pub-5238575981085443 CONTEXTO POLÍTICO: Ensaio: Irmandade da Boa Morte
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segunda-feira, 17 de dezembro de 2018

Ensaio: Irmandade da Boa Morte


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 José Luiz Gomes 
 
Na cidade de Cachoeira, na região do Recôncavo Baiano, mais precisamente na Rua 13 de maio, encontra-se a sede de uma das irmandades mais festejadas do país, a Irmandade da Boa Morte. O espaço é composto de uma pequena exposição, uma loja de souvenir e uma capela, onde é possível observar algumas gravuras sacras e a imagem da Nossa Senhora da Boa Morte, a mesma que participa dos concorridos cortejos que acontecem em meados do mês de agosto, todos os anos, nas ruas estreitas daquela cidade. Um visitante atento, antes de buscar as informações sobre a Irmandade nas mais diversas fontes disponíveis nas redes sociais -algumas delas pouco confiáveis - ali se depara com uma auto-definição, possivelmente construída num consenso entre as 21 senhoras que integram a Irmandade: “Organização privativa de mulheres com vínculo étnicos, religiosos e sociais, também unidas por parentescos consanguíneos ou de fé, deixando fluir a maneira afro-brasileira de ser.”  

Existem muitas narrativas discursivas em torno da Irmandade da Boa Morte, que vão, de sua origem, ao sincretismo religioso adotado, assim como de suas relações com a Igreja Católica. Fontes documentais, no entanto, são escassas, uma vez que a Irmandade teria iniciado suas atividades em Salvador, pelos idos de 1820, na Igreja da Barroquinha, que sofreu um incêndio num determinado momento. Dois livros de apontamentos, apesar de resgatados do incêndio, foram queimados por uma integrante da Irmandade, acredita-se que, possivelmente, num momento de surto psicótico. Restou aos historiadores e cientistas sociais tentarem recontar essa história através de fatos correlatos ou através da história oral, uma fonte primária das mais importantes para o resgate do legado da Irmandade. 

A rigor, a rigor, como observa o historiador João José Reis, a constituição de irmandades eram muito comuns no período colonial, sobretudo como uma forma de a Coroa gerar expedientes administrativos que pudessem suprir determinadas carências de amplos setores da população nos países colonizados. Um bom exemplo do que estamos falando talvez seja a Santa Casa de Misericórdia, uma Irmandade, já naquela época “globalizada”, que desenvolve até hoje uma série de trabalhos assistenciais, como administração de hospitais e cemitérios. Aqui no Recife, por exemplo, boa parte dos cemitérios pertencem a essa ordem e o poder público precisa pagar para utilizá-los. Em Bairros como o de São José, por exemplo, algumas casas comerciais ali existentes pagam aluguéis à Santa Casa de Misericórdia. 

O historiador João José Reis define as irmandades “Como associações corporativas, no interior das quais se teciam solidariedades fundadas nas hierarquias sociais. Essas irmandades representavam a defesa, representação social e mesmo a política dos interesses dos adeptos.’ No Brasil Colônia, como já afirmamos anteriormente, proliferaram irmandades, de várias categorias, raças, nações, dos ricos, dos pobres, dos pretos, dos brancos, raramente de mulheres, como ocorre com a Irmandade da Boa Morte.  

De acordo com o historiador João José Reis, a devoção da Irmandade da Boa Morte deve ter se iniciado em 1820, em Salvador, na Igreja da Barroquinha, com a nação Jejes. Em 1850, possivelmente, depois de uma intensa perseguição na Bahia aos cultos afros - e um crescente processo de intervenções urbanas de orientação higienística - somada à efervescência política e econômica então representada pela cidade de Cachoeira, para lá elas se transferiram, estranhamente não procurando acolhida em nenhuma igreja, mas numa casa residencial. O que não faltam são templos católicos naquela cidade do Recôncavo Baiano. Proporcionalmente, arrisco a dizer que se trata de uma das maiores densidades de templos católicos do Brasil. Vejo aqui um ranço de rebeldia e altivez dessas senhoras, que pareceu não se importarem muito com as formalidades legais exigidas para a constituição de uma irmandade, ou seja, uma igreja que as acolhessem e um estatuto aprovado por uma autoridade eclesiástica. 

Ao estabelecermos um link com a pesquisa ora em curso - que trata de identidade e diferença na representação da raça negra no Museu do Homem do Nordeste, da Fundação Joaquim Nabuco - especificamente no que concerne à observação sobre como essa temática se evidencia na composição e intercecção religiosa da Irmandade da Boa Morte, é possível compreendermos que a questão da diferença é um dado bem resolvido em relação a esta irmandade, tanto no que concerne à sua vinculação à matriz dos povos africanos - Jejes, Ketu e Nagô - tanto no que concerne aos ritos do Candomblé consorciado aos rituais da Igreja Católica, tudo ao seu tempo, desde a missa no começo da manhã, às oferendas aos orixás e, claro, à festa profana, cada vez mais concorrida, quer atrai turistas do Brasil e do mundo. Segundo confidências de moradores locais, até os evangélicos participam dos rituais dos mais de 80 terreiros ali existentes.  

Um dos aspectos mais relevantes do diálogo mantido com os pesquisadores do CEAO - Centro de Estudos Afro-Orientais - ainda no curso dessa pesquisa, foi, justamente, o processo de criação de “mitos”. Sempre que nos debruçamos sobre as origens - ou mesmo algumas particularidades sobre a Irmandade da Boa Morte - temos uma preocupação com as narrativas discursivas em torno do assunto - que não são poucas - notadamente no que concerne à tentativa de aproximar essas narrativas a uma possível verdade, se é que isso é possível, Michel Foucault. Há, por exemplo, possíveis evidências da participação da revolucionária Luísa Mahin na constituição dessa irmandade - como o fato de ela ter fugido de Salvador para Cachoeira num período próximo às atividades da Irmandade da Boa Morte naquela cidade do Recôncavo Baiano, o que se presume aí pelos idos de 1850 - depois do massacre infringido aos escravos de religião muçulmana - que ficou conhecido como A Revolta dos Malês - uma rebelião contra a escravatura que a própria Luísa Mahin teria liderado. 

Se exista a possibilidade da construção de um “mito” em torno do envolvimento ou não da revolucionária Luísa Mahin nas atividades da Irmandade da Boa Morte, o fato concreto é que, por outro lado, a presença muçulmana nos ritos, como os batuques e indumentária, são inegáveis. O pesquisador Jefferson Baltar, do CEAO - Centro de Estudos Afro-Orientais - alertou-nos sobre um estudo conduzido pelo historiador João José Reis, que não teria encontrado nenhum registro oficial sobre a presença de Luísa Mahin na Bahia. O que pode não querer dizer muita coisa, uma vez a “História” é quase sempre escrita pelos vencedores, somado ao fato de que os Malês foram completamente dizimados depois da Revolta. Exceto, quem sabe, Luísa Mahin, que procurou refúgio na aprazível e rebelde cidade de Cachoeira, onde, naquele momento, eram travadas batalhas em diversas frentes, seja contra a Coroa, seja pela libertação dos escravos, luta com a qual ela tanto se identificava.  

Nota do Editor: Este ensaio é parte integrante do relatório de visita técnica realizado pelo autor à Irmandade da Boa Morte, no curso do desenvolvimento da pesquisa institucional mencionada no texto.  

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