Charles Feitosa
Platão, Sócrates e Aristóteles (Reprodução)
A filosofia de fato é “filha do seu tempo”, como afirmava Hegel. Cada época clama por mais e melhores pensamentos, mas a filosofia nunca dita o que deve ser feito, cabe a cada um de nós decidir como vamos corresponder a esse clamor. Onde quer que esteja, a tarefa do filósofo consiste sempre em questionar os discursos vigentes, as explicações hegemônicas, as unanimidades de cada era. Assim foi quando Platão questionou a falta de senso crítico dos seus concidadãos atenienses em relação à poesia de Homero ou quando Hegel denunciava as consequências éticas e políticas da ascensão do “indivíduo” na modernidade.
Hoje, no mundo globalizado, a filosofia continua sendo solicitada a questionar os lugares consolidados do pensamento, seja na esfera ética/política (quando nossos concidadãos absorvem de maneira acrítica os discursos da mídias ou os boatos das redes sociais); seja na esfera epistemológica (quando, por exemplo, as ciências humanas se rendem à tendência reducionista de considerar o cérebro como o índice mais fundamental da humanidade); ou ainda na esfera estética (quando certas instituições arquivísticas acreditam deter o poder de determinar o que é ou não é arte).
Muitas vezes a estratégia dos filósofos consiste justamente em colocar à prova a validade de certas interpretações que o ser humano faz do mundo, dos outros e de si mesmo, esticando-as ao máximo, desvelando assim suas possíveis decorrências ainda não evidentes. É famoso o comentário de Heidegger na palestra A Coisa (1951) sobre a bomba atômica, evento histórico decisivo que surpreendeu o mundo inteiro em 1945. Para Heidegger a bomba atômica de alguma maneira já tinha explodido muito tempo antes, enquanto um efeito não apenas acidental, mas sim necessário, da aposta exclusiva pela racionalidade científica, ou seja, pela exploração tecnicista da natureza, que a civilização ocidental havia feito. Logo, nenhum protesto pelo desarmamento nuclear teria êxito completo se não fosse sempre acompanhado por uma constante reflexão crítica sobre a essência da técnica, na qual depositamos todas nossas esperanças.
Outra história que ilustra essa desconfiança da filosofia em relação aos “coros dos contentes” é a famosa entrevista que Adorno deu para a revista alemã Der Spiegel em maio de 1969, no auge das manifestações, das barricadas, dos protestos estudantis que contagiavam as Américas e a Europa. Apesar de eu discordar das posições ali defendidas sobre a relação entre teoria e da prática, considero emblemático o modo como a conversa se desenrola para se compreender a singularidade do gesto filosófico. O repórter inicia sua entrevista com a seguinte frase: – “Professor Adorno, duas semanas atrás, o mundo ainda parecia em ordem…” e é interrompido firmemente pelo filósofo, que diz simplesmente: -“Não para mim”. Essas e muitas outras anedotas contribuem para a imagem do filósofo como um portador de más notícias, sempre nos alertando de que o pior estar por vir. Isso fica especialmente nítido em relação a questão da morte, que é o nosso futuro mais certo, ainda que em hora incerta. A filosofia pode ser definida desde os seus primórdios como um memento mori [em latim: lembre-se da morte] uma espécie de sino que dobra constantemente para nos lembrar da nossa condição efêmera.
Aqui vale a ressalva que o objetivo da filosofia não é nos aterrorizar com a lembrança da morte, mas sim nos provocar e sacudir, para que possamos de vez em quando reavaliar nosso modo de ver o mundo e as nossas prioridades na existência. Da mesma forma não se deve deduzir do exposto que o papel da filosofia se reduz apenas a profetizar apocalipses, individuais ou coletivos. Isso depende muito de cada contexto. A filosofia tem sido historicamente um alerta quando o otimismo se torna hegemônico, mas acredito que ela pode também se tornar uma brisa de ar revigorante, quando é o pessimismo e a sensação de impotência que predominam, tal como ocorre no Brasil de hoje.
