pub-5238575981085443 CONTEXTO POLÍTICO. : Le Monde: O avanço do fundamentalismo nas igrejas protestantes históricas no Brasil
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sábado, 17 de novembro de 2018

Le Monde: O avanço do fundamentalismo nas igrejas protestantes históricas no Brasil

Enquanto a teologia da prosperidade tem sido o grande motor narrativo do neopentecostalismo, encontrando ainda resistência nas igrejas históricas, o fundamentalismo é, em maior ou menor grau, arraigado na quase totalidade das igrejas evangélicas brasileiras
A comunidade evangélica brasileira passou por acelerado crescimento numérico nas últimas três décadas, causando enorme impacto na sociedade brasileira. O sentimento de pertencer a uma minoria há muito foi deixado para trás. Entretanto, começou também a se esvaecer aquela identidade do “crente”, aquele religioso ascético e reservado. Definir-se como evangélico hoje tem exigido explicações adicionais.
Uma das características mais patentes dos evangélicos é justamente sua heterogeneidade. As diversas igrejas existentes se alinham a três grupos principais: os históricos (formados principalmente por batistas, presbiterianos, metodistas e congregacionais),1 os pentecostais (Assembleia de Deus, Congregação Cristã no Brasil…) e os neopentecostais (Universal do Reino de Deus, Igreja da Graça, Renascer, Poder Mundial, Sara Nossa Terra etc.). Tais grupos são muito distintos. Os históricos se consideram herdeiros da Reforma Protestante; os pentecostais são os herdeiros dos movimentos avivalistas baseados na experiência do “Espírito Santo” surgidos nos Estados Unidos; e os neopentecostais surgiram da chamada teologia da prosperidade, também oriunda dos Estados Unidos.
A relação entre esses grupos é ao mesmo tempo conflituosa e aproximativa. Entre os históricos, a influência da teologia da prosperidade vem sendo combatida intensamente pelas cúpulas pastorais, o que não tem impedido a ocorrência de viradas de algumas comunidades históricas ao pentecostalismo e ao neopentecostalismo. Já entre os pentecostais e neopentecostais, a aproximação tem sido maior.
A despeito de sua avassaladora popularidade, a teologia da prosperidade tem sido alvo de dissensão. Há, entretanto, outra influência teológica com maior capacidade de unificação de todo o campo evangélico: o fundamentalismo. E, nesse caso, a influência é praticamente ubíqua, não só entre os neopentecostais e pentecostais, mas também entre os históricos, também adeptos do fundamentalismo. Nos anos recentes, ninguém manifestou melhor isso do que o procurador Deltan Dallagnol, que em seu perfil nas redes sociais faz questão de colocar ao lado de sua função pública o fato de ser “servo de Jesus”. Dallagnol tornou-se garoto propaganda do fundamentalismo cool praticado pelas principais igrejas batistas paranaenses e é o principal inspirador para a análise que se segue.

