pub-5238575981085443 CONTEXTO POLÍTICO.
Powered By Blogger

segunda-feira, 20 de agosto de 2018

Crônica: Pernambuco Novo


 Imagem relacionada
 
José Luiz Gomes
 
Em nossas crônicas, não raro, surgem referências à cidade de Paulista, localizada na região metropolitana do Recife, onde nasci. Seria natural que assim o fosse, sobretudo numa fase mais inicial, onde as fontes de inspiração dos candidatos a cronistas estão recheadas de suas reminiscências de infância. Graciliano Ramos é natural de Quebrangulo, mas foi prefeito de Palmeiras dos Índios por 02 anos. Dizem que renunciou. Íntegro e republicano, não deve ter tido estômago para suportar ou pulmões para respirar aquele ambiente tão profundamente comprometido de safadezas e imoralidades. Não é para qualquer um não. Não sei se já informei isso aqui antes aos leitores, mas continuo lendo os livros de crônicas de Graciliano, de um tempo em que ele escrevia para jornais alagoanos. Um outro interesse nesse trabalho, como já observou o escritor Raimundo Carrero, é que o autor de Vidas Secas, nessas crônicas, disseca um pouco sobre o ato de escrever, o que se constitui numa boa aprendizagem para os calouros. De fato, sim, Carrero tem razão. Graciliano nos brinda com boas dicas de escrita naquelas crônicas cotidianas. Na Maceió daqueles tempos - ainda descubro onde eles se reuniam - havia um círculo literário que reunia nomes de peso da literatura nacional, como Jorge Amado, José Lins do Rego, Raquel de Queiroz, além do Velho Graça. Numa prática recorrente entre escritores, não era incomum Graciliano revisar ou criticar os trabalhos dos colegas. E o Velho Graça não perdoava: o engajamento ideológico do Jorge Amado comprometeu o enredo de "Suor"; José Lins perdeu o "controle" dos seus personagens. Por vezes, um pouco de exagero: como uma mulher pode ter escrito O Quinze? Além do mais, ainda tão jovem!

Na crônica de hoje ele fala sobre a cidade que governou por um período de 02 anos, Palmeira dos Índios, localizada na Zona da Mata de Alagoas, nas terras de quilombos. Desta vez não vou aqui fazer comentários sobre a sua gestão, mas sempre costumo enfatizar a nobreza de seu irredutível espírito público. Embora tenha muita coisa a se destacar aqui, essa sua faceta de gestor acaba sendo superada pela sua condição de um dos maiores escritores brasileiros. Nesta crônica, o alagoano parece fazer coro com o antropólogo Roberta DaMatta, quando se refere a importância do carnaval para o brasileiro. O Brasil é um país essencialmente carnavalesco. Os defeitos e virtudes de um país como o Brasil, de alguma forma, acabam se refletindo nas pequenas cidades como Palmeira dos Índios. Não sei se ainda existe essa rua por aquela cidade, mas, na época de Graciliano Ramos existia uma rua denominada Pernambuco Novo. Curiosamente, uma rua de prostituição. 

No texto, o Velho Graça não sugere pistas que nos permitam compreender melhor a situação. No Recife, por exemplo, existia uma Rua da Guia que era famosa pelos pontos de prostituição, mas a isso ocorria circunstancialmente, em razão da proximidade do Porto do Recife. No nome, em particular, nenhuma associação, exceto, talvez, na cabeça dos boêmios do Recife. Ainda ontem, no trabalho, conversava com um colega sobre a cidade de Abreu e Lima, aqui no Recife, uma espécie de Sodoma em décadas passadas. Possivelmente a maior concentração de prostíbulos por metro quadrado do Brasil. Curiosamente, antes que a ira de Deus sugerisse jogar enxofre sobre os seus habitantes, a cidade, aos poucos se transformou num reduto evangélico. Hoje, é a maior densidade evangélica da América Latina. Noutros tempos, ainda curioso sobre o porquê dessa concentração de evangélicos na cidade, descobri que nas décadas de 30/40 aqui em Pernambuco, na vigência do Estado Novo, sob o comando do China Gordo, ou o sujeito era batizado, frequentava as missas todos os domingos e se confessava ao padre ou estava literalmente lascado. Evangélicos e praticantes de cultos de matriz africana eram violentamente perseguidos. Sem possibilidade de pregarem o evangelho no Recife, os crentes se refugiaram na antiga Maricota. A carne é fraca, irmão.  

 

Ao mestre com carinho: Conferência da Saudade e os 40 anos de docência de Durval Muniz

 



O professor e historiador Durval Muniz de Albuquerque Jr. se despede da UFRN na próxima quinta-feira (12) não sem antes dar mais uma de suas concorridas aulas. Ele ministra a Conferência da Saudade, a partir das 18h30, no auditório da Reitoria. A homenagem está sendo organizada pela UFRN e a Ong Resposta.
Durval Muniz celebra em 2018 quatro décadas em sala de aula como professor, quase a metade no curso de história da UFRN. Por meio das redes sociais, ele comunicou semana passada a amigos, alunos, colegas e familiares sobre o pedido de aposentadoria. Ganhou de volta centenas de mensagens de carinho e gratidão. Ainda que se afaste da graduação, Muniz continuará ligado ao curso de pós-graduação, no programa Histórias e Espaços, como professor voluntário e colaborador.
O historiador dará sequência à carreira na Universidade Estadual da Paraíba (UEPB). As aulas serão ministradas na unidade de Guarabira. Paraibano, Durval Muniz estará praticamente em casa. Ele nasceu em Campina Grande e concluiu a graduação em História na própria UEPB. Já o mestrado e o doutorado foram realizados na Unicamp, em Campinas (SP).
Durante as quatro décadas na UFRN, Durval ministrou as disciplinas Teoria da História; História dos Espaços; História e Literatura; e História, Gênero e Sexualidade.
Paralelamente à carreira de pesquisador e professor de História, Durval Muniz publicou centenas de artigos e ensaios científicos em revistas de renome nacional e internacional. E transformou em livros várias de suas teses, frutos de pesquisas na área.
Foram oito livros até agora: História: a arte de inventar o passado – ensaios de teoria da história; Xenofobia: medo e rejeição ao estrangeiro; Nordestino: invenção do ‘falo’: uma história do gênero masculino; A Feira dos Mitos: a fabricação do folclore e da cultura popular; ‘O Morto Vestido para um Ato Inaugural’: procedimentos e práticas dos estudos de folclore e de cultura popular; A Invenção do Nordeste e outras artes; Nos Destinos de Fronteira: história, espaços e identidade regional; Preconceito contra a origem geográfica e de lugar – As fronteiras da discórdia.
Algumas das pesquisas de Durval Muniz transcenderam as obras literárias. Há dois anos, o grupo potiguar Carmim de Teatro levou para os palcos uma adaptação do livro A Invenção do Nordeste e Outras Artes, sob direção de Quitéria Kelly. O espetáculo vem rodando o país e conquistou elogios do público e da crítica.
As pesquisas de Muniz também foram fundamentais para os cineastas Paulo Caldas e Bárbara Cunha, na produção do documentário Saudade. O filme é inspirado no capítulo Espaços de Saudade, do livro A Invenção do Nordeste, e foi transformado numa série de nove capítulos exibida recentemente pelo canal Arte 1.
Aliás, a saudade é o atual tema de pesquisa do historiador.
Crítico da realidade e consciente do momento grave de ruptura democrática no país, Durval Muniz é colunista do portal da agência Saiba Mais desde a fundação do projeto e escreve aos domingos sobre temas de extrema relevância para o Brasil.

