pub-5238575981085443 CONTEXTO POLÍTICO.
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segunda-feira, 18 de fevereiro de 2019

Durval Muniz: Brasil: Um ninho de urubus

 


Embora haja controvérsia entre os ornitólogos e outros estudiosos das aves, os urubus podem ser considerados aves de rapina. Entre elas, eles ocupariam um lugar muito específico à medida que, preferencialmente, se alimentam de animais já mortos, se alimentam de animais que não caçaram, nem apreenderam, mas encontraram em estado de putrefação, de carniça. Os urubus, mesmo sendo aves carniceiras, como as águias e os gaviões, com os quais partilha muitas características, preferem se alimentar de carnes mortas, de corpos em decomposição, se comprazendo em se alimentar das vísceras apodrecidas que acessam através de algum orifício feito ou presente na carcaça do animal.
A tragédia da morte de dez garotos que jogavam nas categorias de base do Clube de Regatas Flamengo, que tem como símbolo o urubu, após os containers em que dormiam se incendiar, em plena madrugada, quando quase todos dormiam, parece ser um acontecimento símbolo não só do momento que vive a sociedade brasileira mas, em grande medida, da própria história do país. O centro de treinamento em que os dez meninos, todos tinham entre 14 e 16 anos, perderam a vida se chama, significativamente, Ninho do Urubu. Secularmente, as terras em que hoje vivemos foi vítima constante da rapinagem. A rapina atravessa toda a história do país e poderia ser um fio condutor para narrar a nossa trajetória no tempo. O Brasil nasceu no interior do grande movimento de rapinagem internacional nomeado de colonialismo ou de colonização. A rapina de suas riquezas florestais e minerais foram a base do chamado processo de colonização e de formação da nacionalidade. A maioria dos europeus que para cá vieram o fizeram na intenção de retirar o máximo possível, no menor tempo possível, retornando para a Europa. O sistema capitalista foi possível graças a esse processo de rapinagem internacional que Marx nomeou de processo de acumulação primitiva do capital. Sem saque, sem predação das riquezas, sem a superexploração dos recursos naturais das colônias, as metrópoles europeias não teriam acumulado o capital necessário para se lançarem na aventura industrial. Como urubus sedentos por carniça, impulsionados seja pela ambição, pelo desejo de posse, propriedade e acumulação, seja pela busca da aventura, da fama, da gloria e da reputação, seja pela busca da graça e da salvação das almas pagãs e desgarradas do aprisco divino, levas de homens brancos chegaram as terras americanas, africanas e asiáticas para serem os dominadores, os colonizadores, os civilizadores, os transformadores.
Mas, como sabemos, as aves de rapina, como os urubus, são aves carniceiras, elas se alimentam de corpos que matam ou que já estão mortos. A formação da sociedade brasileira, o que ela é hoje, é incompreensível sem o drama vivido por milhões de corpos humanos, usados, explorados, torturados, utilizados até as suas últimas forças. A história do Brasil, assim como toda a história das Américas, é inseparável da carnificina aqui perpetrada contra as populações indígenas, o genocídio e o etnocídio de milhares de povos, a hecatombe de populações inteiras abatidas pela violência sanguinária, pela fome, pelas doenças contagiosas, pela destruição de seus ambientes naturais e culturais, pela destruição de suas culturas e civilizações. Nas Américas e na África se perpetrou um dos maiores crimes da humanidade, a devoração de milhões de corpos e almas humanas, capturadas como bestas, no interior do continente africano, ás vezes com a colaboração dos próprios africanos rivais ou treinados para a razia escravista, transportadas em péssimas condições, armazenadas como animais e transportadas em navios que ficaram significativamente conhecidos como tumbeiros. A sociedade brasileira se estruturou sob o signo da rapina dos corpos negros africanos, ela se formou sustentada pela exploração brutal desses corpos, pela sevícia e a tortura diárias, pela humilhação e pelo desprezo de vidas que não contavam, de corpos que não eram vistos como semelhantes e iguais. As elites brasileiras se formaram na rapinagem de riquezas e de corpos. Como urubus, engordaram, enriqueceram, se fizeram importantes e ricos às custas do sangue e das carnes dos considerados inferiores, irracionais, incivilizados, quase animais, alguns domésticos e de estimação. O ethos, a maneira de ser, a mentalidade, a sensibilidade, o imaginário que sustentam as elites brasileiras, que as constituem como sujeitos é a rapinagem, é o se banquetear de preferência com aquilo que exige menos esforço para conseguir. O urubu não é uma ave futurista, ela é uma ave imediatista, trata de comer o máximo que pode, quando encontra a carniça desejada, ele não guarda nada para depois, como faz o cachorro, trata de tudo devorar, o mais rápido possível. Como urubus, nossas elites vêm, há séculos, devorando riquezas e gentes sem nunca ter um projeto de futuro para essa nação e para esse país. Trata-se de se empanturrar o mais rápido possível, deixando atrás de si devastação, carnificinas, podridão e restos. Muitos, ainda com as penas e os bicos sujos, abandonam o país para viverem no exterior, golfando vômito pútrido sobre a própria imagem do país e de sua gente, como fez recentemente um dos integrantes do governo entrante.
O urubu trata sempre de romper o couro ou a pele que contém e protege as vísceras para delas fazer seu alimento. Creio que vivemos um tempo de exposição das vísceras do país e, como estamos sentindo, elas fedem muito. Os urubus são aves que se alimentam da corrupção dos corpos e, assim, exerceriam uma importante atividade sanitária e higiênica, pois não livram das carniças, das ameaças a saúde que elas significam e do mal cheiro que exalam. Esse momento que vivemos no país se iniciou com uma operação, em que um senhor vestido, preferencialmente de preto, como um urubu, prometeu sanear o país de toda e qualquer corrupção, lavando-a à jato. Do alto de sua condição de juiz de primeiro piso prometeu expor toda a podridão que habitava o corpo da nação, para submetê-la a uma faxina higienizadora. Eis que, uma vez destampada a carniça do país, muitos urubus se mostraram seletivos, só querendo devorar dadas comidas específicas, tampando os olhos e as narinas para fontes muito bem localizadas de mal cheiro e podridão. Os urubus que não são dotados de bela voz ou canto, passaram a grasnar um discurso repetitivo, e desengonçados, como soem ser, passaram a rodopiar e a bailar em torno dos mesmos alvos, deixando claro que nem todas as fontes de podridão e mal cheiro deveriam ser devoradas ou deglutidas, nem mesmo bicadas ou expostas. Mas, mesmo assim, o fedor se espalhou por todo o país e como em estado de narcose pelo ar pesado e nauseabundo que passou a circular entre todos, os urubus passaram a se entredevorar. Quanto mais carniça se expunha e se expõe, mais carniça se queria, mais carniça se quer. Há governador prometendo buscar no exterior tecnologia produtora de carniça de pobres e pretos, ditos bandidos, à granel, para alimentar o apetite de sangue das classes médias. O desejo reativo de morte se apossou de boa parte da sociedade brasileira, passamos a ter uma sociedade de urubus que querem ter, a cada dia, seu naco de carne podre para o repasto. Os meios de comunicação de massa passaram a veicular discursos e práticas tumulares, colocando no patíbulo diário muitas vidas, reputações e honras, para o deleite da urubuzada sequiosa por vísceras podres. A nação passou a se alimentar de um jornalismo urubulino, um jornalismo de rapina, um jornalismo dito de guerra, ou seja, que busca e encontra a morte do próprio jornalismo, transformado em discurso azedo e pútrido de odio, vingança, ressentimento e atravessado pelo desejo de destruição e humilhação do outro. Como falsas carpideiras, passamos a chorar e bendizer o nosso morto de cada dia, a nossa carniça posta na mesa do jantar, todas as noites, pelo Jornal Urubuzal.
Esses primeiros dois meses do ano de 2019 parecem mesmo estar presididos pela figura do urubu. Se existisse urubu no jogo do bicho seria a aposta certa todos os dias. Nossas elites, com sua interminável sede por sangue e linfa, conseguiram colocar no poder aqueles que encarnam a sua face mais rapace. Em pouco mais de dois anos, os corpos dos trabalhadores voltaram a ser carne barata para o açougue. A derrogação de boa parte dos direitos trabalhistas, que continuam na mira do bando de urubus que chegou a Brasília, visa tornar mais barato explorar as forças e as vidas dos trabalhadores. Sugar suas vísceras agora vai custar menos. A reforma da previdência promete jogar na rua um grande numero de carcaças velhas e já carcomidas, que quedarão fedendo a céu aberto, sem nenhum abrigo que as venha proteger antes do tumulo definitivo. Trata-se de gerar mais carniça para o bico dos urubus das finanças, já sobrevoando a todos com o agourento sistema de capitalização que, no Chile, fez dos aposentados miseráveis a mendigar um naco de carne para continuarem vivos. O desejo de rapina do capital financeiro, nacional e internacional, não quer encontrar barreiras ou limites, para o repasto de seus estômagos insaciáveis, por isso derrubam governos, dão golpes de Estado, instauram o estado de exceção, compram leis, emendas, tribunais, tribunos, qualquer urubu que cacareje mais do que duas ideias pelas redes sociais; compram também pitbulls, que costumam ser rivais dos urubus na rapinagem. O astral do país, coisa para astrólogos verificar, parece estar baixo. As tragédias se sucedem, o governo entrante é em si mesmo uma tragédia, da maioria das instituições exala um fedor quase insuportável. Comprometidos, durante anos, em espalhar maus eflúvios e em encher a atmosfera nacional com os miasmas de ideias retrogradas, reacionárias e fascistas, muitas das forças comprometidas com o fim do domínio petista na política do país se sujaram e se enlamearam na própria fedentina que produziram, foram tragadas pelas fossas que elas mesmas destamparam ou produziram. Vivemos um tempo, no país, que até as ideias parecem cheirar mal. Aquelas que emanam das forças que assaltaram o poder espalhando a sujeira da mentira, da calunia, do fake news, do assédio e do acosso moral, da intimidação, da fraude, da violência, apodrecem em praça pública. Há gente que, quando abre a boca, o hálito de carniça é intragável. Tempos que deveriam ser de alegria e gozo por parte dos urubólogos e urubólogas de plantão, mas que vão se tornando não palatáveis até para esses paladares mais devotados ao podrido.