Quais são portanto, as tarefas do pensamento nesses tempos bizarros? O termo “bizarro” está em moda no Brasil e corre o risco de perder a força devido à sua superexposição. Tudo o que não se entende, que é incomum, extravagante, ganha a alcunha de bizarro. A origem do termo é nebulosa, como de hábito, mas alguns historiadores afirmam que ainda no século 16, “bizarro” em espanhol tinha um sentido diverso, a de garboso, valente, admirável. Somente no século seguinte, transportado para a língua francesa, que o termo ganhou o sentido que prevalece até hoje, de algo “muito anormal”. Então quando falo em tempos bizarros para descrever o momento atual de exceção no Brasil, quero apostar na ambiguidade originária desse termo, pois certamente vivemos tempos muito estranhos, marcados por ataques políticos-midiáticos-jurídicos-econômicos à democracia. Mas acredito que também poderão vir a se mostrar como “tempos de coragem”, quem sabe até como “tempos admiráveis”, onde não mais será possível deixar de se posicionar e de participar dos combates.
É por isso que prefiro descrever nossos tempos como “bizarros” e não recorrer ao já consagrado jargão “tempos sombrios”. A expressão “tempos sombrios” foi eternizada pela filósofa política alemã de origem judaica Hannah Arendt no seu livro Men in Dark Times (1968). Nele são descritas as vidas de homens e mulheres, tais como Rosa de Luxemburgo, Walter Benjamin ou Bertold Brecht, que por meio de suas ações foram exemplos de resistência contra os regimes totalitários que surgiram durante a primeira metade do século 20. A expressão que dá nome ao livro de Arendt foi inspirada no famoso poema Aos que virão depois de nós [An die Nachgeborenen] (1934-1938) de Bertold Brecht que diz: “Eu vivo em tempos sombrios [finsteren Zeiten]. / Uma linguagem sem malícia, é sinal de estupidez. / Uma testa sem rugas, é sinal de indiferença. Que tempos são esses?”.
Apesar desse heroico pano de fundo, considero que o termo “sombrio” ainda está irremediavelmente preso ao binarismo típico da modernidade, onde a luz evoca auto-consciência e conhecimento, ao passo que a escuridão e as trevas representam a ignorância e a violência. O uso da luz como remédio pode ter sido adequado para os tempos modernos, uma época em que ainda vigorava a luta da verdade contra a mentira, mas talvez não sirva mais para o momento atual, marcado ao contrário por uma inflação de verdades a todo custo, seja na forma das fake news da internet ou ainda dos assim chamados “fatos alternativos” de Donald Trump.
Desconfio que o diagnóstico da situação atual indique ao contrário um excesso de luminosidade na vida cotidiana (representada pela a omnipresença da tecnologia, da farmacêutica, das mídias de massa, da burocracia, etc.), o que acaba deixando cada vez menos espaço para a noite (representada pelas artes, pelos corpos, por seus gestos, seus afetos, suas ações). Luz demais também cega, já indicava Platão desde a alegoria da caverna.
Dentro desse contexto “pós-moderno” talvez a tarefa do filósofo não seja mais apenas disseminar a luz, mas ao contrário defender os espaços de escuridão. Tal como bem defende o historiador da arte francês Didi-Huberman no seu belo livro A Sobrevivência dos Vagalumes (2014), para que os “vaga-lumes” – simbolizando outras formas de saberes, fora do eixo, periféricas, tais como as oriundas da matriz africana, oriental ou ameríndia – possam ser preservados da ameaça da extinção.
Para mim, mais do que defender a noite, talvez a filosofia atual precise nesses tempos bizarros partir para uma dimensão ainda mais ativista e promover ela mesma alguns “apagões” ao seu redor. Um “apagão”, como bem sabemos, é uma situação incômoda que costuma interromper nossas atividades recorrentes, seja de trabalho ou de entretenimento. Mas dependendo da nossa atitude de resposta, um apagão pode vir também a se tornar um buraco criativo no tempo cotidiano, uma oportunidade de iniciar aquela conversa consigo próprio, muitas vezes adiada, que os antigos chamavam de pensar. Durante esses apagões quem sabe possamos nos “lembrar da vida” e contrapor o pessimismo e a sensação de impotência com a invenção de mais e melhores estratégias para reconquistar os territórios que estão sendo roubados de nós, brasileiros.
Vila Isabel, Rio de Janeiro, inverno de 2017
Charles Feitosa é doutor em Filosofia pela Universidade de Freiburg i.B./Alemanha; professor e pesquisador do Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas (PPGAC) da UNIRIO; coordenador do Pop-Lab (Laboratório de Estudos em Filosofia Pop) e autor entre outros de Explicando a filosofia com arte (Prêmio Jabuti 2005).
Nenhum comentário:
Postar um comentário