A análise do sociólogo Adalberto Moreira é perfeita. Ele só se equivoca quando fala das origens oligárquicas de Eduardo Campos (PSB).
Eduardo é neto do falecido ex-governador (de Pernambuco) Miguel Arraes de Alencar. Arraes e Pelópidas da Silveira (ex-prefeito do Recife,também já falecido) lideraram a chamada “Frente do Recife”, através da qual (na década de 1950) as esquerdas chegaram à Prefeitura do Recife em aliança com setores liberais ou conservadores moderados, mas com prevalência de uma visão social dos problemas a enfrentar como governantes e de políticas públicas para solucioná-los ou pelo menos minimizá-los.
Essa frente ampliou-se e se transformou na “Frente Popular de Pernambuco”. Uma das primeiras e mais bem sucedidas alianças de centro-esquerda que acabou chegando ao Governo de Pernambuco (em 1962) com a vitória de Miguel Arraes (PTB) sobre o candidato da direita, João Cleofas (UDN), apoiado pelos poderosos usineiros da Zona da Mata Pernambucana.
Arraes, advogado e funcionário de carreira do extinto IAA (Instituto do Açúcar e do Álcool) iniciou sua carreira política como secretário da Fazenda do governo Agamenon Magalhães (PSD), que apesar de ser um político conservador (à direita) fez um governo de viés social, ao estilo getulista (construindo vilas operárias no Programa Social contra o Mocambo, para operários de fábricas da Região Metropolitana do Recife, porém sem incomodar os usineiros de açúcar e sua tradicional forma semi-feudal de conduzir seus negócios).
Acostumados a tratar seus trabalhadores rurais (cortadores de cana) com extrema brutalidade e incomum desumanidade, os poderosos usineiros se viram fortemente contrariados com a chegada de Arraes ao governo (com apoio de comunistas, socialistas, cristãos progressistas e liberais da direita moderada).
No Sertão e no Agreste, onde não menos poderosos fazendeiros também comandavam com mão de ferro suas propriedades e onde os mais fortes economicamente via de regra se tornavam os coronéis (ou chefes políticos) de municípios de pequeno e grande porte, tampouco se agradaram com os ventos liberalizantes que a vitória de Arraes representava.
Arraes seguiu à risca seu programa social de governo, que previa reformas em benefício dos trabalhadores rurais, que prometia tirá-los da condição de semi-escravidão em que encontravam. Sob seu governo foi assinado o histórico e emblemático “Acordo do Campo”, em que os “garbosos” e arrogantes usineiros e senhores de engenho, a contragosto sentaram-se lado a lado com as lideranças dos trabalhadores rurais e tiveram que pagar salário mínimo e garantir direitos até então negados a esses camponeses.
Antes de Arraes era comum as questões sociais serem tratadas como caso de polícia em Pernambuco. O livro do ex-deputado estadual e promotor de Justiça Paulo Cavalcanti narra como, por exemplo, no município de Goiana, era comum trabalhadores rurais ligados aos sindicatos rurais serem perseguidos, torturados e em alguns casos até assassinados por usineiros e senhores de engenho da região canavieira.
Muitos desses trabalhadores violentados em sessões de tortura eram “socorridos”, já mortos, em unidades hospitalares públicas e posteriormente encaminhados para o necrotério do Cemitério Público de Goiana com papéis amarrados a um dos dedos dos seus pés, dando conta da suposta causa da morte: “morte por problemas de baço”.
Nada era investigado, porque as lideranças políticas e as forças policiais, em geral, serviam como aparelho paramilitar dos usineiros e senhores de engenho. E usavam dessa condição para perseguir trabalhadores sindicalizados que se organizassem para reivindicar direitos trabalhistas.
Também era comum os trabalhadores rurais e cortadores de cana das usinas e engenhos de açúcar serem obrigados a comprar nos chamados “barracões de usina” os gêneros de primeira necessidade que precisavam para se alimentar e sobreviver. O problema é que esses produtos eram vendidos a preços extorsivos, muitas vezes duas ou três vezes mais caros em relação ao preço em que eram vendidos nos “armazéns de secos e molhados” e nos mercados públicos das cidades da Zona da Mata.
O que ocorria é que como os produtos eram caros e o salário dos trabalhadores muito baixos, em geral abaixo do mínimo, eles acabavam muitas vezes ao final do mês sem receber salários e ainda por cima devendo a usineiros e senhores de engenho. Dessa forma os seus patrões além de burlarem a legislação trabalhistas ainda os prendiam pela dívida, como se fossem semi-escravos ou servos da gleba do período feudal europeu.
Pouco antes da posse de Arraes, e no apagar das luzes do governo (do também usineiro) Cid Sampaio (PSD) ocorreu o chamado “Massacre da Usina Estreliana”, no município de Ribeirão, quando o usineiro José Lopes da Siqueira Santos, proprietário da Usina Estreliana, chacinou com rajadas de metralhadora cinco trabalhadores rurais que foram exigir pagamento de diferença de salários, porque estavam com suas famílias passando fome.
No governo Arraes sempre tentou intermediar acordos trabalhistas e determinou que a polícia fosse retirada das usinas, fazendas e engenhos. Que deixasse de servir como força paramilitar à serviço das elites e dos chefetes políticos dos municípios do interior pernambucano.
Os trabalhadores passaram a receber salários melhores. E o comércio dos municípios polo da Zona da Mata melhorou sensivelmente, vendendo radinhos e pilha, relógios e móveis que os trabalhadores antes não podiam comprar.
