pub-5238575981085443 CONTEXTO POLÍTICO.
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segunda-feira, 9 de agosto de 2021

Glossário Walter Benjamin

 Patrícia Lavelle

Glossário Walter Benjamin
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Alegoria, aura, experiência, imagem dialética, pura linguagem: entenda conceitos fundamentais na obra de Walter Benjamin (Foto: Reprodução)

 

 

Alegoria

 

A teoria da alegoria remete tanto à filosofia da linguagem quanto à reflexão estética de Benjamin. Na terceira e última parte de Origem do drama barroco alemão (1925), a alegoria é definida como “expressão da convenção”, metamorfose expressiva da ligação convencional entre significado e significante, conceito e imagem. Ruína que opera com materiais previamente sedimentados, surge da erosão do signo, como “facies hippocratica da história”. Se a obra de arte simbólica esconde a fratura da significação numa aparência harmônica, a expressão artística alegórica a exibe. Engendrando uma progressão vertiginosa de imagens que apontam para fora delas mesmas, a forma alegórica apresenta a própria abstração conceitual como imagem. Numa nota crítica incluída no Livro das passagens, Benjamin afirma que Baudelaire teria feito da alegoria a armadura de sua poesia.

 

Aura

 

Entre o conceito e a metáfora teórica, a noção de aura pode ser representada na imagem do contorno luminoso de uma montanha vista de longe. Benjamin a define como “a aparição de um longínquo, por mais próximo que esteja”. Numa leitura das Correspondances de Baudelaire, ele compreende a experiência estética da aura como uma transferência, às coisas, da capacidade humana de retribuir o olhar. Esta experiência fundamentalmente onírica diz respeito ao “valor de culto” da obra de arte, que tende a declinar com a sua reprodutibilidade técnica e a consequente intensificação de seu “valor de exposição”.  A noção de aura se relaciona, assim, às reflexões de Benjamin sobre fotografia e cinema, em “A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica”, mas também aparece no contexto de suas considerações sobre o declínio da arte de contar histórias.

 

Crítica

 

De acordo com a tese de doutorado de Benjamin “Sobre o conceito de crítica estética no romantismo alemão” (1919), a possibilidade da crítica decorre da reflexão colocada em forma numa obra de arte. Neste sentido, a crítica não é um julgamento sobre o valor estético das produções artísticas, mas um método de seu acabamento. Ultrapassando a obra através da destruição de sua unidade expressiva, visa prolongar e desenvolver a reflexão nela contida. Partindo desta hipótese, que pressupõe a “criticabilidade” das verdadeiras obras de arte, o ensaio “Sobre As Afinidades eletivas de Goethe” (1924-1925) funciona como um modelo de crítica que apresenta o seu próprio conceito. Benjamin nele opõe o comentário, que procura reconstruir o “teor concreto” da obra, isto é, seus condicionamentos históricos, à crítica, que visa o seu “teor de verdade”, aquilo que a faz perdurar além do contexto de seu surgimento. Entretanto, a verdade da obra estaria imersa em sua historicidade, o comentário que destrói sua unidade aparece, assim, como parte constitutiva do trabalho crítico. Tal relação é apresentada na famosa imagem da obra como uma fogueira diante da qual o comentador opera como químico, e o crítico, como alquimista. Se para o primeiro apenas madeira e cinzas são objetos de análise, para o segundo, a própria chama constitui um enigma.

 

Experiência (Erfahrung)

 

Em “Sobre o programa da filosofia vindoura” (1917-1918), uma espécie de projeto filosófico, Benjamin se propõe a partir de Kant para pensar um conceito superior de experiência capaz de incluir os campos da “religião” e da “história”. Segundo ele, Kant assentou as bases do conhecimento possível sobre um conceito pobre de experiência, o da física newtoniana. Assim, levando em conta a “metacrítica” de Hamann, um dos primeiros leitores da Crítica da razão pura, Benjamin projeta reformular o conceito kantiano de experiência a partir da reflexão sobre a linguagem e sobre a expressão linguística do próprio pensamento filosófico. Embora não tenha escrito o sistema projetado, ele elabora uma filosofia da linguagem que se inscreve nesta perspectiva programática.

Em 1933, “Experiência e pobreza” retoma a noção de experiência e o tema de seu “empobrecimento” sob outro ângulo, num ensaio. Benjamin aí discute a desvalorização moderna da noção tradicional de experiência, aquela que podia ser transmitida de geração a geração. Rejeitando as tentativas de restaurá-la, sugere partir de seu empobrecimento, assumindo uma nova barbárie que se inspira na atitude construtiva das vanguardas artísticas. “O Contador de histórias”, de 1936, retoma alguns elementos deste ensaio, associando a experiência acumulável e compartilhável da tradição à capacidade de contar histórias oralmente, em declínio na modernidade. Coletiva e transmissível, esta noção de experiência (Erfahrung) se distingue da noção de vivência (Erlebnis), que concerne as experiências vividas de cada individuo.

 

Imagem dialética

 

Muitos dos textos teóricos de Benjamin não se enquadram numa perspectiva sistemática nem se inscrevem no gênero do ensaio crítico. São prosas curtas que constroem imagens atravessadas (e tensionadas) por elementos conceituais. A noção de imagem dialética, que aparece entre os fragmentos do projeto inacabado das Passagens, diz respeito a esta forma na qual o “pensamento se imobiliza numa constelação saturada de tensões”. Cesura no movimento do pensar, remete à reflexão de Benjamin sobre o conhecimento histórico. Nela, o outrora encontra o agora de sua conhecibilidade, num relâmpago: “a imagem é a dialética parada”.      

 

Materialismo histórico

 

Numa leitura heterodoxa do marxismo, Benjamin rejeita a projeção hegeliana de um telos revolucionário e privilegia as descontinuidades messiânicas. Pensa, assim, a escrita da história como um gesto político e utópico através do qual cada presente tem a chance revolucionária de redimir um futuro que espera, oprimido e esquecido, no passado. Visando “escovar a história à contrapelo”, o “historiador materialista” se opõe à empatia na relação com o passado, associada à identificação com o vencedor. Esta atitude é denunciada como um conformismo que faz uma leitura apologética de monumentos e obras do passado, reforçando continuidades culturais opressivas. Tais reflexões se encontram na série de prosas curtas que compõem “Sobre o conceito de história” (1940).

 

Tempo messiânico

 

Para Benjamin, o tempo messiânico não se projeta no futuro, como uma finalidade, ele coincide com o instante imobilizado num “agora” pleno: “messiânico é o mundo da atualidade plena e integral”, afirma num manuscrito. No “Fragmento teológico-político”, ele apresenta o tempo messiânico através da imagem de um gráfico que funciona como um elástico. Nele, a direção representada pela intensidade messiânica se opõe à da dinâmica do acontecer profano visando a felicidade. Entretanto, é esta força contrária, exercida pelo desenrolar dos acontecimentos num continuum temporal homogêneo e vazio, que intensifica a descontinuidade messiânica do tempo.

