Descendente de negros e indígenas, o baiano Itamar Vieira Jr é autor de 'Torto arado', publicado pela Todavia (Foto: Valdizio Soares)
Quando o poeta cearense Mailson Furtado, nascido e criado na cidade de Varjota, sertão nordestino, ganhou o Prêmio Jabuti de livro do ano em 2018 com À cidade, uma obra que não tinha editora e fora bancada com recursos próprios, ficou claro que algo estava mudando na literatura brasileira. Maílson, grande vencedor do mais prestigiado prêmio literário brasileiro, era um artista periférico, nascido em uma família pobre e sem conexões com o establishment da literatura nacional. No mesmo ano, o baiano Itamar Vieira Jr, descendente de negros e indígenas, abocanhou 100 mil euros do Prêmio Leya com seu romance Torto arado (Todavia), que contava a história de duas irmãs quilombolas envolvidas em conflitos agrários no sertão baiano. Ainda em 2018, Raimundo Neto, autor homossexual, nascido no sertão do Piauí, fora agraciado com o Prêmio Paraná de Literatura com o excelente livro de contos Todo esse amor que inventamos para nós, protagonizado por gays, travestis e outras personagens LGBTQ+.
Dois anos antes, Micheliny Verunschk, nascida no sertão de Pernambuco, já havia sido agraciada com o Prêmio São Paulo de Literatura por sua versão barroca da história de Teresa, uma santa popular suicida cultuada no nordeste brasileiro. Em comum, esses quatro autores nordestinos, ponta de lança de um movimento literário maior que eclode na década de 2010, tinham o fato de virem de fora dos centros de poder do Brasil, serem parte de grupos discriminados, produzirem uma literatura épica e poética e não terem começado suas carreiras apadrinhados por grandes editoras.
Até então, a literatura brasileira dos anos da redemocratização e da chamada Nova República tinha cara, gênero e classe social: era dominada por autores homens, brancos, “não-jovens”, ricos e heterossexuais nascidos nos grandes centros urbanos da regiões sul-sudeste do país. Seu estilo muitas vezes privilegiava a autoficção e sua temática estava mais focada nos dramas internos e no fluxo psicológico do que em grandes acontecimentos ou na narrativa romanesca tradicional. A oposição binária a isso seria a “literatura periférica/marginal” dos artistas das favelas brasileiras, também vindos dos grandes centros urbanos do sudeste e, muitas vezes, produzindo prosa autobiográfica e protagonizada por homens heterossexuais. Exceção feita para a mineira Ana Maria Gonçalves, escritora afro-brasileira, e seu Um defeito de cor (2006), espécie de madrinha espiritual desta geração que escreve “histórias de dimensão épica e sobre um Brasil profundo” como definiu o escritor Krishna Monteiro, ele próprio um autor negro, nascido no interior do Paraná e cujo livro de estreia O que não existe mais (Tordesilhas) foi finalista do Prêmio Jabuti.
Esta premiada literatura “neoregionalista” (título problemático, pois foge da universalidade buscada pelos autores citados e flerta com uma hierarquia de que só se é universal quando central) aparenta romper com os padrões colonialistas e europeus pelos quais a prosa brasileira vinha enveredando. É literatura produzida fora dos grandes centros urbanos, nas regiões de sertão, por membros pouco representados e periféricos da sociedade brasileira (negros, mulheres, pobres, homossexuais e indígenas) e que rejeita a exclusividade do binarismo “periferia urbana – centro urbano”, apresentando uma pluralidade de regiões, sotaques, cores e perspectivas de um país continental. Verunschk reflete sobre isso em entrevista na Revista Pessoa para a escritora Paula Fábrio – ela também vencedora do Prêmio São Paulo de Literatura pelo elogiado Desnorteio (Patuá): “Não somos a Europa. Nossas combinações, arranjos, nossos modos de pensar são inclusivos, não-binários, vertiginosos. O nosso design pode se esforçar pela brancura escandinava, mas somos outra coisa, somos a estátua de murta, de que falava o padre Antonio Vieira em um dos seus sermões. Não podemos ser mármore, porque nasce um broto onde deveria ser um olho, um galho fora de ordem onde deveria ser um braço.”