(Publicado originalmente no site Saiba Mais, Agência de Reportagem)

Michel Zaidan Filho: A ONU, a justiça brasileira e a prisão de Lula


 
Questionado sobre a eficácia da recente resolução do comitê de Direitos Humanos, da ONU sobre a elegibilidade do Presidente LULA, tenho respondido que a resolução tem dois aspectos distintos, embora interligados:   o   legal e a questão da legitimidade internacional. Isto porque o ministro da Justiça, do governo de temer, alegou que a ONU não devia interferir em assuntos internos no Brasil, em razão da soberania jurídica e política de que goza o país no concerto das nações.

Essa é uma meia verdade. O nosso país é membro da comunidade internacional e signatário dos acordos, tratados e projetos de convenção da ONU. O Brasil, ao contrário de outras nações, tem cumprido rigorosamente todas as decisões da entidade internacional, e no governo de LULA, tornou-se –inclusive – uma “Player” mundial, arbitrando conflitos e ajudando outros países a resolverem suas contendas   externas. A verdade (inteira) é que a nossa ordem política internacional se apoia ainda no Tratado de Westfália, que elegeu os estados-nação como atores privilegiados da comunidade política internacional. O que implica no respeito à sua soberania total e absoluta na aceitação de leis e acordos. Isto significa que os tratados, acordos e projetos de convenção, aprovados nas conferências de cúpula pelo órgão multilateral, precisa da homologação dos parlamentos nacionais para ter eficácia jurídica. A rigor, eles não possuem força vinculante e não são autoaplicáveis. E há países que não os cumpre e desafiam abertamente a organização internacional: EEUUs. E o Estado de Israel. Alegam o direito de autodefesa, inclusive quando violam direitos humanos internacionais. Outros especialistas alegam que não há um regime internacional de direitos humanos, o que permite que determinados países   avoquem a si o direito de polícia do mundo para invadir, destruir e saquear as riquezas de estados menores.

Mas existe um   outro aspecto que deve ser considerado: a questão da legitimidade e da imagem de cada país, externamente. Embora as decisões da ONU nem sempre tenham força vinculante, como as leis internas de cada estado nacional, faz parte do reconhecimento  de cada povo ou nação – no cenário diplomático e comercial do mundo de hoje-  que ele não seja considerado um país fora da lei ou pária, ou seja uma entidade estatal fora do sistema jurídico internacional. Nesta condição, ele pode sofrer embargos e sansões econômicas e comerciais dos demais membros da Organização das Nações Unidas e de suas agências regionais. A questão da prisão e da inelegibilidade de LULA vai além da questão jurídica externa. Ela tem a ver essencialmente com a legitimidade de uma eleição presidencial sem a presença do candidato mais aprovado nas pesquisas de opinião, que não teve ainda seus direitos políticos cassados por nenhum tribunal e cuja condenação ainda não transitou em julgado. A presunção de inocência é um preceito constitucional. Não pode ser atropelado por uma lei ordinária menor. Faz   parte do ordenamento jurídico brasileiro e   pensamento garantista dos nossos melhores juristas (togados ou não).

Ignorar a resolução do Comitê de Direitos Humanos, da ONU, a vontade da maioria do povo brasileiro, o direito à presunção de inocência e a elegibilidade de qualquer candidato lança uma suspeita muito grave sobre o resultado dessas próximas eleições presidenciais e pode custar caro ao país na esfera do  direito internacional.
Michel Zaidan Filho é filósofo, historiador, cientista político, professor titular da Universidade Federal de Pernambuco e coordenador do Núcleo de Estudos Eleitorais, Partidários e da Democracia - NEEPD-UFPE.

 

As coinfissões da carne, a libidinização do sexo e a mamadeira

                                           
Marcia Tiburi

As confissões da carne, a libidinização do sexo e a mamadeira
O filósofo Michel Foucault, 1984 (Arte Andreia Freire | Foto Michele Bancilhon / Reprodução)