A tragédia de Brumadinho expõe as vísceras de nosso capitalismo, do respeito que as empresas têm pela vida e pelos corpos de seus trabalhadores. O capitalismo à brasileira sempre significou o soterramento e o enterro de milhares de vidas humanas tragadas pela ambição, pela incúria, pela corrupção, pelo desprezo pela lei e pelas regras. O futebol brasileiro sempre encenou a vísceras escravista e racistas de nossa sociedade. Nele corpos, pés e mãos sempre foram comprados e vendidos, explorados, usados e jogados fora como lixo humano, numa das atividades onde as marcas deixadas pela escravidão, no país, sempre apareceu com destaque. Proibidos de jogar, tendo que usar pó-de-arroz para embranquecerem, comprados e vendidos como gado, explorados por técnicos, dirigentes e empresários, até mesmo sexualmente, milhares de garotos brasileiros, saídos das camadas populares, nascidos do ventre da escravidão e da miséria, sonhando em ter uma vida melhor para si e para os seus, usando as habilidades adquiridas em campinhos de barro e com bolas de meia, fizeram a glória e a fama de nosso futebol, se constituíram num dos poucos motivos de orgulho patriótico, num país de elite colonizada, que deprecia sua nação e seu povo. Como disse Nelson Rodrigues, o futebol nos retirou o complexo de vira-latas, mas às custas da exploração brutal de muitos corpos e muitas vidas, jogadas na pobreza e no abandono, após fugazes anos de ribalta. Os meninos incendiados do Flamengo, quase todos negros, é apenas mais um capítulo nessa verdadeira hecatombe de corpos negros que é a história desse país. Poucas horas depois que os dez meninos arderam no fogo da irresponsabilidade e da incúria futebolística, treze corpos negros foram varados de bala, torturados a faca, espancados, sequestrados e jogados nas pedras dos hospitais por policiais que obedecem a política necrofílica dos novos poderosos de plantão. O filosofo nigeriano Achile Mbembe diz que a necropolítica, a política da morte, foi parceira da biopolítica, a política da vida, na constituição do mundo moderno. Estamos, no Brasil, sobre o domínio da necropolítica. As poucas decisões emanadas, até agora, de um governo inepto e confuso, sem projeto e sem nenhuma articulação, foram todas na direção de consagrar a morte, a busca da morte, como política de Estado.
A liberação do porte de armas nem de longe pode ser pensado como medida de segurança pública, ao contrário, é medida de tragédia pública, é promessa que muitas carniças vão ser produzidas para nossos urubus dos programas que sensacionalizam a morte e a desgraça possam se alimentar: está garantida a nossa ração diária de sangue. Aqueles que precisam de desgraças alheias para apaziguarem as suas próprias desgraças têm já sua cota diária de carniça garantida. Ainda ontem, aqui em João Pessoa, uma banal discussão de trânsito, se transformou na execução sumária e pública de um taxista por um motorista prepotente e armado, que se refugiou em casa, portando outra arma de grosso calibre, mantendo as forças de segurança imobilizadas durante horas nos arredores de sua residência, diante da ameaça de que sua esposa fosse a próxima vitima, os seus vizinhos ou quem passasse diante da mira de sua arma. Essa será a realidade do país, daqui para frente, um país que elegeu um presidente da República que tem o uso de arma como fetiche. Sua mão simulando atirar em alguém, suas promessas de extermínio armado dos adversários, viraram ícones num país de urubus, que vivem perscrutando desejosos o cheiro de um cadáver. O pacote anticrime do ministro da Justiça é outra peça de destaque da necropolítica em ação em nosso país. Dar carta branca para policiais matarem pobres, pretos e quem eles avaliarem que são bandidos, num país onde as policias são responsáveis por quase um quarto das mortes registradas, é um convite a carnificina. Como canta lindamente Elza Soares, a carne preta será, cada vez mais, a carne mais barata do mercado, junto com a carne de homossexuais, mulheres e crianças, destinadas a alimentar o apetite racista, homofóbico, machista e misógino de parcelas consideráveis de nossa sociedade. O conjunto de leis de Moro é uma afronta aos direitos humanos, aos direitos civis, à várias clausulas da Constituição, mas como esperar que urubu obedeça regras ao se deparar com a possibilidade da carniça. Moro nunca se destacou pela observância das leis e da Constituição. Junto ao ministro da Educação prometem fazer uma razia nas universidades em busca de corpos para alimentarem a sede de vingança e o ódio a inteligência e ao conhecimento que definem tão bem o grupo no poder. Talvez mais cadáveres, como o do reitor da Universidade de Santa Catarina, sejam produzidos, afinal esse é um governo que aplaude e elogia uma ditadura que teve nos corpos de jovens estudantes e professores das universidades as carnes mais apetitosas para a sevícia, a tortura e a execução sumária, seguidas do desaparecimento e transformação em pó e cinzas desses corpos.
Com essas medidas, somadas a política económica do Ministro Paulo Guedes, destinada a dificultar a sobrevivência da maioria da população, a tanatocracia está completa. Como bem sintetizou o ex-presidente Lula, Guedes cria os pobres e miseráveis e Moro os mata, por falta de uma política efetiva de educação, que o ministro Velez diz ser privilégio para alguns, para dar-lhes oportunidade de não ter o mundo do crime como único caminho possível. Só o Jesus na goiabeira de Damares na causa para nos salvar do desastre anunciado. Quem sabe o ministro das relações exteriores, com seus maus modos e falas, ainda nos meta num conflito ou numa guerra, onde a mortandade de brasileiros pobres e pretos arregimentados como soldados mal pagos, mal preparados e mal equipados, será ainda maior. Assim se realizaria o sonho de parte de nossas elites: livra-la dessa gentinha. Poderíamos dizer: se eu Morro, me Velez por favor!
Vivemos sob o signo da morte, do fim. Os verbos que mais ouvimos na boca de nossas autoridades, de todos os poderes, na boca dos varões de nossa mídia são: acabou, extinguiu, fechou, descontinuou, diminuiu, desidratou, fundiu, privatizou, destruiu, engavetou, suspendeu, paralisou, arquivou, determinou o fim, etc. Os bancos e financiamentos públicos devem definhar, enxugar, ser privatizados. As empresas estatais, patrimónios construídos durante anos com o suor dos brasileiros, leiloadas, cedidas, fundidas, extintas, privatizadas. Os programas sociais desidratados, auditados, reduzidos, extintos. As empresas nacionais alienadas, fundidas, adquiridas por outrem, internacionalizadas, fechadas, falidas. Em todos os âmbitos do país, os urubus estão à espreita, estão salivando diante da rapina e do repasto à vista. Talvez somente a própria podridão dos salões do poder, das forças que se apossaram da República, forças que cheiram à morte patrocinadas e perpetradas por milícias e forças de exceção; forças que cheiram a morte em situação de tortura, nos porões de um regime de exceção; forças que vivem da exploração da fé em um deus que se deixou matar, que defendem a mortificação do corpo e do desejo; forças que são responsáveis por milhares de mortes no campo, nas favelas, nas periferias das cidades, em acidentes de trabalho, envenenados por agrotóxico e produtos químicos, congelados em frigoríficos, tombados de andaimes e máquinas pingentes, possa nos acordar do sono mortífero que parece ter se apossado das forças vivas do país. Talvez a fedentina seja tanta, o sangue e a carnificina sejam tamanhos, que venhamos a acordar, como sociedade, desse desejo de urubu que levou um terço da população do país a escolher a morte ao invés da vida, o luto ao invés da alegria, a violência ao invés do amor e da esperança, a agressão e o preconceito ao invés da solidariedade e do respeito. Os urubus ridentes, que não param de grasnar sandices, de derramar a fedentina do ódio e do preconceito nas redes sociais, pessoas capazes de brincar e gozar com as maiores desgraças, que são capazes de serem clubistas diante de dez corpos de meninos mortos, que sorriem e vibram com a morte de treze pessoas numa favela, que são capazes de tripudiar sobre a dor de uma liderança política e homossexual que se vê obrigado, sob risco de ser mais um cadáver a alimentar os urubus fascistas e armados que povoam nosso dia a dia, a se exilar do próprio país, deixam claro que o Brasil está podre por dentro, que as vísceras do país estão expostas, e delas, muitas bolsas de merda e pus escorrem, muita fedentina se espalha pelo ar. Há momentos que a sensação é que estamos num ar irrespirável e que vamos nos afogar da fedentina. O país que há apenas alguns anos parecia que ia dar certo, que era festejado em todo mundo, em que a população se dizia uma das mais alegres e otimistas do mundo, parece estar na merda e não faltam urubus sobrevoando para lhe arrancar um naco.

