Simone Mainieri Paulon
“… o desejo está em toda parte em que algo flui e corre, de modo que sujeitos interessados, mas também sujeitos embriagados ou adormecidos, são arrastados por ele para desfiladeiros mortais” (Deleuze e Guattari)
No final dos anos 1980, um filme de Martin Ritt trazia às telas uma contundente crítica à lógica judicial que conduzia um julgamento para tornar a protagonista inimputável e, como tal, ser impedida de responder por um crime que ela alegava ser de legítima defesa. A trama evolui evidenciando uma uníssona orquestração entre os poderes dos pais abastados, pela honra familiar; dos operadores da justiça “em defesa da sociedade” a ser protegida da suposta loucura que levara a ré ao crime; e da psiquiatria forense, cuja sentença pericial decidiria o destino daquela mulher em julgamento. O desfecho do enredo, com o perdão do spoiler a quem não o tenha visto, é a vitória da verdade, graças à bem-sucedida aliança entre a inteligência da protagonista aliada à rara sensibilidade de seu defensor. Ao conquistar o direito a ser julgada como responsável pelo crime cometido, a personagem livra-se de ser “protegida” pelas instituições reunidas nas figuras dos pais, juiz e perito que a teriam condenado à internação manicomial em seu caráter de perpetuidade que marca todo asilamento.
Em 4 de fevereiro, o ministério da Saúde promulgou uma nota técnica de esclarecimentos sobre mudanças na política nacional de saúde mental, celebrando o retorno dos hospitais psiquiátricos, inclusive crianças, ampliando as autorizações para eletrochoques e despejando dinheiro público do SUS em comunidades religiosas para drogaditos, sob a irônica designação de “terapêuticas”(quando é sabido que o tratamento nelas recebido resume-se à obrigatoriedade de rezar três vezes ao dia e manter-se abstinente sob efeitos acachapantes de medicação psicotrópica).
A relação entre o enredo do filme e a recente medida governamental, que aqui trazemos à reflexão, não se resume ao anacronismo dos manicômios, quase 20 anos após termos aprovado sua progressiva extinção em Lei Nacional e ignorando todas recomendações da Organização Mundial de Saúde, que há meio século indicam a necessidade do cuidado comunitário em saúde mental. O que uma breve análise de mais esta peça triste produzida pela atual gestão federal da saúde permite identificar é uma conjunção de esforços institucionais concorrendo para um enorme retrocesso em nossa política pública de saúde mental, ou seja, para enclausurar e, com isto, cronificar a loucura.
Nesse ponto cabe questionarmos: a quem interessa a perpetuação da loucura? Quem ganha com a vulnerabilização dos pacientes psiquiátricos e suas famílias que hoje acessam toda rede de atenção psicossocial criada em substituição aos hospícios? Por que propor uma “nova” política (eufemismo usado na nota para disfarçar que a direção por ela indicada é de andar para trás) quando a que tínhamos até 2017, ao iniciarem seu desmonte, foi construída ao longo de anos junto aos atores diretamente nela envolvidos e seguindo recomendações internacionais no campo da saúde mental? Em suma, como faz a personagem vivida por Barbra Streisand durante todo o processo judicial montado para silenciá-la como doente mental, é preciso insistir na pergunta: Por que querem nos enlouquecer?
Remonto a declarações oficiais dos gestores da política de saúde para justificar os desmandos com que estão conduzindo o processo de Reforma Psiquiátrica árdua e longamente construído no país – o projeto de lei se arrastou por 12 anos no Congresso, tornando-se campeão nacional de intocabilidade segundo seu autor, deputado Paulo Delgado (PT-MG). Na introdução do referido documento, o agora já ex-coordenador da saúde mental do Ministério da Saúde que o assina, psiquiatra Quirino Cordeiro, justifica as medidas como necessárias para disponibilizar no SUS os melhores recursos terapêuticos para os pacientes. Questionado pela Folha de S.Paulo acerca do polêmico financiamento público para eletrochoques, o ministro Luiz Mandetta afirma não ser função de sua pasta vetar ou ideologizar estas discussões: “Se o Conselho Federal de Medicina entende que isto beneficia os pacientes, em determinadas situações, não vamos censurar”.
Inevitável associar tal declaração pública a uma das mais contundentes cenas do filme aqui citado, quando o juiz, propositalmente tomado pelo discurso do perito empenhado em provar seu poder diagnóstico, questiona à ré se não haveria ninguém em todo aquele julgamento em quem ela pudesse confiar. A protagonista aponta o porteiro da sala do júri e justifica: “Confio só nele ali, porque é o único aqui que não quer o meu bem. Ele não está nem aí pra mim, por isso é o único que não pode me causar mal algum.”
No momento em que o país está imerso no mar de lama que inclui desde os crimes ambientais cujos poderosos responsáveis passeiam livremente sob os cadáveres de sua negligência; até a lama menos concreta, porém não menos impune, dos corruptos comprovados em gravações, fotos e vídeos, ocupando altos cargos do “novo” governo e acobertados por um judiciário elitista em relações promíscuas com o executivo que ajudou a eleger, impõe-se a indagação acerca das reais finalidades de uma medida governamental que ataca direitos garantidos em lei em nome do “benefício aos desassistidos”.
Autoritarismo neoliberal e desejos fascistas
Buscando entender a lógica que embasa uma política de saúde mental voltada a incentivar o enclausuramento da loucura, passados cinco séculos da criação dos hospícios e quase um século depois de iniciadas as críticas e denúncias que levariam países desenvolvidos a buscarem sua extinção, cumpre analisarmos o contexto político em que as referidas mudanças são apresentadas.
