou todas as manobras antidemocráticas em período recente da história política do país. Este talvez seja daquela cota que ainda sabe o significado dessa expressão. Aquele radical que se defende, informando ao seus opositores que "radical" são aqueles que vão até às raizes. Um adendo: Não é pernambucano, muito menos da ala que dá sustentação ao Governo Paulo Câmara(PSB-PE).   

domingo, 20 de dezembro de 2020

Tijolinho: Automação é morte.

Há dois grandes estudiosos cujos trabalhos e reflexões, não raro, se complementam entre si. Um faz uma análise mais geral da conjuntura política, enquanto o outro se detém nos reflexos dessa conjuntura sobre o mundo do trabalho. Muito embora que, para debruçar-se sobre esse recorte, faz-se necessário entender a conjuntura mais complexa. Ambos são sociólogos. Um português e um brasileiro. Os leitores mais perspicazes já devem ter matado a charada. Estamos nos referindo a Boaventura de Souza Santos e ao professor Ricardo Antunes, decano da Universidade de Campinas, a maior autoridade acadêmica brasileira sobre o mundo do trabalho. Outro dia li um texto dele, publicado num site conhecido, onde ele faz um resumo da equação da barbárie de nosso tempo, um tempo onde as forças conscientes e consequentes do campo progressista procedem uma grande reflexão sobre um modelo de sociedade que supere o capitalismo. Salvo melhor juízo, a equação é esta: Tecnologia(automação) +capitalismo: morte.

Os pernambucanos que leram os jornais de hoje se depararam com uma queda de braço entre a categoria dos rodoviários e o Governo do Estado, com uma previsão de decretação de greve a partir da terça-feira, em plena semana natalina, quando os recifenses menos cuidadosos não relutariam em sair para as compras do período, mesmo em meio ao agravamento dos problemas relacionados ao Coronavírus. Para comprovar essa tese, basta acompnhar os jornais televisivos, com suas imagens aéreas, mostrando as aglomerações nos grandes centros de compras do país. Há outros itens na pauta dos rodoviários, mas a questão mais crucial é um impasse em relação à automação dos serviços de cobrança de passagens, o que implicaria numa demissão em massa de cobradores, o que já vem ocorrendo em outras praças do país. Salvo melhor juízo, até o poder judiciário já se pronunciou sobre este assunto, defendendo, coerentemetne, o serviço físico, realizado por outro profissional - que não o motorista - até por uma questão de segurança. 

O Governo do Estado foi bastante contundente em sua resposta aos rodoviários. Não vou aqui entrar no mérito no tocante a quem tem razão sobre o assunto, até porque não tenho acompanhado essa pendenga de forma mais efetiva. Mas convergimos aqui com a mesma preocupação do grande Ricardo Antunes, ou seja, num momento crítico como este que estamos vivendo, medidas que representam o desemprego em massa de profissionais devem ser repelidas. Outro dia citei o caso aqui das chamadas portarias remotas, que igualmente irá representar a demissão de milhares de profissionais que trabalham nas portarias dos prédios. Na condição de um ator político de responsabilidade pública, de caráter coletivo, na autonomia que lhe compete, penso que o Poder Público deve intensificar esforços no sentido de impedr essa manobra do capital, que, em última análise como alerta Antunes, pode significar a morte em sua forma mais cruel.


A paixão não autoriza visitas rápidas


Julián Fuks


É um livro que cumpre todos os requisitos de um clássico, eu poderia afirmar, parafraseando Calvino para dizer que clássico é o que reconhecemos como íntimo já na primeira leitura, e então se faz indomável e desconhecido nas leituras sucessivas. Pois o que um clássico tem a dizer, eu continuaria, é a um só tempo algo de ancestral e novo, algo de elementar e assombroso — o que neste caso é seguido à risca. Para enfatizar a grandeza, para tentar atribuir à autora sua justa e imensurável medida, eu a equipararia a grandes nomes da História, ainda que masculinos — diria que é uma espécie de Dostoiévski que não apela à sordidez, Beckett que não se livra do sentido, Kafka que nunca cede à desumanização plena.