Durval Muniz de Albuquerque é historiador, professor titular aposentado da Universidade Federal do Rio Grande do Norte

(Texto publicado originalmente no site Saiba Mais, Agência de Reportagem, aqui reproduzido com autorização do autor)

quarta-feira, 6 de fevereiro de 2019

Como os poetas terminam - literatura e indigência no Brasil

                                           

Wilson Alves-Bezerra

                                                                                

Como os poetas terminam – literatura e indigência no Brasil            


 
Orides Fontela, Horacio Quiroga e Claudio Willer: três grandes artistas que enfrentaram penúrias (Arte: Andreia Freire/Revista CULT)

Em 1928, no auge de sua popularidade, o escritor uruguaio Horacio Quiroga (1878-1937), num artigo chamado “A profissão literária”, fazia um balanço de sua carreira, pensando sobretudo na remuneração dos autores. Ao fechar sua dolorosa contabilidade, concluiu: “Durante os 26 anos que vão de 1901 até hoje, ganhei com minha profissão 12.400 pesos. Este montante em tal período de tempo equivale a um salário de 39,70 pesos por mês. (…) Se eu tivesse que ganhar a vida exclusivamente com isso, teria morrido após sete dias de me iniciar em minha vocação, com as entranhas roídas”.
Em outro artigo do mesmo ano, Quiroga, numa série de biografias breves chamada Heroísmos, referia-se a Edgar Allan Poe (1809-1849), cujas cartas revelam que ganhava ainda menos por seus contos. Em maio de 1844, à editora da revista The Opal, Poe dizia: “O preço que a senhora me indica – 50 centavos por página – me parece suficientemente bom”. Estranho pensar que o autor de “O gato preto” e “O corvo”, apesar de gozar de reconhecimento público, vivia em condição de semi-indigência e, cinco anos depois, morreria de delirium tremens.
O próprio Horacio Quiroga, apenas seis anos após tais artigos, começou a enfrentar reveses econômicos: um golpe militar no Uruguai levou-o a ser exonerado de seu cargo de diplomata, sem tampouco conseguir se aposentar.  Já sem grande prestígio na imprensa local, acabou passando os anos finais com dificuldades financeiras, vindo a morrer após cinco meses internado no Hospital de Clínicas de Buenos Aires. Ao descobrir que padecia de um câncer incurável, suicidou-se.
Nosso desejo de que esses destinos literários fossem mera memória de tempos idos se vê desmentido por recentes histórias nacionais. Descontados altos e baixos, nas últimas décadas, no Brasil, a situação de quem se atreve viver do que escreve não é muito melhor: Orides Fontela (1940-1998), Hilda Hilst (1930-2004), Roberto Piva (1937-2010) – os três grandes poetas viveram penúrias em seus anos finais.
Na Folha de S. Paulo, em 1996, uma matéria de Elvis Bonassa descrevia o cotidiano de Fontela, às vésperas do lançar seu livro Teia: “Orides Fontela, 55, ganha apenas uma aposentadoria de R$ 423. Mora no prédio da Casa do Estudante, na Av. São João, acolhida por uma amiga após deixar, por falta de dinheiro, um apartamento alugado. Orides Fontela é uma das mais respeitadas poetisas brasileiras”.  No mesmo jornal, em 2005, Julián Fuks assim descrevia Piva: “Aqueles leitores da década de 1960 (…) talvez se entristecessem ao ver Piva trancafiado em seu apartamento na Santa Cecília, já descrente da vida que pulsa nas ruas. Das ruas, segundo denunciam suas janelas fechadas e empoeiradas, só lhe alcança o som das buzinas”.
Em tempos bem recentes, no início de 2018, veio a público um alerta da situação financeira delicada de outro grande da cena nacional: Claudio Willer. Após ter sido uma das figuras-chave da geração dos Novíssimos; ter tido verbete a ele dedicado no Dictionnaire général du Surréalisme et de ses environs, de Adam & Passeron (1982); ter traduzido Láutreamont, Artaud, Ginsberg e Kerouac no Brasil; ter escrito obras de referência sobre gnose e gnosticismo na literatura ocidental e sobre a beat generation; ter influenciado poetas com sua poesia e suas oficinas literárias; após ter feito tudo isso, Willer não conseguia mais pagar o aluguel de seu apartamento, onde vivia com a companheira e artista plástica Maninha Cavalcante.
Ora, se ter criado a literatura policial e ter escrito O Corvo (1845) e Filosofia da Composição (1846) não salvou Poe da indigência; por que obras como Anotações para um apocalipse (1964) ou Volta (1996) protegeriam Willer de ser acossado pela carestia?
É certo que a crise econômica que o Brasil passou a enfrentar ao menos desde 2013 tem um papel nisso. Mas não apenas ela: cabe suspendermos o texto para fazer um minuto de silêncio – e reflexão –  pelo Sabático do Rinaldo Gama; o Prosa & Verso da Mànya Millen; o Guia de Livros, Discos e Filmes do Manuel da Costa Pinto; o Rádio ao Vivo de Menegatti, Oliveira Andrade e Cris Santos; o Pensar do João Paulo Cunha; o Ideias & Livros do Álvaro da Costa e Silva; a Bravo!… Enfim, a crise. Menos livros, menos livrarias, menos ideias circulando, menos oficinas literárias, menos resenhas a escrever e a ler. Orçamentos reduzidos nos SESCs, nas universidades, menos apoio nas agências de fomento. A literatura e as artes saindo com velocidade do centro da cena.
Num contexto como o atual – anticultural, obscurantista, truculento – é certo que  floresce a cultura de resistência, e incontáveis são os projetos de gente vigorosa que afronta a tempestade – livros, saraus, slams, editoras de resistência, portais, revistas, críticos independentes – coletivos e pessoas que têm força para, à margem, criar e fazer circular arte. Resta, entretanto, a pergunta incômoda: e quem, como Willer, ao 78 anos, já militou pela poesia não apenas na escrita, mas também em eventos-chave como na realização da Feira de Poesia e Arte, no Theatro Municipal, num Brasil sob ditadura, em novembro de 1976? E que depois atuou, na UBE, na FUNARTE e em incontáveis outras instituições? O que faz o poeta septuagenário quando o ambiente se torna inóspito? Continua como mascate lírico, oferecendo oficinas, cursos, palestras, conferências, para além dos limites físicos, em troca de uns pro labore que nunca bastam para pagar alugueis, remédios e a mera subsistência? Continua escrevendo livros para a posteridade?
Há um momento da vida humana –  mesmo a dos poetas – no qual o corpo começa a cobrar seus preços, e o escritor precisa fazer frente à intempérie. Caibam três notas: (1) que, no Brasil, quem foi autônomo ao longo da vida, na velhice tem seus rendimentos de aposentadoria não superiores a um salário mínimo: menos de mil reais; (2) que direitos autorais de poetas rendem, quando muito, algumas dezenas de moedas; (3) que no Brasil não há pensões a artistas que tenham prestado serviços relevantes à cultura, como ocorre em países como Portugal e na Itália, por exemplo. O que fazer?
No início de 2018, como disse, leitores, artistas, intelectuais e amigos de Claudio Willer lançaram a campanha de apoio ao poeta. O objetivo era simples: levantar dinheiro para que ele pudesse pagar as contas atrasadas e apoiar o tratamento de sua companheira. Contas foram pagas e ele foi viver num apartamento, que há duas semanas teve de desocupar. Aos 78 anos, vivendo provisoriamente num hotel, já se sabe que a vida financeira não irá melhorar, que não há guinadas ou golpes de sorte. É preciso contar com uma rede de apoio perene, com ingressos mensais, que não obriguem a forçar uma coluna vertebral que já sustentou poesia, reflexão e devaneio por todo o território brasileiro.
Como não temos no horizonte deste país a criação de uma lei de pensões a artistas veteranos – os que combateram por décadas pela dimensão vivificadora da arte para fazer da criatura humana um ser menos abjeto – então o artigo se transforma em apelo: por que não apoiar o poeta vivo –  Claudio Willer –, por que não apoiá-lo como a um ser que se estima? Se o poeta se faz à margem das instituições, para nos fazer ver lados outros das coisas, porque não sustentá-los com delicadeza no ar, no instante duro da queda?
WILSON ALVES-BEZERRA é escritor, tradutor, crítico literário e professor de literatura. Leciona no Departamento de Letras da UFSCar e já traduziu autores latino-americanos como Horacio Quiroga e Luis Gusmán.

(Publicado originalmente no site da Revista Cult)

terça-feira, 22 de janeiro de 2019

O risco à civilização e o surgimento do Homo stupidus stupidus

                                        
Além da lei
                                                                                                                                                                 

O risco à civilização e o surgimento do Homo stupidus stupidus                                                                             
O Homo stupidus é o modelo de consumidor ideal, acrítico e domesticado (Arte: Andreia Freire/Revista CULT)

