pub-5238575981085443 CONTEXTO POLÍTICO. : Durval Muniz: Carência e cidadania
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domingo, 22 de outubro de 2017

Durval Muniz: Carência e cidadania

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Desde a Revolução Francesa, quando surgiram as noções de esquerda, de direita e de centro para nomear posições políticas, a partir da localização dos parlamentares na Assembleia Nacional, que discutia a proposta de Constituição que poria fim ao regime absolutista, que aqueles que se colocam à esquerda do espectro político se definem por uma maior preocupação com que o exercício da atividade política, com que o exercício da cidadania se faça em nome do atendimento aos interesses daqueles que compõe as maiorias da sociedade (na época o Terceiro Estado ou o povo), aqueles que se definiriam pelo deficit de representação política, portanto de cidadania, mas que, sobretudo se definiriam por viverem em situação de carência econômica e social. Foi como repercussão do ideário da Revolução Francesa, sobretudo na busca pela igualdade entre os humanos, que as utopias socializantes surgiram, ao longo do século XIX. As experiências, que foram chamadas pelos marxistas, de socialismos utópicos, e que resultaram em episódios como as tentativas revolucionárias de 1848, em alguns lugares da Europa e de 1871 (a chamada Comuna de Paris), na França, além da constituição de experiências comunitaristas e socializantes de várias espécies, foram inspiradas nesse afã de busca de respostas para solucionar desigualdades e carências. Enquanto as experiências anarquistas enfatizavam muito mais a questão da liberdade, tomando a igualdade como uma resultante dela, o pensamento marxista enfatizava primeiro a igualdade, tomando ela como pré-condição da liberdade. Os famosos desentendimentos entre marxistas e anarquistas no seio da Primeira Internacional dos Trabalhadores tem nessa discrepância um de seus motivadores, embora a luta por poder e controle do movimento operário também seja muito relevante. A prevalência do marxismo, sua vitória, tanto em relação ao que chamou de socialismos utópicos, quanto em relação ao anarquismo, fez as esquerdas se tornarem majoritariamente marxistas, embora com leituras diversas dessa tradição. Por seu turno, essa prevalência do marxismo no interior das esquerdas tornou o tema da igualdade e o tema da carência, notadamente de ordem econômica e social, como o cerne da elaboração de projetos políticos e da prática política das esquerdas ocidentais.
Uma visão economicista da ordem capitalista e burguesa e dos próprios projetos de transformação social tendeu a negligenciar outras dimensões da vida social. As propostas políticas das esquerdas, inclusive quando elas começam a chegar ao poder de Estado, seja através de processos revolucionários, como ocorreu com os bolcheviques na Rússia ou com os maoistas na China, seja através de eleições legislativas ou executivas, como ocorreu com a chamada social-democracia, em países como a França ou a Alemanha, ou mesmo com os comunistas na Itália ou socialistas na Espanha, Portugal, Chile, sempre enfatizaram as dimensões econômicas e sociais, em detrimento das dimensões culturais, subjetivas ou de valores, como as propostas anarquistas e algumas propostas chamadas de utópicas, como aquela encanada na figura de Charles Fourier, traziam em suas formulações. A centralidade dada as carências econômicas e sociais nas plataformas de governo das sociedades ditas socialistas e dos governos de esquerda no Ocidente, negligenciou em algumas, inclusive, a questão da liberdade, como nas chamadas ditaduras do proletariado à medida que se reduzia o político ao econômico, numa equiparação retórica e falaciosa entre socialização dos meios de produção e democracia. A chamada democracia liberal burguesa era denunciada como uma farsa por ser assentada na desigualdade e na defesa da propriedade privada. Por outro lado, essa centralidade do econômico resultou em muitos casos no dirigismo cultural e ideológico e na tentativa de padronização das subjetividades, com exigências terríveis como as levadas à efeito pela chamada Revolução Cultural chinesa.