Mas os “coronéis” do interior e a elite canavieira nunca perdoou Arraes. E esses segmentos de direita foram a ponta de lança civil do golpe militar que depôs Arraes em 1964. Preso e deposto pelos militares, e logo após um período de prisão no Arquipélago de Fernando de Noronha, Arraes seguiu para o exílio (parte na França, parte na Argélia) para garantir sua própria segurança e a segurança de sua família.
Voltou em 1979 e recebido por uma multidão no Aeroporto dos Guararapes, no Recife, e posteriormente em um comício no Largo da Feira do bairro de Santo Amaro, no centro do Recife, Arraes disse que estava voltando “não para ser bonzinho para os militares”, mas para continuar sua luta em favor da unidade e libertação do povo brasileiro.
Miguel Arraes de Alencar, que tomou posse em 1963 e foi apeado do governo em 1964, voltou a governar Pernambuco em outras duas oportunidades (1987 a 1990 e 1995 a 1998). Sempre investindo em programas sociais: como o Chapéu de Palha (voltado aos cortadores de cana, vítimas do desemprego sazonal da Zona Mata – e similar ao atual “Bolsa Família”); e como os programas de eletrificação rural e de perfuração de poços artesianos, que levou água e energia elétrica para pequenos municípios e para quase 90% das áreas rurais do interior pernambucano.
Seus programas sociais ajudaram a reduzir as profundas desigualdades sociais no campo e nas pequenas e médias cidades de Pernambuco. Já que em Recife e municípios da Região Metropolitana da capital pernambucana os movimentos sociais e sindicatos de trabalhadores garantiam outros avanços.
Foi dessa linhagem política que surgiu a liderança de Eduardo Campos, neto de Miguel Arraes. E o único do clã Arraes que manifestou interesse em enveredar pela política partidária.
Eduardo (ainda como estudante de Economia) participou do movimento estudantil na Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) na década de 1980. E no segundo governo do avô (1987-1990)foi seu oficial de gabinete.
No terceiro governo de Miguel Arraes (1995-1998), já com experiência parlamentar acumulada como deputado estadual e deputado federal, Eduardo Campos foi nomeado para secretário da Fazenda. E nesse posto foi fiador do polêmico episódio dos “precatórios” que custou a derrota eleitoral de Miguel Arraes (em 1998) para o ex-aliado Jarbas Vasconcelos (PMDB), capitaneando uma aliança de centro-direita, com PFL e PSDB em seu palanque.
Apesar do baque eleitoral, Arraes ainda chegou a dar a volta por cima, elegendo-se como um dos deputados federais mais votados, pelo PSB, em 2002, praticamente sem fazer campanha, e apenas fazendo pequenas caminhadas em feiras livres das cidades da Zona da Mata, Agreste e Sertão. Eduardo também se elegeu deputado federal na mesma eleição. E depois foi nomeado por Lula para ministro da Ciência e Tecnologia.
Já ex-ministro, Eduardo lançou-se ao Governo de Pernambuco em 2006, derrotando Mendonça Filho (PFL), vice de Jarbas Vasconcelos, e vingando a derrota eleitoral do avô em 1998.
No governo, embora mantendo alguns programas sociais do avô, como o Chapéu de Palha, a pretexto de “modernizar” o “arraesismo” Eduardo adotou experiências privadas de gestão. O que o aproximou do meio empresarial e lhe rendeu críticas dos antigos aliados dos sindicatos rurais e dos movimentos sociais contra essa sua lógica, tida como conservadora (de direita), de “choque de gestão” e “governo de resultados gerenciais”.
Embora aliado do “lulismo”, Eduardo rompe aliança com o PT nas eleições para a Prefeitura do Recife. Profundamente rachado o PT lança o senador Humberto Costa para a sucessão do prefeito João da Costa (que não conseguiu encaminhar seu próprio processo de reeleição dentro do PT). E aproveitando dessa divisão o governador Eduardo Campos acabou emplacando seu aliado Geraldo Júlio (PSB), elegendo-o prefeito do Recife.
A patranha fez Eduardo Campos sonhar com voos mais altos, rumo ao Palácio do Planalto. E é a partir daí que exercita certa “dissidência” em relação ao governo Dilma e ao chamado “lulo-petismo” (com o qual os conservadores desdenham dos governos trabalhistas do PT). Dissidência essa que logo se transforma em oposição frontal, que leva Eduardo a postular uma candidatura presidencial em aliança com a ex-petista Marina Silva (que não conseguiu oficializar o registro de seu partio – Rede).
Eduardo tem feito acordos e conjecturas heterodoxas e perigosamente contraditórias para a biografia de seu avô. Mas dizer que ele vem de linhagem oligárquica é no mínimo um grave equívoco ou desconhecimento contextual da dinâmica da política pernambucana. Pois embora fazendo alianças pontuais com poucas dissidências de oligarquias interioranas, Arraes jamais foi um oligarca, ao contrário, ajudou e muito para enfraquecer o poder das oligarquias mais reacionárias e à direita, que sempre fizeram política clientelista para se firmar no governo. Mas sem jamais avançar socialmente em nenhum aspecto.
O problema é que ideologicamente Eduardo está a se movimentar como barata tonta. Critica Dilma de um lado, mas está tendo dificuldade de dizer a que veio e que propostas diferentes teria para “fazer mais” do que fez e vem fazendo a líder petista. O que se vê é uma perigosa aproximação dele com proeminentes lideranças da direita mais reacionária (como o catarinense Jorge Bornhausen) e com economistas e pensadores neoliberais contemporâneos, o que faria corar o seu avô (Miguel Arraes).