Mas não. Se quero falar de Clarice Lispector, de A paixão segundo G.H., não posso me render à tentação de começar pela generalidade, pela comparação imprecisa, de definir o livro por aquilo que não é. Tão certeiro é o romance, tão disposto a chegar ao cerne, à carne, que lhe seria incompatível um texto crítico que começasse pelo desvio. E, no entanto, é a própria autora quem o concede no início, o que o livro narra parece nos exigir algum adiamento, ou a compreensão de que “a aproximação, do que quer que seja, se faz gradualmente e penosamente — atravessando inclusive o oposto daquilo que se vai aproximar.”

É um livro a ser lido “apenas por pessoas de alma já formada”, é a autora quem determina, nos deixando desconfortáveis de partida, já que nunca saberemos se nossa alma está formada o bastante para tal radicalidade. Da primeira vez que o li, acho que me faltava alma, ou me sobrava uma ansiedade juvenil, e atravessei as páginas com alguma pressa à procura da barata. Ou melhor, à procura da mulher tão tomada por seus pensamentos vertiginosos, pela necessidade de ordenar seu caos particular, que, num impulso muito ponderado, acaba por comer a barata — fazendo do argumento do livro uma anedota. A pressa era desnecessária, mas a leitura foi um arrebato.

Agora, para escrever este texto, achei que bastaria folhear o livro e reencontrar os grifos passados, relembrar a experiência e registrá-la. Mas não, a casa de G.H. não autoriza visitas rápidas, e contemplar a imensidão de seu espaço, que se reduz e nos tranca no quarto dos fundos, é sempre uma experiência nova, um novo arrebato. Desta vez pude observar melhor o resto da casa, a sala em que tudo “é réplica elegante, irônica e espirituosa de uma vida que nunca existiu”, a casa onde “tudo está entre aspas”. Pensei assim entender algo mais sobre essa mulher que também é citação de uma inexistente pessoa, que conserva uma aspa à esquerda e outra à direita de si mesma, que percebe “uma vida inexistente” que a possui e que a ocupa toda.

E então deixei que aquela vida inexistente me ocupasse e me fechei com ela no quarto dos fundos. E, ali, antes mesmo da aparição da barata, foi que se revelou a maior novidade da leitura — novidade nenhuma, claro, pois cristalina desde o primeiro contato, presente desde sempre naquelas páginas e decerto conhecida por muitos. A evidência de que aquele não é um quarto dos fundos, vazio, abandonado, e sim o quarto da empregada: o quarto da mulher que G.H. demitiu dias antes de sua experiência transformadora. “O quarto era o oposto do que eu criara em minha casa”, diz G.H., “era uma violentação das minhas aspas”.

G.H. estremece por um instante, dispõe do rosto da mulher com quem conviveu em sua própria casa, mas não se lembra de seu nome. E, quando enfim se lembra, Janair, com o nome lhe vem a aguda percepção de que a mulher a odiara, de que só podia tê-la odiado. G.H., essa pessoa que é a citação de tantas pessoas da classe alta, usara Janair “como se ela não tivesse presença”, e é isso o que ela agora encara no quarto nem um pouco abandonado. “Sob o pequeno avental, vestia-se sempre de marrom escuro ou de preto, o que a tornava toda escura e invisível — arrepiei-me ao descobrir que até agora eu não havia percebido que aquela mulher era uma invisível.”

Com G.H. nos arrepiamos, com sua descoberta da presença pujante da outra mulher no quarto, onde ela ainda se manifesta em cada detalhe. Na parede desenhada, no colchão com “suas largas manchas desbotadas como de suor ou sangue aguado, manchas antigas e pálidas”. São de Janair as manchas de suor e sangue, ou serão os resquícios de uma opressão ancestral, de outras mulheres escuras e invisíveis, sempre silenciadas? É G.H. quem enuncia, ao identificar a reciprocidade do ódio, ou pior, a origem do ódio nela própria, a “tranquila e compacta raiva daquela mulher que era a representante de um silêncio como se representasse um país estrangeiro, a rainha africana”, “a estrangeira, a inimiga indiferente.”

