pub-5238575981085443 CONTEXTO POLÍTICO.
Powered By Blogger

domingo, 22 de outubro de 2017

Charge! Jean Galvão via Folha de São Paulo

Jean Galvão

Durval Muniz: Carência e cidadania

Resultado de imagem para durval muniz de albuquerque

 
Desde a Revolução Francesa, quando surgiram as noções de esquerda, de direita e de centro para nomear posições políticas, a partir da localização dos parlamentares na Assembleia Nacional, que discutia a proposta de Constituição que poria fim ao regime absolutista, que aqueles que se colocam à esquerda do espectro político se definem por uma maior preocupação com que o exercício da atividade política, com que o exercício da cidadania se faça em nome do atendimento aos interesses daqueles que compõe as maiorias da sociedade (na época o Terceiro Estado ou o povo), aqueles que se definiriam pelo deficit de representação política, portanto de cidadania, mas que, sobretudo se definiriam por viverem em situação de carência econômica e social. Foi como repercussão do ideário da Revolução Francesa, sobretudo na busca pela igualdade entre os humanos, que as utopias socializantes surgiram, ao longo do século XIX. As experiências, que foram chamadas pelos marxistas, de socialismos utópicos, e que resultaram em episódios como as tentativas revolucionárias de 1848, em alguns lugares da Europa e de 1871 (a chamada Comuna de Paris), na França, além da constituição de experiências comunitaristas e socializantes de várias espécies, foram inspiradas nesse afã de busca de respostas para solucionar desigualdades e carências. Enquanto as experiências anarquistas enfatizavam muito mais a questão da liberdade, tomando a igualdade como uma resultante dela, o pensamento marxista enfatizava primeiro a igualdade, tomando ela como pré-condição da liberdade. Os famosos desentendimentos entre marxistas e anarquistas no seio da Primeira Internacional dos Trabalhadores tem nessa discrepância um de seus motivadores, embora a luta por poder e controle do movimento operário também seja muito relevante. A prevalência do marxismo, sua vitória, tanto em relação ao que chamou de socialismos utópicos, quanto em relação ao anarquismo, fez as esquerdas se tornarem majoritariamente marxistas, embora com leituras diversas dessa tradição. Por seu turno, essa prevalência do marxismo no interior das esquerdas tornou o tema da igualdade e o tema da carência, notadamente de ordem econômica e social, como o cerne da elaboração de projetos políticos e da prática política das esquerdas ocidentais.
Uma visão economicista da ordem capitalista e burguesa e dos próprios projetos de transformação social tendeu a negligenciar outras dimensões da vida social. As propostas políticas das esquerdas, inclusive quando elas começam a chegar ao poder de Estado, seja através de processos revolucionários, como ocorreu com os bolcheviques na Rússia ou com os maoistas na China, seja através de eleições legislativas ou executivas, como ocorreu com a chamada social-democracia, em países como a França ou a Alemanha, ou mesmo com os comunistas na Itália ou socialistas na Espanha, Portugal, Chile, sempre enfatizaram as dimensões econômicas e sociais, em detrimento das dimensões culturais, subjetivas ou de valores, como as propostas anarquistas e algumas propostas chamadas de utópicas, como aquela encanada na figura de Charles Fourier, traziam em suas formulações. A centralidade dada as carências econômicas e sociais nas plataformas de governo das sociedades ditas socialistas e dos governos de esquerda no Ocidente, negligenciou em algumas, inclusive, a questão da liberdade, como nas chamadas ditaduras do proletariado à medida que se reduzia o político ao econômico, numa equiparação retórica e falaciosa entre socialização dos meios de produção e democracia. A chamada democracia liberal burguesa era denunciada como uma farsa por ser assentada na desigualdade e na defesa da propriedade privada. Por outro lado, essa centralidade do econômico resultou em muitos casos no dirigismo cultural e ideológico e na tentativa de padronização das subjetividades, com exigências terríveis como as levadas à efeito pela chamada Revolução Cultural chinesa.
O que assistimos nos últimos treze anos no Brasil, e o que estamos vivendo agora, se deve ao fato de que, uma vez chegando ao poder de Estado, o Partido dos Trabalhadores não conseguiu romper com essa longa tradição da esquerda marxista de achar que as camadas populares só têm carências de ordem econômica e social. O discurso de posse de Lula a esse respeito é emblemático: sua grande ambição era que ao final de seu mandato todo mundo no país pudesse tomar café, almoçar e jantar. Num país em que milhares de pessoas passavam fome, esse discurso fazia todo sentido, mas era redutor das carências das pessoas, inclusive dos pobres. Mesmo os grandes investimentos feitos em educação, em ciência e tecnologia, em cultura foram atrelados a essa lógica da carência econômica e social. Nos governos Dilma, o discurso tecnocrático e desenvolvimentista se tornou hegemônico nas discussões de programas e políticas educacionais e culturais, a educação foi pensada como fator de desenvolvimento econômico, na lógica dos discursos sobre educação das agências internacionais, inclusive engolindo o mito da meritocracia e da internacionalização, se esquecendo da formação política da população, de políticas de produção de subjetividades voltadas para enfrentar elementos culturais arraigados no país, como o autoritarismo, o desapreço pela democracia, o racismo, a visão senhorial, a saudade da escravidão, a misoginia, a homofobia, o preconceito contra a pobreza. Se, no governo Lula, ainda se deu passos tímidos nessa direção, o fato do Pronatec e do Ciência Sem Fronteiras terem se tornado os programas vitrines do governo Dilma, diz bem do giro tecnocrático e economicista que sua política educacional sofreu. Faltou, aos governos do PT, desde o inicio, a percepção de que o ser humano é existencialmente carente, por ser mortal, por se saber finito, por saber da possibilidade de adoecimento, pela possibilidade da perda do que lhe é mais caro, pela possibilidade do fracasso. Faltou, aos governos do PT, uma política de produção de subjetividades, o que não significava, como dados setores da direita queriam fazer crer, que os governos do PT deviam ter políticas de dirigismo cultural e ideológico, mas devia ter efetivamente disputado esse campo, não se acovardado diante das acusações de estalinismo, de promover censura, de promover lavagem cerebral. A inação do PT diante do monopólio da mídia no país, seu abandono da educação de base, a falta de clareza em relação a políticas de educação e cultura, ao lado de outros eventos ocorridos nesses últimos anos, no país, explica a onda conservadora que estamos vivendo e na qual naufragou a própria experiência petista.
Ao achar que as principais carências das pessoas são de ordem econômica, as esquerdas marxistas nunca saíram de fato do domínio das subjetividades produzidas pelo próprio capitalismo. O capitalismo não é apenas um modo de produzir mercadorias, como pensava Marx, mas uma forma de produzir subjetividades, como já defendia Max Weber. A ordem capitalista se mantém porque captura os desejos e as carências afetivas, emocionais, existências, biológicas dos seres humanos e as colocam a seu serviço. O capitalismo molda os corpos dos humanos às suas necessidades e as suas subjetividades também. O grande truque do capitalismo é transformar, justamente, carências de toda ordem em carências de consumir, de trabalhar, de lucrar, de acumular, de poupar, de investir, tornando-se o próprio sentido da vida humana. O capitalismo, embora no início tenha recriado a escravidão e se utilizado da servidão – ainda as utiliza em certas circunstâncias, desde que não sofra resistência – não necessita delas pois bastou encontrar formas de que as pessoas, os trabalhadores internalizem o feitor e o chicote. Quando achamos que o trabalho é que dá sentido ao existir, quando achamos que só se é feliz sendo proprietário de algo ou de alguém, quando nos submetemos aos maiores