Na verdade esse camaleonismo de Eduardo está mais confundindo do que propriamente definindo um norte de governo. E em certa medida o afasta de segmentos de esquerda dos quais sempre foi aliado. O caso do escritor Ariano Suassuna (um histórico eleitor do “arraesismo” e apoiador de primeira hora de Eduardo) que já sinalizou apoio à reeleição da presidente Dilma é emblemático neste sentido. O renomado escritor diz que vota “a favor do Brasil” e não contra Eduardo, e que o jovem líder do PSB ainda terá sua chance de chegar à Presidência.
Bastante curiosa essa relação entre a Rede e o PSB ou, mais precisamente, entre Marina Silva e Eduardo Campos. Quando a aliança foi formalizada, logo foi apresentada como uma jogada estratégica que poderia mudar os rumos da eleição presidencial de 2014, quem sabe quebrando a histórica polarização entre tucanos e petistas. Eduardo, até então sem o desgaste que hoje ostenta, logo foi apontado como um grande estrategista, levando publicações nacionais a realizarem grandes matérias na residência de Dois Irmãos, onde sempre aparecia muito sorridente, ao lado da família. A lua-de-mel entre a irmão e o ex-governador, no entanto, duraria muito pouco. Alguns pontos de vista em comum, afirmam, ajuda bastante para construir um bom relacionamento. O problema é que eles vivem às turras - e tão somente às turras - sequer permitindo-se à trégua proposta pelo cancioneiro popular, do tipo entre tapas e beijos. Seria melhor eles pedirem logo o divórcio porque está muito complicada essa relação. Não fosse suficiente os problemas "programáticos" entre a Rede e o PSB, uma série de outros pontos de divergências estão surgindo, atrapalhando, até mesmo, as negociações políticas. A Rede Sustentabilidade soltou uma nota contundente, informando que não endossa a aliança entre o PSB e o governador Geraldo Alckmin, em São Paulo. Estão livres para apoiarem outra candidatura naquela praça. Aqui no Estado, as divergências entre ambos se avolumam. Sérgio Xavier emitiu uma nota em defesa do movimento #OcupeEstelita, sugerindo que o traçado urbano da cidade fosse melhor debatido com a população. Ora, não há como descolar o PSB de, pelo menos, "vista grossa" sobre o Projeto Novo Recife. Sob pressão popular, o prefeito Geraldo Júlio recuou de imediato e a Prefeitura do Recife, agora, prepara-se para uma longa batalha jurídica com os advogados do Consórcio de construtoras. Além de irregularidades com o leilão dos imóveis, sua aprovação pelos conselhos municipais também estão sendo questionadas, uma vez que o tal projeto não cumpriu alguns requisitos essenciais. Por essas e outras razões, não vejo com bons olhos essa suposta "conversão" de proeminentes figuras neo-socialistas, em defesa do "OcupeEstelita". Pois bem. Logo depois que a vereadora Marina Silva reclamou da ausência de democracia interna dentro das hostes neo-socialista, integrantes da Rede no Estado também vieram a público denunciar que estão sendo preteridos, em favor de algumas raposas felpudas da política pernambucana, cevadas no mais autêntico patrimonialismo, filhotes da ditadura, como costumava se referir a elas o ex-governador Leonel Brizola. Se eles são os aliados preferenciais, como se explica os privilégios que estão sendo outorgados àqueles políticos que, em tese, eles desejam a apear da vida pública, com a sua pregação de "Nova Política"? Certa vez alguém entrou no nosso blog (http://www.blogdojolugue.blogspot.com/) para informar como se deu a aproximação do ex-governador com os evangélicos tratando, inclusive, dos diálogos entre Eduardo e o pastor Silas Malafaia. Ainda revelo isso para vocês. Por enquanto, vale a observação de que essa relação entre o ex-governador e a irmã Marina parece não ter muito futuro. Uma das grandes questões que se coloca - até mesmo entre os coordenadores de campanha do ex-governador - é: Por que Marina não consegue transferir seus votos para o candidato? Qual o real capital político de Marina? Afinal, as eleições de 2010 foram as eleições de 2010. Ela ainda tem aqueles milhões de votos? Seria possível transferi-los para Eduardo Campos? Em que condições?
O trajeto usual é este: quem se aproxima do socialismo é porque sente que há algo de errado com o capitalismo.
Como neste mundo o capitalismo é praticamente tudo que existe, é relativamente raro que as pessoas enxerguem no sistema (que é o seu mundo) falhas que as levem a concluir que o sistema precisa ser revisto ou substituído. Essa infrequência tem diversos motivos, mas deve-se antes de tudo à profundidade das transformações que o regime capitalista produziu no rastro da sua ascensão.
O capitalismo existiu em regime embrionário em todas as gerações dos homens, mas foi por milênios contido por restrições técnicas, morais e religiosas. O empréstimo de dinheiro a juros, por exemplo, é essencial para o funcionamento do capitalismo e indistinguível dele, mas foi considerado imoral na Europa católica por mais mil anos. Para nascer o capitalismo teve que esperar que a Reforma Protestante imprimisse à usura a divina credencial.
Para deslanchar o potencial represado da sua visão de mundo o capitalismo só teve de aguardar o solevamento das últimas restrições, aquelas tecnológicas, à sua ascensão. A Revolução Industrial resolveria esse problema para sempre.
Todos os poderes têm algum potencial equalizador. Todos podem ser usados em alguma medida para promover a justiça, até o momento em que não. Nos cem anos entre 1850 e 1950 o capitalismo exerceu formidavelmente o potencial equalizador do seu poder.