Guerras, catástrofes e crises são cada vez mais necessárias ao capitalismo. A capacidade de produzir, acumular e circular valores a partir da desgraça e do infortúnio explica, em muito, o sucesso de um modelo que muitos acreditavam estar fadado a desaparecer a partir de suas contradições. O ato de destruir, para em seguida reconstruir, torna-se natural e, ao mesmo tempo, pode ser tido como fundamental à manutenção de uma estrutura em que até a dor e o sofrimento acabam transformados em mercadorias.
Não por acaso, hoje, vários retrocessos são percebidos em todo o mundo (não se pode, porém, descartar que o Brasil ocupe uma posição de destaque na dinâmica mundial como um laboratório em que se testa a mistura entre conservadorismo, ultra-autoritarismo e neoliberalismo). Voltar para evitar o fim, repetir e reconstruir para lucrar a qualquer custo, isso em um espiral infinito.
Para compensar o caos social, produzidos em razão da adoção de medidas neoliberais, os detentores do poder econômico estimulam promessas e discursos que satisfazem um imaginário que projeta o retorno a um passado idealizado de segurança (um passado que, na realidade, nunca existiu e que constitui o que Zygmunt Bauman chamou de retrotopia). Um passado que pode ser identificado com a ditadura empresarial-militar brasileira instaurada em 1964, transformada em mais uma mercadoria que promete segurança contra os inimigos, ainda que imaginários (como o comunismo em 1964 e, novamente, em 2018).
Retrocessos, como o retorno de práticas inquisitoriais e a substituição da política pela religião, ou mesmo o abandono tanto do projeto da modernidade (sintetizado nos valores “liberdade”, “igualdade” e “fraternidade”) quanto dos limites democráticos (e o principal desses limites era a necessidade de respeitar os direitos e garantias fundamentais), tornam-se oportunidades de negócios cada vez mais lucrativos.
No grande supermercado da pós-democracia, nessa imagem do Deus-Mercado que revela a agonia de uma civilização, são encontrados (e vendidos) antídotos para o fundamentalismo religioso ao lado de produtos para fanáticos religiosos, armas ao lado de bíblias, feminismos domesticados, marxismos conformistas, obras de religiosos “cristãos” que defendem a tortura e a violência ou de “intelectuais” que ainda contestam o heliocentrismo e a teoria da relatividade.
Para Marx, as forças produtivas (meios de produção, força de trabalho, modo de trabalho etc.), que se desenvolveriam continuamente, tenderiam a entrar em contradição com as relações de produção dominante (propriedade e dominação), o que acabaria por provocar mudanças nas relações de produção e, em dado momento, o fim do capitalismo. Não contava o velho Marx com o fato de que a mudança acabaria por se dar no campo das forças produtivas, em especial na dimensão humana da equação. O trabalhador tornou-se cada vez mais dispensável, mas a principal mudança, fruto de uma racionalidade que transforma tudo em mercadorias e busca o lucro ilimitado, foi a transformação do sujeito potencialmente transformador em um completo idiota.
Trata-se de um movimento que ameaça os pilares da civilização e que tende a levar ao progressivo desaparecimento do Homo sapiens sapiens e ao colapso civilizatório, com o concomitante surgimento de uma nova espécie a que Vittorino Andreoli, por simetria, sugere chamar de Homo stupidus stupidus.
A hipótese que gostaria de levantar aqui é simples: para a manutenção do capitalismo é necessário que as pessoas pensem cada vez menos. O empobrecimento da linguagem, a dessimbolização e a correlata transformação de tudo e todos em objetos negociáveis são fenômenos que funcionam como verdadeira condição de possibilidade para naturalizar diversas opressões (classe, gênero, raça, plasticidade, etc.), conviver com as guerras e outras formas de destruição planejadas no interesse de grandes corporações, aceitar mortes evitáveis, remédios caríssimos e prisões desnecessárias (daqueles que não interessam ao projeto neoliberal), enquanto lucros obscenos passam a justificar a pobreza extrema.
Não faltam “causas” para a emergência do Homo stupidus, desde a produção da indústria cultural até os algoritmos, passando por próteses de pensamento (basta pensar na importância da televisão na formação cultural brasileira) e instituições como as igrejas (que aderiram tanto à teologia da prosperidade quanto a uma visão teológica empobrecida da luta entre o bem e o mal), criou-se uma espécie de racionalidade que condiciona e pressiona à conformidade, naturaliza o empobrecimento da linguagem e leva à crença de que a simplificação do pensamento é uma dádiva e não a maldição que está levando à agonia da civilização.
Aqui, peço licença ao leitor para um breve esclarecimento: conheço a advertência feita por Robert Musil de que quem se aventura a escrever sobre temas como a “estupidez” e a “idiotice” corre o risco de ser interpretado como presunçoso ou até mesmo passar como portador de um distúrbio cognitivo similar ao daqueles sobre os quais escreve. De fato, existem exemplos de perfeitos idiotas que escreveram sobre a figura do“idiota” (livros, importante dizer, que tiveram ampla aceitação entre idiotas).
Porém, a estupidez e a idiotice, em especial diante da emergência do Homo stupidus stupidus, são fenômenos que devem ser levados a sério e precisam ser objeto de reflexão e estudo aprofundado.
Não são poucos os exemplos históricos de idiotas que foram ignorados até produzirem muitos danos à civilização. Muitas pessoas que inspiravam risos, em pouco tempo, nos fizeram chorar. Alguns chegaram a ser eleitos para cargos importantes, outros passaram em concursos público nos quais a reflexão e o pensamento crítico não se faziam necessários: todos exerceram poder… de forma idiota e com consequências trágicas. Há, portanto, de se considerar a idiotice como um importante fator político, isso porque, diante do processo de idiotização da população, ela assegura uma significativa base demográfica e eleitoral.
Feita a pausa, vale recorrer à etimologia. Idiota é uma palavra que tem origem no grego antigo para designar um “cidadão privado”, ou seja, alguém que se apartasse da vida pública, um indivíduo incapaz de entender a importância da comunidade e de agir de acordo com o “comum”. A palavra “estúpido”, por sua vez, tem origem no latim stupidus que significa a pessoa sem ação, inerte, incapacitado. A racionalidade neoliberal deseja indivíduos apartados da vida pública e inertes para que não prejudiquem os negócios e a acumulação tendencialmente ilimitada de capital. O Homo stupidus não só é mais facilmente explorado como também é o modelo de consumidor ideal, acrítico e domesticado.
No mundo do Homo stupidus stupidus, o egoísmo é percebido como virtude enquanto o “comum” acabou demonizado. Há uma regressão que pode ser percebida nas interações sociais, na dificuldade de argumentação, na capacidade de apreender e seguir normas éticas e jurídicas. Mas, não é só. Tem-se o declínio da verdade e o desaparecimento da objetividade, ou melhor, a perda de importância dos fatos, da ciência e da reflexão em um mundo em que, ao lado das fake news,  ganham prestígio a ciência falsa (por exemplo, os negacionistas das mudanças climáticas e da eficácia das vacinas), a história falsa (no Brasil, temos os negacionistas da ditadura instaurada a partir de 1964) e até perfis falsos nas redes sociais que ganham “likes” igualmente falsos que se somam aos “likes” dos idiotas.
Se o Homo sapiens sapiens, que surgiu há mais de trezentos mil anos na África, se caracteriza pela linguagem, pelo raciocínio abstrato, pela introspecção e pela resolução de problemas complexos, o Homo stupidus stupidus pode ser identificado por seu pensamento extremamente simplificado, estereotipado (com a repetição de chavões e slogans), pelo uso de uma linguagem empobrecida e pela incapacidade de reflexão e raciocínios complexos. Enquanto o Homo sapiens busca a verdade, inclusive sobre si mesmo, uma vez que tem por características a autoconsciência, o desejo de saber e a racionalidade, o Homo stupidus contenta-se com aquilo que confirma as certezas a que previamente aderiu. O que hoje se chama “pós-verdade” é a verdade do Homo stupidus.
Porém, vale lembrar com Carlo M. Cipolla, que uma pessoa estúpida é capaz de causar danos a outras pessoas ou grupos de pessoas sem auferir qualquer vantagem para si mesmo (podendo, inclusive, suportar perdas em razão de sua ação). O Homo stupidus acredita estar livre de coações externas e de restrições impostas por terceiros. Ele foi levado a acreditar e a agir como um empresário-de-si, cujo sucesso econômico (o único que ele reconhece) depende apenas de seus próprios méritos (incapaz de perceber o sujeito que se encontra ao lado como um eventual aliado na construção ou manutenção de algo em comum, trata as demais pessoas como concorrentes ou inimigos). Não percebe que, em razão da racionalidade neoliberal, acaba mais explorado (e, agora, se trata de uma auto-exploração que se sustenta na ignorância e leva à depressão e a outras doenças psíquicas) do que era o antigo proletário, que pelo menos tinha a possibilidade de adquirir consciência de classe e de sua exploração. Essa capacidade de refletir sobre a sua condição, que faz do homem sapiens, é indispensável à construção de um mundo melhor em que os valores da liberdade, da igualdade e, principalmente, da fraternidade voltem a importar no projeto normativo da sociedade.
RUBENS R.R. CASARA é juiz de Direito do TJRJ e escritor. Doutor em Direito e mestre em Ciências Penais. É professor convidado do Programa de Pós-graduação da ENSP-Fiocruz. Membro da Associação Juízes para a Democracia e do Corpo Freudiano

(Publicado originalmente no site da Revista Cult)

segunda-feira, 21 de janeiro de 2019

Michel Zaidan Filho: Religião e Sociedade.