Por Alessandro Francisco
Em 8 de fevereiro deste ano, foi publicado, pelas Éditions Gallimard, mais um inédito de Michel Foucault (1926-1984): As confissões da carne (Les aveux de la chair). Trata-se do quarto volume de seu projeto de uma História da sexualidade.
O texto, na versão datilografada, fora depositado na editora no outono de 1982 e, ainda que Foucault tenha falecido em 1984, não fora publicado. Já no depósito, ele advertiu a editora que a publicação não seria imediata, pois havia outro escrito que o devia preceder. Este foi desdobrado em dois volumes – 2 e 3, respectivamente, da mesma História da sexualidade: O uso dos prazeres e O cuidado de si, – publicados em 1984, pouco antes de sua morte. O primeiro volume, A vontade de saber, havia sido publicado em 1976, oito anos antes.
Para o estabelecimento do livro, foi realizado um verdadeiro trabalho de pesquisa. Frédéric Gros, que se dedica ao estudo do pensamento de Michel Foucault ao menos desde seu doutoramento, é o responsável por esta edição. Gros não somente recorreu à versão datilografada do texto, mas também ao manuscrito, depositado na Biblioteca Nacional da França por Daniel Defert – companheiro e um dos herdeiros de Foucault –, em 2014, dois anos após o Ministério da Cultura francês classificar a “obra” de Michel Foucault como Tesouro Nacional.
As confissões da carne, que deve ter em breve uma tradução para a língua portuguesa, abarca a análise de discursos de filósofos dos dois primeiros séculos de nossa era, tais como Sêneca (4 a.C. – 65 d.C.) e Caio Musonio Rufo (25 d.C. – 95 d.C.), passando pelo cristianismo de Clemente de Alexandria (150 d.C. – 215 d.C.) e de Tertuliano (160 d.C. – 220 d.C.), atravessando os discursos de exegetas cristãos como Gregório de Nissa (330 d.C. – 395 d.C.), Basílio de Ancira (ca. 336 d.C. – ca. 362 d.C.) e João Crisóstomo (347 d.C. – 407 d.C.), alcançando, por fim, Agostinho (354 d.C. -430 d.C.).
Em sua análise, Michel Foucault aborda, dentre outros, temas como o matrimônio e as relações entre esposos, em especial a relação sexual; o batismo e toda uma série de procedimentos que o preparavam no âmbito do chamado cristianismo primitivo; a segunda penitência, oferecida aos cristãos como segundo recurso após o batismo; a virgindade; e a concupiscência.
Neste escrito, Foucault nos faz ver, por exemplo, que os problemas que envolviam a prática da virgindade se transferem de um quadro negativo, presente em alguns tratados da Antiguidade, em que ela era concebida como interdição ao ato sexual, para um quadro positivo, em que se faz o elogio da castidade como distinção do “sujeito”, na medida em que sua prática o aproxima do estado paradisíaco. Toda esta discussão perpassa tratados destinados aos monges, que já praticavam a castidade – sequer mencionando a relação sexual ou a dita fornicação – e outros tantos que visavam a difundir a “vida cristã” a toda uma comunidade.
No dito cristianismo primitivo, o matrimônio (relação entre esposos) passa de objeto de recusa a “bem positivo” sobre o qual se deve estar atento e que, portanto, deve obedecer às prescrições de um certo modo de vida cristão, de uma “vida verdadeira”. O matrimônio se torna elemento que requer gestão.
Batismo, prática da virgindade, matrimônio, todos envolviam uma tecnologia, isto é, um conjunto amplo de procedimentos preparatórios, de um lado, e permanentes, de outro. O exame de consciência era um deles: uma contínua vigilância do pensamento que, já nos exegetas dos séculos 3 e 4 d.C., tinha por finalidade fazer o “sujeito” acessar uma verdade interior, os “segredos do coração”, para que fosse purificado.
Não é diferente o caso das chamadas “provas de exorcismo”: para aceder à iluminação se deve extirpar os males – neste caso, os pecados –, sendo a fornicação o pior de todos, pois, conforme a leitura que Foucault faz de diversos tratados dos primeiros séculos de nossa era, ela seria o primeiro dos males na ordem causal. Todos os pecados estariam apoiados na fornicação, pois é ela que enraíza o “sujeito” no mundo terreno.
No que se refere à confissão, são ainda as noções de purificação e de iluminação que estão em jogo. Uma vez realizado um exame da própria consciência, por meio de contínua vigilância dos pensamentos – não basta ocupar-se do corpo, é preciso buscar igualmente a limpeza da alma –, é necessário enunciar as faltas cometidas e aquelas presentes “em ato” na consciência. Sim! Segundo diversos tratados antigos, o pecado reside em ato nos pensamentos, daí ser indispensável um incessante exame de consciência.
A penitência, por sua vez, também é ato de purificação e é evocada, por vezes, não como uma simples prática, mas como uma vida inteiramente penitente. Se o batismo lava e purifica pela água, a penitência não é distinta: o faz pelas lágrimas do “sujeito”. Se, de uma parte, ela requisitava práticas privadas – a penitência tem lugar, por exemplo, a partir da confissão realizada privativamente a um sacerdote –, de outra, exigia a manifestação pública do “estado de pecador” do catecúmeno. Exemplo disso é o rito de andar vestido com um saco e coberto de cinzas, referência à Bíblia (Ester 4,1).
Todos, como vimos, são procedimentos que lavam, purificam o corpo e a alma, conduzem à iluminação e, portanto, a uma relação direta da alma com Deus. Entretanto, ainda na esfera do dito cristianismo primitivo tal como analisado por Foucault, nada se pode fazer sem uma adequada direção de consciência. Toda esta tecnologia – esta coleção de técnicas, portanto – deve se dar no quadro da orientação de um mestre. Esta direção de consciência requer a renúncia total da própria vontade e se funda na obediência global ao mestre-diretor.
É, então, que, nos últimos dois capítulos do texto, Foucault se debruça sobre escritos de Agostinho, na passagem do século 4 para o 5 d.C.. Aí, o problema da concupiscência ganha uma nova configuração. Antes do aparecimento daquilo que Foucault denomina “teoria da libido”, presente no discurso de Agostinho, a atração entre os sexos se dava pela manifestação de um desejo natural que, exercido pelo corpo, confundia a alma e a fazia pesar. A libido – concebida como desejo, vontade, prazer, se considerarmos o complexo composto por seus sentidos antigos – aparece, no exemplo do discurso de João Cassiano (360 d.C. – 435 d.C.), como algo que se desdobra nas profundezas da alma. Assim, pouco antes de Agostinho e em alguns de seus contemporâneos, o problema da libido se organizava no quadro de uma partição alma-corpo: a concupiscência está inscrita na alma e é motivada pelo corpo.
Consideremos ainda que alguns pensadores anteriores a Agostinho defendiam que o ato sexual não era realizado no Paraíso, antes da queda, enquanto, para este, o ato era efetuado, mas sem concupiscência, sem libido. Isto promove a transformação de todo o complexo de ingredientes presentes no discurso ocidental.
No discurso de Agostinho, a libido não aparece mais assentada na distinção alma-corpo, mas fundada no próprio “sujeito”: é somente após a queda que o ato sexual se torna libidinoso. A libido, segundo Agostinho, habita a natureza do próprio homem, o modo como ele faz uso de sua vontade. Ele não deve desejar o que quer a concupiscência que nele reside. O homem surge, assim, no discurso de Agostinho, como “sujeito de desejo”, de modo que sua vontade não se relaciona diretamente com o objeto desejado, mas com o desejo inscrito em seu próprio ser. Segundo esta compreensão, no ato sexual, pode-se buscar a satisfação da concupiscência ou conceber filhos. Destarte, conforme o discurso de Agostinho, a libido estará sempre presente, pois faz parte da natureza decaída do homem. Cabe ao “sujeito” querer o que ela quer ou fazer outro uso de sua vontade.
O escrito póstumo de Michel Foucault é de uma riqueza sem tamanho, trazendo elementos que interessam, dentre outras áreas, à História, à Sociologia, à Antropologia, à Psicologia, ao Direito, à Teologia. Não podemos menosprezar a relevância que os temas abordados suscitarão no campo da prática psicanalítica. Entretanto, devemos destacar que, numa perspectiva dita foucaultiana, seu escrito contribui menos a desenvolver a Psicanálise como prática terapêutica e mais a compreender os ingredientes que tornaram possível o aparecimento do discurso psicanalítico. Estaria a psicanálise, ainda hoje, devotada a analisar um certo sujeito cuja emergência se faz ver, até certo ponto, já na passagem entre os séculos 4 e 5 de nossa era?
No que compete à filosofia, o texto aporta muitos elementos. Mormente no quadro dos problemas que envolvem as relações entre a subjetividade e a verdade. Os inúmeros procedimentos de purificação-iluminação presentes no chamado cristianismo primitivo não somente permitem ao “sujeito” uma relação com Deus, e, portanto, um certo modo de relação com a verdade divina, mas também o acesso à sua própria verdade, incrustada – segundo os discursos dos primeiros séculos de nossa era – em nossos pensamentos. É preciso vigiar os pensamentos, extirpar os males, purificar-se pelas águas do batismo e das lágrimas, confessar a verdade mais secreta àquele que dirige nossa consciência, para alcançar a mais íntima e própria verdade de si. Triste percurso trilhado pela história da experiência da subjetividade ocidental, cujos resquícios ainda ressoam aqui e ali em nossos saberes e em nossas práticas.
Por fim, para atenuar esta discussão um tanto quanto densa, não sem recorrer à tradição penitencial em que os cristãos se cobriam de cinzas – é preciso lembrar que estas permanecem presentes na chamada Quarta-feira de cinzas –, partilho, aqui, uma curiosidade. Em julho de 1977, as mesmas cinzas foram evocadas ao final de uma sessão organizada por normalistas – como são chamados os estudantes da École Normale Supérieure de Paris –, com a presença de Michel Foucault. A reunião reservada – publicada em forma de texto originalmente num boletim freudiano francês e posteriormente na série que reúne alguns ditos e escritos de Michel Foucault – tinha por objetivo discutir o primeiro volume da História da sexualidade, publicado um ano antes. Na ocasião, um dos normalistas era o querido amigo e mestre Alain Grosrichard – atualmente Professor Emérito da Universidade de Genebra, onde sucedeu Jean Starobinski –, que recordou a citada reunião ainda em março deste ano quando estivemos juntos.
Na época, próximo de Foucault e conhecendo seu senso humor, Alain Grosrichard não perdeu a oportunidade de lançar a isca: em meio a uma discussão sobre o desenvolvimento de métodos contraceptivos no século 18, ele diz “É a época em que se inventa a mamadeira moderna”. Foucault exclama: “Não conheço a data”. E Grosrichard, por seu turno, assevera: “1786”, indicando seu inventor italiano e a tradução francesa do texto. Num clima de companheirismo entre normalistas, Foucault arremata “Renuncio a todas as minhas funções públicas e privadas! A vergonha se abate sobre mim! Cubro-me de cinzas! [grifo nosso] Eu não sabia a data da mamadeira!”. E a sessão se encerra numa sinfonia de risos.

Alessandro Francisco é doutor em Filosofia pela PUC-SP e pela Université Paris 8, é professor dos cursos de Pós-Graduação Lato Sensu do UNIFAI e pesquisador associado à Université Paris 8 e à École Normale Supérieure de Paris, em nível de Pós-Doutorado.