A face boa do capitalismo: um mundo menos desigual
O sucesso da evangelização capitalista reside em grande parte na singeleza da sua boa nova: se quiser, caro leitor e ouvinte, você pode ficar rico. Todas as restrições que trabalhavam para impedi-lo de beneficiar-se do seu potencial foram abolidas.
A enorme distância cultural que separa 1850 de 1950 é explicada pelo sucesso universal dessa ideia.
A um mundo cansado de se curvar diante de artificialidades e de sustentar a sua perpetuação, a Revolução Francesa já havia articulado o sonho equalizador de igualdade, liberdade e fraternidade. Porém a Revolução Industrial acenou com uma promessa de justiça embasada na realidade e não na poesia. A vitória da indústria parecia estabelecer um poder democrático por natureza, um poder que acabaria se transferindo naturalmente para a mão dos mais capazes e mais merecedores: a posse do capital.
Colocado em movimento, o capitalismo começou a demolir imediatamente distinções entre as pessoas que haviam permanecido por milênios fixas e indiscutidas. A mobilidade social demonstrou que o tratamento preferencial que a sociedade dispensava a determinadas classes, e que todos agiam como se fosse coisa natural, era na verdade uma invenção conveniente, uma farsa contada de modo a manter intatas as estruturas de dominação.
Pouco a pouco todas as classes de pessoas foram sendo entendidas como livres e iguais – nobres e pobres, homens e mulheres, ex-escravos e professores, negros e brancos, cidadãos e estrangeiros, açougueiros e pastores. Ninguém podia se dar ao luxo de considerar-se melhor do que ninguém, porque as oportunidades do mercado estendiam-se democraticamente diante de todos.
Com essa mensagem e o imenso lastro da sua vocação ao sucesso, o capitalismo serviu para desmascarar mundo afora forjaduras e ideologias que tinham estado em vigor por milênios. O mundo finalmente entendeu que os critérios que garantiam poderes e privilégios aos reis, aos nobres e aos sacerdotes eram inteiramente arbitrários, méritos imputados a eles sem nenhum fundamento correspondente na realidade.
A eficácia com que o capitalismo denunciou e desarmou as ideologias de dominação que prevaleciam antes dele é lembrada com frequência pelos seus defensores. Quaisquer injustiças de que o capitalismo seja culpado nos nossos dias, insistem eles, não são para comparar com as injustiças do mundo que havia antes.
A outra face do capitalismo: um mundo cada vez mais igual – e cada vez mais desigual
O sucesso do capitalismo parece mais formidável na medida em que ignoramos que ele se fundamenta em promissórias que são cobradas das gerações futuras – ou de gerações presentes que estão distantes do nosso olhar. Grande parte das reservas levantadas contra o capitalismo nascem precisamente da sua eficácia em vencer culturas competidoras e abafar a voz dos seus críticos. Alguns de nós entendem que nenhuma ideia humana deveria ter cacife para apagar da competição todas as outras, mas é precisamente essa a pegada e o efeito do capitalismo.
► o capitalismo é uma monocultura
O apelo de narrativas de fantasia como O Senhor dos Anéis e Game of Thrones reside em grande parte nisto: são histórias que falam de mundos em que subsistem, colaboram e competem uma diversidade de culturas, enquanto o nosso próprio mundo se mostra cada vez mais uma cultura única.
A ideologia capitalista parte do pressuposto de que não importa o seu sexo, idade, religião, tradição nacional, bagagem cultural ou preferência pessoal, você irá desejar a mesma coisa – o mesmo preciso modo de vida – que os demais bilhões de habitantes do planeta. Não importa se você nasceu no sertão do nordeste, numa várzea fértil da Índia, num vale remoto da Itália, numa cidade litorânea da Austrália, num vilarejo do Iraque ou numa aldeia pendurada no Himalaia ou nos Apeninos: você vai sentir a irresistível vocação de deslocar-se para uma escola, para uma fábrica, para um cubículo, para uma sala de reuniões, para um condomínio fechado, para um escritório envidraçado num edifício moderníssimo – o que for mais compensador ou mais rápido.
Você vai querer a liberdade de ter as mesmas máquinas, assinar os mesmos serviços, pagar pelas mesmas atualizações, reclamar das mesmas ninharias: ter no bolso um retângulo cujo mágica se compare à do retângulo do seu colega, e em casa uma tela maior.
O sistema tem mecanismos de controle e não vai permitir que você se sinta completo ou realizado se não se conformar ao perfil urbano, a um modo de vida que lhe permita consumir o que desejam consumir todos que habitam a cidade com você. Dica: você não vai querer ser agricultor, pintor de carrocerias de caminhão, fabricante de cestos oupastor de ovelhas. Entre outras coisas, você não conseguiria conviver com o sentimento de inadequação. O capitalismo lhe terá convencido de que para alcançar o status de pessoa única será necessário você se conformar ao que fazem todos.
► o capitalismo elimina culturas e modos de vida
O capitalismo de mercado está tão convicto de seu status de solução universal para todas as sociedades que não pausa um instante sequer para lamentar a perda, ao redor do mundo, de uma infinidade de culturas e modos de fazer que o seu avanço eliminou ou colocou em grave risco de extinção.