 
 
 
Existe uma disciplina da área da Lingüística chamada "arqueologia literária", cujo objetivo é fazer um estudo comparado do texto das escrituras sagradas, no hebraico, aramaico e latim. A ideia é, através da comparação, estabelecer a autoria, a autenticidade e o sentido das narrativas bíblicas. Faz parte do que se convencionou chamar de ciências hermenêuticas. Há várias formas de interpretação desses textos. Temos uma hermenêutica liberal, uma ortodoxa e uma terceira que faz uma revalorização do profetismo como fonte de uma reflexão teológica. Isto porque se encontra justamente nos profetas do velho testamento os germes, as sementes do protesto social, da indignação humana contra todas as formas de injustiça social. É da voz (e da pregação) de Isaías, Amós, João Batista e outros) que os neo-ortodoxos extraem hoje o material de sua exegese dos textos bíblicos. A interpretação ortodoxa das escrituras é a mais conservadora, mais fundamentalista e alheia aos problemas da vida profana. É esse ramo da exegese bíblica que mantém mais afinidades com o Judaísmo, entendendo-o como o irmão mais velho do Cristianismo.
A interpretação ortodoxa ignora ou subestima toda a complexidade hermenêutica do estudo e da compreensão desses textos e tende a uma leitura literal, sem atentar para o ato de que o livro sagrado do Judaísmo e do Cristianismo é um compósito de várias narrativas,de autores diferentes, épocas diferentes e que contém histórias extraordinárias, que se não forem lidas como parábolas ou alegorias edificantes, podem se tornar fonte de credulidade ou ignorância.
A reinterpretação dos textos vestutestamentários foi feita de inúmeras formas e com objetivos bem diferentes. A mais problemática, com certeza, é aquela feita por ramos ou denominações da Igreja Reformada, como por exemplo: o movimento pentecostal e neo pentecostal (que, aliás, não se reivindicam do legado de Cristo ou do Cristianismo), em sua origem anglo-saxã. Não é segredo para ninguém que o primeiro a fazer isso foi Martinho Lutero, ao negar a importância da intermediação da Igreja romana na interpretação dos evangelhos e ressaltar o livre exame das escrituras por cada fiel ou crente. No entanto, quem iria extrair todas as consequências dessa nova exegese seriam os evangélicos norte-americanos e a sua ênfase no papel do indivíduo e suas ações na salvação da alma. Enquanto os cristãos romanos e ortodoxos se ativeram à ética das convicções, os evangélicos passaram direto para a ética das consequências, afirmando que o crente se salva pelas obras e pelo resultado prático de suas ações, independentemente do contexto social. E a manifestação da graça divina estaria nos sinais de prosperidade material do crente. Quanto mais rico,mais próspero e abonado, mais abençoado por Deus. Surgia aí uma nova moral, a moral puritana do trabalho. E uma nova teologia, a teologia da prosperidade. Naturalmente que o pano de fundo de uma tal teologia era a sociedade norte-americana (antes do fim do sonho americano), o chamado "American Way Life".
A transposição dessa teologia da prosperidade para o Brasil enfrentou, inicialmente, certas dificuldades em razão da forte e prolongada hegemonia da Igreja católica romana e a sua doutrina do "usto preço" bem como o seu despreza pelo acúmulo de bens materiais. Mas a crise do catolicismo e a proliferação dos cultos evangélicos, sobretudo nas comunidades pobres e desassistidas da periferia, esse discurso caiu como um a luva no desespero e na orfandade religiosa das classes mais pobres. Marx se referia à religião, em sua época, como o "ópio do povo", e Freud, como uma espécie de neurose ou infantilismo nas pessoas piedosas. Hoje, é preciso atualizar o sentido dessa crítica. O discurso do enriquecimento fácil e o acesso ilimitado aos bens de consumo duráveis sugeridos pela "teologia da prosperidade" ofertado pelas igrejas pentecostais e neo-pentecostais tornou-se uma forma de alienação política e econômica muito grave, transformando-se num imenso obstáculo para a pregação socialista e republicana do Brasil.
 
Michel Zaidan Filho é filósofo, historiador, cientista político, professor titular da Universidade Federal de Pernambuco e coordenador do Núcleo de Estudos Eleitorais, Partidários e da Democracia.

quinta-feira, 27 de dezembro de 2018

Recesso do blog

 
 
 
Num regime democrático, essas nossas despedidas de final de ano sempre se caracterizaram pela procura de respostas às incertezas do ano anterior. As incertezas, como observava o cientista político polonês, Adam Przeworski são inerentes aos regimes democráticos. Se o ator político não a coloca em sua agenda, ele não pode ser definido como um democrata. No simulacro de democracia que experimentamos no país, a incerteza sobre o resultado do jogo democrático não consta do horizonte de nossa elite política e econômica. As consequências dessa "indisposição" são por demais conhecidas, praticamente inviabilizando a existência e consolidação de um regime democrático entre nós. Se, em anos anteriores, nos inquietavam as incertezas que em nada contribuíam para uma convivência, digamos assim, sob as regras de um jogo democrático - mesmo que apenas formal e de baixa intensidade - hoje nos incomodam profundamente as certezas que estão vislumbradas para o ano de 2019, já perfeitamente sinalizadas ainda no fechamento das cortinas de 2018. O blog entra em recesso, retomando suas atividades em fevereiro de 2019.

sexta-feira, 21 de dezembro de 2018

Ensaio: CEAO - Centro de Estudos Afro-Orientais

                                      

 
José Luiz Gomes
 
Em 1959, cumpria um auto-exílio na Bahia o antropólogo português George Agostinho da Silva, que propôs ao então reitor da Universidade Federal da Bahia, a criação de um Centro de Estudos Afro-Orientais, com o propósito de aprofundar os estudos sobre a presença dos escravos africanos naquele Estado. A Bahia já contava com uma galeria de grandes estudiosos desse tema, como Nina Rodrigues, Arthur Ramos, Edson Carneiro, Pierre Verger, Luiz Viana Filho. O que sugeria Goerge Agostinho, na realidade, é que esses estudos fossem retomados, de preferência de forma mais sistemática, com um crivo acadêmico. A proposta foi aceita pela reitoria da UFBA e foi criado o CEAO - Centro de Estudos Afro-Orientais - que ficou diretamente subordinada àquela reitoria.  

Desde então, o CEAO vem realizando uma série de estudos sobre a presença africana no Brasil, em particular no Estado da Bahia, tratadas sob vários aspectos, que envolvem personagens, fluxos migratórios, rituais religiosos, costumes, trocas linguística, antropologia gastronômica, entre outros. O CEAO tornou-se uma grande referência quando se discute a presença africana na Bahia. Não à toa, se diz que outras grandes agências vinculadas ao tema passaram, antes, inexoravelmente, pelo CEAO. O Museu Afro-Brasileiro é um bom exemplo do que estamos afirmando. Outro dado que caracteriza bastante o CEAO é o seu perfil plural, filosoficamente democrático e agregador, características que remontam às suas origens, de acordo com o professor Waldir de Freitas Oliveira, que esteve entre o grupo que fundou o CEAO e foi um dos seus primeiros diretores. 
Isso se verifica, por exemplo, quando da ocasião em que era discutida a proposta de criação de um museu sobre o negro na Bahia. Em princípio – como pensava alguns participantes da roda de discussão - seria apenas o Museu do Negro. Waldir de Freitas, naquele momento se contrapôs, afirmando que, para ser justo e coerente com os princípios norteadores do centro, se vamos criar o Museu do Negro, se faz necessário, igualmente, que seja criado, também, o Museu do Caboclo. No final, prevaleceu o bom senso e foi criado o Museu Afro-Brasileiro, cuja concepção expositiva foi concebida pelo CEAO, com um link com outras esferas acadêmicas da UFBA, entidades da sociedade civil e o Ministério das Relações Exteriores, que passou a observar no Mafro um órgão que podia dar suporte às relações do Brasil com o continente africano. 

No contexto desta pesquisa, muito nos impressionou este vínculo do Mafro com as entidades representativas da sociedade civil, traduzida, por exemplo, numa exposição temporária, organizada por uma ONG, sobre a violência contra adolescentes negros na periferia de Salvador. Nem tanto pelos dados apresentados, tampouco pelas cenas impactantes, mas, sobretudo, pela capacidade de diálogo e articulação daquela entidade com a sociedade civil, como podemos observar em outros eventos logo após essa visita técnica, com o propósito de realização da pesquisa: “ O Discurso Expositivo Acerca da Raça Negra no Museu do Homem do Nordeste”, do Programa Institucional P-II, Educação e Relações Étnico-Raciais, do projeto: A Produção da Fundação Joaquim Nabuco sobre Relações Étnico-Raciais.
Como a pesquisa concentra-se numa análise acerca da representação da raça negra no Museu do Homem do Nordeste, da Fundação Joaquim Nabuco, onde, com base nos pressupostos teóricos de autores como Stuart Hall e Thomaz Tadeu da Silva, observa-se uma sobreposição do conceito de identidade sobre o conceito de diferença - traduzidas em fraturas expositivas ou silenciamentos institucionais que não contribuem para fomentar posturas problematizadoras ou atitudes cidadã e emancipatórias - procuramos, junto aos pesquisadores do CEAO, Cláudio e Jefferson Baltar, provocar uma discussão que suscitasse aproximações de respostas à pergunta dessa pesquisa, ou seja, como essa questão da identidade e da diferença era posta em outras instituições museológicas congênere, ou seja, quando está em jogo o conceito expositivo acerca da raça negra.
Embora O CEAO seja um centro de estudos e pesquisa - que, a rigor, não possui um conceito expositivo - como já informamos antes, o órgão esteve envolvidos em estudos de concepções expositivas, inclusive a do Mafro. Aliás, nas palavras do pesquisador Cláudio Pereira, o CEAO é a mãe de todas as agências que pensaram a cultura afro-brasileira no Brasil. Sobre essa questão de identidade e diferença, observa ainda Cláudio, à guiza de exemplo, ele observou um museu baiano que se propôs a ser um centro de representação do índio. Com um detalhe: índios do Xingu. Nenhuma referência aos índios da Bahia ou de outras regiões do Nordeste. Com o exemplo, quis o pesquisador enfatizar os problemas relacionados às fraturas expositivas ou silenciamentos institucionais são frequentes – por inúmeras razões – e não se restringem, unicamente, à representação da raça negra nos museus brasileiros.
Quando se discute, por exemplo, o estudo dos povos africanos que chegaram ao Brasil – assim como as manifestações religiosas – de acordo com o pesquisador Jefferson Baltar, existe um problema de “camadas”. “A explicação é que eles foram os últimos. Outra causa: os intelectuais daqui se interessaram pelos mais “puros”. Eles achavam que os mais puros eram os candomblés Jejes e Nagôs. Vieram também pessoas com prestígio internacional, que contribuíram para essa “nagolização”.” 
Ainda sobre essa questão, reforçando a opinião de Jefferson Baltar, o pesquisador Cláudio Pereira  observa: “Mas é assim no Brasil todo. Eu acho que esse conceito ao qual o Jefferson se reporta, que é o conceito de pureza, na realidade, ele balizou todo o desenvolvimento de pesquisas. Só eram estudados determinados grupos religiosos. Mas hoje, por exemplo, você tem o estudo do candomblé de caboclo, que não corresponde a nenhuma daquelas nações tradicionais puras. Os Jejes, por exemplo, que tinham sido abandonados, que tinham sido vinculados ao nagoísmo.”
Para o pesquisador Jefferson Baltar, o conceito de diferença vem se impondo sobre o conceito de identidade – nas pesquisas e possivelmente com possibilidade de reverberação nos conceitos expositivos de instituições museológicas. Ele cita, inclusive, os pesquisadores Nicolau Barise e Lísia Castilho, que estão nos Estados Unidos realizando pesquisas sobre o assunto. “Essa diferença está cada vez mais forte, do que uma identidade, uma homogeinização plena, unificadora.”
Como uma de nossas preocupações é o problema das fraturas expositivas observadas no Museu do Homem do Nordeste – e, neste sentido, as revoltas negras é uma das mais evidentes – instigamos os pesquisadores a se pronunciarem acerca da Revolta dos Malês, ocorrido na Bahia, um dos movimentos revoltosos mais emblemáticos na luta contra a escravidão. São poucas as referências sobre o assunto – exceto um trabalho de pesquisa realizado pelo pesquisador João José Reis, também dos quadros do CEAO, publicado em livro. Na realidade, depois da Revolta, os malês foram praticamente dizimados. Até referências históricas – como a possibilidade de Luisa Mahim ter liderado a Revolta dos Malês foi posta em dúvida pelos pesquisadores do CEAO. Sobre o assunto, observa Jefferson Baltar: “João José Reis, que é um pesquisador sério, não encontrou um só documento que provasse a existência de Luisa Mahim na sociedade baiana. Maria Felipa foi outra invenção de Ubiratan Castro.”
O pesquisador Cláudio Pereira observa que existe estórias inventadas, criação de mitos, que ganham contorno de verdade junto à população. A Escrava Anastácia, por exemplo, observa Cláudio, é uma dessas “invenções”, invenção criada por um padre do Rio de Janeiro, que resolveu criar um museu depois do incêndio ocorrido na Igreja do Rosário dos Pretos. Encontrou aquela pintura, no Arquivo Nacional, realizada por um pintor francês, que a retrata com aquele instrumento de tamponamento dos lábios, até hoje entendido como um instrumento de tortura. Na realidade, tal instrumento tinha como finalidade evitar que o escravo comesse terra, adoecesse e representasse uma perda para o seu dono.