 

Nome/Juízo

 

Benjamin apresenta a noção de nome numa releitura ficcional da Gênese bíblica incluída em “Sobre a linguagem geral e sobre a linguagem humana” (1916). Segundo ele, Adão teria conhecido as coisas criadas sem a mediação do conceito, no próprio ato de nomeá-las. Nesta perspectiva, o nome é apresentado como tradução imediata da linguagem material das coisas em linguagem humana. Entretanto, este conhecimento mágico não determina seus objetos: os puros nomes seriam tonalidades expressivas indeterminadas, intensidades evocativas que atuam na linguagem verbal, mas não são propriamente palavras. O verbo humano – e a consequente pluralidade linguística – surgiria apenas com a “queda” desta linguagem paradisíaca no juízo, que comunica exteriormente, fazendo da palavra um meio, signo cindido em significado e significante. Relacionado ao surgimento da abstração na esfera do pensamento ético, é o juízo que interroga sobre o conhecimento abstrato “do Bem e do Mal”, sem conteúdo objetivo ou normativo.

O “Prefácio crítico-epistemológico” do livro sobre o drama barroco faz novamente alusão à narrativa bíblica. Ao distinguir ideia e conceito, identifica a primeira à dimensão simbólica da linguagem, na qual as palavras conservam o poder adâmico de nomear, e o segundo à linguagem judicativa. Mas de acordo com este texto, a apresentação das ideias mobiliza a mediação conceitual em construções discursivas historicamente condicionadas.

 

Pura linguagem

 

“Sobre a linguagem geral e sobre a linguagem humana” propõe uma concepção alargada da linguagem como Medium no qual pensamos e percebemos, e não apenas como um meio através do qual podemos comunicar conteúdos de pensamento ou conhecimento. “Razão é linguagem: logos”, afirma Benjamin, citando Hamann. Remetendo a esta compreensão da linguagem, a noção de “pura linguagem” surge em “A Tarefa do tradutor” (1923), prefácio teórico que Benjamin incluiu na edição de suas próprias traduções da poesia de Baudelaire. Quando fazemos da palavra um meio através do qual pensamos ou comunicamos exteriormente, estamos necessariamente numa língua singular, embora possamos também traduzir de uma língua a outra. Assim, a “pura linguagem” deve ser pensada não apenas como a totalidade aberta e sempre em evolução das línguas históricas – concebida como Medium no qual a experiência humana se traduz –, mas também como algo que se opera “entre” elas, permitindo a tradução.

 

Semelhança não-sensível

 

Em dois textos de 1933, “Sobre a faculdade mimética” e “Teoria das semelhanças”, a capacidade humana de produzir e de perceber semelhanças é definida como “rudimento da antiga e potente necessidade de se assimilar e de se comportar”. Fundamento da possibilidade de se constituir como sujeito, assimilando o vivido numa experiência individual, a faculdade mimética, representada alegoricamente na figura da “Mummerehlen” de Infância berlinense por volta de 1900, não age apenas na percepção de semelhanças sensíveis na natureza, mas também produz “semelhanças não-sensíveis” que caracterizam a brincadeira infantil, constituíram outrora o vasto domínio da magia e permanecem ativas na linguagem. Ao mesmo tempo identidade e diferença, toda semelhança corresponde à produção do mesmo no outro e do outro no mesmo, numa tensão comparativa. As semelhanças não-sensíveis são aquelas que, produzidas no pensamento, e não na sensação, concernem as relações espirituais que estabelecemos entre as coisas, e não as próprias coisas ou sua aparência sensível. Na esfera da linguagem, a produção de semelhanças não-sensíveis mobiliza o fazer poético, compreendido num sentido amplo, e atua também na tradução, abrindo passagens de uma língua a outra.

 

Patrícia Lavelle é poeta, tradutora e ensaísta, professora de teoria e crítica literária no Departamento de Letras da PUC-Rio. Fez doutorado em Filosofia na École des Hautes Études en Sciences Sociales de Paris e sua tese foi publicada na França: Religion et histoire. Sur le concept d’expérience chez Walter Benjamin (Editions du Cerf, col. Passages, 2008). Seu novo livro de ensaios desenvolve alguns dos tópicos incluídos neste glossário, e encontra-se atualmente no prelo: Walter Benjamin metacrítico. Sete ensaios para uma poética do pensamento (Relicário/Editora PUC-Rio).

(Publicado originalmente no site da Revista Cult)

domingo, 8 de agosto de 2021

Charge! Duke via O Tempo

 


Tijolinho: Armando Monteiro questiona o projeto de governo do PSB.

 


Até recentemente, setores da imprensa pernambuvana deram a notícia de que os caciques da legenda socialista estariam "enchendo a bola' de uma secretária de governo, de olho nas eleições de 2022. Ela é mulher, tocadora de obras e de bom trânsito político. O candidato socialista ao governo de Estado nas eleições de 2022, portanto, ainda, não seria prego batido de ponta virada, embora, como sempre faço questão de enfatizar, um deles possui um coringa nada despreizível na correlação de forças entre os atores políticos socialistas relevantes, ou seja, entre aqueles que decidirão o nome do partido que deverá conconrrer às eleições majoritárias de 2022, como candidato do PSB ao Governo do Estado. 

Em encontro recente no ninho dos tucanos locais, o ex-senador Armando Monteiro(PSDB) teceu algumas críticas que já se tornaram recorrentes em relação ao governo socialista aqui na província, ou seja, o inevitável esgotamento de um projeto de governo, que tornou-se, tão somente, um projeto de poder. Eis aqui uma observação que precisa ser analisada como bastante carinho pelas eleitoras e eleitores pernambucanos. Estamos diante, portanto, de um projeto de poder dinástico, sem uma liga efetiva com os rumos de desenvolvimento do Estado.  

Uma pena que outras variáveis - que não um programa de governo republicano, que atenda às reais demandas da sociedade - em alguns casos sejam mais relevantes na hora do eleitor escolher seus governantes. Esse pronunciamento do ex-senador vem no bojo de uma alavancada do nome da prefeita de Caruaru, Raquel Lyra(PSDB), ao Governo do Estado, nas eleições de 2022. A jovem prefeita do agreste pernambucano desponta como uma provável candidata no campo das oposições. Está na hora de uma movimentação política mais efetiva se deseja permanecer como opção política deste campo. 



Editorial: "Amas a incerteza e serás um democrata"





Não é de hoje que discutimos por aqui as fragilidades do nosso tecido democrático. Aliás, na realidade, ele nunca foi um bom tecido, em razão das grandes desigualdades sociais existentes no país, assim como em razão dos reflexos culturais de nossa formação colonial, que forjou uma elite torpe, preconceituosa, infame e inconsequente. Acompanhamos - não sem uma grande preocupação -este tensionamento na relação entre os poderes Executivo e Judiciário, traduzido em rusgas e escaramuças que já se arrastam há algum tempo, promovendo uma situação de desconforto para as nossas instituições democráticas e, consequantemente, para a sociedade brasileira, que já convive com uma profunda crise sanitária, econômica, social e civilizatória,marcada pelo descaso com o meio-ambiente, com o patrimônio cultural nacional, de um viés autoritário e intolerante com as minorias. 