sacrifícios para consumir, quando nos proibimos de inúmeras coisas para poupar ou para investir, estamos subjetivamente dominados pelo capital, que não existe apenas como valor de uso ou de troca, mas como valor cultural, moral, éticos e estético. O dinheiro não é apenas um equivalente geral, aquilo que se troca por tudo, no plano econômico, mas até no plano afetivo, sexual, desejante. As pessoas gozam com o dinheiro, somente isso explica perversões como fortunas que são maiores do que qualquer um pode gastar em toda vida e que ainda busca sempre mais, apelando inclusive para a corrupção. Quando Marx aproximava o operário da prostituta, embora houvesse muito de misoginia e preconceito nisso, ele não deixava de estar correto, pois no capitalismo, até o desejo é canalizado para o capital, a propriedade, a posse. Os movimentos de prostitutas ao reivindicar serem consideradas trabalhadoras do sexo expõem não só essa equivalência, mas a captura desse movimento pela lógica do capital. Quando o dinheiro pink se torna expressão do que seria o novo poder homossexual, nada mais está explicitando do que a captura do desvio e da transgressão pelo capital, que passa a oferecer lugares de encontro, divertimento, pegação, sexo, etc, separando, inclusive, as bichas ricas das bichas pobres, vistas com desprezo e desdém.
Ainda no início do século XX, Freud já relacionava o sentimento religioso e a carência ontológica, ou seja, constituinte do próprio humano. O desamparo, ao contrário do que tendem a pensar as esquerdas, não é apenas de ordem econômica ou social, mesmo as pessoas mais privilegiadas do ponto de vista social ou da fortuna podem se sentir desamparadas e carentes. As religiões surgiram e proliferam, até hoje, para dar respostas as carências básicas do homem: carências de ordem biológica (representadas pelo adoecer e pelo morrer), carências de ordem existencial (os medos de falhar, de perder, de não ter) e as carências de reconhecimento (a necessidade de se sentir alguém ou de ser alguém para si e para os outros). Hoje vemos que, na ausência de políticas de subjetivação levadas a efeito pelas esquerdas, essas carências passaram a ser capturadas por um discurso religioso, cada vez mais conservador e retrógrado. A medida que o capitalismo deu origem a uma ordem social onde a sensação de insegurança não para de crescer, as pessoas buscam se agarrar em discursos e instituições que vendem segurança e certezas. O capitalismo já nasce através de um brutal processo de desterritorialização, com a destruição das comunidades tradicionais, com a destruição dos laços comunitários, com o processo de expropriação em massa, com o processo de migração e tráfico de pessoas para a escravidão, com o lançamento das pessoas numa vida cada vez mais incerta e desconhecida. O capitalismo gera, como nenhuma outra ordem social, a sensação de carência, insegurança e incerteza e oferece a mercadoria, o consumo, inclusive de seus produtos culturais, de suas crenças, como a saída. Vende comunidades imaginárias como as nações e as regiões, como os clubes esportivos, como substitutas da vida das aldeias, das cidades, das vilas, das comunidades tradicionais que destrói. As religiões, desde o protestantismo histórico, tendem a associar sucesso material e salvação eterna. As crenças se individualizam e, depois, se tornam mercadorias, que se vendem num aquecido mercado religioso. Há duas semanas, fui surpreendido com um carro de som, desses que fazem propaganda, a anunciar pelas ruas do bairro onde eu moro, a abertura de uma nova igreja, o texto em nada se diferenciava dos textos que anunciam abertura de lojas comercias: – Chegou, chegou em nossa cidade, venham, venham, compareçam a inauguração, serão ofertados brindes a quem comparecer, estará presente a inauguração o pastor, venham ouvi-lo, tragam a sua família e os amigos, depois de muito êxito em outras cidades, finalmente chega a Natal!. As religiões não exploram hoje apenas o medo de morrer, as carências biológicas (as doenças, prometendo milagres e curas), mas também as carências econômicas (a teologia da prosperidade, bem afeita a um modo de produção subjetiva capitalista faz as pessoas amarem o dinheiro e buscar na mercadoria e no dinheiro, inclusive, na doação do dízimo, ao mesmo tempo a salvação e o sucesso material), mas também carências de ordem afetiva e de reconhecimento (dando a elas uma fraternidade ou uma comunidade alternativa à sua solidão e as colocando em lugares de destaque que por sua condição social e, inclusive, étnica não desfrutam em outro lugar).
Em certo momento, a chamada Teologia da Libertação, no interior da Igreja Católica e de algumas religiões protestantes, articulou em suas mensagens e práticas, as carências de ordem econômica e social, com as carências de ordem existencial, subjetiva, afetiva da população e isto teve como resultado o aparecimento de inúmeras lideranças, nos meios populares e mesmo na classe média, capazes de articular a luta por cidadania social e econômica, com a luta por direitos humanos, por cidadania política entendida como luta por liberdades e valores, inclusive com militância no campo da cultura e das artes. A chamada macropolítica, foi articulada com o que o filósofo francês Félix Guattari chamou de micropolítica, a política entendida como investimento no sentindo de redirecionar nossos desejos, nossas subjetividades, não apenas nossas maneiras de pensar, mas de sentir, de imaginar, de desejar. A dura repressão perpetrada contra essa teologia pelos dois últimos Papas, conservadores, foi fatal para que, ao lado do abandono da militância de esquerda nesses campos, até por estarem no poder de Estado, o que sempre foi outro mito, vindo desde a Revolução Francesa, a ideia do Estado como demiurgo, capaz de tudo mudar e transformar de cima para baixo, o bonapartismo esquerdista, que se acentuou com o leninismo e o estalinismo, levou a essa onda conservadora que, também advém em todo momento que uma crise do capitalismo acontece. Quanto mais inseguras e carentes estão as pessoas mais facilmente elas são capturadas em seus desejos por discursos e personagens que prometem segurança e um mundo em preto e branco, um mundo maniqueísta em que tudo é certo, simples e nítido. Um mundo cheio de bruxas e bodes expiatórios a serem caçados e responsabilizados pela infelicidade, pela carência, pela solidão, pelo desamparo de cada um: o PT, Lula, Dilma, a corrupção, o homossexual, o petralha, o mortadela, o coxinha, o feminismo, a imoralidade, os políticos, etc. Bolsonaro, Malafaia, Feliciano, Moro, aparecem como objeto de desejo de carentes de todos os matizes.
Numa sociedade que nos diz, todos os dias, na TV, que só somos felizes se consumirmos dados produtos e, ao mesmo tempo, concentra riqueza, produz miséria e desigualdade, produz desemprego e trabalho precário, dá origem a uma massa de frustrados que projetam suas frustrações em dados alvos apontados pelo próprio discurso midiático, fazendo assim suas catarses coletivas. Mas também é uma sociedade que ao produzir indivíduos, ao produzir subjetividades egóicas e egoístas, como não acontecia em sociedades anteriores, onde era inconcebível alguém sobreviver sozinho ou fora de uma coletividade, gerou laços sociais cada vez mais frágeis, as chamadas relações líquidas, tratadas em ensaio fotográfico de Mayse Medeiros, nesse portal, onde a solidão e a carência afetiva e sexual é a tônica. As sociabilidades de esquerda, as políticas culturais críticas, a oferta de formas de expressão dos desejos que se dirijam para a aceitação da mudança, que se pautem pela criatividade e pela inventividade deram lugar a sociabilidades microfascistas, fragmentadas e alienadas através das redes, conectando o desejo à violência, promovendo o ódio, a raiva, o desejo de vingança e punição, o desejo de morte, gerando subjetividade reacionárias e reativas, levando ao gozo com a destruição e a agressão. Não pode haver cidadania, não pode haver projeto de transformação social que não leve a sério e discuta a produção social do desejo e a produção coletiva de subjetividades.