segunda-feira, 17 de dezembro de 2018

Ensaio: Irmandade da Boa Morte


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 José Luiz Gomes 
 
Na cidade de Cachoeira, na região do Recôncavo Baiano, mais precisamente na Rua 13 de maio, encontra-se a sede de uma das irmandades mais festejadas do país, a Irmandade da Boa Morte. O espaço é composto de uma pequena exposição, uma loja de souvenir e uma capela, onde é possível observar algumas gravuras sacras e a imagem da Nossa Senhora da Boa Morte, a mesma que participa dos concorridos cortejos que acontecem em meados do mês de agosto, todos os anos, nas ruas estreitas daquela cidade. Um visitante atento, antes de buscar as informações sobre a Irmandade nas mais diversas fontes disponíveis nas redes sociais -algumas delas pouco confiáveis - ali se depara com uma auto-definição, possivelmente construída num consenso entre as 21 senhoras que integram a Irmandade: “Organização privativa de mulheres com vínculo étnicos, religiosos e sociais, também unidas por parentescos consanguíneos ou de fé, deixando fluir a maneira afro-brasileira de ser.”  

Existem muitas narrativas discursivas em torno da Irmandade da Boa Morte, que vão, de sua origem, ao sincretismo religioso adotado, assim como de suas relações com a Igreja Católica. Fontes documentais, no entanto, são escassas, uma vez que a Irmandade teria iniciado suas atividades em Salvador, pelos idos de 1820, na Igreja da Barroquinha, que sofreu um incêndio num determinado momento. Dois livros de apontamentos, apesar de resgatados do incêndio, foram queimados por uma integrante da Irmandade, acredita-se que, possivelmente, num momento de surto psicótico. Restou aos historiadores e cientistas sociais tentarem recontar essa história através de fatos correlatos ou através da história oral, uma fonte primária das mais importantes para o resgate do legado da Irmandade. 

A rigor, a rigor, como observa o historiador João José Reis, a constituição de irmandades eram muito comuns no período colonial, sobretudo como uma forma de a Coroa gerar expedientes administrativos que pudessem suprir determinadas carências de amplos setores da população nos países colonizados. Um bom exemplo do que estamos falando talvez seja a Santa Casa de Misericórdia, uma Irmandade, já naquela época “globalizada”, que desenvolve até hoje uma série de trabalhos assistenciais, como administração de hospitais e cemitérios. Aqui no Recife, por exemplo, boa parte dos cemitérios pertencem a essa ordem e o poder público precisa pagar para utilizá-los. Em Bairros como o de São José, por exemplo, algumas casas comerciais ali existentes pagam aluguéis à Santa Casa de Misericórdia. 

O historiador João José Reis define as irmandades “Como associações corporativas, no interior das quais se teciam solidariedades fundadas nas hierarquias sociais. Essas irmandades representavam a defesa, representação social e mesmo a política dos interesses dos adeptos.’ No Brasil Colônia, como já afirmamos anteriormente, proliferaram irmandades, de várias categorias, raças, nações, dos ricos, dos pobres, dos pretos, dos brancos, raramente de mulheres, como ocorre com a Irmandade da Boa Morte.  

De acordo com o historiador João José Reis, a devoção da Irmandade da Boa Morte deve ter se iniciado em 1820, em Salvador, na Igreja da Barroquinha, com a nação Jejes. Em 1850, possivelmente, depois de uma intensa perseguição na Bahia aos cultos afros - e um crescente processo de intervenções urbanas de orientação higienística - somada à efervescência política e econômica então representada pela cidade de Cachoeira, para lá elas se transferiram, estranhamente não procurando acolhida em nenhuma igreja, mas numa casa residencial. O que não faltam são templos católicos naquela cidade do Recôncavo Baiano. Proporcionalmente, arrisco a dizer que se trata de uma das maiores densidades de templos católicos do Brasil. Vejo aqui um ranço de rebeldia e altivez dessas senhoras, que pareceu não se importarem muito com as formalidades legais exigidas para a constituição de uma irmandade, ou seja, uma igreja que as acolhessem e um estatuto aprovado por uma autoridade eclesiástica. 

Ao estabelecermos um link com a pesquisa ora em curso - que trata de identidade e diferença na representação da raça negra no Museu do Homem do Nordeste, da Fundação Joaquim Nabuco - especificamente no que concerne à observação sobre como essa temática se evidencia na composição e intercecção religiosa da Irmandade da Boa Morte, é possível compreendermos que a questão da diferença é um dado bem resolvido em relação a esta irmandade, tanto no que concerne à sua vinculação à matriz dos povos africanos - Jejes, Ketu e Nagô - tanto no que concerne aos ritos do Candomblé consorciado aos rituais da Igreja Católica, tudo ao seu tempo, desde a missa no começo da manhã, às oferendas aos orixás e, claro, à festa profana, cada vez mais concorrida, quer atrai turistas do Brasil e do mundo. Segundo confidências de moradores locais, até os evangélicos participam dos rituais dos mais de 80 terreiros ali existentes.  

Um dos aspectos mais relevantes do diálogo mantido com os pesquisadores do CEAO - Centro de Estudos Afro-Orientais - ainda no curso dessa pesquisa, foi, justamente, o processo de criação de “mitos”. Sempre que nos debruçamos sobre as origens - ou mesmo algumas particularidades sobre a Irmandade da Boa Morte - temos uma preocupação com as narrativas discursivas em torno do assunto - que não são poucas - notadamente no que concerne à tentativa de aproximar essas narrativas a uma possível verdade, se é que isso é possível, Michel Foucault. Há, por exemplo, possíveis evidências da participação da revolucionária Luísa Mahin na constituição dessa irmandade - como o fato de ela ter fugido de Salvador para Cachoeira num período próximo às atividades da Irmandade da Boa Morte naquela cidade do Recôncavo Baiano, o que se presume aí pelos idos de 1850 - depois do massacre infringido aos escravos de religião muçulmana - que ficou conhecido como A Revolta dos Malês - uma rebelião contra a escravatura que a própria Luísa Mahin teria liderado. 

Se exista a possibilidade da construção de um “mito” em torno do envolvimento ou não da revolucionária Luísa Mahin nas atividades da Irmandade da Boa Morte, o fato concreto é que, por outro lado, a presença muçulmana nos ritos, como os batuques e indumentária, são inegáveis. O pesquisador Jefferson Baltar, do CEAO - Centro de Estudos Afro-Orientais - alertou-nos sobre um estudo conduzido pelo historiador João José Reis, que não teria encontrado nenhum registro oficial sobre a presença de Luísa Mahin na Bahia. O que pode não querer dizer muita coisa, uma vez a “História” é quase sempre escrita pelos vencedores, somado ao fato de que os Malês foram completamente dizimados depois da Revolta. Exceto, quem sabe, Luísa Mahin, que procurou refúgio na aprazível e rebelde cidade de Cachoeira, onde, naquele momento, eram travadas batalhas em diversas frentes, seja contra a Coroa, seja pela libertação dos escravos, luta com a qual ela tanto se identificava.  

