Nastassja Pugliese
Hipátia de Alexandria, Marie de Gournay, Mary Astell e Kristina Wasa: pensadoras pouco lembradas pela academia (Arte: Revista CULT)
Hipátia de Alexandria, Marie de Gournay, Christine de Pizan, Margaret Cavendish, Kristina Wasa, Anne Conway, Damaris Cudworth, Mary Astell, Émile du Châtelet, Mary Wollstonecraft. Mesmo com a ampliação dos debates na comunidade filosófica brasileira sobre a ausência de autoras mulheres nas obras canônicas da história da filosofia, ainda é muito provável que um aluno de graduação termine seu curso sem ter ouvido falar sobre nenhuma delas. É possível, ainda, que um aluno de pós-graduação não tenha participado ou ouvido falar bem de pesquisa alguma sobre elas. Também não é impossível que professores universitários que trabalham com história da filosofia não tenham lido obras produzidas por mulheres filósofas. E, sejamos realistas, há um grande desinteresse por parte destes últimos em investigar sobre obras não-canônicas escritas por “autores menores”. É comum que os professores pesquisadores descartem de antemão a relevância destas obras por não terem eles mesmos sido expostos a elas ao longo da carreira (afinal, se não estão no cânone, é porque suas obras não são tão importantes assim).
Por isso, na pesquisa sobre as obras filosóficas clássicas escritas por mulheres, se impõe a reflexão sobre as condições materiais, sociais e políticas do processo que se inicia no fazer filosófico e se concretiza na entrada das obras para a história. A exigência dessa reflexão parte também da observação da fragilidade do tema no presente contexto de ensino e pesquisa de filosofia no Brasil, evidenciada pelas parcas investigações sobre o tema, no pouco número de traduções das obras para o Português, na ausência de literatura secundária e das poucas conferências sobre suas contribuições. Entre outros motivos, penso que este estado de coisas se deve a uma falta de clareza metodológica em relação às razões para se motivar o estudo e, por conseguinte, incluir as obras das mulheres nas agendas de pesquisa.
Na maior parte das vezes, as razões para a ausência de protagonismo feminino na história da filosofia e nos debates filosóficos são rápida e facilmente encontradas fora da filosofia: a dificuldade de acesso das mulheres às esferas institucionais das atividades intelectuais, a falta de autonomia dentro do contexto privado e a ausência de cidadania plena no ambiente público. Questões relativas às possibilidades de publicação de suas obras também influenciavam o reconhecimento público de suas ideias: quando mulheres conseguiam publicar seus escritos, ou a autoria de suas ideias era disputada e atribuída a homens de seus círculos intelectuais, ou a obra era classificada apressadamente como escrito anônimo. Algumas delas, entretanto, participaram ativamente dos círculos intelectuais de suas épocas, tiveram suas obras intensamente debatidas por grandes figuras da época, mas não aparecem nas antologias e enciclopédias da história da filosofia.
Ainda que consideremos a arbitrariedade destas razões externas à filosofia na falta de reconhecimento da produção intelectual feminina no decorrer da história da filosofia, o apelo a estas condições históricas não se mostra suficiente para motivar o estudo de suas obras. Isto porque o cânone define e é definido por questões e obras habitualmente trabalhadas. Assim, há uma inércia na pesquisa filosófica que faz não ser interessante modificar o cânone, principalmente se essa mudança vier apenas de critérios exteriores à reflexão filosófica.
Pesquisadoras que movimentam, hoje, as discussões e a produção filosófica sobre mulheres e cânone na história da filosofia, criando grupos de pesquisa, realizando traduções, estudando suas biografias e obras, se dedicam também a discutir questões de metodologia da pesquisa em história da filosofia. Um marco importante no final do século XX foi a publicação do número especial da revista Hypatia em 1989, com o tema History of women in philosophy. Mas o trabalho de resgate foi realizado principalmente por Marjorie Nicholson, Mary Ellen Waithe, Eileen O’Neill. Este fato é importante porque a pesquisa metodológica contribui para sedimentar a discussão e para estabelecê-la desde dentro da filosofia, a partir do questionamento de seus próprios critérios.
Gostaria principalmente de chamar atenção para o trabalho metodológico de Lisa Shapiro. Em seu artigo de 2005, “Some thoughts on the place of women in early modern philosophy”, ela argumenta que a disputa narrativa que se encontra no processo de estabelecimento da história canônica da filosofia ocorre entorno de dois grandes eixos de discussão: o dos critérios externos e o dos critérios internos às obras filosóficas. Os critérios externos são aqueles que se baseiam em fatores que relacionam o texto com as suas condições de surgimento, ou seu contexto histórico. Shapiro critica a tomada dos critérios externos como único parâmetro de inclusão das obras escritas por mulheres no cânone.
Seu argumento é a favor de uma articulação da história a partir da compreensão da função do cânone como roteiro ou enredo de uma narrativa protagonizada por perguntas. Ao invés de se privilegiar certos autores ou obras, parte-se do princípio de que são as perguntas que determinam os autores a serem estudados. Dependendo das perguntas feitas, constrói-se um roteiro a partir dos autores que trabalharam determinadas questões. Ao privilegiar as perguntas, o direcionamento da pesquisa se dá de modo interno às obras filosóficas, pois as perguntas não são anteriores a elas, mas concomitantes. Não podemos cair no erro de achar que a pergunta torna o cânone irrelevante. O que o privilégio da pergunta implica é em um direcionamento da seleção de obras e de relação entre as teses apresentadas nas obras. Ela funciona como princípio norteador da pesquisa, a partir do qual as obras se tornam relevantes frente a um certo tema. A pergunta direciona o objeto de estudo – nas palavras de Shapiro, “muda sutilmente as questões filosóficas tomadas como centrais e permite que um maior número de figuras se tornem centrais”.
Esta nota metodológica é, portanto, um convite a pensarmos quais mudanças nas perguntas filosóficas que fazemos podem nos ajudar a questionar a homogeneidade do cânone, facilitando assim o ressurgimento de figuras forçadamente ignoradas e auxiliando em seu reconhecimento.
NASTASSJA PUGLIESE é professora da Faculdade de Educação e do Programa de Pós-Graduação em Lógica e Metafísica no Departamento de Filosofia da UFRJ, foi pesquisadora de pós-doutorado na Universidade de São Paulo junto ao Grupo de Estudos Espinosanos e é membro do corpo editorial dos Cadernos Espinosanos.
(Publicado originalmente no site da Revista Cult)
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