Não me digam que não se pode falar numa crise civilizatória, depois do incêndio de nossa Cinemateca, num dos depósitos que guardavam um preciosíssimo acervo do cineasta Glauber Rocha. É igualmente desesperador o que ocorre em relação à escalada do desmatamento florestal da Amazônia, assim como a ocupação ilegal de terras indígenas, através de garimpos irregulares, que contrabandeam ouro para o exterior.É preciso ter nervos de aços para suportar aquela tragédia de agressão ambiental desmedida - contada em milhares de campo de futebol - com reflexos em todas as regioes do país, já que a região da Amazônia exerce uma forte influência no clima do planeta. Há quem assegure que, caso medidas duras não sejam tomadas de imediato, o próximo Covid-19 sairá daquelas pairagens, em razão do desequilíbrio ambiental ali produzido.  

Ainda muito longe de um arrefecimento -apesar da vacinação - a pandemia da Covid-19 volta a preocupar as autoridades européias e asiáticas, com variantes mais agressivas, mais transmissíveis e,em alguns casos,  até mais resistentes à imunização. Este seria o momento de um comando único em torno do seu enfrentamento. Definitivamente, não é o momento para se discutir se o voto será impresso ou eletrônico e,muito menos,fazer questionamento à lisura de pleitos passados ou futuros. Não existem provas das fraudes sugeridas, porque, simplesmente, tratou-se de pleitos legítimos, onde essas fraudes não ocorreram.  

Esta temática tem sido recorrente, mas parece que vamos sempre ter que lembrar que os atores políticos que travam uma luta institucional precisam,necessariamente, respeitar as regras do jogo,ou, se preferirem, atuar dentro das quatros linhas, sob a arbitragem da Constituição Federal. Qualquer coisa fora disso pode ser traduzido como violação ou golpe, seja do tipo tradicional ou desses golpes modernos, do tip "light", sem o emprego de força militares de intervenção, como no passado. Essas tipologias de "golpes institucionais", aliás, tem sido uma tendência da atualidade, caracterizado pelo fortalecimento do Executivo, que começam por fustigar a democracia precedimental e "testar" os demais poderes, como o Legislativo e o Judiciário.

A democracia tem como pressupostos básicos o diálogo, o convencimento, a persuação. O ator político que participa deste jogo precisa convencer os eleitores de que o seu projeto de governo é o melhor para o país, para a sociedade como um todo e para seu eleitorado mais específico, desde que mantidas as regras do jgo. É um regime de governo que também apresenta riscos e incertezas, como condição inerente à sua própria dinâmica, que se conformam desde o momento das eleições. 

Vários equívocos podem ser cometidos neste momento, como, por exemplo, deixar de comparecer aos debates públicos, errar nas estratégias de campanha, apresentar um programa que não convençam uma maioria da população votante. A democracia, portanto, é cheia de incertezas e, como tal, os atores  políticos que atuam nesta quatro linhas de engenharia institucional precisam se submeter às suas regras. No final, para aqueles atores políticos que ainda não estão convencidos dessas premissas, aconselho um artigo do cientista político polonês, Adam Przeworski, um especialista neste tema: "Amas a incerteza e serás um democrata" 

segunda-feira, 2 de agosto de 2021

A invenção da mordernidade

 


A invenção da modernidade
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 Michel Foucault (Foto: Reprodução)


 

 

O que é a modernidade ocidental? Quando começou? Ela já encontrou seu fim? E a que se refere este termo: moderno? Há muitas respostas, por certo; dificilmente um consenso. Mas partamos aqui desta proposição: a modernidade não é necessariamente um período histórico específico, determinado por marcos temporais estritos – marcos que, de resto, como sabemos, podem ser tão arbitrários como quaisquer outros. No entanto, ela pode ser pensada, sim, como um singular regime narrativo: um regime composto por diferentes vozes, assim plural.

À modernidade não corresponderia obrigatoriamente uma época, com seu antes e seu depois, seu “pré” e seu “pós”. Não seria, então, um intervalo de tempo preciso – desse modo delimitável, como outros, na longa cadeia da violenta história do Ocidente. Nesse sentido, portanto, não obedeceria a uma crono-logia: a uma ordenação lógica e objetiva, a partir de um evento algo datado (como – digamos – a queda de Constantinopla, ou as grandes navegações, ou os governos esclarecidos, ou a emergência da racionalidade científica, ou a revolução industrial, ou a formação dos Estados nacionais liberais etc.), evento que, uma vez inaugurado, seguiria um processo linear, até ser encerrado por outro, igualmente registrável (como o fim da Segunda Guerra Mundial, ou o começo da Guerra Fria, ou o ano de 1968, ou a queda do muro de Berlim, ou a constituição do capitalismo neoliberal etc.). Enfim – insisto –, nada disso.

De modo diverso – talvez mais complexo, mas sem dúvida mais interessante, ao menos neste presente que nos cabe – a modernidade poderia ser pensada, no que ela tem de mais característico, como uma singular rede de relatos. E o que tais relatos compartilhariam, isto é, o que eles teriam, com efeito, de moderno, seria o fato de que seus protagonistas (como sujeitos, intimamente ligados aos próprios relatos) se encontram diante de um mundo em que o sentido e a verdade do próprio ser, absolutamente contingentes, não mais se mostram garantidos de antemão. E mais que isso, se não estão no princípio, o sentido e a verdade tampouco se encontram, naturalmente, no fim da existência, de maneira que é o presente (moderno vem de modernus, termo que designa o “agora mesmo”, o “contemporâneo”) que se abre, como um desafio sem resposta, para o pensamento e a ação.

Essa modernidade descontínua, heterogênea e arriscada foi preparada, de diferentes maneiras, por inúmeros intérpretes, cujos nomes escapariam a estas linhas muito sumárias. Não obstante, interessa notar o que parece ser delineado, em traços ora mais ora menos decisivos, como o modo de ser moderno: trata-se do emergir de um sujeito que se faz presente, pensa, sente e age apenas na medida em que é marcado por essa falta de garantias, ao que tudo indica irremediável. Nesse lugar aparentemente vazio, onde não está mais pressuposta uma definição do que somos ou deveríamos ser, encontramos, sob uma luz crepuscular, as ruínas do que o Ocidente reivindicava como fundaçãotradiçãoexperiênciaautoridadeDeus etc.

Em outras palavras, na modernidade destacam-se sujeitos cujas performances – para dizer deste modo – colocam em cena uma ausência estruturante dos homens e suas sociedades; uma ausência que, mesmo sendo reconhecida, não chega a ser apaziguada. Isso porque essa falta constitutiva, espécie de avesso da imemorial imaginação mítica que nos acompanha, continuamente retorna, reposta como a incessante emergência da nossa condição originária. E é essa a condição que nos colocaria, daí então, diante da necessidade de, uma e outra vez, nos inventarmos a nós mesmos, por meio de uma miríade de suplementos e técnicas, afinal como sujeitos ao mesmo tempo elaborados e interrompidos por arranjos de signos e de práticas contingentes.