Nota do Editor: Este ensaio é parte integrante do relatório de visita técnica realizado pelo autor à Irmandade da Boa Morte, no curso do desenvolvimento da pesquisa institucional mencionada no texto.  

Chomsky, o mestre do contra

                                         
Marcia Tiburi
                                                                                                                                                             

Chomsky, o mestre do contra

O linguista, filósofo e ativista político Noam Chomsky (Foto: Donna Coveney/Divulgação)

Dele, o jornal inglês The Guardian escreveu: “Noam Chomsky está ao lado de Marx, Shakespeare e a Bíblia como uma das dez mais citadas fontes nas ciências humanas— e é o único autor, entre eles, ainda vivo.” O The New York Times, com quem trava batalhas há décadas, chamou-o “o mais importante intelectual vivo.” Mas Noam Avram Chomsky dificilmente é uma unanimidade. Nem quer ser: a polêmica parece parte essencial desse linguista que abraçou o pensamento político e insistiu em teses tão provocativas como a defesa do regime sanguinário de Pol Pot na Camboja e a afirmativa de que os mortos do World Trade Center foram poucos em comparação com os provocados por governos americanos no Terceiro Mundo.
Chomsky nasceu em Filadélfia a 7 de dezembro de 1928. Na Universidade da Pensilvânia estudou linguística, matemática e filosofia.Desde 1955, é professor do Instituto de Tecnologia do Massachusetts ocupando uma cátedra de Língua Moderna e Lingüística. Casou-se com Carol Schatz, professora da Universidade de Harvard, em 1949, e tem dois filhos.
Fez sua reputação inicial na linguística, tendo aprendido alguns dos seus princípios históricos com o pai,um erudito do hebraico. Seus trabalhos na gramática generativa, que derivaram do seu interesse pela lógica moderna e pelos fundamentos da matemática, deram-lhe fama.
Sempre se interessou pela política e suas tendências políticas para o socialismo são resultado do que chama de “a comunidade judaica radical de Nova York”. Desde 1965, tornou-se um dos principais críticos da política externa latino-americana. Seu livro O poder americano e os novos mandarins foi considerado um dos ataques mais substanciais ao envolvimento americano no Vietnã.
Hoje, Chomsky é a voz mais respeitada da esquerda acadêmica e intelectual. Mesmo sendo um radical nada convencional. Produziu um substancial volume de teoria política própria e defende a busca da verdade e do conhecimento nos negócios humanos, de acordo com um conjunto simples e universal de princípios morais. Escreve de jeito claro, fala com o público especializado e com o leitor em geral. Pode-se dizer que é um herdeiro da Nova Esquerda dos anos 60. No seu livro mais famoso da época, O poder americano e os novos mandarins, ele disse que os Estados Unidos precisavam de “uma espécie de desnazificação, insinuando que o país estava caindo no fascismo.
Chomsky é autor de, entre outros, O governo no futuro, Poder e terrorismo, Contendo a democracia e 11 de setembro, Seu último livro publicado no Brasil é Rumo a uma nova guerra fria (Editora Record), uma coletânea de ensaios dos anos 70 4e 80. A filósofa Marcia Tiburi entrevistou o pensador americano para a revista CULT.
CULT -Devido às suas críticas ao terrorismo, tem sido acusado de, ao contrário, fazer a apologia do terror. Acredita que há alguma forma de combater o discurso ideológico conservador, que evita o significado real da crítica ao tentar confundir o que está contido nela?
Noam Chomsky – O único modo de lidar com o fanatismo ideológico é ignorá-lo, e concentrar a atenção em pessoas que têm a mente suficientemente aberta para dar importância a evidências e argumentos. Há dois aspectos no que eu escrevi sobre o terrorismo desde 1981, quando o governo Reagan ocupou o poder declarando que uma “guerra ao terror” seria o foco da política externa dos Estados Unidos, uma “guerra” que foi redeclarada por George Bush em 11 de setembro de 2001. O primeiro é que eu uso a definição oficial de terrorismo dos governos dos Estados Unidos e do Reino Unido. Isso é considerado um escândalo, porque se usamos essas definições, significa diretamente que os Estados Unidos estão liderando um estado terrorista, e o Reino Unido não fica muito atrás. A conclusão, claro, é inaceitável. Como a lógica é impecável, e a base factual não está em dúvida, a reação-padrão dos que fazem a apologia do terror do Ocidente é de pura irracionalidade. Uma das reações é a que você descreveu: fingir que a condenação consistente de todos os tipos de terror é uma apologia para o terror deles contra nós, o único tipo que pode ser discutido dentro do sistema doutrinário. O segundo aspecto do que escrevo sobre o assunto é que, ao discutir o terror deles, eu acompanho de perto as análises dos principais especialistas em terrorismo islâmico do mundo acadêmico, da inteligência dos Estados Unidos e do jornalismo, como Fawaz Gerges, Michael Scheuer e Jason Burke. Isso também é considerado um escândalo, porque eles fazem análises sérias, e é muito mais conveniente fazer poses heróicas diante das câmeras e falar de “fascismo islâmico”, “guerra de civilizações”, etc. Quanto ao discurso ideológico conservador, vale a pena ter em mente que algumas das mais extremas e irracionais defesas da agenda política nesses pontos é produzida por pessoas que se definem como liberais e social-democratas. Independente de sua origem, há alguma maneira de confrontar o discurso ideológico? Sim, há uma maneira muito simples: tentar dizer a verdade. Não arranca aplausos da elite intelectual, mas é assim que ela reage normalmente às revelações sobre a natureza e o exercício do poder. O que importa é o público em geral, que é capaz de se libertar das doutrinas e buscar  compreensão.
Em seus livros e entrevistas, de uma forma ou de outra, o senhor defende a necessidade de reflexão, análise e de um pensamento lúcido que seja capaz de entender as razões da existência do terrorismo e a sua possibilidade de retorno, como na entrevista que deu a John Junkerman, em 2002, na qual falou sobre os componentes de legitimidade das atividades terroristas. A ausência de reflexão que mencionou seria similar ao que Hannah Arendt chamou de “vazio de pensamento”, algo que poderia levar-nos à banalidade do mal ? Para o senhor ê, essa é uma idéia contemporânea?
Acredito que existe uma similaridade, mas as idéias são simples e diretas. Não vejo necessidade de ocultá-las em uma retórica arrogante e pretensiosa.
Considera que a humanidade vive atualmente um otimismo inconsequente? O senhor acredita em algum argumento básico que pode fazer com que os desatentos reflitam sobre o estado atual da política internacional e das questões relativas à natureza, como o aquecimento global, sem parecer apologia do pessimismo? É possível refletir sem usar esse termo?
Não apenas acho que é possível, sei que é possível, por experiência e pela história. Todos nós sabemos. Confrontar o poder, a repressão e a injustiça nunca foi fácil, mas muitas tarefas foram realizadas, e o sucesso não foi pequeno. As lutas de muitos anos nos deixaram um legado de liberdade que é raro em padrões históricos comparativos. Podemos optar por usar esse legado para carregar a luta para frente, ou podemos decidir abandonar a esperança, acreditando que o pior vai acontecer. Essa escolha é comum no decorrer da história. Felizmente, muitas pessoas não abandonaram a esperança, e não há razão para fazê-lo hoje.
Considerando que a vida e a morte dos “sem-poder” é decidida soberanamente a cada dia na política interna e externa das nações, o senhor acha que podem escapar da biopolítica em que se tornou a política?
Sim. Novamente, podemos escolher o caminho fácil do desespero, mas é uma escolha, não uma necessidade. Aqueles que fizerem essa escolha não terão a gratidão das pessoas que sofrem hoje ou das futuras gerações.
O senhor acredita que os intelectuais têm um papel específico diante da atual ordem internacional e das questões nacionais e regionais que compreendem o poder?
As pessoas são chamadas de “intelectuais” se possuem um determinado grau de privilégio e decidem usar sua oportunidade na arena pública. É fato que o privilégio traz oportunidade, e é um truísmo moral que a oportunidade traga responsabilidade. Portanto, aqueles que são chamados de “intelectuais” têm responsabilidades claras. Como são eles que escrevem a história, o papel histórico dos intelectuais parece muito atraente: corajosos, honrados, defensores da verdade e da justiça etc. A história real é um pouco diferente. O fundador da moderna teoria das relações internacionais, Hans Morgenthau, lamentou o que chamou de nossa “subserviência conformista aos que estão no poder”, referindo-se às classes intelectuais. A descrição dele tem um mérito considerável – agora e no passado. Há exceções, é claro, e muitas vezes sofreram por sua integridade – o quanto, depende da natureza da sociedade. Mas a responsabilidade permanece.
Na sua opinião, qual seria a base central da conexão entre o capitalismo e o totalitarismo disfarçado de democracia no qual vivemos? Você acredita que a democracia pode ser salva pela economia ?
Os sistemas nos quais vivemos têm muitas falhas, mas estão longe de ser totalitários, embora tenham elementos totalitários. Uma corporação moderna, por exemplo, é tão próxima do ideal totalitário quanto qualquer instituição construída pelo homem. As decisões são tomadas no topo, transferidas para os burocratas (gerentes) em sucessivos níveis inferiores, e finalmente executadas pelos funcionários que apenas seguem ordens. Essas tiranias privadas são em grande parte não-explicadas ao público, além de terem mecanismo regulatórios que são tipicamente fracos, devido ao seu poderoso papel na arena política. É claro, há mais complexidade do que qualquer breve descrição poderia capturar, mas isso se aplicava até para o Partido Comunista na velha União Soviética. No entanto, essas instituições não constituem a sociedade inteira, e o público não precisa aceitar seu poder passivamente. As cortes reconhecem a vulnerabilidade das corporações se as formas de democracia começam a funcionar de maneira mais eficiente. Nos Estados Unidos, as cortes encorajaram os diretores de corporações a agirem ocasionalmente de acordo com o interesse do público, ao invés de ficarem estritamente presas a sua obrigação legal de maximizar o lucro e a quota de mercado. Senão, elas avisam, um “público animado” poderá prestar atenção aos enormes privilégios dados àquelas instituições criadas e alimentadas pelo Estado, e agir para limitá-los ou acabar com eles. De maneira mais geral, as decisões sobre economia, vida política e social, e outras questões, são fortemente influenciadas, de diversas maneiras, pelo poder econômico concentrado. Mas forças populares empenhadas e comprometidas têm muitas oportunidades de modificar políticas e de mudar ou mesmo desmantelar estruturas institucionais que passarem a considerar ilegítimas. E os sistemas de poder estão conscientes disso. Essa é uma das razões da intensa propaganda tentar manter o público passivo e marginalizado. Não há compulsão para sucumbir a essas pressões. Não há como a democracia ser reconstruída e estendida pela economia, mas não há limites discerníveis quanto ao que o empenho popular pode alcançar. O que está faltando é vontade, não oportunidade.
No seu livro sobre o governo no futuro, o senhor apresenta a ideia da natureza humana em um sentido marxista, conectando-a a um pensamento libertário que seria incompatível com o capitalismo. Você acha que o marxismo ainda mantém interpretações-chave para os nossos tempos, como, por exemplo, sobre o conflito de classes?
Isso é um pouco equivocado. É verdade que, no início, Marx contava com conceitos da natureza humana que tinham caráter fortemente libertários, mas ele os extraiu amplamente da cultura intelectual do Iluminismo e do Romantismo de sua época: Rousseau, Von Humboldt e outros. As influências continuam em seu trabalho posterior, mas nas margens. A tradição marxista posterior muitas vezes caiu em interpretações equivocadas e sem sentido da natureza humana como um produto puro da história e da sociedade, e outras formulações insignificantes. Quanto à luta de classes, é claro que ela existe, com muitos componentes. Em uma primeira aproximação, podemos distinguir os donos do capital, os políticos, os doutrinários e os trabalhadores (basicamente aqueles que se alugam para sobreviver, caindo em muitas categorias). Há muitos outros conflitos: por exemplo, capital industrial versus capital financeiro. A vida e as sociedades são assuntos complexos, mesmo em setores sóciopolíticos e econômicos.
Como é viver nos Estados Unidos hoje, tendo tantas críticas ao governo, aos meios de comunicação de massa e a uma sociedade com uma clara inclinação conservadora, que, ao mesmo tempo, parece incapaz de dialogar criticamente sobre a sua posição política em escala planetária?
A realidade é bem diferente. Nos últimos anos, tornou-se possível levantar questões públicas que há pouco tempo eram meramente inteligíveis ao público. As pessoas esquecem. A guerra do Vietnã, por exemplo. A oposição era tão desprezada que poucas pessoas estavam conscientes de que John F. Kennedy tinha começado uma grande guerra contra o Vietnã do Sul em 1962. Quando protestos significativos se desenvolveram, cinco anos depois, o Vietnã do Sul tinha sido destruído e a agressão se espalhado pelo resto da Indochina. Nenhum presidente dos Estados Unidos poderia cometer, hoje, os crimes que Eisenhower, Kennedy e Johnson perpetraram com pouco protesto. Poderia descrever as mudanças a partir de uma experiência pessoal. Nos primeiros dias da guerra, eu dava palestras em igrejas para uma platéia de quatro pessoas. Em outubro de 1965, com centenas de milhares de soldados no Vietnã do Sul e a agressão se estendendo para o norte, em Boston, provavelmente a cidade mais liberal do país, a primeira grande demonstração pública contra a guerra foi atacada por contra-manifestantes, muitos deles estudantes, que foram aplaudidos pela imprensa e pelos senadores liberais. Nada disso é imaginável hoje. Apenas recentemente os poderes e direitos extraordinários dados pelo estado de poder a corporações, instituições centrais da economia interna e internacional, passaram a ser alvo de sérios exames e questionamentos populares. Isso também vale para várias outras dimensões, algumas muito familiares para serem mencionadas: os direitos das mulheres, por exemplo. Existem ilusões em relação à liberdade e à abertura da sociedade e dos meios de comunicação de massa do passado. As ilusões são encorajadas amplamente pelo fato de a dissidência ter sido tão limitada e fragmentada. Houve progresso considerável desde então, ao lado de regressões e contra-ataques que tiveram certo sucesso. No geral, a trajetória me parece positiva.
Há alguma chance de escaparmos do projeto do consumismo global, desde que a política foi substituída pela economia e, como conseqüência, perdemos a noção do sentido político de nossas relações?
Repetindo, podemos optar por sucumbir ao consumismo e a outros tipos de propaganda, ou podemos seguir caminhos próprios e independentes. É mais fácil confrontar o consumismo que as câmaras de tortura, fato às vezes esquecido.
O que significa, hoje, a possibilidade de combater o Império se ele é, essencialmente, fundado em uma base que o senhor chamou de nazificação, o profundo ódio ao outro, que foi promovido a lei e padrão de governo?
Eu não descrevi os projetos imperialistas atuais como nazificação, embora o termo se aplique em casos particulares. Mas nós devemos realmente pensar por que há tamanha sensação de falta de esperança na hora de confrontar o poder. A introdução dessa falta de esperança é o maior feito da propaganda contemporânea, mas não somos forçados a sucumbir. Objetivamente, a resistência e a mudança social construtiva são tarefas consideravelmente mais fáceis do que eram no passado, graças ao legado de liberdade que resultou das lutas de nossos predecessores. Vemos exemplos por toda parte. Veja as conquistas do MST no Brasil. Há meio século , não havia nada parecido. Havia um movimento de massa global pela justiça, ou um Fórum Social Mundial com tantos desdobramentos regionais, mesmo há 20 anos? Veja o mais pobre país da América do Sul, a Bolívia, onde a maioria indígena da população conseguiu um triunfo eleitoral de significância real, superando barreiras que dificilmente existem em sociedades ricas e desenvolvidas. E é fácil continuar. A luta por um mundo mais decente e justo nunca foi fácil e nunca vai ser. Mas as possibilidades são, no mínimo, tão favoráveis quanto eram no passado e, em muitos casos, até maiores.