Não é mera coincidência que as Reformas Sanitária – que viabilizou a criação do SUS – e Psiquiátrica – que levou à construção de uma Rede de Atenção para o cuidado em liberdade – só foram possíveis em berço democrático, na esteira de uma constituição cidadã que logrou inscrever um capítulo que afirma a saúde como direito de todo cidadão brasileiro e dever do Estado. No momento em que uma política racista, xenófoba, elitista e entreguista, sem qualquer compromisso com a políticas sociais que vinham enfrentando a chaga da desigualdade econômica do país, é vitoriosa nas urnas, não é de se estranhar que seja adotada uma medida retrógrada e punitiva em relação àqueles que radicalizam o diferente. Verdade seja dita, aliás, que ninguém foi pego de surpresa, já que as medidas paleolíticas em saúde mental, contrariando todas evidências científicas e experiências bem-sucedidas de gestão sanitária, ao redor do mundo, foram lentamente engendradas nos dois últimos anos e gentilmente alimentadas pelos mesmos lobbies políticos que levaram ao poder o governo ultra-conservador que as propôs e com o qual guardam total coerência.
Partindo-se da compreensão de que o SUS – e seu braço na Reforma Psiquiátrica ora alvejada – é patrimônio público do povo brasileiro e uma das mais importantes conquistas da golpeada democracia do país, o que justificaria a legitimação que este modelo autoritário de política recebeu pelo voto? Como compreender o desejo de andar para trás? Ignorância? Má fé? Engodo? Ilusão? Possivelmente uma combinação de tudo isso, mas para nos determos apenas em um dos componentes que alçaram Bolsonaro ao poder foquemos nos desejos de conservação. Aqui é bom lembrar Reich, quando alertava “não, as massas não foram enganadas, elas desejaram o fascismo num certo momento, em determinadas circunstâncias, e é isso que é necessário explicar, essa perversão do desejo gregário.” Entender como os fascismos podem emergir do liberalismo econômico é essencial para a compreensão dos riscos que várias democracias correm não apenas no Brasil de hoje.
Desejos nem sempre concorrem para nossa saúde, individual ou coletiva, ou para expandir a vida. Desejo, como o Poder, é produtivo, nos ensinou Foucault, e como tal não se apresenta sempre em sua positividade. Nessas armadilhas que o Desejo nos prega, apresentando, não raro, facetas mortais de sujeitos embriagados ou adormecidos como Deleuze e Guattari nos fizeram compreender, podemos muitas vezes desejar a própria escravidão como se fosse nossa salvação. A isto temos designado por subjetivação fascista. Nos agenciamentos que constituem os desejos autoritários de “botar ordem nisso daí” é necessário considerarmos o conjunto sedutor que o discurso hegemônico dos que governam pelo medo nos impõe.
Mas não se trata de julgar moralmente tais artimanhas desejantes, senão de enfrentá-la em sua complexidade, a fim de buscar novos agenciamentos que nos conectem a tempos mais luminosos. Tempos que incitem os sujeitos a querer mais da vida do que a empobrecedora expectativa de que um grande Pai, Juiz, Estado ou hierarquia se interponha ao trabalho do desejo e dê acesso ao gozo sem limites. Gozar, no sentido psicanalítico que aqui evocamos, pode ter o sentido literal de submeter uma mulher às pulsões dos machos na forma e momento que lhes aprouver. Pode também ter o sentido menos direto e igualmente perverso de trancafiar tudo que em mim é desigual e retirar o louco que a todos habita do convívio insuportável àqueles que lidam mal com suas próprias emoções.
Não por acaso, ao comentarem os investimentos inconscientes do desejo, com seus mecanismos econômicos e financeiros, com suas formações políticas que independem do interesse do sujeito que deseja, os filósofos do Anti-Édipo disparam: “Nada tem a ver com metáfora, nem mesmo com metáfora paternalista, a constatação de que Hitler suscitava tesão nos fascistas”.
O movimento antimanicomial adverte: exclusão faz mal à saúde
É um desafio civilizatório cuidar e proteger sem cercear o direito inalienável à liberdade. Desafio do qual a política federal, ao reforçar o poder manicomial, está se furtando.
Temos, na nova-arcaica política de saúde mental apresentada pelo gestor federal, uma receita-bomba: Estado autoritário, contexto cultural eugenista, inflação de poder médico, cerceamento de liberdade de vulneráveis e empresários da indústria da loucura com dinheiro público para compra de aparelhos de eletrochoques.
Adivinhem onde isto vai estourar?
Desigualdade mata, cerceamento de liberdades enlouquece, privação de direitos violenta e fragiliza exatamente àqueles sobre cujos esfoliados ombros recaem os mais pesados efeitos das economias neoliberais.
Cabe, então, aqui uma advertência aos adversários da Reforma Psiquiátrica Brasileira: A vida quer sempre mais. O desejo tem seu caráter revolucionário porque busca sempre novos e mais agenciamentos. E foi na micropolítica do desejo que tecemos uma robusta Rede de Atenção Psicossocial, hoje encarnada em cada trabalhador e usuário dos serviços substitutivos aos hospícios que querem reeditar, onde aprendemos e ensinamos que a liberdade não é só terapêutica, como é possível de ser defendida.
Contra a arrogância da razão, o otimismo da prática, dizia o fundador da psiquiatria democrática italiana, Franco Basaglia, em suas conferências brasileiras de 1979. Contra a persistência do irrazoável, esta nossa estranha mania de ter fé na vida, dizemos nós no Brasil da cadência resistente de 2019.
Simone Mainieri Paulon é doutora em Psicologia Clínica e professora da UFRGS
(Publicado originalmente no site da Revista Cult)
Nenhum comentário:
Postar um comentário