O que assistimos nos últimos treze anos no Brasil, e o que estamos vivendo agora, se deve ao fato de que, uma vez chegando ao poder de Estado, o Partido dos Trabalhadores não conseguiu romper com essa longa tradição da esquerda marxista de achar que as camadas populares só têm carências de ordem econômica e social. O discurso de posse de Lula a esse respeito é emblemático: sua grande ambição era que ao final de seu mandato todo mundo no país pudesse tomar café, almoçar e jantar. Num país em que milhares de pessoas passavam fome, esse discurso fazia todo sentido, mas era redutor das carências das pessoas, inclusive dos pobres. Mesmo os grandes investimentos feitos em educação, em ciência e tecnologia, em cultura foram atrelados a essa lógica da carência econômica e social. Nos governos Dilma, o discurso tecnocrático e desenvolvimentista se tornou hegemônico nas discussões de programas e políticas educacionais e culturais, a educação foi pensada como fator de desenvolvimento econômico, na lógica dos discursos sobre educação das agências internacionais, inclusive engolindo o mito da meritocracia e da internacionalização, se esquecendo da formação política da população, de políticas de produção de subjetividades voltadas para enfrentar elementos culturais arraigados no país, como o autoritarismo, o desapreço pela democracia, o racismo, a visão senhorial, a saudade da escravidão, a misoginia, a homofobia, o preconceito contra a pobreza. Se, no governo Lula, ainda se deu passos tímidos nessa direção, o fato do Pronatec e do Ciência Sem Fronteiras terem se tornado os programas vitrines do governo Dilma, diz bem do giro tecnocrático e economicista que sua política educacional sofreu. Faltou, aos governos do PT, desde o inicio, a percepção de que o ser humano é existencialmente carente, por ser mortal, por se saber finito, por saber da possibilidade de adoecimento, pela possibilidade da perda do que lhe é mais caro, pela possibilidade do fracasso. Faltou, aos governos do PT, uma política de produção de subjetividades, o que não significava, como dados setores da direita queriam fazer crer, que os governos do PT deviam ter políticas de dirigismo cultural e ideológico, mas devia ter efetivamente disputado esse campo, não se acovardado diante das acusações de estalinismo, de promover censura, de promover lavagem cerebral. A inação do PT diante do monopólio da mídia no país, seu abandono da educação de base, a falta de clareza em relação a políticas de educação e cultura, ao lado de outros eventos ocorridos nesses últimos anos, no país, explica a onda conservadora que estamos vivendo e na qual naufragou a própria experiência petista.
Ao achar que as principais carências das pessoas são de ordem econômica, as esquerdas marxistas nunca saíram de fato do domínio das subjetividades produzidas pelo próprio capitalismo. O capitalismo não é apenas um modo de produzir mercadorias, como pensava Marx, mas uma forma de produzir subjetividades, como já defendia Max Weber. A ordem capitalista se mantém porque captura os desejos e as carências afetivas, emocionais, existências, biológicas dos seres humanos e as colocam a seu serviço. O capitalismo molda os corpos dos humanos às suas necessidades e as suas subjetividades também. O grande truque do capitalismo é transformar, justamente, carências de toda ordem em carências de consumir, de trabalhar, de lucrar, de acumular, de poupar, de investir, tornando-se o próprio sentido da vida humana. O capitalismo, embora no início tenha recriado a escravidão e se utilizado da servidão – ainda as utiliza em certas circunstâncias, desde que não sofra resistência – não necessita delas pois bastou encontrar formas de que as pessoas, os trabalhadores internalizem o feitor e o chicote. Quando achamos que o trabalho é que dá sentido ao existir, quando achamos que só se é feliz sendo proprietário de algo ou de alguém, quando nos submetemos aos maiores sacrifícios para consumir, quando nos proibimos de inúmeras coisas para poupar ou para investir, estamos subjetivamente dominados pelo capital, que não existe apenas como valor de uso ou de troca, mas como valor cultural, moral, éticos e estético. O dinheiro não é apenas um equivalente geral, aquilo que se troca por tudo, no plano econômico, mas até no plano afetivo, sexual, desejante. As pessoas gozam com o dinheiro, somente isso explica perversões como fortunas que são maiores do que qualquer um pode gastar em toda vida e que ainda busca sempre mais, apelando inclusive para a corrupção. Quando Marx aproximava o operário da prostituta, embora houvesse muito de misoginia e preconceito nisso, ele não deixava de estar correto, pois no capitalismo, até o desejo é canalizado para o capital, a propriedade, a posse. Os movimentos de prostitutas ao reivindicar serem consideradas trabalhadoras do sexo expõem não só essa equivalência, mas a captura desse movimento pela lógica do capital. Quando o dinheiro pink se torna expressão do que seria o novo poder homossexual, nada mais está explicitando do que a captura do desvio e da transgressão pelo capital, que passa a oferecer lugares de encontro, divertimento, pegação, sexo, etc, separando, inclusive, as bichas ricas das bichas pobres, vistas com desprezo e desdém.