Durval Muniz é professor titular da Universidade Federal do Rio Grande do Norte

(Publicado originalmente no site Saiba Mais, Agência de Reportagem, aqui reproduzido com a autorização do autor)

sábado, 21 de outubro de 2017

O xadrez político das eleições estaduais de 2018, em Pernambuco: Fernando Bezerra parte para o confronto com Paulo Câmara.

Resultado de imagem para Bruno Araújo/Mendonça Filho/FBC

José Luiz Gomes da Silva

Cientista Político


O senador Fernando Bezerra Coelho(PMDB) assume o protagonismo político de quem, de fato, é candidato ao Governo do Estado nas próximas eleições estaduais. Em entrevistas concedidas durante esta semana, aproveitou para alfinetar o governador Paulo Câmara(PSB), com ironias do tipo "Pernambuco está em câmara lenta". Como se sabe, o nome que deverá encabeçar a chapa da Frente de Oposição - ou Conspiração Macambirense, como prefiro - ainda não é prego batido de ponta virada. Em alguns cenários possíveis, o senador poderia liderar a chapa. Este núcleo político reúne gente com a experiência da direita, que normalmente não briga naquilo que é essencial. E, para este grupo, o essencial é mesmo conquistar o Palácio do Campo das Princesas em 2018, seja lá com que cara for. A resposta do governador não tardou muito, depois que teria sido divulgado um índice em que Pernambuco lidera, no momento, o ranking nacional de geração de empregos formais. Ué, Fernando Bezerra Coelho não disse que o Estado estava parado?
 
Na realidade, esta foi uma semana de farpas trocadas entre governistas e oposicionistas. Na ALEPE, por exemplo, durante uma audiência pública sobre segurança, o deputado Joel da Harpa(Podemos) e José Maurício(PP) quase foram às vias de fato, com direito a dedos em ristes e aqueles palavrões conhecidos. Mesmo neste clima, líderes da oposição conseguiram dialogar e propor um conjunto de sugestões ao Governo do Estado, que estava ali representado pela cúpula de segurança pública. Voltou a ser discutida a criação do Conselho de Gestão do Pacto Pela Vida, uma velha reinvindicação dessa política de segurança pública, que nunca foi materializada. Escrevi um longo e denso editorial tratando deste assunto, mas deixo esse debate para um momento mais oportuno, embora ninguém tenha a menor dúvida de este será o mote da campanha de 2018 no Estado.

O senador Fernando Bezerra Coelho parece convencido de que as liminares concedidas pela justiça em favor dos peemedebistas Raul Henry e Jarbas Vasconcelos serão revogadas pela Direção Nacional da Legenda. Ou seja, em algum momento ele terá o controle da legenda no Estado, o que o permitiria aplicar dois golpes no Campo das Princesas: retirar o PMDB da composição governista, assim como fortalece-lo na disputa entre os novos companheiros de aliança política. É conhecida a indisposição da justiça em imiscuir-se nessas contendas. Em todo caso, como ele mesmo afirmou, não existe partido regional. Pelo menos não formalmente, senador, uma vez que o PMDB, na verdade, é uma federação de partidos regionais, cada qual hegemonizado por uma liderança política local.

A Conspiração Macambirense, até o momento, age com um padrão de integração que muito nos surpreende. Ninguém é assim tão ingênuo para acreditar que haja um padrão de harmonia entre eles. Não há. No entanto, os recados ainda são sutis, como, por exemplo, a presença de pefelistas históricos no ato de desagravo a Jarbas Vasconcelos(PMDB). Seus líderes se referem sempre ao conjunto de forças que devolverá o protagonismo político nacional ao Estado de Pernambuco. FBC, embora não admita, assume contornos de um possível cabeça de chapa; o ministro Bruno Araújo(PSDB) já foi lançado candidato ao Governo do Estado, num evento recente na cidade de Gravatá; Embora um pouco retraído nos últimos meses, o senador Armando Monteiro(PTB) continua no páreo desde as eleições passadas. Mas observem, sobretudo que, independentemente de um cabeça de chapa definido - ou pelo menos ainda não informado - eles desenvolvem projetos políticos muito bem articulados. Um pouco menos Armando Monteiro(PTB), mas Bruno Araújo(PSDB), Fernando Bezerra Coelho(PMDB) e Mendonça Filho(DEM) sempre estão juntos em grandes eventos políticos no Estado relacionados às suas pastas.

Hoje acompanhei uma entrevista com o ex-governador Joaquim Francisco(PSDB). Joaquim Francisco construiu sua carreira política ligada aos Democratas. É um político ali de Macaparana, um homem de "saudade de bosta", do meio-rural, do plantio da cana, do leite quente tirado do peite da vaca. Joaquim Francisco tem algumas tiradas políticas curiosos, oriundas de sua experiência rural. Uma das mais famosas é aquela onde ele afirma que está "meditando sob a maçaranduba do tempo", ao informar ao seu interlocutor que a decisão sobre determinado assunto ainda não foi amadurecida. "Cobra que não anda não engole sapo" é outro dito popular que ele costuma usar com frequência. Durante o programa, ele afirmou que o caboclo que não se movimenta perde o bonde da história. Além dos movimentos políticos equivocados, o governador Paulo Câmara(PSB), ao que nos parece, meditou bastante sob a maçaranduba do tempo, se é que vocês nos entendem. 
 

Charge! Renato Machado via Folha de São Paulo

Renato Machado

quinta-feira, 19 de outubro de 2017

A sopa de letrinhas do autoritarismo brasileiro

Imagem de perfil do Colunista
Uma das formas mais fáceis de reconhecer um comportamento autoritário é aquele que busca impedir a existência do outro. / Pixabay