A lista de culturas riscadas do mapa pelo capitalismo é longa demais para ser resumida, mas são extinções com muitos aspectos em comum. Jovens do interior são confiscados para os grandes centros em busca do batismo expiatório das escolas, sem o qual estarão todos condenados à inadequação. Pequenos produtores só conseguirão comercializar a sua produção se se dobrarem às exigências dos grandes conglomerados (ou só conseguirão sobreviver vendendo a esses conglomerados as suas propriedades). As tradições de vilas, cidades remotas e comunidades rurais morrem gradualmente, perdendo a vida e a cor pela transfusão sem volta dos mais jovens para as metrópoles.
Vocações e modos de vida pacatos e idealistas – franciscanos, freiras, monges budistas, pastores de ovelhas, pescadores, alfaiates, sapateiros, tipógrafos, serralheiros, lavradores, pequenos comerciantes locais e artesãos de toda a sorte – mínguam sem sucessores e sem que ninguém entenda o fascínio e o subversivo prestígio que já representaram.
► o capitalismo se apropria das imagens das culturas que eliminou
Em A sociedade do espetáculo (1967) Guy Debord aponta que o regime capitalista reduziu a experiência à contemplação de uma sucessão de imagens: “tudo que era antes vivido diretamente tornou-se mera representação. A vida real é absorvida materialmente pela contemplação do espetáculo, e acaba alinhando-se a ela”.
O capitalismo se apropria das imagens das culturas que eliminou, expondo-as e beneficiando-se delas como se ainda existissem. As embalagens de leite e de suco de laranja mostram imagens de casas e trabalhadores rurais inteiramente integrados na natureza – emblemas de modos de vida que a própria conveniência da produção em massa e das embalagens longa-vida tornou inviáveis e eliminou da existência. O capitalismo ignora esse paradoxo como ignora todos os demais, limitando-se a endossar com descaramento e sem pausa todas as farsas que as imagens que sequestrou ajudam a sustentar.
O World Showcase do parque Epcot, da Disney, é um mundo em miniatura: uma sucessão literal e pronta para o consumo de “imagens significativas” de onze países, entre os quais estão China, Itália, França, Marrocos e Canadá.
Mas o World Showcase é também uma miniatura do mundo, porque em todo lugar o capitalismo exige que consumamos a imagem de uma cultura ao invés de nos submetermos, no confronto com outra cultura, a um encontro com o Outro. Não só você consome a imagem de Veneza e de Paris no parque da Disney; na Veneza e da Paris da vida real você não espera consumir mais do que um parque: não uma cultura, mas imagens e encontros imaginários em sucessão. Consumo e representação em lugar de assimilação, confronto e crescimento.
► o capitalismo aliena o trabalhador de tudo que diz respeito ao trabalho
A ideia de que o capitalismo produz alienação – um distanciamento entre o homem e a porção mais essencial de si mesmo – é fundamental na crítica de Marx.
A linha de produção afasta o trabalhador do produto do seu trabalho, visto que o que cada um vê é sua participação limitada – seu girar do parafuso – num processo maior do que ele e sobre o qual ele não tem controle. Trabalho numa fábrica de automóveis e não tenho um.
Porém o capitalismo gera todo um leque de relações humanas sobre as quais o trabalhador não tem qualquer controle. Marx está particularmente preocupado com as consequências desumanizantes da renúncia, por parte do proletário, de sua capacidade de autodeterminação.
O regime capitalista requer que o trabalhador deixe de agir como entidade autônoma, capaz de determinar o seu destino, e passe a operar como entidade econômica, uma ferramenta/engrenagem da qual o capitalista dispõe como bem entende. Essa transação é desumanizante, antes de tudo porque ninguém ignora que o capitalista deseja extrair do trabalhador o máximo de produção pelo mínimo de reconhecimento: sua sobrevivência no sistema depende da sua capacidade de manter artificialmente essa distância.
Isso num sistema em que todos os componentes, não importa em que patamar se encontrem, sabem-se descartáveis e sentem-se portanto desumanizados. O capitalista está competindo com outros capitalistas, o trabalhador está competindo com outros que podem querer o seu lugar.
Marx:
Suponhamos agora que tivéssemos executado a produção como seres humanos. Cada um de nós teria, de dois modos, afirmado a si mesmo e à outra pessoa. [1] Em minha produção eu teria objetificado a minha individualidade, seu caráter específico, e teria portanto desfrutado não só de uma manifestação individual da minha vida durante a atividade, mas também, olhando para o objeto, teria o prazer individual de saber que minha personalidade é algo objetivo, visível aos sentidos, e portanto um poder além de qualquer dúvida. [2] Quando você estivesse usufruindo ou utilizando o meu produto eu teria o prazer direto tanto da consciência de ter com meu trabalho satisfeito uma necessidade humana, ou seja, de ter objetificado a natureza essencial do homem, quanto o de ter criado um objeto correspondente à necessidade da natureza essencial de uma outra pessoa. Nossos produtos seriam desse modo muitos espelhos nos quais veríamos refletida nossa natureza essencial.
O seu smartfone é uma maravilha do mundo. Porém quem quer pirâmides tem de suportar escravos.
► o capitalismo mantém fora do nosso campo de visão as injustiças mais brutais do sistema
Em uma de suas sacadas mais brilhantes, o capitalismo toma providências para que não tenhamos de testemunhar gente sendo explorada na confecção do produto que estamos consumindo.
Foi assim desde o início: os primeiros consumidores modernos já compravam os primeiros produtos industrializados sem ter de saber que as condições de trabalho das fábricas estava longe do ideal.
Esse sistema de desvio de atenção, no entanto, só alcançou a perfeição numa economia globalizada.