(Publicado originalmente no site da Revista Cult)

Charge! Folha de São Paulo

https://f.i.uol.com.br/fotografia/2018/08/19/15347298775b7a1e95cfe06_1534729877_3x2_th.jpg

Charge! Jean Galvão via Folha de São Paulo

https://f.i.uol.com.br/fotografia/2018/08/18/15346170805b7865f8ec4a4_1534617080_3x2_th.jpg

quarta-feira, 15 de agosto de 2018

Michel Zaidan Filho: Retórica, jogos de linguagem e sofística

                

 
A ciência moderna da Retórica foi profundamente influenciada pela suspeita metódica, do filósofo Frederico Nietzsche, em relação ao conhecimento humano. Num curto ensaio intitulado: “A verdade e a mentira no sentido extramoral”, Nietzsche lança as bases do neo-nominalismo na ciência, na filosofia e na religião. Segundo ele, o pensamento é uma patologia humana, uma espécie de racionalização do complexo dos homens em relação às demais criaturas do universo. Pensa-se para justificar a pobreza cósmica e filosófica da humanidade. Sobretudo, a sua solidão metafísica. O pensamento seria uma espécie de doença responsável pelo sentimento de angústia e desamparo humanos diante da grandeza do mundo.

Neste ponto, os conceitos, as ideias gerais, os princípios éticos e gnosiológicos não passariam de meras “efígies” das coisas, sem correspondência nenhuma com elas. Um tal pensamento levaria a um relativismo ético desesperador, no sentido de que todas as assertivas morais e deontológicas não passariam de uma racionalização da vontade de poder, ou de potência – como dizemos nietzschianos. Daí a moral do mais forte, do vencedor. E o cinismo reinante quanto às razões dos vencidos, dos dominados.

Sob a influência da chamada crise da razão ou do mal-estar na modernidade, esse relativismo ético se tornaria mais robusto com a pós-modernidade e os pensadores pós-modernos, muitos de inspiração neo-nietzschiana (Foucault, Deleuze, Guatarri, Lancan).E a principal influência viria da chamada “virada linguística” patrocinada por Ludwig Wittgestein e, sobretudo, o segundo Wittgstein, o da crítica à representação e dos jogos de linguagem. Segundo nosso filósofo da linguagem, o nosso pensamento não pode ser concebido de uma perspectiva representacional e a correspondência biunívoca entre ser e linguagem seria apenas um dos jogos ou função da linguagem.

Essa crítica exerceu uma enorme influência sobre a ética, o direito e a ciência, relativizando as pretensões de validade do discurso científico, jurídico ou filosóficos. O que levou a elaboração de outras éticas (Opel, Habermas, Deleuze), éticas relacionais, discursivas ou pragmáticas. No caso do Direito, houve um grande avanço dos estudos retóricos, com sua repartição entre a retórica material, a retórica pragmática e a retórica analítica, conjugada à semiótica o estudo do signo jurídico – na relação entre sujeitos (agontica), entre sujeitos e coisas (ergontica) a relação entre o sujeito e os sinais (pitaneutica). O estudo da filosofia do Direito, a partir da retórica e da semiologia jurídica levou ao que se pode chamar de uma semiurgia, de um mundo feito a partir da linguagem, dos signos jurídicos. É quando o mundo das normas, dos fatos e das vivências se esfuma e se torna mero discurso.

As consequências dessa virada linguística, responsável pela supervalorização da retórica na ciência do Direito teria imediatas consequências políticas e éticas. Ao não reconhecer mais as pretensões de validade normativa, estética ou gnosiológica das assertivas filosóficas, o filósofo se torna, não um retórico (no sentido aristotélico da palavra), mas um sofista, que aluga ou vende o seu discurso ou seu saber filosófico a quem pode pagar por ele. Daí a justificação de golpes, estados de exceção, doutrinas decisionistas ou autoritárias, torna-se possível em função de uma razão retórica que, as vezes, resvala para o cinismo ou o puro e simples casuísmo.

Essas considerações talvez fossem ociosas e especulativas se essa orientação não estivesse, hoje, nos cursos de Pós-graduação em Direito, nos cursos de Bacharelado em Direito, nas estantes das bibliotecas e livrarias de Direito e nas colunas de jornais e espaços de debate, justificando a recente ruptura institucional que o país sofreu, a serviço de interesses privados. Estaria aí, quem sabe, a razão de uma distinção formulada, a pouco por um doutorando, em tese sobre os cursos de Direito do estado de Pernambuco, entre filósofos do Direito e sofistas, não retóricos. Os primeiros pensam, refletem e criam; os segundos vendem seu cabedal filosófico a quem pode pagar regiamente por ele.

Sei que com essas palavras, serei tratado como “tacanho”, “mesquinho” e “ultrapassado”. Mas já está na hora de abrir o debate amplo, aberto e desassombrado sobre a relação Filosofia do Direito, Retórica e Sofística. E que cada um assuma as consequências de seus atos retóricos.
 
Michel Zaidan Filho é filósofo, historiador, cientista político, professor titular da Universidade Federal de Pernambuco e coordenador do Núcleo de Estudos Eleitorais, Partidários e da Democracia.
 

Charge! Jean Galvão via Folha de São Paulo

https://f.i.uol.com.br/fotografia/2018/08/11/15340254105b6f5ec2f3e98_1534025410_16x9_th.jpg

sexta-feira, 10 de agosto de 2018

Brasil usa rituais islâmicos para matar frangos, mas pode proibir abate religioso de matriz africana.