A influência do fundamentalismo e do conservadorismo norte-americano2
Há muitas décadas, as matrizes eclesiásticas e teológicas dos evangélicos brasileiros de maneira geral vêm sendo importadas diretamente dos Estados Unidos. Tanto o fundamentalismo quanto a teologia da prosperidade foram trazidos daquele país, reconhecido como um dos mais religiosos do mundo. Enquanto a teologia da prosperidade tem sido o grande motor narrativo do neopentecostalismo, encontrando ainda resistência nas igrejas históricas, o fundamentalismo é, em maior ou menor grau, arraigado na quase totalidade das igrejas evangélicas brasileiras. Nisso, a distância entre os históricos e os neopentecostais se reduz sensivelmente. Nestes, entretanto, o fundamentalismo assume caráter grotesco, como se observa a cada manifestação pública dos políticos neopentecostais. Entre os históricos, sua manifestação é mais sutil, mas ainda assim firme, fato que pode ser observado na centralidade do moralismo na visão de mundo desse segmento religioso.
O fundamentalismo teve sua origem nos Estados Unidos, no início do século XX, em reação ao processo de secularização da sociedade e como contraponto ao liberalismo teológico desenvolvido na Europa a partir dos escritos de Friedrich Schleiermacher, que iniciou o movimento intelectual de rejeição aos dogmas. Apesar de Schleiermacher valorizar as experiências interiores da religião, influência do Romantismo alemão, o liberalismo teológico posterior adotou uma postura mais racionalista, mas ainda crítica ao dogmatismo. O fundamentalismo, oriundo do puritanismo, do pietismo wesleyano e do avivalismo, procurou reafirmar a ortodoxia dogmática por meio dos cinco “fundamentos da fé”: (1) a inerrância bíblica (portanto, sua literalidade), (2) o nascimento virginal de Jesus, (3) a remissão de pecados pelo sacrifício de Cristo, (4) a ressurreição corpórea de Cristo e (5) a realidade objetiva dos milagres de Cristo.
Dado o dogmatismo dos fundamentalistas, esse movimento com o tempo foi estigmatizado, surgindo dissidências e contrapontos. No entanto, os princípios do fundamentalismo se alojaram profundamente na forma de pensar do protestantismo norte-americano. Tanto que uma das práticas mais importantes oriundas do fundamentalismo, a “salvação das almas”, foi apropriada por quase todos os movimentos evangelicais por meio das missões para a pregação da fé. Dadas as características da pregação missionária, cujo objetivo não era a reflexão teológica acadêmica, uma grande dose de pragmatismo era necessária. Para isso, o fundamentalismo era a narrativa ideal, pois confrontava qualquer dúvida do novo convertido ao “Está escrito”, oriundo do dogma da inerrância da Bíblia.
Entretanto, mais importante do que os aspectos teológicos em si é o conservadorismo ideológico que o fundamentalismo protestante alimentou. Nos Estados Unidos, as igrejas fundamentalistas formaram a base social de resistência às pautas dos direitos civis e sociais. A visão dogmática da religião se sincretizou com o chauvinismo anglo-saxão, que foi muito útil para a geopolítica de Washington ao apropriar o mito da “nação escolhida” dos judeus para seu próprio contexto. Mais recentemente, essa mistura entre política e religião se condensou com o movimento neoconservador que apoiou Ronald Reagan. A fé protestante tornou-se, então, forte aliada da propagação do individualismo neoliberal, por meio tanto da teologia da prosperidade quanto do moralismo ascético meritocrático.
Importadas dos Estados Unidos, essas duas facetas são as que dominam ideologicamente a maior parte das igrejas evangélicas no Brasil.

Fundamentalismo e conservadorismo no protestantismo histórico brasileiro
Menos (re)conhecida que sua contraparte neopentecostal, há uma forte influência neoconservadora no seio das respeitáveis igrejas históricas brasileiras, cujas referências intelectuais são ditadas diretamente pelas congêneres norte-americanas. A maior parte das grandes questões que preocupam os debates teológicos brasileiros não advém da experiência histórico-geográfica brasileira e latino-americana, mas das que surgem no norte do continente. Isso é consequência tanto das opções do mercado editorial evangélico quanto da influência acadêmica das escolas de teologia dos Estados Unidos.
Apesar de essa influência difusa já ser antiga, fatos recentes vêm trazendo perturbadoras evidências da existência de um projeto político de aprofundamento dessa base conservadora alicerçada no fundamentalismo. Daremos o exemplo que nos parece mais claro, que é o da Convenção Batista Brasileira, que desde 2011 teve como presidentes dois pastores de Curitiba, o pastor Paschoal Piragine Júnior, da Primeira Igreja Batista de Curitiba, e o pastor Luiz Roberto Silvado, da Igreja Batista Bacacheri, que é a igreja do procurador Dallagnol e da psicóloga Marisa Lobo, notória militante da “cura gay”. Esses pastores vêm se destacando como porta-vozes religiosos do conservadorismo que fez de Curitiba sua capital nos últimos anos. Paschoal Piragine gerou polêmica em 2010 quando, de púlpito, afirmou diante de seus fiéis e das câmeras que votar no PT seria optar pela iniquidade, num claro constrangimento político a milhares de batistas. Piragine fazia alusão ao III Plano Nacional de Direitos Humanos, que naquele ano eleitoral fora um ponto de polêmica junto ao eleitorado evangélico. Já a Igreja Batista Bacacheri, que é “filha” da Primeira Igreja Batista de Curitiba, ganhou notoriedade por meio de Dallagnol, que tem se destacado por misturar sua atividade judicial com o discurso religioso, utilizando, inclusive, o meio evangélico para impulsionar suas controversas “Dez medidas contra a corrupção”, indo de igreja em igreja, sem abrir mão de seu status de procurador federal, para atuar como missionário de sua versão pessoal de moralização do país.3 Recentemente, o pastor Luiz Roberto Silvado gravou, por própria conta, uma mensagem pedindo aos batistas que orassem contra a corrupção no Brasil dias antes da prisão do ex-presidente Lula no controverso processo do triplex.
Repercutindo tais movimentos, Fábio Py,4 ex-professor do Seminário Teológico Batista do Sul do Brasil, localizado no Rio de Janeiro, comenta que está em curso uma reaproximação dos batistas brasileiros com organizações missionárias dos batistas do sul dos Estados Unidos, meio religioso no qual o racismo é particularmente forte. A liderança dos paranaenses na Convenção Batista Brasileira teria forte influência nesse encaminhamento, visto que a Faculdade Batista do Paraná, onde Piragine e Silvado exercem influência como professores e presidentes de duas das igrejas mais importantes do estado, mantém forte vínculo com os batistas do sul dos Estados Unidos, tendo inclusive dois professores norte-americanos em seus quadros.