Não se iluda: em qualquer era dos homens o seu smartfone (que você não vê a hora de trocar) seria considerado uma maravilha do mundo, digna de peregrinação e de assombro. Porém quem quer pirâmides tem de suportar escravos. O capitalismo apenas tomou cuidado para que você não tenha de testemunhar as condições de trabalho dos seus.
Os escravos que correspondem à sua parcela de consumo estão com toda a probabilidade confinados em alguma fábrica da China. Para sua conveniência, daqui você não tem de testemunhar a dureza das condições em que foi montado o seu smartfone ou o seu roteador wireless.
Essa distância entre o local idealizado de consumo e um local de produção longe do ideal é ela mesma uma forma de alienação. Nesse caso é o consumidor que se permite desumanizar, rebaixando-se a aceitar uma farsa que só um acordo mútuo e silencioso de vista grossa permite subsistir.
Num mundo globalizado, fica esta regra: se você pode comprar, alguém está pagando, e não é você.
► o capitalismo requer cada vez mais energia
Quando se reduz a economia à sua formulação mais simples, riqueza e consumo de energia são a mesma coisa. O capitalismo é uma máquina peculiar que só funciona enquanto cresce: os seus custos de manutenção só são cobertos enquanto mais consumo é artificialmente gerado (através de novos consumidores, novos produtos ou do seuaumento de consumo).
Para que haja manutenção de riqueza énecessário que haja consumo de energia crescente: em outras palavras, o capitalismo requer que queimemos de comum acordo uma parcela cada vez maior dos recursos da Terra na forja capitalista.
Num mundo esférico é só de má fé que gente informada ousa colocar juntas palavras como “crescimento” e “sustentável”. A descaracterização da paisagem e o holocausto das espécies não são efeitos indesejados de algumas formas perversas e irresponsáveis de capitalismo; são o projeto e o combustível de todas.
Embora as consequências inevitáveis desse tráfico estejam se tornando cada vez mais difíceis de ocultar, esta pode ser contada como outra das instâncias em que as injustiças mais graves do regime capitalista são mantidas fora do nosso campo de visão. Somente as gerações futuras poderão avaliar o custo total da nossa imprevidência presente; entre outras coisas, porque serão elas que terão de pagar os compromissos que estamos assinando agora.
► o capitalismo derrubou valores que eram sustentados artificialmente, mas opera a partir do seu: o progresso
É inegável que a ascensão do capital denunciou e anulou valores que eram tidos como legítimos mas hoje entendemos como arbitrários e artificiais. Hoje a nenhuma pessoa sensata ocorreria sustentar o direito divino dos reis, os privilégios inerentes da nobreza ou a superioridade moral ou intelectual de sexo, raça, origem, crença, nascimento ou sangue.
O capitalismo contribui para anular o efeito desses mecanismos de dominação, mas colocou em operação o seu, tão arbitrário e artificial quanto aqueles que derrubou: a crença no progresso.
Cremos no mérito inerente do desenvolvimento do mesmo modo que as gerações que nos precederam criam no mérito da raça, e, como elas, permanecemos ignorantes de que estamos sendo manipulados por uma farsa sem fundo, sem mensurabilidade e sem prestação de contas.
Bruce Sterling:
Os sucessos do progresso tornam-se problemas espinhosos para a geração seguinte: não permanecem permanentemente “melhores”. Nossos juízos de valor sobre o que é melhor são temporários, inteiramente limitados à nossa perspectiva no tempo. Não existe um “melhorômetro”; ninguém tem como medir a extensão, a amplitude e a duração de uma “melhoria”. Melhor é um juízo abstrato de valor, não uma qualidade científica; não pode ser testado experimentalmente. Ninguém sabe o que é melhor; na verdade, ninguém sabe o que é pior. É tremenda ingenuidade acreditar que cada desdobramento tecnológico é necessariamente um avanço.
O que é o progresso? Quando acaba? Como se pode medi-lo? Quem decide quando basta? Como determinar os seus méritos? Quais são as alternativas? A quem devemos pedir desculpas se estávamos errados? Devemos proteger do progresso algumas partes do mundo? Se sim, porque não proteger dele o mundo inteiro?
A crença no progresso justifica qualquer extinção, qualquer desapropriação, qualquer descaracterização, precisamente como o pretexto invisível da “conversão do mundo” justificou todos os abusos, apropriações, genocídios e devastações abençoados historicamente pela cristandade.
É uma forja, e é universal.
► o capitalismo faz o trabalhador desejar a própria opressão
O ideário capitalista depende fortemente e promove sem pausa o excepcionalismo, a ideia simples mas irresistível de que com você será diferente. É a mesma promessa que alimenta a máquina das loterias, mas depende nesse caso de uma manifestação particular da falsa consciência: a crença de que a sua agência bastará para alçá-lo da sua presente condição.
Como resultado, você é convidado a não ressentir-se pessoalmente da carga opressiva do sistema, e a crer que as penas e maltratos servirão para filtrar os outros e permitir que você se destaque. Você chega a desejar para os outros e para si mesmo o fogo da opressão, da cobrança e da competitividade, porque acredita que ele o ajudará a demonstrar o seu valor.
Como notou Wilhelm Reich (e depois dele Foucault e Deleuze/Guatari), o desejo pela própria opressão é típico dos modos desumanizantes de operação dos regimes fascitas. Reich:
A coisa assombrosa não é que alguns de vez em quando roubem ou que outros entrem ocasionalmente em greve, mas que os que passam fome não roubem todos como prática habitual, e que os que são explorados não permaneçam todos em greve continuamente. Depois de séculos de exploração, por que as pessoas ainda toleram ser humilhadas e escravizadas, ao ponto de desejarem a humilhação e a escravidão não só para os outros mas para si mesmas?