Juliana Gonçalves

É na Corte, sob a proteção de um crucifixo no plenário, que os ministros do Supremo Tribunal Federal vão decidir nesta quinta-feira se garantir a preservação dos ritos das religiões de matriz africana com uso de animais é constitucional ou não. No país em que setores do agronegócio lucram com o abate religioso seguindo os preceitos islâmicos (halal) e judaicos (kosher), uma ação do Ministério Público gaúcho contesta que assegurar liturgias das religiões afro-brasileiras é conceder “privilégio”.
Em 2003, o Rio Grande do Sul, um dos estados com mais terreiros no Brasil, criou uma lei de proteção animal que poderia tornar ilegal o abate religioso. No ano seguinte, uma outra lei foi criada para acrescentar ao código de proteção um parágrafo que cria uma excepcionalidade para os ritos e liturgias das religiões de matriz africana. O remendo foi uma garantia ao cumprimento do parágrafo V da Constituição Federal que prevê a liberdade de crença e cultos religiosos. No entanto, o MP entrou com o recurso por entender que a reforma no código viola a laicidade do estado por não citar outras religiões que também praticam o abate religioso com as bênçãos do agronegócio.
O Brasil é o maior exportador de carne bovina e de frango do mundo e se especializou no abate seguindo os preceitos religiosos que compram essa carne. Hoje, 90% dos frigoríficos são habilitados para o abate halal e é líder na exportação – quando o abate é feito por um muçulmano que recita dizeres da religião e o animal está posicionado para meca. Em dois anos, o mercado brasileiro deve exportar 60% mais carne halal ao passar a vender para a Indonésia. Hoje, as empresas brasileiras atendem 22 países de cultura islâmica, um total de 2 milhões de toneladas de carne por ano. O país também faz abates seguindo os preceitos do judaísmo, mas em uma escala muito menor, já que a exportação acontece apenas para Israel. Ou seja, legitima o abate religioso dentro dos preceitos islâmicos e judaicos nos frigoríficos e criminaliza o abate nos terreiros.
“Tendo em vista que somos o país que mais exporta carne sacralizada das américas e que tem frigoríficos adaptados para o abate religioso, a ação é mais uma tentativa de criminalizar as práticas religiosas afro-brasileiras”, afirma o Roger Cipó, Ogan Alagbe e membro da Comissão afro-religiosa Òkàn Dimó, que está na organização da marcha contra a intolerância e o racismo religioso que acontece nesta quarta em São Paulo.
‘Os defensores de animais focam nas religiões afro-brasileiras o que eles entendem como maltrato. Se fossem a um abatedouro de frango não estariam brigando com os religiosos.’
O movimento que começou no Rio Grande do Sul abriu espaço para que outras cidades também tentassem proibir o abate religioso nas religiões de matriz-africana, mesmo que nestes locais houvessem frigoríficos praticando o abate halal ou kosher – como foi o caso de Cotia, em São Paulo. O uso de animais com finalidade “mística, iniciática, esotérica ou religiosa” tornou-se passível de multa na cidade. O caso foi julgado pelo Tribunal de Justiça de São Paulo, que entendeu que a lei 1.960/2016 é inconstitucional e o que prevalece é a liberdade de culto. A cidade de Valinhos, também no interior paulista, aprovou uma legislação semelhante.
“Existe uma orquestração, eu já perdi a conta das vezes que saí de São Paulo para o interior para tratar de leis que querem proibir o abate religioso na umbanda e no candomblé nos últimos dez anos”, diz o advogado Jáder Freire de Macedo. Ele representa as religiões de matriz-africana no STF ao lado de Hédio Silva Júnior e Antônio Basílio Filho.”Foram várias reuniões da Comissão de Direito e Liberdade Religiosa da OAB para explicar a vereadores que leis desse tipo rompem com a liberdade de culto que é garantida na Constituição. Eu posso listar mais de 30 leis como essas”, diz.
Para Macedo, o que está sendo julgado não é a proteção animal e sim o cerceamento à liberdade religiosa. “Os defensores de animais que acabam focalizando nas religiões afro-brasileiras o que eles entendem como maltrato. Se qualquer um deles fosse a um abatedouro de frango eles não estariam brigando com os religiosos”, completa.
De acordo com a Lei de Proteção Animal, o mau-trato é caracterizado pela morte lenta, com um sofrimento prolongado. O método utilizado no abate religioso é o da degola, catalogada pelo Ministério da Agricultura como método humanitário. Nas religiões afro-brasileiras, o abate acontece durante o ritual, para tornar o alimento sagrado. Os animais são abençoados pela força dos orixás e parte da comida é repartida entre a comunidade do terreiro para que as pessoas se alimentem da sua fé – algo semelhante ao que acontece nas religiões islâmica e judaica.
“No abate religioso, o animal não sofre maus-tratos. Nós sacralizamos o animal, e depois ele é consumido como alimento. A gente não faz sacrifício, quem sacrifica é a Friboi”, afirmou o babalorixá Ivanir de Santos, que é interlocutor da Comissão de Combate à Intolerância Religiosa do Rio de Janeiro em entrevista ao Intercept em 2017.
Ações que visam proibir práticas de Umbanda e do Candomblé são um braço do racismo. O movimento tenta apagar as tradições do povo de terreiro e não está de fato preocupado com a proteção animal, uma vez que não questiona as outras formas de abate religioso. O recurso extraordinário no STF eleva a questão a nível nacional e passa a ser um marco na luta contra o racismo.

“Estamos falando em racismo religioso porque entendemos que a violência contra as religiões de matriz africana não se dá no mesmo contexto da intolerância a outras religiões”, explica Roger Cipó ao lembrar que o fato de se tratarem de religiões majoritariamente negras potencializa os ataques.

(Publicado originalmente no site Intercept Brasil)

Crônica: O Moleque Ricardo em Paulista

 
 
Resultado de imagem para o moleque ricardo
 
José Luiz Gomes
 
 
 
Em todos os estudos que li sobre a obra do escritor paraibano José Lins do Rego, O Moleque Ricardo sempre ocupou um papel relevante. Mesmo entre aqueles estudos onde, a princípio, o livro não seria elencado como objeto. Eis aqui mais uma evidência de sua importância na obra de José Lins do Rego. O Moleque Ricardo integra aqueles livros do chamado ciclo da cana-de-açúcar do escritor. Embora os livros dessa fase sejam apresentados como os mais importantes do escritor, sobretudo entre os críticos literários, parece existir um consenso de que ainda não seriam os escritos de sua maturidade como escritor, justamente em razão do seu caráter acentuadamente memorialista. Livros de fases seguintes, que não alcançaram o mesmo êxito dos livros escritos sobre o ciclo econômico da produção da cana-de-açúcar na região, do ponto de vista da crítica literária, ocupariam um status mais elevado, em razão de o escritor estar mais "solto" das amarras memorialistas do apogeu dos engenhos no Nordeste brasileiro. 

Na realidade, José Lins do Rego era uma espécie de "homo literatus" de Gilberto Freyre, na perspectiva de consolidação de seu regionalismo. Ambos se conheceram logo após a formatura de José Lins do Rego em Direito, aqui na Faculdade de Direito do Recife, e se tornariam amigos íntimos. Embora já, de certa forma, iniciado no jornalismo e na literatura, José Lins confessa uma mudança radical em sua vida depois de conhecer o sociólogo Gilberto Freyre. Há, nas entrelinhas dessa confissão, claros indícios dos rumos literários que ele tomaria a partir de então. Menino de Engenho é de 1932 e Casa Grande & Senzala de 1933. Enquanto Gilberto Freyre se dedicou ao ensaísmo histórico, José Lins enveredou pela tarefa de "romancear" o ciclo da cana-de-açúcar na região, claro, sob os auspícios do mestre de Apipucos. Um fiel escudeiro. Gilberto Freyre ficou bastante abatido com a sua morte, ainda jovem, com pouco mais de 55 anos de idade. Uma carta de despedida que ele escreveu a este respeito é de partir os corações mais sensíveis. 

Nos dois trabalhos acadêmicos que li recentemente envolvendo a obra do escritor - um deles escrito por Gladson de Oliveira Santos, "José Lins e a modernização da economia açucareira"; o outro de Carla de Fátima Cordeiro, "Pelos olhos de um menino. Os personagens negros na obra de José Lins do Rego" - embora em abordagens distintas, lá estava O Moleque Ricardo. Ricardo era íntimo de Carlinhos nas peripécias da bagaceira. Certamente, teria mais habilidades para essas estripulias, assim como ocorria com todos os moleques da senzala, que faziam tudo melhor do que os filhos da Casa Grande dos engenhos. Ricardo era um moleque especial. Diferente dos outros meninos da bagaceira, sabia ler, graças aos esforços de sua mãe. Eis que, num determinado momento - não lembro qual a motivação - ele resolve deixar o engenho Santa Rosa e vir para a cidade do Recife. Se quisermos aqui uma "essência" do texto O Moleque Ricardo, ela está na narrativa discursiva sobre a vida nos engenhos de cana-de-açúcar em contraposição à vida na cidade. Há uma dissertação de mestrado que trata exatamente sobre este assunto. Essa vida urbana proporcionada pela açucarocracia nordestina aos seus rebentos, aliás, irá se constituir num tema dos mais importantes quando se considera, por exemplo, a fase de decadência dos engenhos, uma vez que "enebriados" pela vida nas grandes cidades, os herdeiros se desinteressavam em tocar os negócios dos seus antepassados. 