Dissidências liberal-conservadoras: o caso da igreja Caminhos da Graça
Muitas dissidências têm surgido no meio protestante. Nem todas, porém, rompem com o caráter conservador derivado do fundamentalismo. Como exemplo, temos a igreja emergente Caminhos da Graça, fundada pelo ex-presbiteriano Caio Fábio D’Araújo, que teve importante presença entre os protestantes na década de 1990 à frente da Associação Evangélica Brasileira (AEVB). O pastor caiu em desgraça no final daquela década com o escândalo do Dossiê Cayman e com a revelação de um caso extraconjugal com a então secretária, considerado um pecado capital entre os evangélicos. Depois de um tempo no ostracismo, Caio Fábio vem pouco a pouco reconquistando espaço por meio das mídias sociais, atraindo inúmeros evangélicos deslocados dos meios protestantes históricos e neopentecostais. Tem se esforçado para reconstruir sua imagem como profeta injustiçado por um meio religioso corrupto e impenitente, adotando um discurso ácido contra as lideranças neopentecostais, sem poupar, entretanto, as lideranças progressistas que antes militaram ao seu lado na AEVB.
No campo político, Caio Fábio vinha mantendo uma crítica ao PT em tons moderados até 2013, quando passou a surfar na onda de antipetismo (e antiesquerdismo) que varreu o país após as jornadas de junho de 2013. Antes da campanha de 2014, passou a adotar um discurso que se associou com as fake news difundidas pela extrema direita nas redes sociais. Chegou a afirmar que vivíamos numa ditadura petista, que tinha por objetivo transformar o Brasil numa nova Venezuela. Não satisfeito, articulou um hangout com Olavo de Carvalho e Danilo Gentilli, em que teses delirantes sobre uma conspiração petista foram afirmadas, com o testemunho probatório do pastor de que o caso do Dossiê Cayman era, no final de tudo, uma armação de Lula. Desde então, Caio Fábio passou a fazer coro ao linchamento público do petismo, apoiando as medidas de exceção contra suas principais lideranças e o próprio golpe de Estado, e vez ou outra repercutindo fake news oriundas de fontes de extrema direita, entre as quais o site O Antagonista.
Apesar disso, Caio Fábio não pode ser classificado como um fundamentalista no plano teórico, visto que possui interpretações bastante heterodoxas de alguns dogmas cristãos. Entretanto, ele mantém uma relação bastante ambígua com o fundamentalismo, ora criticando-o, ora apropriando-se de alguns de seus pressupostos, dependendo da pessoa a quem destina seu discurso beligerante. No âmbito ideológico, tem misturado um discurso liberal nos costumes (menos em relação aos gays, a quem ele diz aceitar, desde que calados) e conservador na política, analisada por meio de seu prisma moralista particular. Carregado por uma linguagem que exagera pelo pedantismo, ele tem marcado sua trajetória recente por um enorme personalismo, anulando a emergência de outras lideranças em seu meio religioso – característica, aliás, já presente nos tempos de AEVB, conforme analisou o sociólogo protestante Paul Freston anos atrás.5

Há esperança?
Diante de tal quadro, pode-se afirmar que a expansão dos evangélicos no Brasil representou um grande retrocesso ideológico, pela enorme influência do fundamentalismo e do neopentecostalismo nesse processo. Evangélicos e protestantes ideologicamente mais progressistas e à esquerda têm tido, portanto, pouco espaço nesses meios religiosos. Muitos ficam divididos entre o que ouvem todos os domingos na igreja e o que sentem no tocante à sua realidade social.
Entretanto, vêm ressurgindo novos movimentos que buscam retomar práticas religiosas mais libertárias e socialmente comprometidas. Em destaque, surgiu recentemente a Frente Evangélica pelo Estado de Direito, que conta com a contribuição de expoentes como Ariovaldo Ramos, antigo colaborador da AEVB, e grupos aqui e ali que têm tentado contrapor o discurso conservador dominante, realizando interpretações dos Evangelhos à luz da luta pelos direitos humanos. Num Brasil cada vez mais evangélico, não se pode deixar de saudar a emergência desses novos movimentos, visto que, num país profundamente religioso, o combate à injustiça social precisa ter sua tradução religiosa.

*Robson Santos Dias é professor do Instituto Federal Fluminense.

(Publicado originalmente no site do Le Monde Diplomatique Brasil)
 

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