"Fui ameaçada de estupro e de morte via redes sociais."
Em seu livro “A Batalha pela Espanha”, o escritor Antony Beevor faz uma classificação bastante útil (e óbvia) sobre as disputas em torno da Guerra Civil Espanhola: não se tratava apenas de uma batalha entre direita e esquerda, como em um primeiro momento podia parecer, mas entre um governo autoritário contra propostas libertárias.
Vivemos no Brasil uma complexidade classificatória semelhante: temos posições distintas no espectro político que podem, sendo de direita, centro ou esquerda, se colocar ao lado de certa liberdade ou de um autoritarismo.
Há, porém, uma confusão para entender quem é quem porque as siglas enganam. Afinal, temos um partido que se chama “Democratas” cuja origem histórica de suas lideranças remonta à Arena da Ditadura Civil-Militar. Ou um movimento que diz que é “livre” e fica tentando fechar exposições de museus e censurar a arte. E há ainda herdeiros de banco defendendo mantê-las abertas.
Uma das formas mais fáceis de reconhecer um comportamento autoritário é aquele que busca impedir a existência do outro, seja física – como no genocídio da juventude negra, no martírio dos povos indígenas, nos feminicídios ou nos assassinatos de LGBTs – ou subjetivamente – no apagamento dessas histórias e das vozes que reclamam seus direitos.
De acordo com o sociólogo português Boaventura de Sousa Santos, poderíamos compreender essas situações como uma espécie de fascismo social, que ocorre quando “pessoas ou grupos sociais estão à mercê das decisões unilaterais daqueles que têm poder sobre eles”. “São formalmente cidadãos mas não têm realisticamente qualquer possibilidade de invocar eficazmente direitos de cidadania a seu favor”, explica Santos.
Semana passada vimos mais um exemplo de um impedimento de debate: uma matéria veiculada – vejam só – pela Rede Globo sobre a divisão de brinquedos entre meninos e meninas – e que tinha como uma das entrevistadas esta que vos escreve – foi motivo para uma onda de ataques e violências contra as pessoas envolvidas naquela pauta. Fui ameaçada de estupro e de morte. “Cachorra”, “pedófila”, “nojenta”, “retardada” e “comunista imunda” foram algumas das alcunhas que recebi via redes sociais.
A compreensão de parte da sociedade era que as desigualdades deveriam sim ser mantidas. Queriam, portanto, sustentar a “ideologia de gênero”, aquela que diz que as mulheres estão condenadas a serem inferiores aos homens. E por quê? Bom, aí a lista de explicações é grande, variando de repressão sexual até obedecer ordens de lideranças religiosas. Só que a forma utilizada para fazer isso foi essa que eu descrevi aí em cima: buscando anular a existência do outro, se for possível a ponto de eliminá-la.
Ainda citando Boaventura, “quanto mais vasto é o número dos que vivem em fascismo social, menor é a intensidade da democracia”. E é esse o caminho que estamos seguindo.
O debate entre direita e esquerda só pode acontecer dentro de uma democracia radical e plural – que também está longe de ser a que vigorou no Brasil pós Constituinte de 1988. Fora da democracia, não há disputa de ideias. Nós não podemos, de forma alguma, engolir essa indigesta sopa de letrinhas do autoritarismo.
* Maíra Kubík Mano é jornalista e doutora em Ciências Sociais pela Unicamp. Professora do departamento de Gênero e Feminismo da Universidade Federal da Bahia (UFBA), pesquisa a participação e representação política das mulheres.
Edição: Daniela Stefano
(Publicado originalmente no site Brasil de Fato)

Pós-democracia instalou-se "docilmente" no Brasil, diz jurista


Pós-democracia instalou-se ‘docilmente’ no Brasil, diz juristaFrancisco Goya, da série ‘Os provérbios’, 1815 a 1823 (Reprodução)

Crise democrática é um conceito docilizador que serve para disfarçar o que realmente acontece na vida política: a derrocada de valores democráticos que obstruem a expansão do mercado. Essa é a tese que Rubens Casara, juiz do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro (TJ-RJ) sustenta no livro Estado pós-democrático: neo-obscurantismo e gestão dos indesejáveis, cujo lançamento acontece nesta terça (17), em São Paulo.
“A democracia, que antes já havia sido transformada em mercadoria, se tornou um obstáculo ao projeto neoliberal”, afirma o jurista em entrevista à CULT. “Limites e constrangimentos democráticos tornaram-se fatores de instabilidade para o mercado e à livre circulação do capital, razão pela qual, em nome da manutenção do capitalismo, precisam ser ‘relativizados’ ou descartados.”
Nesse panorama forma-se o que Casara denomina ‘Estado pós-democrático’. Em sua análise, diversos acontecimentos contemporâneos caracterizam essa mudança de paradigmas – como a ascensão de partidos conservadores, a crise migratória na Europa, a acentuação da violência de Estado, a hostilidade a moradores de rua e operações contra a corrupção no Brasil.
Outra face que esse processo assume, aponta, é a identificação do poder político e econômico, uma nova gestão política dos “indesejados” pelo capitalismo e a transformação do judiciário em mecanismo de ordenação da lógica de mercado. Leia entrevista abaixo.
CULT – A pós-democracia está se tornando uma realidade global?
Rubens Casara – O Estado pós-democrático nasce em razão das necessidades do capitalismo em seu atual estágio. A pós-democracia, portanto, é um fenômeno global e uma consequência da elevação da razão neoliberal a nova razão do mundo, nos termos desenvolvido por Christian Laval e Pierre Dardot. Em todo o mundo, em nome do crescimento do lucro e da circulação do capital, desaparecem limites éticos e jurídicos e a democracia torna-se dispensável. A desconsideração dos valores democráticos se tornou uma realidade nos países ricos e nos países pobres.
Quais os principais fatores que desencadearam esse fenômeno?
O principal fator foi a necessidade do capitalismo de se ver livre de limites ao lucro e à circulação do capital. Os interesses das grandes corporações, dos detentores do poder econômico, não se mostram compatíveis com a concepção de democracia forjada após a Segunda Guerra Mundial. Assim, por exemplo, a razão neoliberal leva a uma nova percepção acerca dos direitos e garantias fundamentais. Antes, esses direitos eram vistos como obstáculos ao arbítrio e aos abusos de poder, como limites intransponíveis ao surgimento de um novo Auschwitz. Agora, esses mesmos direitos e garantias, construídos como limites à barbárie, passaram a ser percebidos como óbices ao desenvolvimento do mercado e à eficiência repressiva do Estado. Os detentores do poder econômico precisam lucrar cada vez mais e o Estado precisa conter e exterminar todos aqueles que não interessam ao projeto capitalista. Em certo sentido, o Estado pós-democrático assume uma feição pré-moderna, isso porque o poder econômico volta a se identificar com o poder político, o que pode ser percebido tanto na Itália de Berlusconi quanto no Brasil de Temer e Doria.
E quais são, especificamente, no contexto brasileiro?
A tradição autoritária em que se encontra lançada a sociedade brasileira, que se caracteriza pela crença no uso da força para resolver os mais variados problemas sociais somada ao medo da liberdade, e os pactos elitistas que remontam à escravidão, facilitaram a consolidação da pós-democracia. Em países que não conseguiram forjar uma verdadeira cultura democrática, como é o caso do Brasil, foi mais fácil relativizar garantias constitucionais, extinguir direitos, perseguir os indesejáveis. Aqui, a pós-democracia instaurou-se docilmente.
Como a pós-democracia se relaciona com os últimos acontecimentos políticos brasileiros, como o impeachment e as operações contra esquemas de corrupção?
Uma das principais características do Estado pós-democrático é a inexistência de limites rígidos ao exercício do poder, de qualquer poder. No Estado condicionado pela razão neoliberal, o voto popular e a garantia do devido processo legal, apenas para citar dois exemplos, podem ser desconsiderados. Se no modelo do Estado democrático de direito o impeachment é medida de exceção e só pode se dar diante da existência incontestável de um crime de responsabilidade, no Estado pós-democrático o impedimento de um presidente eleito pode ser consumado em desconsideração aos requisitos impostos pela Constituição da República. Na pós-democracia, torna-se desnecessária a demonstração cabal da existência de um crime de responsabilidade, basta o desejo dos detentores do poder político e do poder econômico para que as regras do jogo democrático sejam desconsideradas. Vigora o que Ferrajoli chama de “poderes selvagens”, poderes sem controle ou limites. Da mesma maneira, violações ao devido processo legal, provas ilícitas, vazamentos ilegais de interceptações telefônicas, prisões desnecessárias, espetacularização da investigação e outros atos antidemocráticos passam a ser naturalizadas e utilizadas contra os indesejados aos olhos dos detentores do poder econômico. Os pobres e os inimigos políticos são as principais vítimas. Contra esse “indesejáveis”, os significantes “corrupção”, “trafico de drogas”, “associação criminosa”, dentre outros, passam a ser manipulados para justificar o afastamento de direitos, garantias fundamentais e a violação ao projeto constitucional democrático.
Rubens Casara (Foto Moisés Martins / Divulgação)
O juiz do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro (TJ-RJ) Rubens Casara (Moisés Martins/Divulgação)
É comum ouvirmos que crise pressupõe uma oportunidade de progresso. No entanto, você acredita que o Estado democrático de direito não passa por uma crise, e sim por uma nova ordem pós-democrática. Nesse sentido, você tem uma perspectiva negativa do desenvolvimento desse panorama?
A palavra crise retrata o momento em que um determinado quadro histórico, físico, espiritual ou político pode se extinguir ou, ao contrário, se recuperar e continuar a existir. Crise é um significante que procura dar conta de uma excepcionalidade. Se há crise, algo pode desaparecer ou, se as contradições forem superadas, continuar a existir. Agora, se o que caracteriza o Estado democrático de direito desapareceu, pois o que era mera exceção se tornou regra, e continua a se falar em crise, o que há é a ocultação de uma mudança paradigmática. Em outras palavras, o discurso atual da existência de uma “crise do Estado democrático de direito” tem uma função docilizadora, tem a finalidade de ocultar que os direitos e garantias individuais, o conteúdo material da democracia, não servem mais de obstáculo ao exercício do poder, em especial do poder econômico.
Ainda é possível pensar em antigos paradigmas, como o socialismo, para superar esse momento? 
Superar a pós-democracia exige ressignificar o mundo a partir de uma perspectiva ao mesmo tempo anticapitalista e antiautoritária. As coisas e as pessoas precisam ser desmercantilizadas. O poder precisa ser controlado por marcos democráticos. Para isso, há toda uma história que precisa ser resgatada. Tanto o projeto marxista de emancipação humana quanto a máxima da democracia liberal de respeitar as “regras do jogo” não podem ser desprezados. Aprender com o passado, com os erros e os acertos da caminhada em busca de vida digna me parece mais importante do que especular em busca de uma solução inédita e desvinculada das contradições sociais. Os socialistas, os anarquistas, os liberais, bem como a crítica romântica da civilização, a tradição judaica, os feminismos e o ecossocialismo produziram lições que serão indispensáveis nas tentativas de romper com a pós-democracia. Socialismo? Marxismo libertário? Democracia liberal ou social? O nome que vai ser dado a essa caminhada não é importante. Não há pretensão de originalidade em reconstruir os valores democráticos. Seria um equívoco abandonar a contribuição de Hobbes e Kant, Marx e Lenin, Rousseau e Rawls, Flora Tristan e Simone de Beauvoir, Adorno e Benjamin, Emma Goldman e Rosa Luxemburgo, José Martí e Enrique Dussel, Bobbio e Ferrajoli, dentre tantos outros.
Em que medida a democracia torna-se ‘ultrapassada’ frente às exigências do capitalismo mundial integrado?
O capitalismo sempre impôs constrangimentos ao funcionamento de um regime democrático. A igualdade que sustenta o conceito de democracia choca-se com a desigualdade produzida necessariamente pelo modelo capitalista. Uns chegam a falar em incompatibilidade entre o projeto capitalista e a democracia, enquanto outros passam a defender uma “democracia domesticada”, em que tudo aquilo capaz de produzir atrito com a ordem capitalista acaba eliminado. Nesse novo livro, sustento a hipótese de que a democracia, que antes já havia sido transformada em mercadoria, se tornou um obstáculo ao projeto neoliberal. Os limites e constrangimentos democráticos, típicos das Constituições do Pós-Guerra, tornaram-se fatores de instabilidade para o mercado e à livre circulação do capital, razão pela qual, em nome da manutenção do capitalismo, precisam ser “relativizados” ou descartados.
Qual o papel do sistema judiciário nesse panorama?
No Estado democrático de direito, cabia ao Judiciário assegurar o respeito às regras democráticas e, em especial, aos direitos e garantias fundamentais. Na pós-democracia, ele deixa de exercer a função de assegurar a concretização do projeto constitucional para se tornar, por um lado, um mero homologador das expectativas do mercado e, por outro, um instrumento de gestão dos indesejáveis, daqueles que não interessam à razão neoliberal. O sistema de justiça pós-democrático, portanto, passa a reforçar o neo-obscurantismo na medida em relativiza os direitos, espetaculariza os processos e trata os valores “verdade” e “liberdade” como mercadorias e, portanto, como objetos que podem ser sacrificados ou negociados.
(Publicado originalmente no site da Revista Cult)