Em linhas muito breves e provisórias, eis a modernidade. E se, como afirmei acima, ela foi anunciada por muitas vozes, talvez tenha sido Michel Foucault quem lhe deu uma formulação incontornável, já urdida nas proposições anteriores. A ideia se encontra de modo mais bem acabado nos cursos e textos tardios, quando a atenção do filósofo se desloca entre os exercícios do poder governamental e as práticas de subjetivação. E, de modo ainda mais pontual, nos comentários a um opúsculo de Kant publicado em dezembro de 1784, que tem como título Resposta à pergunta: Que é o esclarecimento?

Na verdade, seria mais acertado dizer que Kant se encontra no início e no fim do percurso intelectual de Michel Foucault. Como nos lembra Edgardo Castro, em 1959, encarregado da direção do Instituto Francês de Hamburgo, Foucault prepara sua tese secundária de doutorado, que inclui a tradução e uma longa introdução a Antropologia do ponto de vista pragmático, de Kant, introdução que é concluída com uma reflexão acerca das limitações da herança transcendental kantiana (e com uma aproximação a Nietzsche). Essa herança é a de uma “ilusão antropológica”, num sentido muito amplo, baseada no estabelecimento de regras de verdade universais; “uma filosofia analítica da verdade em geral” – segundo o registro de Foucault em O governo de si e dos outros (curso de 1982-1983) – que, nas palavras de Edgardo Castro, irá traduzir-se num “mal-estar”: “a disposição ou o sonho da cultura moderna de querer encontrar no homem o fundamento do próprio homem”.

No fim do seu percurso, Foucault retoma Kant, agora num duplo movimento. Por um lado, a fim de reforçar seu distanciamento dessa herança autotélica universalista, que para realizar a humanidade última do homem engendrou enormes equívocos e violências sem termo. Por outro, para formular, na leitura do opúsculo de 1784, o que se caracteriza como uma atitude-limite: uma via notadamente crítica, elaborada a partir do próprio questionamento de Kant sobre a atualidade, e que é, ao mesmo tempo, para Foucault, a melhor definição da modernidade ocidental. Lemos em O governo de si e dos outros:

Essa outra tradição crítica não coloca a questão das condições em que um conhecimento verdadeiro é possível, é uma tradição que coloca a questão de: o que é a atualidade? Qual é o campo atual das nossas experiências? Qual é o campo atual das experiências possíveis? Não se trata, nesse caso, de uma analítica da verdade. Tratar-se-ia do que poderíamos chamar de uma ontologia do presente, uma ontologia da atualidade, uma ontologia da modernidade, uma ontologia de nós mesmos.

Em texto publicado em 1984 – ano do seu falecimento –, Foucault voltaria ao opúsculo, dessa vez considerando, também, a figura de Baudelaire. Assim como Kant se interroga sobre o sentido da sua atualidade e os possíveis modos do agir livre (por meio do “uso público da razão”), Baudelaire, interrogando agudamente “o transitório, o fugidio, o contingente”, faz-se elemento e agente desse “êthos filosófico”. Trata-se de uma a atitude de modernidade, escreve Foucault, entendida como uma “crítica permanente de nosso ser histórico”. “Essa modernidade não liberta o homem em seu ser próprio; ela lhe impõe a tarefa de elaborar a si mesmo”. E seu trabalho não se separa dos discursos e das práticas que nos constituem como elementos e como agentes históricos; não se separa, em suma, da contingência que nos fez ser o que somos.

Essa atitude é pensada afirmativamente, mas com uma finalidade disruptiva, como um “não mais”: afinal, essa ontologia histórica de nós mesmos, diz Foucault, “não deduzirá da forma do que somos o que para nós é impossível fazer ou conhecer”; mas deduzirá, sim, “da contingência que nos fez ser o que somos a possibilidade de não mais ser, fazer ou pensar o que somos, fazemos ou pensamos”. Daí a proposta de transformarmos a crítica conduzida sob a forma da limitação necessária em “uma crítica prática sob a forma da ultrapassagem possível”.

Sem dúvida, em nossa situação latino-americana e brasileira, o desafio se coloca de forma específica. Aqui, a atitude de modernidade, se igualmente livre de uma cronologia estrita, deve confrontar-se, ainda, com a terrível herança da razão colonial e sua empresa exploratória, com a herança do genocídio de povos indígenas, a herança do racismo, da violência e da exclusão estruturantes da sociedade.

Ao questionarmos, sem garantias, nossa atualidade e o campo das nossas experiências, tais heranças talvez aumentem nosso desamparo. Talvez não. E não porque elas nos servem, necessariamente, como definição do que somos ou deveríamos ser. Mas porque elas demandam, uma e outra vez, nossa capacidade crítica, nossa maior inventividade, neste presente crepuscular que nos cabe. Talvez seja diante dos exercícios de uma política de morte que devamos, antes de tudo, reivindicar não mais ser, fazer ou pensar o que somos, fazemos ou pensamos. Isso se estiver em jogo na atualidade – como de fato creio que está – a invenção de um êthos capaz de “fazer avançar para tão longe e tão amplamente quanto possível o trabalho infinito da liberdade”.

Artur de Vargas Giorgi é professor de Teoria Literária da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC).(Publicado originalmente no site da Revista Cult)


Tijolinho: Os Coelho continuam adubando as bases




Naturalmente, seria um pouco precipitado fazer um diagnóstico mais preciso ou definitivo acerca da composição de forças de oposição nas eleições majoritárias de 2022 no Estado. Mas, pelo andar da carruagem política pernambucana no campo da oposição, um arranjo que agrade aos diversos atores políticos que se incerem neste contexto vem se tornando cada vez mais complicado. A questão é que só existe uma cabeça de chapa e as costuras não são nada simples, principalmente porque entre os atores mais relevantes deste campo político encontra-se uma turma de menudos, jovens aspirantes - de certa forma ainda pouco afeitos ao argumento da cessão em nome do projeto em curso. Hoje, o mais provável é que tenhamos mais de uma candidatura no campo oposicionista, a julgar pelas movimentações de atores políticos como  o prefeito de Petrolina, Miguel Coelho(MDB, Anderson Ferreira(PSL), prefeito de Jaboatão dos Guararapes e Raquel Lyra(PSDB), prefeita de Caruaru, na região do agreste pernambucano. Esta última, a mais discreta e ponderada. Embora com as interdições impostas pela sigla do PT, outra aspirante que tem se movimentado bastante é a Deputada Federal Marília Arraes. 

Embora tenha se especulado nos últimos dias uma possível rearticulação política dos Coelho com o Palácio do Campo das Princesas - de olho nas eleições majoritárias de 2022 - a família não perde a oportunidade de ampliar sua capilaridade política, percorrendo todas as regiões do Estado, adubando as bases, visando as próximas eleições. Esta última maratona política contou, inclusive, com o concurso do senador Fernando Bezerra Coelho(MDB), disponivél em razão do recesso dos trabalhos na Comissão Parlamentar de Inquérito, onde exerce o papel de líder do governo. 