José Lins, por exemplo, tornou-se um homem de boemia e literatura. Terminou o curso de Direito com um "simplesmente", ou seja, a nota mínima exigida para a aprovação. Um dos piores momentos sua vida, foi quando exerceu um cargo de promotor numa cidade mineira, emprego conseguido por um parente. Em vários momentos de suas obras, fica claro a sua absoluta inapetência para a vida no eito, em substituição ao coronel José Paulino, cuja decadência ele apenas acompanha, de preferência deitado numa rede, lendo o Diário de Pernambuco. Não esconde, igualmente, sua inabilidade para as letras jurídicas. No Menino de Engenho, há relatos de sua volta ao Santa Rosa, onde uma tia sua insistia em perguntar-lhes, nas horas da refeição: Já pegou alguma causa, Carlinhos?

Aqui no Recife, Ricardo acabou por cometer alguns delitos e cumpriu pena em Fernando de Noronha. Mas, o mais interessante nessa história é que descobrimos algo curioso. Há uma possibilidade concreta - a partir do próprio texto - de Ricardo ter trabalhado na Companhia de Tecidos Paulista, aqui na cidade de Paulista, que pertencia à família Lundgren. Desta vez não se trata de ficção, mas de um relato fidedigno aos fatos. Quando voltou ao Engenho Santa Rosa - já de fogo morto e em franca decadência, em razão da chegada das usinas - Ricardo iria acompanhar os lamentos de Gilberto Freyre e José Lins do Rego pelo fim de um ciclo, o ciclo dos engenhos, da bagaceira, das safadezas com as mulatas, das licenciosidades entre senhores e escravos. A pesquisadora Carla de Fátima lembra, por exemplo, que em nenhum momento da obra de José Lins do Rego ele usa a palavra "prostituta", mas ela entende que mulata teria o mesmo significado. Numa época em que o cajado ainda funcionava, o coronel José Paulino mantinha umas quatro. Na realidade, era disso que eles sentiam saudades. 

 O Moleque Ricardo é o quarto volume dos romances que integram o chamado ciclo da cana-de-açúcar do escritor José Lins do Rego. Os anteriores são, pela ordem, Menino de Engenho, Doidinho, Banguê. Usina e Fogo Morto, apesar da remissão inevitável, não integram este ciclo. Logo após a publicação dessa crônica, comecei a ler uma dissertação de mestrado sobre o livro, cujo autor tentava fazer um link entre geografia e literatura a partir da obra do escritor paraibano. Talvez em nenhum outro texto de José Lins do Rego fique tão evidente essa relação entre campo e cidade quanto em O Moleque Ricardo. Aliás, o percurso recifense de Ricardo aqui na capital pernambucana, na realidade, é o mesmo percurso do escritor paraibano, que aqui se instalou para estudar Direito, depois de uma ligeira passagem pelo Ginásio Pernambucano.
 
Lá estão o Rio Capibaribe com suas pontes, a Rua da Aurora, o Pátio do Carmo, a Avenida Encruzilhada, os bairros alagados, com seus mocambos e palafitas. Possivelmente em função da influência de Gilberto Freyre, José Lins do Rego irá desenvolver uma relação muito sentimental em relação a essas edificações construídas pela população pobre do Recife. O encontro entre ambos ocorreu logo após a formatura de José Lins na Faculdade de Direito do Recife, como já enfatizamos. Três nomes foram determinantes na sua formação de escritor: José Américo de Almeida, Olívio Montenegro e Gilberto Freyre. Mas, como ele mesmo confessa, nenhum deles foi mais importante do que Gilberto Freyre, que exerceu o papel de mentor literário do jovem escritor paraibano, indicando a ele os livros certos para a sua formação literária, além do seu "capital simbólico", obtido em centros acadêmicos e nas viagens realizadas pelo exterior. Gilberto foi o homem responsável por sua "conversão" num ilustre homem de letras do seu regionalismo. 


Charge! Benett via Folha de São Paulo

https://f.i.uol.com.br/fotografia/2018/08/08/15337743975b6b8a3da421a_1533774397_16x9_th.jpg

segunda-feira, 6 de agosto de 2018

Ou Lula ou nada

                                         
Wilson Gomes

Ou Lula ou nada
Acordo com PSB mostra que o que importa a Lula é a hegemonia na esquerda brasileira (Foto: Mauro Pimentel / AFP)

Semana politicamente animada esta, principalmente por conta das sabatinas eleitorais dos canais de televisão com alguns dos principais candidatos e pré-candidatos à presidência. A atenção dos interessados em política esteve, na maior parte dos dias, justamente concentrada em ver como se saíam os candidatos ante o jornalismo de emboscadas e pegadinhas em que se tornaram essas entrevistas presidenciais. Eu mesmo, já estava preparando uma coluna sobre como Bolsonaro se portou na arena do Roda Viva, objeto das mais variadas avaliações, quando, para mostrar que política não é só discurso e imagens, Lula e o PT completam uma trama política, que vinha há muito sendo urdida silenciosamente, e que culmina com um surpreendente acordo entre o PT e o PSB. Surpreende, antes de tudo, porque é um acordo em que um partido não entrega ao outro nada daquilo que se poderia esperar de alianças para se eleger ou para governar, como tempo de televisão ou cargos em uma chapa comum. Mas surpreende também por causa das suas consequências sobre candidaturas que, na prática, já estavam postas e nas ruas, e porque foi um movimento importante no xadrez eleitoral para a eleição presidencial de 2018, isolando Ciro Gomes à esquerda, logo depois que o convênio entre o PSDB e o assim chamado “centrão” (na verdade, a direita fisiológica) impediu que o pedetista expandisse para a centro-direita.
Concretamente, o movimento consistiu em dobrar as alianças partidárias dos candidatos do PT nos estados ao projeto nacional do partido que, segundo a sua Executiva Nacional, tem que ser em torno da candidatura de Lula, razão e centro de tudo. O que significou, em primeiro lugar, o sacrifício de algumas candidaturas de petistas aos governos de estados em troca de igual sacrifício de candidatos do PSB. Os exemplos mais notados foram a saída de Marília Arraes em Pernambuco, em favor de Paulo Câmara, versus o sacrifício de Márcio Lacerda em Minas Gerais, em favor de Pimentel. A entrega da cabeça de Marília Arraes foi, além de notável, clamoroso, pois não apenas se trata da única novidade política eleitoralmente importante do PT nestes tempos bicudos para o partido, como é fato que o governador Paulo Câmara foi um dos grandes articuladores da posição dominantemente antipetista do PSB quando do impeachment de Dilma Rousseff, inclusive liberando secretários para ir votar contra ela em Brasília.
Lacerda estrilou em uma veemente Carta aos Mineiros, decretando a sua “indignação, perplexidade, revolta e desprezo” com este acordo nacional. E garantiu que vai continuar na estrada. A militância de Arraes em Pernambuco não fez por menos e já inundou a “live” de Gleisi Hoffmann, nesta quinta-feira, na saída da visita a Lula na prisão, com gritos de apoio à sua candidata, além de ter iniciado em redes sociais digitais a campanha de que “eleição sem Marília é golpe”. Encantada por Lula, Marília Arraes vê em tudo isso uma chantagem do PSB pernambucano, que sequer consegue entregar uma aliança nacional e pediu a sua cabeça em troca de uma mera “neutralidade” eleitoral do partido. E prometeu resistir. Rebeliões à parte, até agora o martelo está batido. E quem o bateu foi Lula.
Em segundo lugar, o acordo garante que o PSB, o maior partido de centro-esquerda depois do PT, desista de uma possível aliança com Ciro Gomes. Tudo o que o PT recebeu efetivamente no acordo, para além da óbvia troca de cabeças, foi impedir que Ciro tenha acesso ao cobiçado tempo de televisão do PSB. É isso, afinal, o que a “neutralidade” do PSB pode significar. Desse modo, o candidato do PDT está isolado na sua tentativa de formar uma aliança de centro-esquerda em que ele, Ciro, esteja na cabeça da chapa. Sonho cultivado, inclusive, por algumas estrelas cintilantes do PT e por muitos intelectuais de esquerda, e para o qual Lula, como se vê, acaba de fechar as portas.
Para os seus militantes, o Partido dos Trabalhadores diz que tudo faz parte da construção de uma grande articulação de centro-esquerda que consiste em, conforme disse Gleisi Hoffmann na referida “live”, “resgatar uma aliança progressista e popular que é necessária para enfrentar o golpe”. É centro-esquerda, segundo ela, mas também inclui o PROS, que não poderia ter mais DNA e odor de “centrão”, e o PCdoB que, se definição programática ainda vale, é um partido bem à esquerda e nada de centro. Na verdade, é indisfarçável até para o lulista tatuado que se trata de mera luta concorrencial na esquerda para impedir que Ciro ocupe uma posição tão forte que possa ameaçar a hegemonia do PT.
Ultimamente, os brasileiros se autoconvenceram de que política é basicamente composta de narrativas, princípios e valores. Os lulistas vinham alimentando as narrativas heroicas de Lula no cárcere fascista e a contraposição épica entre as forças sombrias do golpe e o “campo popular”. Por trás das narrativas, cristalizaram-se convicções indiscutíveis, dogmas mesmo, sobre a eleição de 2018, agora que o PT não se via mais como um partido pragmático que aceitava alianças a torto e à direita (com o perdão do trocadilho), mas um partido de princípios. Eu os sintetizei como os três dogmas do petismo pós-pragmático e são eles:

  1. Lula tem algo entre 15-30% dos votos para presidente e transfere, no mínimo,15% para o seu ungido, não importa quem ele seja nem em que momento a unção aconteça. Juntando-se os 15% de Lula com mais uns caraminguás que a pessoa conseguir, o ungido estará certamente no segundo turno.
  2. O PT é o mar em que todos os rios da esquerda devem desaguar. O contrário é uma impossibilidade ontológica. O destino do PT é ser apoiado, não apoiar. E quem quiser o apoio de Lula e do PT deve dobrar os joelhos, penitente, e repetir, compungido, 300 vezes, “foi golpe” e “Lula é preso político”.
  3. O PT é mais importante que a esquerda e o destino de Lula é mais importante que o PT. Como Lula está sofrendo uma injustiça que clama aos céus, fiat iustitia (ad Lulam), et pereat mundus. Aliás, o mundo já pereceu e a democracia já acabou, de modo tal que a única forma de que sejam restaurados é dando a Lula uma chance leal de ser reconduzido à presidência nos braços do povo.
     
Meus amigos petistas punham-se em fúria quando eu repetia isso. Mas eis que, em um só movimento, Lula comprova tudo. De uma só vez, Lula esquece as mágoas do PSB (que entregou Dilma Rousseff ao impeachment e teria tido número para salvá-la, se quisesse) e sacrifica aliados e a autonomia partidária nos estados, tudo para assegurar o seu objetivo maior, que consiste em impedir que Ciro Gomes seja o candidato da centro-esquerda nas eleições de 2018. E isso tudo quando já é claro, até para os mais ingênuos ou mais esperançosos, que não se permitirá que Lula esteja na cédula eleitoral em outubro. Não é, portanto, para garantir o lugar de Lula na competição, mas para impedir que Ciro possa ter este lugar.
Diferentemente da militância que aderia a certas narrativas até ontem, Lula parece não se importar em perder eventualmente a eleição para a direita ou a extrema-direita, o que se torna uma possibilidade ainda mais plausível, ou em perder o argumento de que o PT é um bom sujeito traído pelos amigos e enganado pelas más companhias, que os petistas adoram. A única coisa que realmente lhe importa seria perder a hegemonia na esquerda brasileira. Está definitivamente implantado o lulo-nihilismo, que entrará para as enciclopédias de política com a seguinte definição: Diz-se da posição política, surgida em meados de 2018, cuja bandeira era “ou Lula ou nada”. Do ponto de vista afirmativo, consistia em uma convicção de que a eleição só seria legítima e justa se a candidatura de Lula fosse reconhecida pela autoridade eleitoral, enquanto, por outro lado, firmava a compreensão de que a candidatura de Lula era mais importante: a) do que as chances eleitorais do PT ou da esquerda; b) as eleições; c) o futuro governo do país nos próximos 4 anos. Por um tempo até, houve ainda espaço para um nihilismo retórico e estratégico, que significava que o PT se agarrava taticamente ao nome de Lula, negando haver plano B, até que não houvesse outra alternativa a não ser indicar um “representante de Lula”, um Lula substitutivo, para constar n célula eleitoral, mas com chances de ganhar a eleição. Parece que até esse nihilismo mais moderado, retórico, foi vetado esta semana. Agora é ou Lula ou Lula.
Para o militante, política é narrativa, é épica, é luta do bem contra o mal, é protagonista enfrentando antagonista. Para os políticos, política é narrativa, sim, mas só quando lhes convém, quando precisam convencer corações e mentes. A maior parte do jogo, entretanto, passa longe disso, nos bastidores, nas articulações e negociações, no xadrez dos arranjos e jeitinhos. Quando as negociações e as narrativas convergem, é perfeito e todo mundo fica feliz, ativistas e articuladores. Mas quando colidem, como agora, que se danem as dramaturgias, as imagens, as lindas palavras de ordem. Os militantes, então, que se virem para arrumar um novo enredo, novos papéis, novas falas, novos desfechos capazes de dar conta da nova situação, imposta pelos fatos e pelas vontades.

(Publicado originalmente no site da Revista Cult)

domingo, 5 de agosto de 2018

Crônica: 433 anos de Jampa

 
 
 
Imagem relacionada
 
José Luiz Gomes
 
 
Neste sábado João Pessoa está em festa. A capital do Estado da Paraíba comemora 433 anos e homenageia a padroeira da cidade, Nossa Senhora das Neves. O evento reúne atrações profanas e religiosas, devidamente divulgadas pela prefeitura, que tratou também de desviar o trânsito, interditar algumas vias, tudo no sentido de assegurar o bom andamento do evento. O comendador Arnaldo já avisou que daremos uma pausa nas visitas durante o Festival Caminhos do Frio, na região do Brejo Paraibano, para prestigiar o evento de Jampa. Arnaldo é um grande saudosista desta festa. Conhece-a muito bem, desde os tempos de suas Bagaceiras de estudante em João Pessoa. Não curte mais a festa como fazia em outros tempos, mas, como bom católico, não deixa de prestigiar a festa da padroeira. 
 
Segundo ele houve um processo de grande descaracterização do evento. Foram abolidos não apenas percursos, mas atividades importantes. Como ele enfatiza, a festa das Neves sem a Bagaceira não é festa das Neves. Popular mesmo era aquela festa das Neves que envolvia a gente humilde dos bairros periféricos da capital, como o Baixo Roger. É como se a festa das Neves tivesse ganhado ares de festa de rico, ou, em última análise, de gente de classe média. Ele mesmo conta que chegava logo cedo, ficava em bodegas conhecidas, com seus amigos da confraria de outrora. Enchia a cara e se entregava aos pecados mais profanos. Quando criança, cumpria uma rotina, sempre acompanhado de sua avó, uma devota fervorosa.
 