É pela presença do outro em sua casa, feito estrangeiro, inimigo, que ela insiste em silenciar, é pela presença do outro que lhe vem uma “cólera inexplicável”: “eu queria matar alguma coisa ali”. E então, para sua surpresa, outro ser se oferece em sacrifício, surge a barata de um canto escondido e tomará toda a atenção da protagonista, toda a nossa atenção. É impressionante que G.H. e nós nos esqueçamos de que, pouco antes dessa aparição, o quarto estava todo tomado por Janair, essa alteridade negra. É impressionante que tenhamos atentado tão pouco ao fato de que é Janair quem sofre a metamorfose, é essa outra mulher quem se transforma na barata.

Tudo o que lemos depois deveria se transformar pela lembrança dessa metamorfose. É para encontrá-la, para se fundir com ela, que G.H. realiza sua penosa aproximação à barata, sua fusão com a barata em ato carnal. E é só assim, no encontro carnal com o outro, “um olhar o outro sem vê-lo, um possuir o outro, um comer o outro”, que ela chega a encontrar a si mesma: “pela primeira vez eu estava sendo a desconhecida que eu era”.

Não termina aí a vertigem, claro, porque tudo aqui é o seu oposto, e encontrar-se significa, ainda bem, perder-se. É assim, na fusão com a barata, com a mulher negra, que G.H. consegue enfim se descolar de si mesma e ver: “Eu estava saindo do meu mundo e entrando no mundo. É que eu não estava mais me vendo, estava era vendo”. Esse é o efeito que Clarice nos oferece, ou o efeito que pôde oferecer a este leitor, desta vez, nesse livro clássico que nunca se encerra. A possibilidade de contemplar sua fusão ao outro e de me fundir com ela, e me fundir com o outro, e assim me fazer outro e perder de vista a mim mesmo. E a possibilidade de crer, por um breve instante, no mais exíguo dos espaços e a um só tempo no mais fulgurante, que fui capaz de ver o mundo.

 (Publicado originalmente no site do Suplemento Pernambuco)

sexta-feira, 18 de dezembro de 2020

O abolicionismo penal brasileiro e o desembarque da branquitude.

 

O abolicionismo penal brasileiro e o desembarque da branquitude
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Bloco Anti-Cárcere na Marcha da Maconha 2019 em São Paulo (Foto: Mídia Ninja)

 

O texto abaixo e que encerra 2020 foi escrito em coautoria com o assistente social, trabalhador da saúde mental e abolicionista, Lucas Alencar de Araújo


Tudo que nóis tem é nóis (Emicida)

Das traduções de Christie e Hulsman, nos anos 1990, aos primeiros seminários, cursos, palestras e livros brasileiros sobre abolicionismo penal, já na passagem para os anos 2000, é possível fazer algumas constatações. Por hoje, vamos nos concentrar em duas delas e seus desdobramentos.

A primeira é que este foi um debate marcado pela branquitude. Não apenas as pessoas que estavam ocupando aqueles espaços na academia e no mercado editorial eram majoritariamente brancas, mas também suas abordagens e apontamentos eram expressões dos incômodos, angústias e experiências brancas, assim como suas referências bibliográficas.

É curioso observar isso porque, quando falamos de justiça criminal, estamos falando de um sistema cujo fundamento, a inteligibilidade e a finalidade são racistas. É racismo de Estado por excelência, com muito pouco disfarce. No entanto, o abolicionismo penal enquanto movimento acadêmico, para ficar em uma das definições de Louk Hulsman, emergiu como um campo de debates e formulações entre pessoas brancas no Brasil.

E não é como se pessoas negras e os movimentos sociais antirracistas não existissem na mesma época, com críticas contundentes e fulminantes ao aparato penal. Mas como todo debate mobilizado, principalmente, a partir de operadores do direito, sobretudo ali na passagem entre os anos 1990 e 2000, o abolicionismo penal se constituiu como mais um espaço de hegemonia branca.