No plano governista, é evidente o desgaste do nome que se apresenta como o principal postulante a continuar a gestão socialista no Campo das Princesas. Até mesmo os atores políticos mais próximos não escondem o desconforto com esta situação, ou seja, em razão de injunções políticas específicas, ter de engolir uma candidatura que teria muitas explicações a dar aos eleitores, atacada virulenttamente durante os eventuais debates. Tenho dúvidas se o capital político de Lula seria suficiente para superar essas dificuldades, como se presume. 

Pérolas do Millôr

 




Corrupção: 

"Acabar a corrupção é o objetivo supremo de quem ainda não chegou ao poder"

Millôr Fernandes.



Charge! Duke via O Tempo

 


Editorial: Democracia decapitada: Em torno de um nome de auditório, em torno da estátua de Borba Gato.





Há uma semana atrás, o país foi sacudido por uma grande mobilização nacional em torno de uma pauta progressista, cuja agenda preconizava a defesa das garantias constitucionais da democracia, além de medidas sanitárias mais efetivas para o enfrentamento da pandemia da Covid-19. Nesta manhã de domingo, dia primeiro de agosto,  os partidários do presidente Jair Bolsonaro foram às ruas para defender, entre outras questões, o tal do voto impresso, uma discussão que tem esticado a corda entre os poderes Executivo e Judiciário. Ambas mobilizações fazem parte de um exercício perfeitamente concebível num regime democrático, desde que não se atente, naturalmente, contra os seus alicerces fundantes, ou seja, as garantias das regras do jogo do próprio regime democratico. 

É preciso ter muita responsabilidade em relação a esses princípios, que não podem ser violados pelos atores políticos que os integram. É o preço que precisa ser pago, no contexto de um regime que tem suas falhas, seus problemas, mas, como recomenda uma máxima, é, talvez, o menos ruim entre os piores modelos de governança entre os homens... e entre as mulheres também, antes que nos acusem de misogenia. A democracia é o regime do argumento, do convencimento, da persuação. Daí, por exemplo, a polêmica gerada em torno da destruição da estátua do bandeirante Borba Gato, mesmo em se considerando o seu status de capataz da classe dominante, de capanga dos ricos, de perseguidor e matador de negros e indígenas. 

Aliás, esta é uma tendência mundial, principalmente depois das mobilizações promovidas pelo movimento Vidas Negras Importam, que desencadeou uma onda de destruição de monumentos em homenagem à personalidades que estiveram organicamente vinculadas ao tráfico e ao genocídio de negros e índios. Uma "onda' que começou em solo norte-americano, e já se espalha pelos cinco continentes, suscitando discussões acaloradas em torno do assunto, inclusive entre os museus históricos e antropológicos que tem, entre as suas missões, construir uma narrativa sobre essas etnias em seus circuitos expositivos. Aqui, inclusive, abre-se um campo bastante fértil para uma "Museologia da Reparação', uma discussão teórica que ganha musculatura nesses tempos bicudos que enfrentamos. 

Os mais radicais advogam que essas memórias devem ser destruídas, mas há grupos de perfil progressista e menos radicais que advogam que tais monumentos devem ser preservados, simbolicamente associados a um passado sombrio, como é o caso da estátua de Edward Colston, um famoso traficante de escravos inglês, que foi retirada do mar, mais colocado numa instituição museológica na sua posição mais adequada, ou seja, deitada no chão, no aguardo de um plebiscito popular que deverá definir o futuro do seu passado. Talvez não fosse o caso de simplesmente destruir essas referências históricas, mas encontrar uma "solução expositiva" que dê conta desse passado sombrio e permita às novas gerações, pedagogicamente, entender, o que, de fato, eles representaram para a humananidade. 

A linha argumentativa acima talvez explique uma polêmica recente, ocorrida aqui no Estado de Pernambuco, em relação à proposição da troca do nome de um auditório do Centro de Educação da Universidade Federal de Pernambuco, em homenagem a um professor daquele centro, vinculado à ditatura militar instaurada no país com o golpe civil-militar de 1964. Os professores ficaram dividos em relação ao assunto, mesmo em se tratando de um dos departamentos mais progressistas da Instituição, muito identificado com o educador Paulo Freire, que, naqueles idos, integrava o MCP, cujo homenageado no nome do auditório, foi um dos interventores e, segundo o pesquisador, Evson Malaquias, moveu moinhos para apagar o seu legado para a educação brasileira.  

Repercutiu bastante na imprensa pernambucana - e entre os professores e professsoras daquele Centro - um artigo do professor aposentado Flávio Henrique Brayner, defendendo a manutenção do nome do auditório, argumentando sobre o caráter pedagógico de se preservar essa 'memória autoritária', quem sabe, levando a uma reflexão necessária acerca das fragilidades de construção de nosso tecido democrático. O passado, argumento o professor, não é algo apenas do pertencimento das classes oprimidas. Ele também pertence aos opressores, quer gostemos ou não. Neste caso, convém às futuras gerações com as quais o professor demonstra estar preocupado, uma consideração deste humilde escriba: Que tal acrescentarmos um aposto: Auditório Fulano de Tal, interventor do Movimento de Cultura Popular? Como observava Adorno, isso talvez ajude a adiar a repetição de catástrofes que já aconteceram. 

 

quarta-feira, 28 de julho de 2021

Pérolas do Millôr

 

Auto-crítica. 


"Toda vez que, na intimidade do banheiro, ela ficava nua, morria de rir dos seus admiradores"

Charge! Duke via O Tempo

 


Editorial: Qual, afinal, a real identidade do Centrão?



O presidencialismo de coalizão no Brasil se constitue numa grande dor de cabeça para qualquer chefe do poder Executivo. Mas, a rigor, não há outras alternativas para o ocupante do Palácio do Planalto - seja ele quem for - que não a de alinhar-se a essas forças políticas, sob pena de ver seu mandato minguar inexoravelmente, culminando com seu afastamento do cargo. Com um olho na missa e o outro no padre, especula que, mesmo na condição de real gestor da máquina pública no governo atual, os atores políticos ligados a este grupo - que controla um terço do Legislatico - não fecharam as portas para futuros pretendentes a inquilinos do Planalto, como é o caso do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva. O Centrão pode não ter endereço, CNPJ ou CPF, carteira de identidade, mas tem, certamente, um DNA bastante conhecido dos brasileiros : o do fisiologismo visceral.   

Eles, matreiramente, comem o mingau quente pelas beiradas, esperam pacientemente a crise de governabilidade instalar-se e, aí, apresentam a fatura, quase sempre muito cara, sem que qualquer garantia seja dada ao governante de turno, que passa a ser refém dessas forças. Em tais circunstâncias, quando o governante entrega os anéis para não perder os dedos, a rigor, já podemos concluir que o governo caiu. A tropa  tem um apetite voraz.

Constitue-se numa tarefa das mais complexas governar um país em tais circunstâncias, com uma margem de manobra bastante limitada ao chefe do Executivo. Outro dia, li um cientista político afirmar que "ceder" poderia ser uma estratégia ótima. Será? Para quem? Talvez unicamente para os atores vinculados a esta coalzão de forças denominada de Centrão, beneficiadas com liberação polpudas de emendas, cargos e penduricalhos outros. Trata-se de um grupo político frio e calculista, o que não se traduz numa novidade no mundo da política. Eles pressionam com o cérebro e empastelam-se com o estômago. E haja canapés para satisfazer esses apetites. 