► o capitalismo canibaliza os seus críticos e sequestra o discurso revolucionário
Mais esta regra: não há nada que o capitalismo não possa reverter em seu favor. Não há crítica ao capitalismo que não possa ser usada para agregar valor a uma camiseta, não há figura revolucionária que não possa ter a sua imagem sequestrada numa campanha de publicidade.
A postura da Apple é nesse sentido exemplar. A empresa apropriou-se desde o início do discurso revolucionário, equiparando o consumo dos seus produtos a um processo subversivo e civilizatório desencadeado por uma elite de rebeldes, inconformados, criativos e lúcidos.
O comercial de lançamento do Macintosh, “1984”, usava imagens sugeridas pelo pesadelo fascista do livro de George Orwell para sugerir que adquirir o novo produto equivalia a um ato de bravura, um definido engajamento na luta contra o conformismo.
A apropriação está presente de maneira ainda mais constrangedora na campanha Think different/Pense diferente, de 1997. “Um viva para os malucos, os rebeldes, os inconformados”, dizia a narração do comercial, um dos mais famosos da história da propaganda. E concluía: “Porque aqueles que são malucos o bastante para achar que podem mudar o mundo são aqueles que o acabam mudando”. A sugestão, nada sutil e nada fundamentada, era que consumir os produtos da Apple equivalia a assumir a postura revolucionária de gente como Martin Luther King, Albert Einstein, Thomas Edison, John Lennon, Pablo Picasso, Mahatma Gandhi (GANDHI, meu amigo) – figuras cujas as imagens o comercial sequestrou para endossar aquilo que jamais endossariam.
Não foi a primeira vez e não será a última.
► o capitalismo não admite alternativas
O economista Francis Fukuyama opinou famosamente que o capitalismo neoliberal é uma ideia tão boa e irretocável que simplesmente não tem como ser substituída: nem agora, nem nunca.
Esse sentimento de superioridade moral se traduz numa feroz combatividade dirigida contra ideias competidoras, quer sejam reais ou imaginadas. O proponente do capitalismo (direita, estou falando com você) não irá admitir a mínima sugestão de que o seu sistema pode ser aperfeiçoado ou corrigido, quanto menos substituído.
O homem de direita vê a si mesmo como inflexível defensor da liberdade, e irá responder a qualquer crítica com o argumento de que a liberdade não tem como ser aperfeiçoada. Todos os ajustes que você propuser para conter os destemperos do capitalismo – taxações, impostos, regulamentação de mercado, escolas públicas, assistência e previdência social, distribuição de renda, leis trabalhistas, áreas de preservação – o partidário da direita entenderá como estorvos inadmissíveis colocados no caminho da liberdade.
Em particular, o partidário da direita procurará desacreditar cada uma dessas noções como “comunistas”, ao ponto do mais insensato reducionismo. Como a história não cessa de demonstrar, a direita tentará denunciar como comunismo qualquer postura que por algum capricho não aprove, mesmo aquelas sem qualquer relação com a teoria ou a prática do comunismo (por exemplo, mulheres de cabelos curtos ou o casamento inter-racial).
► o capitalismo é inescapável
“Para onde fugirei do teu espírito? Para onde me afastarei da tua presença?”, espantou-se o Salmo 139 (vv.7-8), e o que dizia da divina presença aplica-se sem ajuste ao espírito da nossa época. “Se eu subir ao céu, lá tu estás; se fizer a minha cama no inferno, tu estarás lá também”.
Se eu for à China, lá encontrarei um MacDonald’s. Se for a Teotihuacán, lá encontrarei um Walmart. No fundo do oceano e na montanha mais alta encontrarei a mesma garrafa de plástico, e não importa onde for perderei imediatamente a paciência se não tiver acesso a wi-fi.
Viver à margem da cultura dominante teve desde sempre os seus custos sociais, mas antes da nossa era ninguém teve de conhecer os custos de resistir a uma monocultura verdadeiramente global. Fazendeiros urbanos como o Claudio Oliver e seus companheiros, ou proprietários rurais como o João Frischenbruder de Urubici, têm de enfrentar um rosário infindável de obstáculos, que se renovam a cada manhã, no esforço de manter sustentável uma vida que dependa apenas parcialmente da máquina capitalista.
Querida Apple: os malucos, os rebeldes e os inconformados são os caras que nunca cairiam na sua conversa.
► o capitalismo pressupõe um desejo uniforme
O mundo já conheceu monoculturas, mas nenhuma foi arrogante ao ponto de pressupor um desejo perfeitamente uniforme – nem mesmo, incrivelmente, o cristianismo, que postulava como inevitável uma parcela de oposição.
Os Estados Unidos, seus embaixadores na Terra, entendem o avanço do capitalismo como parte de um grande, magnânimo e planetário processo civilizatório. Trata-se da graciosa disseminação de um modo de vida pelo qual todas as civilizações e culturas anseiam mesmo sem saber.
Os evangelistas do capital tomam por inconcebível que os habitantes do Iraque, de Cuba, da floresta amazônica ou da estepe africana não desejem uniformemente ser “liberados” para o modo de vida capitalista. O muçulmano radical quer secretamente vestir Hugo Boss, o monge budista quer secretamente o último modelo do iPhone, a madre superiora quer secretamente uma bolsa LV, o cubano quer abertamente afundar-se em McNuggets – porque quem não iria desejar algo que é inerentemente desejável?