(Publicado originalmente no site da Revista Cult)

Crônica: Um inquérito sobre os escritores brasileiros


 
José Luiz Gomes
 
Graciliano Ramos era muito próximo dos escritores Jorge Amado e José Lins do Rego. Também podemos incluir nesta lista a escritora Raquel de Queiroz, que, a princípio, antes de conhecê-la pessoalmente, pensou tratar-se de um homem. Onde já se viu uma mulher escrever um romance como O Quinze?, questionava Graciliano. Com o tempo, essa impressão - ou ciúme de campo - se desfez completamente e ambos se tornariam bons amigos, frequentadores do círculo literário de Maceió. Segundo Graciliano, Jorge Amado era um sujeito muito inquieto, desses que não param em lugar algum, sempre mexendo nas coisas, arrumando-as e desarrumando-as novamente, apenas para dar vazão à sua ansiedade. Quando tornou-se editor de Dom Casmurro, teve uma ideia curiosa, a de entrevistar as mulheres dos escritores, sobre suas intimidades pessoais. Essa possibilidade, naturalmente, deixou muita gente de orelha em pé, temerosos de que suas intimidades fossem, assim, reveladas por aquele jornal literário. 
 
Aqui na província pernambucana, lendo entrevistas antigas de pessoas que conviveram com poetas e escritores, descobri fatos curiosíssimos como o registro de uma esposa de um poeta conhecido que media  sua "fidelidade" pelo tamanho do nó da gravata. Caso houvesse alguma diferença - mensuradas religiosamente ao sair e ao voltar para casa - tratava-se de uma possível prova de que o poeta havia transgredido as normas do casamento. Naqueles tempos, fazer amor de gravata não constava, ainda, das fantasias das chamadas destruidoras de lares. Hoje, isso seria o de menos. Numa dessas brincadeiras, depois de um longo pernoite, o autor da entrevista esconde os sapatos do poeta, para complicar ainda mais a situação. Naquela noite, ele precisou voltar para casa com os nós da gravata em desalinho e sem os sapatos, numa situação bastante comprometedora. Só Deus sabe como ele se arranjou com a esposa ciumenta.
 
Antes mesmo que o autor de Angústia se lançasse às famosas entrevistas, aproveita para esmiuçar algumas dessas possíveis intimidades, descritas em Linhas Tortas, um dos seus livros de crônicas. “Ficaremos sabendo que José Lins do Rego toma café com leite, receia adoecer do coração e compõe os seus livros em caderninhos de papel pautado, desses que os vendeiros utilizam para fazer contas; teremos notícia da horrível pensão do major Nunes, onde Hermes Lima jogava bridge, estudava alemão com Girovate e planejava o Tobias Barreto; conheceremos os gostos de Armando Fontes, que embirra com Mussolini, admira Franco, torce no futebol e constrói os seus romances com pachorra, uma folha hoje outra daqui a dois meses. Como só ouvirão mulheres de escritores, os solteiros e os viúvos ficarão prejudicados. E como Raquel de Queiroz não tem mulher, o público ignorará  que ela fez O Quinze a lápis, deitada no soalho, de barriga para baixo.’
No final, o velho Graça, confidencia o que teria ouvido de uma dessas esposas: -Está doido? Isso é uma provocação. Se eu fosse dizer o que penso e o que sei do meu marido, não viveríamos juntos um dia. Vamos esperar que ele morra."