Houve um tempo em que se falou bastante sobre a necessidade de uma reforma política. Hoje este assunto encontra-se em standy by. Há quem reclame - não sem alguma razão - que a coalizão de governo liderada pelo PT perdeu uma ótima oportunidade de convocá-la. Credita-se aqui uma grande oportunidade perdida pela coalizão, que poderia, igualmente, ter implementado outras reformas importantes para o país, como a reforma tributária, a reforma agrária, dos meios de comunicação, para ficarmos entre as prioritárias. O problema é que esta coalizão já chegou ao poder comprometida até a medula com forças que nunca desejaram mudar nada neste país. Já está se desenhando o mesmo cenário para as próximas eleições, caso tal conjunto de forças volte a ocupar o Palácio do Planalto.  

Talvez não tenhamos mais chances de retomar este debate. Uma alternativa seria a convocação de uma constituinte exclusiva para debater uma reforma política que pudesse reestruturar esses padrões de relação entre o Executivo e o Legislativo, mas, pelo andar da carruagem política, é pouco provável que saiamos desse círculo vicioso, sobretudo se entendermos que ele não chega a ser assim tão ruim para alguns segmentos políticos. É ruim mesmo para a sociedade brasileira, para a nossa frágil e incipiente experiência democrática, que sofre uma inanição profunda de práticas de caráter republicano.   

sábado, 24 de julho de 2021

Charge! Duke via O Tempo

 


Joaquim Nabuco - Precursor da Literatura Regionalista?

Pérolas do Millôr




 CARÁTER

"Caráter é aquilo que faz você melhor do que é. Ou impede você de ser pior. Sei lá"

Tijolinho: Duas mulheres arretadas. Até aqui concordamos.

 


De tão evidente, talvez seja mesmo desnecessário enfatizar aqui o trabalho cívico exemplar exercido pela vereadora Liana Cirne(PT)para a comunidade recifense. A vereadora é uma das vozes mais ativas da oposição na Casa de José Mariano. É, antes de tudo, uma ativista política dos direitos humanos e exemplar fiscal de condutas não republicanas na condução dos negócios públicos. Um mandato que honra os recifenses. Outra mulher de igual estirpe é a deputada federal Marília Arraes, que, além dos qualitativos acima, possui a resiliência e capacidade de sobreviver nas adversidades, possivelmente uma herança do DNA do avô Dr. Miguel Arraes de Alencar. Portanto, não nos surpreendeu uma declaração de Liana Cirne, afirmando que o Recife possui duas mulheres arretadas. Ela e Marília.  

Surprendeu-nos, entretanto, uma espécie de "chamamento' de Liana Cirne no sentido de definir os projetos políticos de Marília Arraes para as próximas eleições, onde as duas deveriam disputar uma vaga na Câmara Federal. Não tenho dúvidas de que o Estado de Pernambuco estaria muito bem representado por essas duas mulheres agueridas, mas o mundo político pernambucano sentiu aqui uma manobra da direção do PT local no sentido de rifar, mais uma vez, as pretensões majoritárias de Marília Arraes. Faz algum tempo que essas tecituras estão sendo engendradas, de novo, sob o pretexto de alianças entre socialistas e petistas, visando as eleições presidenciais de 2022. É aguardada, com grande expectativa, a presença de Lula aqui na província, com o propósito de alinhavar as costuras, proceder os arremates finais, mesmo depois das feridas abertas pelas última campanha à Prefeitura da Cidade do Recife, onde seu nome foi enxovalhado para dá suporte a uma determinada candidatura. 

Acostumado a engolir sapos - e tomar cachaça com tiragosto de preá quando vinha aqui na província visitar seus parentes - Lula aprendeu deste cedo que em política não existem as palavras "nunca" nem "jamais", conforme ensinava o ex-governador Paulo Guerra. Esta aberto às negociações mesmo diante das vicissitudes, com as quais ele con viveu durante toda a vida. É, igualmente,  uma pessoa eternamente grata ao senador Humberto Costa(PT), desde os tempos da Brasília Amarela. O senador é a bússola política do cacique petista aqui no Estado. Isso significa dizer que o partido não terá candidato a governador nas eleições de 2022. Haja resiliência para a neta do Dr. Miguel Arraes.  

Editorial: O pandemônio da corrupção na pandemia


Em razão dos atropelos iniciais, o país, infelizmente, permance nos descaminhos da campanha de vacinação. É fato que conseguimos avançar bastante nos últimos meses, mas nada que recupere o terreno perdido. Emenda quebrada torna-se de difícil conserto. Mesmo atingindo médias que chegam perto de um milhão e meio de vacinados diários - o que se constitue uma proeza - ainda assim,hoje o país acordou com a notícia de que várias cidades e algumas capitais, à exemplo do Rio de Janeiro, suspenderam a campanha de vacinação. Num momento em que nos Estados Unidos e na Europa prenuncia-se a possibilidade de mais uma nova onda da pandemia, isso, certamente, deixa a nossa população ainda não completamente imunizada ainda mais vulnerável. A despeito de uma estabilidade - e até registros de quedas - convém não negligenciar nossas médias diárias de contágios e mortes, que continuam ainda muito altas. Estamos longe de um cenário que nos permitam alguma tranquilidade em relação ao assunto. Faltar vacinas, num quadro como este, é muito grave. 

Acompanhamos, com muita atenção, o desenrolar dos trabalhos da CPI da pandemia. Aliás, essas duas semanas de recesso estão parecendo uma eternidade. Com as pessoas em casa, essa CPI tornou-se um verdadeiro espetáculo, digno de uma Copa do Mundo ou dos desfiles das escolas de samba do primeiro grupo, no Rio de Janeiro. Como o país está polarizado, as torcidas estão bem divididas. Há os torcedores que se identificam com o G-7 e os torcedores que se encantaram com o Rolex daquele senador da base aliada, que faz uma defesa enfática do governo. Este editor, particularmente, se declara satisfeito com a condução dos trabalhos daquela comissão. É salutar, inclusive, que as instituições democráticas do país assegurem seu perfeito funcionamento, como uma prerrogativa inerente do próprio sistema, ou seja, a do Poder Legislativo fiscalizar os atos do Poder Executivo, como recomenda os bons manuais dos regimes democráticos.  

Num ponto, porém, vou concordar aqui com os senadores da situação, que exigem que os desvios de recursos públicos durante a pandemia sejam investigados não apenas no plano federal, mas nos Estados e capitais do país. Há motivos robustos para que um pente fino seja aplicado no tocante a possíveis malversação desses recursos, seja na aquisição de insumos, uso de verbas federais ou construção de hospitais de campanha. Faciliataria bastante o trabalho da CPI o fato de a Polícia Federal já ter realizado várias operações concernentes a este assunto. A própria Polícia Federal estima que um montante superior a 4 bilhões de reais tenham sido desviados de suas finalidades republicanas. Caberia, tão somente, a CPI articular-se melhor com a PF, que já possui eventuais inquérios abertos sobre o assunto. 