Lançamento ‘Estado pós-democrático: Neo-obscurantismo e gestão dos indesejáveis’
Quando: 17/09, às 19h
Onde: Livraria da Vila, alameda Lorena, 1731, São Paulo – SP


Charge! Benett via Folha de São Paulo

Benett

quarta-feira, 18 de outubro de 2017

Drops político para reflexão: A Lista Suja do Trabalho Escravo

 
  
"Além da polêmica portaria assinada recentemente pelo presidente Michel Temer (PMDB)- que cria enormes dificuldades para as ações dos órgãos e agentes de fiscalização do Estado atuarem nesta questão - há um conjunto de outras medidas, igualmente nocivas, que apenas reforçam a tese de que a agenda regressiva imposta pela bancada escravocrata está assumindo uma capilaridade assustadora no aparelho de Estado golpista. Neste cipoal, podemos mencionar a demissão recente do senhor André Espósito Roston, chefe do DETRAE (Divisão de Fiscalização do Trabalho Escravo); a proibição da divulgação da chamada Lista Suja do Trabalho Escravo; a diminuição sensível dos recursos destinados aos órgãos de fiscalização e; por fim, essa portaria que é uma verdadeira excrescência, pois, mesmo em se comprovando o trabalho em condições insalubres e subumanas, somente em casos onde esses trabalhadores estejam sendo vigiados por homens armados ou com seus documentos retidos poderiam ser configurado o trabalho escravo. Um retrocesso sem tamanho. Mesmo nessas circunstâncias, tudo deve estar devidamente documentado - através de um boletim de ocorrência - com o acompanhamento de homens da Polícia Federal, já que os fiscais perderam a autonomia de autuarem. Ou seja, o propósito é dificultar ao máximo a atuação dos órgãos de fiscalização e controle do Estado, tudo consoante o figurino imposto pela bancada do boi.

Vejamos o que escrevi a este respeito, quando o Brasil foi denunciado à ONU, em razão da não divulgação da Lista Suja do Trabalho Escravo no país, um dos indicadores dos mais importantes para a sociedade e para as entidades de direitos humanos: "Quando se trata da legislação sobre o trabalho escravo, sabe-se que há um forte lobby da bancada da "Berlinda" - este "B" é um crédito nosso, depois de saber que a bancada escravocrata teve um papel decisivo na conspiração e sustentação do golpe institucional - no sentido de amolecer as regras que tratam desta questão, criando uma licenciosidade no sentido de anistiar os infratores e, consequentemente, permitir novas violações. Os avanços que o país conquistou nas últimas décadas estão todos retroagindo para um patamar bastante preocupante. A agenda regressiva é ampla e atinge sem piedade os estratos que ocupam o andar de baixo da pirâmide, preservando os privilégios de uma elite econômica e rentista que, ao longo dos anos ,se notabilizaria como a elite mais cruel do mundo, forjada em três séculos e meio de trabalho escravo." 
(José Luiz Gomes, cientista político, em editorial publicado aqui no blog)

terça-feira, 17 de outubro de 2017

Editorial: O escárnio da volta do trabalho escravo




Resultado de imagem para trabalho escravo

Num primeiro momento, gostaria de recomendar a vocês a leitura do texto do professor Durval Muniz, publicado aqui no blog. É um texto para ser lido com uma xícara de café e um bloquinho de anotações, para que não se perca nenhum detalhe de suas observações sobre um país onde a inteligência é suspeita. Arguto observador do nosso cenário histórico e político, Durval Muniz articula diversos episódios e tendências recentes que se inserem à engrenagem que mói em favor do recrudescimento do golpe institucional levado a efeito no país em 2016, que afastou Dilma Rousseff(PT) da Presidência da República. Feita essa recomendação, pelo menos dois temas seriam interessantes para uma discussão no editorial do dia de hoje, como o "golpe" que estaria sendo urdido contra o presidente Michel Temer(PMDB) - que, em carta aos Deputados Federais, se diz vítima de uma grande conspiração - e, naturalmente, as medidas que praticamente institucionalizam o trabalho escravo no país, concebida sob medida pela bancada ruralista, que a barganhou sob a promessa de votar a favor da rejeição da segunda denúncia contra o presidente, poupando-lhes o mandato, mas conduzindo o país ao fundo do poço que, além da ética, perde também com isso aquele mínimo de sensibilidade, como observa o jornalista Josias de Souza.   