Essas mudanças ocorreram depois que um arcebispo ultraconservador assumiu a Diocese. O clérigo chegou a apoiar o golpe que afastou a ex-presidente Dilma Rousseff(PT) da Presidência da República. Durante a sua gestão, introduziu as mudanças que contribuíram para acabar com o que havia de melhor na festa, de acordo com o comendador. Um preconceito contra pobres, cornos e mulheres infiéis. Havia uma famosa buchada de Dona Zilda que, de tão gostosa, atraía de carroceiros às moçoilas intelectualizadas. O mais gostoso mesmo, segundo Arnaldo, era entupir a bexiga de cerveja e mijar na Ladeira da Borborema, que ficava exalando aquele odor característico durante dias.

sexta-feira, 3 de agosto de 2018

Crônica: Vilas Operárias

Imagem relacionada
 
José Luiz Gomes
 

Entender a concepção, organização e dinâmica das chamadas vilas operárias e núcleos fabris -  este último para identificar os assentamentos de operários mais afastados dos perímetros urbanos - sempre esteve entre as nossas preocupações. Desenvolvo vários projetos sobre o assunto, alguns deles já devidamente concluídos, aguardando a oportunidade de uma maior divulgação. Como as relações entre patrões e operários, nas fábricas, envolvem ralação de controle e disciplina, não é incomum encontrarmos o filósofo Michel Foucault em todos os estudos sobre o assunto. Ele aparece no trabalho de Telma de Barros Correia, Pedra, Plano e Cotidiano Operário no Sertão, assim como no trabalho de José Sérgio Lopes Leite, que estudou a vila operária mantida pela Companhia de Tecidos, localizada no município de Paulista, na região metropolitana do Recife.

Na realidade, como observa Telma de Barros Correia, as vilas operárias não são um fenômeno tipicamente brasileira ou latino americano. Elas também foram comuns nos Estados Unidos e no continente europeu. Há, igualmente, uma tendência de associá-las à indústria têxtil, o que se traduz, igualmente, num equívoco. Outras atividades produtivas também ergueram suas vilas operárias, como ferrovias e usinas, por exemplo, além de outros ramos industriais. Em todos os casos, sempre na mesma perspectiva de controle e disciplinamento da vida e das atitudes dos operários. Isso se tornava perceptível até mesmo na distribuição geográfica e na arquitetura das construções, que permitiam a vigilância constante do capitão da indústria ou dos seus vassalos. Em Paulista, por exemplo, existiam milícias armadas, não institucionalizadas,  para manter a “ordem social”.  

O inglês Robert Owen promoveu uma discreta ação de eliminação das circunstâncias que julgava corruptoras em New Lanark - afastando do local, por exemplo, pubs e mercearias - ao passo que Delmiro Gouveia adotou a prática de inspecionar as ruas de Pedra diariamente, distribuindo recriminações e multas àqueles que considerava estarem agindo irregularmente. No controle do desempenho operário no trabalho, Owen criou o monitor silencioso - um pedaço de madeira mantido junto ao trabalhador, pintado com cores diferentes conforme seu desempenho no dia anterior -, já Delmiro, ao flagrar operários cometendo faltas, repreendia-os energicamente, chegando a espancá-los e prendê-los ao “tronco” - árvores situadas em frente à fábrica - por longas horas, ainda de acordo com Telma de Barros. Portanto, instrumentos diferentes serviam a objetivos semelhantes. 

 

 

Michel Zaidan Filho: O principal inimigo do PT é o PT




 

Assim como erraram no passado, criando uma cizânia interna em suas fileiras e arrostando uma derrota, mais uma vez o Partido dos Trabalhadores, em Pernambuco, se arrisca em uma nova derrota. Nada justifica (e nem garante) entregar de "bandeja" uma candidatura competitiva e de oposição ao atual sátrapa da administração estadual, em troca de nada, ou quase nada: a desistência da candidatura do candidato mineiro do PSB às eleições estaduais de Minas Gerais. Ou, quem sabe, a vice candidatura de Luciana Santos, pela renúncia da candidatura de Manuela D’Avila à presidência da República. Em ambos os casos, é trocar um bilhete premiado por uma nota falsa de 3 reais.
 
A candidatura de Marília Arraes não pertence mais à Executiva Nacional do PT, nem a Humberto Costa ou João Paulo. Menos ainda, ao triste e bizarro governador (andor difícil de ser carregado). Pertence aos 230 delegados que votaram a favor de sua indicação à candidata ao governo do estado. Esse partido precisa aprender a respeitar as suas instâncias deliberativas estaduais ou municipais. Acabar de uma vez com o expediente burocrático, administrativo, de interferir pelo alto nas decisões coletivas de seus comitês e colegiados. Nem os partidos comunistas - da 3a Internacional - agiam com tamanho desplante e desprezo em relação aos seus filiados.
 
Acabou-se há muito tempo o famigerado "centralismo democrático". Ou se respeita a decisão de suas instâncias coletivas, ou esse partido está fadado a se esfacelar e amargar derrotas. A pior delas, a interna. A prevalecer a decisão de desestimular a candidatura aprovada na última plenária estadual, a recomendação é uma só: não votem na chapa majoritária da aliança PSB-PT. Façam um voto "camarão". Votem nos deputados estaduais e federais do partido, mas degolem a chapa majoritária. Ninguém pode ser obrigado a votar nos inimigos, nos trânsfugas, nos carreiristas do partido, em nome de uma aliança imoral, sem princípios, como essa que está se tramando em Pernambuco, em troca da neutralidade do PSB nacional nas eleições presidenciais.
 
Michel Zaidan Filho é filósofo, historiador, cientista político, professor titular da Universidade Federal de Pernambuco e coordenador do Núcleo de Estudos Eleitorais, Partidários e da Democracia - NEEPD-UFPE

Farmacologia constitucional

Imagem relacionada


     Em um país que se diz democrático direito, existem os chamados remédios constitucionais, que visam proteger e tutelar direitos dos cidadãos. Entre os remédios, o de maior amplitude é o habeas corpus.

     A expressão habeas corpus, literalmente significa “tome o corpo”. Assim, o paciente (expressão atribuída a quem o habeas corpus visa proteger ou tutelar direitos) se apresenta ao juiz para ser julgado. O objetivo do habeas corpus é proteger ou tutelar a liberdade física. É assim que recepciona a atual Constituição Federal em seu Art. 5º, LXVIII. Com relação ao seu papel, dizia Pontes de Miranda: “Só os sofismas desabusados, a trica e o subjetivismo impenitente podem ver nas expressões liberdade pessoal, protegida pelo habeas corpus, outro significado mais amplo que o de liberdade física”.

     Com o fim do Brasil Império, os republicanos ainda antes da Constituição de 1891, elaboraram o Decreto nº 848, de 11 de outubro de 1890, que assim dizia: “As formas mais singelas, mais prontas, a de maior eficácia foram adotadas; e, como sólida garantia em favor daquele que sofre constrangimento, ficou estabelecido o recurso para o Supremo Tribunal Federal, em caso de denegação de ordem de habeas corpus. Tanto quanto é possível e dentro dos limites postos à previsão legislativa, ficou garantida a soberania do cidadão. E é esse certamente o ponto para onde deve convergir a mais assídua de todas as preocupações do governo republicano. O ponto de partida para um sólido regime de liberdade está na garantia dos direitos individuais”. O Decreto serviu de inspiração aos legisladores da Constituição de 1891.

     Vivemos tempos sombrios e alguns momentos de insegurança jurídica. Direitos que foram conquistados com muita luta, hoje estão sendo banalizados e desrespeitados. Muitos acreditam que ultrajando o direito do outro pode ser feito justiça. Acontece que quem corrobora com as atrocidades promovidas pelos entes públicos contra qualquer cidadão, deve também concordar quando for praticada contra si, ou com pessoas que lhe são próximas. Ovacionar o arbítrio é referendar práticas da barbárie.

Hely Ferreira é cientista político.

Charge! Renato Aroeira

Nenhum texto alternativo automático disponível.