Ainda no início do século XX, Freud já relacionava o sentimento religioso e a carência ontológica, ou seja, constituinte do próprio humano. O desamparo, ao contrário do que tendem a pensar as esquerdas, não é apenas de ordem econômica ou social, mesmo as pessoas mais privilegiadas do ponto de vista social ou da fortuna podem se sentir desamparadas e carentes. As religiões surgiram e proliferam, até hoje, para dar respostas as carências básicas do homem: carências de ordem biológica (representadas pelo adoecer e pelo morrer), carências de ordem existencial (os medos de falhar, de perder, de não ter) e as carências de reconhecimento (a necessidade de se sentir alguém ou de ser alguém para si e para os outros). Hoje vemos que, na ausência de políticas de subjetivação levadas a efeito pelas esquerdas, essas carências passaram a ser capturadas por um discurso religioso, cada vez mais conservador e retrógrado. A medida que o capitalismo deu origem a uma ordem social onde a sensação de insegurança não para de crescer, as pessoas buscam se agarrar em discursos e instituições que vendem segurança e certezas. O capitalismo já nasce através de um brutal processo de desterritorialização, com a destruição das comunidades tradicionais, com a destruição dos laços comunitários, com o processo de expropriação em massa, com o processo de migração e tráfico de pessoas para a escravidão, com o lançamento das pessoas numa vida cada vez mais incerta e desconhecida. O capitalismo gera, como nenhuma outra ordem social, a sensação de carência, insegurança e incerteza e oferece a mercadoria, o consumo, inclusive de seus produtos culturais, de suas crenças, como a saída. Vende comunidades imaginárias como as nações e as regiões, como os clubes esportivos, como substitutas da vida das aldeias, das cidades, das vilas, das comunidades tradicionais que destrói. As religiões, desde o protestantismo histórico, tendem a associar sucesso material e salvação eterna. As crenças se individualizam e, depois, se tornam mercadorias, que se vendem num aquecido mercado religioso. Há duas semanas, fui surpreendido com um carro de som, desses que fazem propaganda, a anunciar pelas ruas do bairro onde eu moro, a abertura de uma nova igreja, o texto em nada se diferenciava dos textos que anunciam abertura de lojas comercias: – Chegou, chegou em nossa cidade, venham, venham, compareçam a inauguração, serão ofertados brindes a quem comparecer, estará presente a inauguração o pastor, venham ouvi-lo, tragam a sua família e os amigos, depois de muito êxito em outras cidades, finalmente chega a Natal!. As religiões não exploram hoje apenas o medo de morrer, as carências biológicas (as doenças, prometendo milagres e curas), mas também as carências econômicas (a teologia da prosperidade, bem afeita a um modo de produção subjetiva capitalista faz as pessoas amarem o dinheiro e buscar na mercadoria e no dinheiro, inclusive, na doação do dízimo, ao mesmo tempo a salvação e o sucesso material), mas também carências de ordem afetiva e de reconhecimento (dando a elas uma fraternidade ou uma comunidade alternativa à sua solidão e as colocando em lugares de destaque que por sua condição social e, inclusive, étnica não desfrutam em outro lugar).