Além da polêmica portaria assinada recentemente pelo presidente Michel Temer (PMDB)- que cria enormes dificuldades para as ações dos órgãos e agentes de fiscalização do Estado atuarem nesta questão - há um conjunto de outras medidas, igualmente nocivas, que apenas reforçam a tese de que a agenda regressiva imposta pela bancada escravocrata está assumindo uma capilaridade assustadora no aparelho de Estado golpista. Neste cipoal, podemos mencionar a demissão recente do senhor André Espósito Roston, chefe do DETRAE (Divisão de Fiscalização do Trabalho Escravo); a proibição da divulgação da chamada Lista Suja do Trabalho Escravo; a diminuição sensível dos recursos destinados aos órgãos de fiscalização e; por fim, essa portaria que é uma verdadeira excrescência, pois, mesmo em se comprovando o trabalho em condições insalubres e subumanas, somente em casos onde esses trabalhadores estejam sendo vigiados por homens armados ou com seus documentos retidos poderiam ser configurado o trabalho escravo. Um retrocesso sem tamanho. Mesmo nessas circunstâncias, tudo deve estar devidamente documentado - através de um boletim de ocorrência - com o acompanhamento de homens da Polícia Federal, já que os fiscais perderam a autonomia de autuarem. Ou seja, o propósito é dificultar ao máximo a atuação dos órgãos de fiscalização e controle do Estado, tudo consoante o figurino imposto pela bancada do boi.

Por vezes eu me pergunto se os "coxinhas" que saíram às ruas para apoiar o afastamento da presidente Dilma Rousseff(PT) possuem algum remorso sobre a enrascada institucional em que meteram o país. Uma enrascada onde o fio da meada foi completamente perdido, uma vez que o Executivo encontra-se sendo conduzido dessa forma; o Legislativo completamente necrosado, capaz de preservar a liberdade e o mandato daquele senador; e um Judiciário desmoralizado. O chefe do Executivo, para salvar o seu pescoço, emite uma portaria com o teor acima, praticamente reintroduzindo a famigerada e abominável figura do trabalho escravo no país. Outro dia, num dos seus depoimentos, o ex-operador do PMDB, Lúcio Funaro, que teve a sua delação premiada homologada, ofereceu alguns elementos para se entender melhor o conjunto de forças políticas, econômicas, midiáticas e jurídicas que atuaram no projeto de deposição da presidente Dilma Rousseff. Os fatos são tão cabeludos que até a ex-presidente, que parecia resiliente, passou a cogitar sobre a possibilidade de pedir uma revisão de provas. Mesmo na condição de professor - daqueles que não veem problema algum neste direito dos alunos - embora entendendo suas razões, não a estimulamos por entender que se trata de um caso completamente perdido. Estamos numa outra rodada do jogo, quiçá num vertiginoso processo de endurecimento do golpe institucional iniciado em 2016. Hoje, é o Temer que fala numa suposta conspiração para apeá-lo do poder. 

Vejamos o que escrevi a este respeito, quando o Brasil foi denunciado à ONU, em razão da não divulgação da Lista Suja do Trabalho Escravo no país, um dos indicadores dos mais importantes para a sociedade e para as entidades de direitos humanos: "Quando se trata da legislação sobre o trabalho escravo, sabe-se que há um forte lobby da bancada da "Berlinda" - este "B" é um crédito nosso, depois de saber que a bancada escravocrata também deu sustentação ao golpe - no sentido de amolecer as regras que tratam desta questão, criando uma licenciosidade no sentido de anistiar os infratores e, consequentemente, permitir novas violações. Os avanços que o país conquistou nas últimas décadas estão todos retroagindo para um patamar bastante preocupante. A agenda regressiva é ampla e atinge sem piedade os estratos que ocupam o andar de baixo da pirâmide, preservando, os privilégios de uma elite que, ao longo dos anos se notabilizaria como a elite mais cruel do mundo, forjada em três séculos e meio de trabalho escravo." 