Dada a exiguidade do espaço e a incipiência destas linhas, não vamos conseguir aqui traçar uma genealogia de como esta conformação do abolicionismo penal brasileiro se tornou possível. Temos pistas, mas queremos apenas iniciar a discussão que nos parece incontornável. Vamos ficar apenas na constatação que pode ser aferida facilmente nas produções a que nos referimos (das quais também se pode ter uma ideia no texto inaugural desta coluna).

Essa constatação não se faz para diminuir a importância da produção abolicionista naqueles anos. Não há “porém” a ser inscrito sobre ela. Foi e é referência para nossas elaborações e lutas. O que buscamos é entender a branquitude como condição de possibilidade do debate abolicionista no Brasil para pensar as questões que se fizeram presentes e as ausências gritantes até aqui. Ou até há bem pouco tempo.

No livro da professora Ana Flauzina, Corpo negro caído no chãojá mencionado nessa coluna em outros momentos, a autora dirige a uma fração hegemônica movimento feminista questões que podemos entornar sobre nós, abolicionistas penais. Flauzina pergunta o que o feminismo eurocêntrico tem a dizer sobre e para as mulheres cujos filhos e maridos são assassinados pelo Estado todos os dias. Qual é o tratamento dado às mulheres que dão suporte a homens encarcerados? Como vivem as mulheres que têm que criar os filhos sozinhas, depois que o sistema de justiça criminal sequestra seus companheiros? Todas essas perguntas, responde a autora, não estão colocadas para o feminismo eurocêntrico porque não são problemas na vida de mulheres brancas.

Algo muito parecido se pode dizer do abolicionismo penal brasileiro, de forma que não são raros os enfrentamentos entre abolicionistas e pesquisadores(as) ou militantes antirracistas e/ou feministas, pois as questões abordadas pelos primeiros, com frequência, são expressões das urgências do pensamento e da performance de homens brancos juristas e acadêmicos.

A segunda constatação que fazemos, a partir da análise da emergência do abolicionismo penal no Brasil como campo intelectual e político marcado e definido pela branquitude, diz respeito a outra definição de Louk Hulsman: abolicionismo penal é movimento social. Durante muito tempo, o abolicionismo penal brasileiro foi pouco ou quase nada um movimento social. Acreditamos que isso é também uma decorrência de sua branquitude, sempre capaz de capturar resistências em versões de gabinete, para exibir pretensa superioridade moral, embora ausente de todo compromisso ético com as suas próprias formulações teóricas.

Mas se essas duas constatações nos parecem inescapáveis, também presenciamos e reconhecemos mudanças recentes muito significativas na produção dos abolicionismos penais. Muita gente jovem, negra, lgbttqia+, ativista/militante se apropriou do debate, ocupou os espaços e alterou seus rumos.

 

As inflexões e metamorfoses
trazidas pelos jovens
abolicionistas são caminhos
sem volta, que não pedem
licença ao serem abertos, e que
podem ser tomadas como efeito
da saúde e da força de um
abolicionismo penal que não se
detém nos gabinetes de vetustos
operadores do direito.

 

 

De um lado, questões como as demandas de familiares de vítimas da letalidade policial passaram a ser tratadas em pesquisas empíricas realizadas por abolicionistas penais. De outro, os movimentos de familiares e amigos de presos foram reforçados pela presença de abolicionistas, assim como aconteceu com as Frentes Estaduais pelo Desencarceramento, que surgiram das articulações da Pastoral Carcerária. Desde suas primeiras aterrisagens no Brasil, os abolicionismos penais nunca foram um movimento acadêmico tão robusto e um movimento social tão diverso como presenciamos hoje. Os fluxos entre o abolicionismo na academia e nos movimentos sociais são hoje tão intensos que não seria exagero dizê-los um só, tudo junto e misturado.