Uma CPI que iniciou seus trabalhos para investigar a conduta do governo federal no que concerne à vacinação contra a Covid-19, hoje, debruça-se sobre eventuais desvios de recursos públicos em operações nebulsos  e a conduta de agentes públicos e privados nessas tecituras pandêmicas. Circunstâncias políticas excepcionais, tornaram esta CPI um termômetro de nossa saúde democrática. Aliás, uma saúde democrática, como afirmei em editoriais anteriores, bastante fragilizada. Aqui, analogicamente, convém sempre deixar claro que a nossa democracia nunca esteve completamente imunizada contra as aventuras autoritárias. Eis aqui um vírus que nunca esteve completamente erradicado num país como o nosso, de comprovado déficit institucional e profundas desigualdades sociais.  

sexta-feira, 23 de julho de 2021

A medicina manguebeat de Josué de Castro



Escrito por Rômulo de Paula Andrade


 Ô Josué, nunca vi tamanha desgraça[…]

Com a barriga vazia não consigo dormir
E com o bucho mais cheio, comecei a pensar
Que eu me organizando posso desorganizar
Que eu desorganizando posso me organizar

(Nação Zumbi, Da lama ao caos)


O olhar de Francisco de Assis França a respeito das desigualdades e particularidades da cidade do Recife foi construído a partir de diversas referências, com destaque especial para uma: a visão transformadora que Josué Apolônio de Castro (1908–1973) trouxe dos mangues e de seus caranguejos “com cérebro”. Os mangues, “fervilhando de caranguejos e povoado de seres humanos feitos de carne de caranguejo, pensando e sentindo como caranguejo” foram, em suas próprias palavras, a Sorbonne do médico pernambucano. Tal qual uma lente que focaliza a imagem de modo a torná-la mais nítida, seu pensamento sobre a fome e o espaço urbano exerceram grande influência nas canções de Chico Science, que enxergava no mangue a força vital que movimentava a capital pernambucana.

No manifesto do movimento Manguebeat, de Fred Zero Quatro, fica evidente o papel de Josué de Castro como membro ilustre de um mosaico pop warholiano (acompanhado por Jackson do Pandeiro, Os Simpsons e Malcolm McLaren, o "inventor" da banda Sex Pistols) que mobilizou a efervescente cena cultural da capital pernambucana no início dos anos 1990. A maior influência foi, sem sombra de dúvidas, o romance Homens e caranguejos (1967) de Josué, no qual a ideia do mangue como o “paraíso de cor negra dos caranguejos” foi criada. Mas os conceitos e a visão científica que deram base a essa perspectiva transformadora vieram do clássico do pensamento social brasileiro Geografia da fome (1946), cujo lançamento completa 75 anos em 2021.

Josué, através de um diálogo com diversos campos do conhecimento, se consolidou como herdeiro intelectual de uma tradição transformadora da Geografia. Sua reflexão apontou as agruras e as causas da desigualdade social que imperava na capital pernambucana e no restante do país. No entanto, diferentemente do determinismo predominante no pensamento social brasileiro da época — segundo o qual o clima seria a principal razão para a “decadência” da civilização brasileira —, propôs caminhos para a superação dessa chaga. Em Geografia da fome, trouxe para o centro do debate um tema incômodo para um país que se pretendia moderno e urbano: a fome. Mais do que isso: ofereceu, por meio de sua medicina voltada para a pobreza, uma interpretação do Brasil. Onde muitos autores viam impossibilidades, Josué enxergava transformação, pois, para ele, “o mal era de fome e não de raça”. Fugindo das teses que relacionavam a mistura racial brasileira a uma suposta degeneração inescapável, afirmou que “a degenerescência do povo é o resultado mais da organização econômico-social do que de sangue e de clima”. Assim, alinhava-se com outros intelectuais, como Roquette-Pinto (1884-1954), Capistrano de Abreu (1853-1927) e Gilberto Freyre (1900-1987), que deslocaram o debate racial de um contexto biológico-fatalista para uma perspectiva cultural. Os inimigos não seriam o meio ou a “raça”, mas as dietas precárias, as más condições de habitação e de higiene, que proporcionariam às doenças rurais um terreno fértil de proliferação. O acesso à saúde seria um meio de redenção, relegando definitivamente as teorias racistas à obsolescência. Em termos atuais, poderíamos chamar a medicina defendida por Josué de Castro de antirracista.

No 75º ano de lançamento de Geografia da fome, é importante lembrar da urgência que Josué possuía para lançá-lo. Hoje também urge trazê-lo novamente para o debate público, pois a fome retornou à pauta do dia, infelizmente. Para o médico pernambucano, ela era um elemento central para a história do Brasil e, do mesmo modo, um aspecto estruturante do mundo moderno. O historiador James Vernon aponta que, na Inglaterra imperial, a fome era vista como uma punição aos preguiçosos e aos mendicantes, além de disciplinadora: ensinaria a essas pessoas a moral do trabalho. O que teria causado essa mudança de paradigma em relação à fome e, consequentemente, à pobreza? Uma boa pista é observar a particularidade do momento no qual Geografia foi lançado. O uso da fome como arma de guerra não era novo, haja vista as políticas colonialistas dos países europeus em territórios asiáticos e africanos (como destacou Mike Davis no devastador Holocaustos coloniais). Mas o trauma provocado pelas imagens de corpos famintos assassinados na Segunda Guerra Mundial despertou os dirigentes, políticos e sobreviventes para as trágicas consequências destes atos. Não à toa, desde 1943 os países aliados já discutiam a criação de agências internacionais voltadas especificamente para o combate à fome e à desnutrição, como a agência de alimentação e agricultura das Nações Unidas, a FAO.

Um dos principais argumentos da obra é a centralidade da fome frente às outras doenças e à própria história humana: ela seria a causa principal das guerras e das grandes epidemias. Dessa forma, o fenômeno da alimentação, segundo o pernambucano, seria ponto de referência para o estudo ecológico das ações e reações dos seres vivos diante das condições impostas pelo meio. O diagnóstico do problema dos hábitos alimentares passava também pelos (poucos) estudos encontrados sobre o assunto: enfatizavam apenas aspectos parciais do processo e nunca suas relações econômicas, biológicas e sociais. O estudo total da fome e da alimentação foi a grande contribuição de Josué de Castro. Para tanto, lançou mão do método geográfico interpretativo de Vidal de La Blache e Carl Ritter, a fim de delimitar e analisar o fenômeno da fome no Brasil. A “revalorização fisiológica do homem” passaria pelo estudo das mais diversas fomes: desde a fome total, que atingia áreas de extrema miséria em contingências excepcionais, até a fome oculta, entendida como a falta de determinados nutrientes fundamentais — ou seja, levando à morte lenta e silenciosa populações inteiras, por mais que comessem diariamente. Por isso mesmo, era considerada a forma mais grave de privação alimentar.