Charge! Renato Aroeira

A imagem pode conter: 2 pessoas, pessoas sorrindo, texto

Charge! Montanaro via Folha de São Paulo

João Montanaro

segunda-feira, 16 de outubro de 2017

Durval Muniz: Um país onde a inteligência é suspeita

 Imagem relacionada

Durval Muniz*


Talvez nunca tenhamos vivido tempos de exposição maciça de ignorância, de falta de conhecimento, de boçalidade, como os que vivemos agora no país. De uma hora para outra, ser um energúmeno se tornou chic. Expor, publicamente, nas redes sociais, sua absoluta falta de noção se tornou regra. O não saber é exposto como virtude. Dizer todos os dias que as pessoas são uma bosta, bosta, bosta, o credencia a enviar ao Congresso proposta legislativa para retirar de um dos maiores educadores de todos os tempos, que, talvez, por mero acaso seja brasileiro, o título de Patrono da Educação Nacional. Atores pornô, com o cérebro menor de que seus membros eretos, tornam-se especialistas em educação e assessores do Ministério da Educação. Os partidários de um movimento chamado Escola Sem Partido, comparam os professores a violadores de menores, espancam nossa inteligência e a gramática para defenderem uma escola partidária, ideológica e de direita. Generais que desconhecem os livros de história e um punhado de gente que parece nunca ter lido um só livro sobre a ditadura militar e civil implantada em 1964, pedem a volta daqueles brilhantes tempos de corrupção, tortura e obscurantismo. Grupos de extrema-direita invadem os campi universitários para espancar estudantes e professores ou para nos oferecer versões sobre acontecimentos históricos, como a Revolução Russa, sem que tenham preparação para isso. Um senhor acusado pela própria filha de ter apontado um revólver para os filhos e ter ignorado o abuso sexual de que ela foi vítima, usando, segunda ela, técnicas de lavagem cerebral, aparece como o guru filosófico do momento, com milhares de seguidores. Um grupo de ignorantes moralistas se tornam especialistas em arte e retomam o bordão nazista da arte degenerada para fechar exposições, atacar museus e propor a cobertura das partes pudendas de artistas e imagens. Pretensos mitos alçados à condição de candidatos a presidente da República, vociferam bordões machistas, misóginos, homofóbicos, racistas, prometendo acabar com a violência liberando o uso de armas, após bater continência para a bandeira americana e banhar-se nas águas do rio Jordão. Para a educação a solução seria um general no Ministério da Educação e a militarização do ensino. Outro defende a distribuição de lixo liofilizado para os alunos da rede escolar, se traveste todo dia de algum personagem, enquanto desfila nacional e internacionalmente proferindo sandices com ar de revelações de um gênio.
Temos, hoje, uma das elites mais chucras, mais despreparadas, mais ignorantes do mundo. O nível de bordel da linguagem de nossas autoridades, parlamentares e empresários, flagrados em escutas telefônicas, não me deixa mentir. Um quase presidente da República, a cada dez palavras ditas, profere quatro de baixo calão (haja baralho, baralho, orra, orra). Até mesmo nossos juristas supremos, que vomitam, quando no plenário, uma oratória barroca ou rococó, quando desvestem as togas agem como moleques e trocam desaforos e epítetos de corar a vovó Mafalda. O Procurador Geral, sainte, aquele que só procurava o que queria, não cansava de trocar carícias verbais com juízes, advogados e parlamentares. A estrela maior do judiciário midiático, frequentador de telas e assentos de cinema, com saco de pipoca para assistir seus próprios feitos, agride, todo dia, a língua pátria, as leis, a Constituição e a inteligência alheia. Pastores midiático-parlamentares, que não conseguem ler um discurso escrito, por um assessor, em plenário, definem o que deve ou não constar dos currículos escolares, o que deve fazer parte dos planos estaduais e municipais de educação. Outros mais espertos transformam a ignorância e a carência social, emocional e afetiva, de amplas parcelas da população, em fonte de renda, com leituras e interpretações da Bíblia capazes de fazer corar de vergonha o mais extático dos anjos. Leituras literais das figuras do texto sagrado permitem o apoio à intolerância religiosa, à perseguição a minorias ou ao ataque a direitos fundamentais da pessoa humana. Promotores que confundem Engels com Hegel pontificam na mídia e na sua caçada fascista em nome da moralidade e do combate a corrupção, transformando presunção de inocência em presunção de culpa, ganhando os holofotes navegando na sanha punitiva, em que até japonês condenado por contrabando virou estrela. Outra sumidade do nosso Ministério Público inova completamente as interpretações históricas ao afirmar que o nazismo é de esquerda, no que é seguido por um rebanho vociferante de bestificados. A nossa mídia do “erramos” depois que o estrago nas reputações e na honra alheias está feito, depois que o cadáver do implicado jaz sepultado, das notinhas que corrigem manchetes garrafais, da mentira profissional, da má fé militante, dos especialistas em tudo e em nada, dos historiadores que não veem a poeira de um arquivo há vinte anos ou nunca pisaram numa sala de aula de História e se dão ao luxo de ter interpretação para tudo, no calor da hora, desde que a versão agrade ao patrão que o subvenciona regularmente com poupudo soldo. A mídia dos comentaristas que gritam muito para esconder sob a saraivada de perdigoto seu reacionarismo despreparado ou dos entrevistadores e apresentadores que entrevistam a si mesmos ou se digladiam com o entrevistado se esse teima em expor alguma ideia original e diferente da doxa da empresa. A mídia dos programas jornalísticos que trocam e escondem a notícia e os eventos, que se tornaram a continuação da novela, com âncoras que fazem caras e bocas, que andam por cenários futurísticos enquanto emitem opiniões que nos levam para a Idade Média. Um país presidido por um homem cumulado por denuncias de irregularidades, capaz de confundir Suécia e Noruega, cruzeiro e real, que agradeceu a propaganda após acabar de dar uma entrevista na TV, que deu a Carlos Magno os cavaleiros da távola redonda como companhia, que considerou um massacre num presídio de “acidente pavoroso”, que nos brinda com poemas e mesóclises de duvidoso gosto, extinguiu assim que tomou posse o Ministério da Cultura, fundiu o Ministério de Ciência e Tecnologia com o das Comunicações, como se ciência e mídia fossem a mesma coisa; rebaixou o Conselho Nacional de Pesquisa (CNPq) para o quarto escalão do Ministério; mantém o Arquivo Nacional há seis meses sem diretor, reduziu drasticamente os recursos para as Universidades; bloqueou o crescimento dos investimentos em educação por vinte anos, inviabilizando o cumprimento das metas do Plano Nacional de Educação.
Mas não há evento que tenha explicitado de forma mais clara esse verdadeiro ódio a inteligência, essa suspeita permanente e constante contra as pessoas que pensam e as instituições educacionais, científicas e culturais do país, do que o episódio envolvendo o reitor da Universidade Federal de Santa Catarina. Nesse evento vimos se explicitar como os órgãos policiais e judiciários do país continuam tendo uma atitude de suspeita em relação à universidade, atitude que vem de longa data, como tentarei mostrar mais adiante. Os órgãos privados e oligopolizados da mídia também continuam tratando a universidade, e a educação em geral, como objeto de suspeição. Mesmo entre a população a universidade não aparece como uma instituição bem vista, talvez por anos de isolamento e de pouco acesso em que viveu. Sabemos que desde a colonização portuguesa a universidade não foi bem vista. Em toda a América Latina, o Brasil foi o único país que chegou ao século XX, sem possuir uma universidade. Enquanto na América Hispânica elas foram criadas logo no início do processo de colonização. No Brasil, a Igreja Católica e o Estado português, associados, nutriam uma grande desconfiança em relação à extensão do ensino superior para suas possessões coloniais. Podemos dizer que já nascemos para o mundo sob a suspeição da inteligência e do conhecimento. Nossas autoridades, desde a Colônia, aprenderam a desconfiar dos livros, dos escritos, do pensamento, da leitura, da educação. Fogueiras de livros, índex, intelectuais e artistas, fichados, presos e torturados, exilados e mortos, censura pesada sobre a produção cultural é uma constate na história brasileira. O analfabetismo e a ignorância grassavam entre grande parte de nossa classe senhorial. Muitos daqueles que tinham assento nas câmaras municipais quando muito sabiam assinar o próprio nome. O ensino superior, só alcançável frequentando a Universidade da metrópole, era privilégio de poucos.