Quando observamos os premiados romances de Verunschk e Vieira Jr, especificamente, notamos uma identidade brasileira moderna, mas com raízes fincadas nas tradições e particularidades do continente latino-americano, atualizando para o século 21 o legado de artistas de língua portuguesa como Guimarães Rosa, Glauber Rocha, João Cabral de Melo Neto e do luso José Saramago. É marcante também a presença do jarê, religião afro-brasileira, em Torto arado, de Vieira Jr, (cuja última parte é narrada por uma entidade) e da religiosidade popular devota de santos “leigos” em Nossa Teresa: vida e morte de uma santa suicida (Patuá), de Verunschk. Essa espiritualidade mágica remete ao realismo fantástico latino-americano (da qual Verunschk se diz admiradora de Borges e Vieira Jr. de García Marquez), mas parece avançar para uma representação menos exótica e mais genuína, alinhando-se ao perspectivismo ameríndio teorizado por Viveiros de Castro e lido, na prática, no livro A queda do céu (Cia das Letras) do xamã yanomami David Kopenawa, outro grande marco literário decolonialista da década de 2010.
Foi por tudo isso que cravei com gosto a frase: “A literatura brasileira vive seu melhor momento nos últimos 50 anos” no jornal alemão Frankfurter Rundschau e na rádio francesa RF1. Não era só a empolgação caipira de dar entrevistas internacionais divulgando meu romance Desamparo (Reformatório) durante a Feira do Livro de Frankfurt, maior feira literária do mundo, mas uma fé gigante nos livros que ando lendo, nas conversas que ando tendo e na esperança de abrir algum espaço para nós, escritores brasileiros, no disputado mercado europeu. É importante a literatura brasileira ser arejada pelos ventos que sopram no norte-nordeste, nas periferias, nas florestas, nas zonas rurais. É importante que ela seja vista como um corpo múltiplo de peso e não apenas fruto de um ou outro iluminado que rompe os muros ocidentais da Europa e Estados Unidos. Por isso foi um prazer gigante ter feito uma tour literária na Feira de Frankfurt ao lado do meu irmão-escritor Alexandre Ribeiro, autor do best seller das ruas Reservado (Miudeza) e ter trombado, no percurso, com mulheres ativistas e intelectuais maravilhosas como as escritoras afro-brasileiras Waleska Barbosa e Djamila Ribeiro.
Tenho visto literatura excelente sendo escrita por mulheres e homens do sertão, por indígenas, companheirxs da literatura queer, por gente de quebrada, do interior. Livros épicos, romances históricos, prosa-poética, contos experimentais. Quando celebro o novo, faço-o com a consciência de que o novo nem sempre vem dos jovens, mas de artistas experientes que conquistaram seu espaço ao sol com anos de caminhada como as escritoras Maria Valéria Rezende e Conceição Evaristo.
Há “uma revolução literária no hemisfério sul” gritou o diário alemão Frankfurter Rundschau fazendo eco às reportagens do italiano Corriere della Sera e da RFI francesa, onde eu, saído do extremo-oeste paulista, e o ultrajovem Alexandre Ribeiro, nascido e criado na Favela da Torre, nos atrevemos a dar entrevistas. Fiz questão de citar o máximo possível de autores, ativistas e editoras independentes nessas reportagens. É pouco, mas é só a ponta do iceberg da melhor literatura que quem está vivo pode escrever. É por isso que meu mantra segue rezando: leia autores vivos, compre seu livros, adote suas obras nas escolas e cursos. Compre os livros que as editoras independentes publicam. Presenteie seus amigos com livros de autores do seu tempo, adapte suas obras para o cinema. Acredite, há literatura que pulsa no Brasil.
FRED DI GIACOMO ROCHA é escritor e jornalista; autor de Desamparo (Reprodução)
(Publicado originalmente no site da Revista Cult)
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