Logo, estruturas econômicas e sociais teriam seríssimas consequências biológicas: o latifúndio e a monocultura eram causadores da fome. Para compreender essas deficiências em suas diversidades regionais, ele dividiu o Brasil em cinco áreas alimentares: Amazônia, Mata do Nordeste, Sertão do Nordeste, Centro-Oeste e Extremo-Sul. As três primeiras, por terem mais da metade da população em estado carencial, estariam nas áreas de fome. Com Geografia, Josué colaborou com a interpretação de um Brasil doente, o “imenso hospital” proclamado pelo médico Miguel Pereira em 1918, cujas doenças não teriam origem apenas na pobreza, mas também na desnutrição e nos maus hábitos alimentares. Em seus projetos iniciais, esse seria o primeiro de cinco volumes dedicados às manifestações da fome em outras áreas: América espanhola e inglesa, África, Oriente e Europa, respectivamente. Não conseguiu concretizar seu intento, porém publicou outro livro de grande prestígio internacional, no qual deu continuidade às suas reflexões. Geopolítica da fome, de 1951, representou o seu esforço de compreender o assunto em perspectiva comparada com outros países.

O Brasil, nas tintas do intelectual pernambucano, seria um lugar onde a desigualdade reinante encontraria na fome sua consequência mais trágica, mas também sua redenção. Além de apontar o problema, Josué, assim como outros cientistas de sua geração, buscou as soluções. Os anos após a ditadura do Estado Novo (1937–1945) foram pródigos em projetos para o país. Alguns destes, como os que ele defendia, tinham como objetivo superar o subdesenvolvimento do país e a dependência do mercado externo. Subdesenvolvimento esse que, para Josué, não seria a ausência de desenvolvimento, mas sim o produto de um tipo de desenvolvimento mal conduzido e mal distribuído, fruto da concentração de renda. Ele viu na política a possibilidade de levar adiante essas transformações. E pagou por isso. Geografia da fome acompanhou essa ascensão política e intelectual de seu autor, e, em virtude das muitas mudanças pelas quais passava o país, sofreu alterações ao longo das edições. Isso nos revela seus investimentos na compreensão do Brasil dos anos 1950 e 1960: um Estado desejoso de se tornar urbano e que investia na construção de uma imagem — nacional e internacionalmente — de modernidade, em contraponto com seu passado rural. Em seus mandatos parlamentares, Josué de Castro defendeu a reforma agrária e o combate aos latifúndios como forma de vencer a fome. Quando, na edição de 1958, o subtítulo O dilema brasileiro: Pão ou aço foi inserido no livro, o propósito consistia em abordar outra questão incômoda: diante dos avanços da tecnologia agrícola e das possibilidades que uma digna redistribuição das terras poderia oferecer, a fome se constituiria como uma escolha política e histórica. Uma escolha por um projeto de país que o expulsou, em 1964, na primeira lista do Ato Institucional nº 1 e que o levou ao exílio até a morte em 1973.

Por fim, importante registrar que mesmo com a celebração dos 75 anos desta obra icônica e com a aproximação dos 50 anos do falecimento de seu autor, Geografia da fome encontra-se esgotado. Sua última edição foi lançada pela editora Civilização Brasileira em 2008, com texto de apresentação redigido pelo geógrafo Milton Santos. Fica aqui um manifesto: é hora de novas edições, novas releituras e novas celebrações para Josué e sua produção. Este hiato talvez se relacione com o que está escrito no prefácio da primeira edição de Geografia: os preconceitos de ordem moral, política e econômica da civilização ocidental, cuja pretensa racionalidade não se interessa e pouco se sensibiliza por um instinto tão primário como o fenômeno da fome. O grito de Chico Science ao fim de Cidadão do mundo parece ser, mais do que nunca, oportuno: “é o zum-zum-zum da capital/ só tem caranguejo esperto/ saindo desse manguezal/ eu pulei, eu pulei/ corria no coice macio/ encontrei o cidadão do mundo/ no manguezal da beira do rio/ Josué!”


(Publicado originalmente no site do Suplemento Pernambuco)


Orson Welles no Brasil IV - A passagem pelo Recife

Pérolas do Millôr



CESTA BÁSICA

"Eles foram perfeitamente honestos chamando essa coisa de sexta-básica. No sábado já está completamente vazia."

Millôr Fernandes



quinta-feira, 22 de julho de 2021

Charge! Duke via O Tempo

 


Publisher: Brazil: A democracy in the ICU?


The health of our democracy has never been the best, especially considering the disastrous consequences of our colonization process, which resulted in the formation of a predatory and insensitive slave elite, unable to develop the otherness necessary to understand the drama of those who occupy the bottom floor of the social pyramid. It is a simulacrum of democracy that works according to the preservation of the interests of Casa Grande, in consortium with international financial banking and the geopolitical interests of the great brother of the North. It is a "made-to-measure democracy", that is, whenever these elites have their interests contradicted, a coup is engendered. 

In recent years, some new ingredients have emerged to compose this scenario, such as the authoritarian arrangements articulated through the institutional instances of the so-called democratic framework, which has come to be called coups of a new type - without the executioners of democratic regimes needing to be expose or get their hands dirty - and also meet the legal conditions to criminalize those who express themselves in these terms on the subject. The gap between political democracy and economic or substantive democracy, in turn, as shown by numerous studies, is responsible for putting down the institutional edifice of democracy. It is the so-called last shovel of earth. Since the 1960s, French sociologist Claude Leffort has warned us: "A democracy that does not expand tends to die of starvation."

The conservative and right-wing "wave" that sweeps the world from one quadrant to another, although it has faced some ebbs in recent clashes, such as in Chile, for example, is still well built. Democracy thanks the Chilean people, who mostly rejected an authoritarian constitution and placed Elisa Lancon, a Mapuche Indian, in the presidency of the work that will formulate the country's new constitutional charter, which should be plural, citizen and, above all, preserve the values ​​of democracy in a country that has already faced bloody democratic setbacks.

We apologize to the readers and readers for the tautologies, but we still find it very difficult to understand how these insurgent political currents - of right - achieve the alchemy of reconciling, at first, excluding variables, such as, for example, uniting militias and neo-Pentecostalism in the same political project .There are indications about members of neo-Pentecostal churches involved even in drug trafficking in Rio de Janeiro. Transgressions are possible at any institution. Strange, however, the recurrence. Some analyzes point to a dangerous geographical proximity to these "herds" - poor, black and slum dwellings in urban centers such as Rio de Janeiro - but it seems to us that political "motivation" is a more enlightening variable to clarify this phenomenon. of time, not infrequently, help us to understand certain political events. On this one in particular, it should not be different. There are good studies in progress on this issue and, whenever possible, we will bring them here.

The concrete fact is that we slept the political sleep that produced the monster. We failed to take care of our democracy and, today, we suffer from a setback of gigantic dimensions, with almost daily damage to our democratic institutions. And, as I said before, our pillars have always been very fragile. If the rope is kept taut, I think it will break. Initiatives taken by the STF in the sense of summoning the political actors representing the three powers to adjust the conversations are important and necessary, in order to contain the rapes and re-establish the limits of each one of them. Even more important, apply the rigors of the law to prevent anti-democratic demonstrations and preaching, such as fake news, true machines to destroy reputations.

Menino de Engenho - José Lins do Rego