Após a independência essa situação não mudou muito. Foram criadas algumas Faculdades responsáveis por formar as elites dirigentes, mas uma boa parcela das elites rurais continuou mergulhada na mais pura caturrice. O ensino público só foi sendo organizado aos poucos e estava muito distante do acesso às camadas populares. Numa população ainda formada por um grande número de escravos a falta de letramento e mesmo o valor da educação era bastante baixo. Até meados do século XX, era comum que grande parte das mulheres das elites tivessem educação sumária e precária, e que os pais escolhessem alguns dos filhos para estudar, mantendo outros na mais pura ignorância. Com a expansão capitalista no país, com a imigração de estrangeiros, alguns imigrantes, não propriamente destacados pelo nível educacional, chegaram a integrar a nossa burguesia empresarial. Havia empresários que o tamanho da fortuna concorria com o tamanho da falta de educação, nos vários sentidos dessa expressão. Eu mesmo sou filho de um proprietário de terras, herdeiro de famílias latifundiárias, que havia chegado a essas terras desde o período colonial que, além de semianalfabeto, não nutria nenhum entusiasmo pela educação. Se estudei foi graças aos esforços de minha mãe, embora ele também tenha contribuído com o sustento material que me permitiu fazê-lo. Muitas gerações de minha família foram marcadas por verdadeiro desapreço a educação, o que tinha valor eram terras, vacas e cheiro de bosta. Quando meu pai apresentou sua esposa sulista a meu avô, poderoso, rude e bronco, ele foi logo perguntando: “A senhora trouxe alguma cabeça de gado?”. Os meus primos, da mesma geração que eu, muitos não quiseram estudar e hoje tornaram-se proletários ou pequenos proprietários de terra que lutam com grande dificuldade.
As próprias instituições de Estado sempre tiveram certa recusa à universidade. Desde o período Vargas, quando finalmente o ensino universitário começou a se expandir e se fortalecer no país, as instituições de ensino superior foram objeto de vigilância, censura e expurgos. O anticomunismo que se tornou estrutural no país, após a tentativa frustrada de golpe comunista em 1935, levou, como leva ainda hoje, quando o comunismo só sobrevive na paranoia da direita e nas cabeças dogmáticas e a-históricas de alguns setores da esquerda, a que a Universidade seja vista como um foco de subversão. Essa paranoia se consolidou após o golpe de 1964, que contraditoriamente expandiu significativamente o ensino superior, mas o submeteu a extrema vigilância política, dada a participação decisiva de estudantes e professores universitários, mas também do ensino básico, nas manifestações de resistência à ditadura e mesmo na composição dos grupos armados que se rebelaram contra o regime ditatorial. A associação, no imaginário do país, entre professor e estudante universitários e comunistas é uma constante, notadamente se eles pertencerem as chamadas ciências humanas. O movimento Escola sem Partido parte do pressuposto falso de que todo professor é de esquerda, quando, na verdade, o que vemos hoje são professores cada vez mais conservadores, religiosos, individualistas, preocupados com suas carreiras e não com causas sociais. O golpe do ano passado contou com apoio de destacadas figuras da universidade, inclusive da área das ciências humanas e sociais aplicadas. Como nos anos sessenta e setenta a resistência a ditadura também se fez através da contestação de valores dominantes, da adesão pelos jovens universitários à chamada contracultura, no imaginário nacional, nas mitologias que circulam socialmente e são apropriadas pelos setores mais conservadores da sociedade, inclusive pelo aparato jurídico-policial e pela mídia, todo professor ou estudante universitário, notadamente na área das humanidades ou das artes usam drogas, são “maconheiros”, são homossexuais, as meninas praticam a promiscuidade sexual, fazem abortos, etc, etc, etc, daí a proposta de militarização das universidades e do ensino de “valores” pregada pelo candidato da extrema-direita a presidência da República. A perseguição à Universidade Federal de Santa Catarina, aos seus dirigentes, não é de agora e o caso do reitor Luiz Carlos Cancellier de Olivo é apenas o ápice de todo um patrulhamento que vem sendo perpetrado desde quando uma reitora ligada a setores de esquerda ascendeu ao posto de dirigente máximo da instituição. Secundada sempre pela mídia local, de um dos estados mais conservadores do país, a Polícia Federal, realizou incursões no interior da Universidade, algumas sequer autorizadas pela Reitoria, o que viola a autonomia universitária, para investigar ou coibir o que seria o tráfico de drogas no campus, acusando dirigentes da instituição de serem coniventes com a situação. Dirigentes universitários respondem a processos por tentarem evitar a prisão de estudantes ou tentarem mediar os conflitos produzidos por essas ações policiais.
O caso do reitor Luiz Carlos Cancellier é exemplar desse clima de eterna suspeita em relação à universidade, que teve que burocratizar ao extremo todos os seus procedimentos e atividades internas por causa da judicialização generalizada. Qualquer coisa passou a ser motivo de denuncia ao Ministério Público e ao poder Judiciário. Os próprios professores, estudantes e funcionários passaram a acionar a Justiça sempre que veem seus interesses contrariados. A denúncia anônima, o dedurismo (que se alastra em todo momento de exceção) como no caso do reitor, tornou-se tão comum quanto a delação premiada, nesse momento em que todo mundo é suspeito, senão criminoso, até prove o contrário. A paranoia punitiva retirou o ônus da prova de quem acusa transferindo para quem é acusado, numa subversão de um principio basilar do direito. A espetacularização das atividades policiais e judiciárias, que começa com a transmissão ao vivo pela TV de julgamentos, uma jaboticaba tipicamente brasileira, se espalha levando juízes e procuradores a se tornarem justiceiros e paladinos da moralidade pública, em busca de seus dez segundos de fama. A juíza Janaína Cassol Machado conseguiu seus segundos de celebridade ao decretar a prisão preventiva (que se tornou carne de vaca no país, logo transformadas em prisões temporárias que não acabam nunca) de um reitor que sequer havia interrogado ou que sequer havia sido comunicado do que estava sendo acusado. Um jurista, com residência fixa, com bons antecedentes se vê preso e acusado de obstrução de justiça por querer se informar do andamento de uma investigação, mantida em sigilo pelo corregedor da UFSC, Rodolfo de Prado, que era um seu subordinado direto, mas que se negou a repassar as informações solicitadas, prejudicando a Universidade que teve suspenso o envio de recursos pelo MEC para o programa de ensino à distância. Embora nunca tenha sido acusado de desviar os recursos, sua prisão foi coberta ao vivo pela mídia (sempre avisada pela PF, que chegou a deslocar cerca de 100 homens de todo Brasil para montar o espetáculo, talvez em busca de reproduzir a película cinematográfica de baixa audiência que protagonizou), que passou a veicular de forma criminosa de que ele havia participado do desvio de 80 milhões de reais, quando esse era o total de recursos a ser repassado para o programa. O desvio teria sido na verdade de cerca de 300 mil reais, e teria acontecido em período anterior a seu reitorado. Não satisfeitos com a humilhação pública, com a exposição midiática de uma autoridade universitária acusada de ser ladrão, foi levado para uma carceragem onde foi mantido nu e submetido a uma vistoria anal (com que finalidade não é possível atinar, que eu saiba a obstrução não era da via retal). Os grandes órgãos da mídia nacional secundaram a mídia local na execração pública. A sanha antiuniversitária, o desejo de macular a Universidade pública, visando sua privatização, o anticomunismo ou o antiesquerdismo chulo, se reuniram para produzir uma tragédia anunciada. Humilhado, impedido de entrar na Universidade a que dedicara toda a vida, com sua honra irremediavelmente manchada por uma exposição que fere completamente o caráter sigiloso que uma investigação deve ter, ele foi solto um dia depois pela juíza substituta Marjôrie Cristina Freiberger, que em seu despacho diz não ter encontrado motivos para a detenção espetaculosa. Isso foi o bastante para acender a ira da colega que mandara prender o reitor que, contrariando a Lei Orgânica da Magistratura, veio a público assacar críticas contra a colega que, como é comum nos dias que correm, por cumprir a lei foi acusada de ser conivente com a corrupção. Só restou ao reitor, como um gesto de denuncia da injustiça sofrida, como uma forma de alertar o país para o perigoso caminho que está trilhando, sabendo-se já morto socialmente, como uma forma de defesa da Universidade pública – a causa de toda sua vida, desde que foi militante estudantil -, se atirar em pleno paraíso do consumo, o templo simbólico desses tempos em que vivemos de apreço pela mercadoria e desapreço pelo conhecimento, pela inteligência, pela vida humana, o shopping center Beiramar. Mas mesmo depois de morto, juízes federais saíram em defesa do abuso de autoridade e do arbítrio de que ele foi vítima e a mídia silenciou sobre sua participação nos feitos, usando pequenas notinhas para agora dizer que ele era apenas um investigado de obstrução de justiça, não de roubo. Mas nesses tempos de pós-verdade, para os carniceiros das redes sociais seu gesto foi confissão e ele continua a não merecer sequer o benefício da dúvida. Afinal, era da Universidade, era um professor, era um educador, portanto um suspeito em potencial. Como construir cidadania num país em que ser inteligente é crime, em que ter conhecimento é motivo de suspeita, em que ter senso crítico pode ser a antessala da prisão, em que o corpo docente pode terminar nu e seviciado?

*Durval Muniz é professor titular da Universidade Federal do Rio Grande do Norte

(Publicado originalmente no site Saiba Mais, agência de reportagem, aqui reproduzido com a autorização do autor)