Todo esse redimensionamento gerado pela chegada de uma juventude negra e militante traz consigo os acúmulos de debates antirracistas muito anteriores ao abolicionismo penal, ao mesmo tempo em que incorpora as formulações mais recentes das perspectivas feministas decoloniais e anticoloniais. Para o campo abolicionista, traz tensões com os/as fundadores-juristas que um dia pretenderam fazer do abolicionismo um espaço fechado de debates muitos cultos para aliviar a consciência de se saberem operadores da máquina racista de extermínio conhecida como sistema de justiça criminal.

Na velocidade das redes sociais e na produção acadêmica que se sofisticou em decorrência da política de cotas nas universidades, os abolicionismos penais tecidos e trançados por uma leva de negros/as, nordestinos/as, lgbttqia+, influenciadores/as digitais, familiares de presos, dentre outros, têm encontrado resistências reativas entre os abolicionistas de primeira hora no Brasil, notadamente entre os que pertencem ao establishment jurídico/judicial, e que também dominam nichos editoriais e a produção de grandes eventos acadêmicos.

Talvez sejam necessários aqui parênteses para demarcar que, pela multiplicidade dos abolicionismos penais, estamos falando daqueles que se reivindicam antiprisionais ou antiproibicionistas, mas também antimanicomiais, de base teórica marxista e também anarquista, enfim, estamos falando de todas as frentes e maneiras pelas quais abolicionistas se apresentam e se afirmam, sem pretensão de julgar qual seria mais completa ou verdadeira.

Cabem aqui nesta crítica também os aliados da criminologia crítica e do garantismo penal, pois não são poucos os trabalhos e debates já produzidos em que o caráter branco, masculino e elitista desses parceiros foi problematizado por mulheres brancas, negros e negras, lgbttqia+ e outros. Por razões éticas e pelo compromisso que a coluna tem com tensões produtivas, trouxemos os abolicionistas para o centro da crítica, pois achamos melhor não cair no denuncismo alheio, sem fazermos uma reflexão sobre nós mesmos.

As formas que essas resistências reativas aparecem variam, mas não deixam de ter suas repetições e continuidades. Uma das principais é o pânico branco de ser apontado como racista porque, mesmo entre abolicionistas penais, racismo é muitas vezes compreendido como defeito moral. Apesar de debaterem e lutarem contra um sistema estruturalmente racista, alguns abolicionistas tratam a crítica ao racismo como ofensa pessoal. Diante disso, mobilizam o tríptico de notórios saberes, reputações ilibadas e pacto narcísico para protegerem o abolicionismo penal como se fosse um terreno do qual possuem o título de proprietários.

 

Mas não têm. Não poderiam ter.
Abolicionismo penal em terras
colonizadas é coisa de índio,
de preto, de travesti. É dos
sem-título, sem-teto, sem
emprego e sem plano de saúde.

 

 

Clóvis Moura, importante autor preto e comunista, em seu livro Rebeliões da senzala, cravou que negros e indígenas se aliavam a todo momento e em diversos períodos para destruir as forcas das fazendas de plantação café, símbolo significativo do poder punitivo escravocrata. Assim como também denunciava os conflitos entre os abolicionistas da elite branca e liberal com as rebeliões de mulheres e homens escravizados. Conflito que parece se repetir nos dias de hoje sempre que os alvos privilegiados se levantam contra quem pretende o privilégio da vanguarda.

É covardia se manter em silêncio diante do racismo. Coragem é saber que, entre nós, não há garantias nobiliárquicas contra críticas antirracistas e que se fazer abolicionista é se arriscar, todos os dias, ao confronto com aquilo que, em nós mesmos, oprime, limita e alimenta dinâmicas e saberes penais, do positivismo lombrosiano ao racismo recreativo das piadas sem graça.

Aline Passos é doutoranda em Sociologia pela UFS, mestre em Ciências Sociais pela PUC-SP, graduada em Direito também pela UFS. Professora de Direito Penal, Processo Penal e Criminologia

(Publicado originalmente no site da Revista Cult)