Em certo momento, a chamada Teologia da Libertação, no interior da Igreja Católica e de algumas religiões protestantes, articulou em suas mensagens e práticas, as carências de ordem econômica e social, com as carências de ordem existencial, subjetiva, afetiva da população e isto teve como resultado o aparecimento de inúmeras lideranças, nos meios populares e mesmo na classe média, capazes de articular a luta por cidadania social e econômica, com a luta por direitos humanos, por cidadania política entendida como luta por liberdades e valores, inclusive com militância no campo da cultura e das artes. A chamada macropolítica, foi articulada com o que o filósofo francês Félix Guattari chamou de micropolítica, a política entendida como investimento no sentindo de redirecionar nossos desejos, nossas subjetividades, não apenas nossas maneiras de pensar, mas de sentir, de imaginar, de desejar. A dura repressão perpetrada contra essa teologia pelos dois últimos Papas, conservadores, foi fatal para que, ao lado do abandono da militância de esquerda nesses campos, até por estarem no poder de Estado, o que sempre foi outro mito, vindo desde a Revolução Francesa, a ideia do Estado como demiurgo, capaz de tudo mudar e transformar de cima para baixo, o bonapartismo esquerdista, que se acentuou com o leninismo e o estalinismo, levou a essa onda conservadora que, também advém em todo momento que uma crise do capitalismo acontece. Quanto mais inseguras e carentes estão as pessoas mais facilmente elas são capturadas em seus desejos por discursos e personagens que prometem segurança e um mundo em preto e branco, um mundo maniqueísta em que tudo é certo, simples e nítido. Um mundo cheio de bruxas e bodes expiatórios a serem caçados e responsabilizados pela infelicidade, pela carência, pela solidão, pelo desamparo de cada um: o PT, Lula, Dilma, a corrupção, o homossexual, o petralha, o mortadela, o coxinha, o feminismo, a imoralidade, os políticos, etc. Bolsonaro, Malafaia, Feliciano, Moro, aparecem como objeto de desejo de carentes de todos os matizes.
Numa sociedade que nos diz, todos os dias, na TV, que só somos felizes se consumirmos dados produtos e, ao mesmo tempo, concentra riqueza, produz miséria e desigualdade, produz desemprego e trabalho precário, dá origem a uma massa de frustrados que projetam suas frustrações em dados alvos apontados pelo próprio discurso midiático, fazendo assim suas catarses coletivas. Mas também é uma sociedade que ao produzir indivíduos, ao produzir subjetividades egóicas e egoístas, como não acontecia em sociedades anteriores, onde era inconcebível alguém sobreviver sozinho ou fora de uma coletividade, gerou laços sociais cada vez mais frágeis, as chamadas relações líquidas, tratadas em ensaio fotográfico de Mayse Medeiros, nesse portal, onde a solidão e a carência afetiva e sexual é a tônica. As sociabilidades de esquerda, as políticas culturais críticas, a oferta de formas de expressão dos desejos que se dirijam para a aceitação da mudança, que se pautem pela criatividade e pela inventividade deram lugar a sociabilidades microfascistas, fragmentadas e alienadas através das redes, conectando o desejo à violência, promovendo o ódio, a raiva, o desejo de vingança e punição, o desejo de morte, gerando subjetividade reacionárias e reativas, levando ao gozo com a destruição e a agressão. Não pode haver cidadania, não pode haver projeto de transformação social que não leve a sério e discuta a produção social do desejo e a produção coletiva de subjetividades.

Durval Muniz é professor titular da Universidade Federal do Rio Grande do Norte

(Publicado originalmente no site Saiba Mais, Agência de Reportagem, aqui reproduzido com a autorização do autor)

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