Demorei a entender a frequência e a ênfase com que meu amigo Daniel Oudshoorn acusa o capitalismo de “disciplinar o desejo”. Por certo o capitalismo pode ser acusado de coisas mais graves, não?
Gradualmente fui entendendo que não, não pode. O regime capitalista não tem como ter feito coisa mais perversa e prejudicial do que uniformizado o desejo. Dessa sua arrogância essencial nascem todas as outras.
Levei Georges Bataille para a cama, e o erro em disciplinar o desejo agora me parece mais do que evidente. O desejo, meu amigo, deve ser mantido absolutamente livre e indisciplinado, uma metralhadora absolutamente giratória, produzindo todo o tipo de heterogeneidade pessoal, cultural e nacional. Um mundo equilibrado é um mundo em que grupos inteiros de pessoas escolhem modos de vida que você absolutamente não tem como entender. Um mundo de uma variedade atordoante, obscena, inclassificável, impossível de tabular: precisamente uma pintura de Bruegel.
O pastor de ovelhas deve poder desejarser pastor de ovelhas, o açougueiro deve poder desejar ser açougueiro, o lavrador deve poder desejar ser lavrador. O monge budista e a freira devem desejar uma vida frugal, Gandhi deve desejar tecer as próprias roupas, o Claudio Oliver e o profeta do Rio dos Cedrosdevem desejar que o capitalismo não seja inescapável e devem agir em conformidade com essa sua insensatez. Que muitos outros desejem renúncias, desvarios, poetices, festivais, encenações, tatuagens de henna, folias, imprudências, pinturas de areia, rodas de oração, pelejas de repente, danças circulares, muros de lamentação, ídolos de manteiga, xilogravuras, peregrinações, desvios de rota, poesia sufi e toda sorte de tradições que não terei jamais como compreender.
Uma dada viagem de elevador deve ter em média um executivo, um pai de santo, um budista, um nudista, um muçulmano, um repentista e um rei momo. Pelo menos metade da população urbana deve escolher andar descalça, especialmente os que trabalham de terno e gravata.
Rios e rios de pessoas, grossas e irresistíveis torrentes humanas nas cidades e nos sertões, devem poder desejar o ócio em vez da autorrealização, preferir a preguiça à produtividade. Sociedades inteiras devem ser livres para zombar do capitalismo, e outras sociedades devem zombar dessas, tomando suas respostas ao capitalismo como absolutamente toscas e insuficientes.
Fábricas não devem apagar monastérios, praias de nudismo não devem apagar tipografias, companhias de ópera não devem apagar acampamentos de ciganos, direitas não devem apagar esquerdas, protestantes não devem apagar católicos. Meu Deus, viva a diversidade, porque o que permanece variado permanece impossível de controlar e de submeter. Diversidade é despoder.
Nem mesmo o capitalismo, essa merda imensa e crescente, rotatória e fractal, precisa ser apagado por completo da prática ou da memória. Basta que a criatividade humana ou alguma bem-aventurada crise (porque há pouca diferença) trabalhem para desafiar e vencer a sua obscena supremacia.
Nobel de Economia sai em defesa do “Marx” do século 21
Por Redaçãojunho 3, 2014 10:27
O liivro do francês Thomas Piketty, “Capital no Século 21″, tem causado polêmica nos debates sobre desigualdade de renda e concentração de riqueza. Dessa vez, foi Paul Krugman que o defendeu das críticas
Por Janet Allon, em Alternet | Tradução: Vinicius Gomes
O economista Paul Krugman, colunista pelo New York Times, ainda está brigando a “boa briga” contra os negadores da desigualdade. Em sua coluna deste domingo (1), ele apontou, pessimista, que tem falado sobre o crescimento da desigualdade desde 1992, quando escreveu um artigo intitulado “Os ricos, a direita e os fatos”. Claro, ele foi prontamente “trolado” pelos negadores da desigualdade.
Agora, Krugman sugere que é quase como um dejavu o que está acontecendo com o economista francês Thomas Piketty e seu livro “O Capital no Século 21”, e a desonestidade intelectual dos críticos quanto a seus números e conclusões. O mais notável foi o artigo de Chris Giles, o economista-editor do Financial Times, que atacou o trabalho de Piketty usando como base os ligeiros erros nos dados para então alegar que essa era a prova de que não há o crescimento da desigualdade e o fenômeno do aumento da concentração de riqueza.
Krugman escreve que a “afirmação crucial de que não há uma tendência clara quanto ao aumento da concentração de riqueza residia em uma conhecida falácia e que eu identifiquei em 1992 em um artigo”.
Mesmo que Krugman provavelmente ache cansativo continuar a estar certo sobre a desigualdade após todos esses anos, ele escreve todos os fatos – novamente – para quem ainda não ficou claro:
“Nós temos duas fontes de evidência tanto de renda quanto de riqueza: pesquisas, nas quais as pessoas são perguntadas sobre suas finanças e dados fiscais. Os dados de pesquisa, enquanto úteis para rastrear os pobres e a classe média, notoriamente minimizam as maiores rendas e riquezas – falando claramente, pois é difícil entrevistar bilionários o suficiente. Então os estudos do 1%, do 0,1% – e por aí vai – se restringe em dados fiscais. A crítica do Financial Times, todavia, compara velhas estimativas de concentração de riqueza baseada em dados fiscais de estimativas mais recentes nas pesquisas; isso produz uma propensão básica em não encontrar a tendência de concentração. Em resumo, essa última tentativa em ridicularizar a noção de que nós nos tornamos vastamente uma sociedade mais desigual foi também ridicularizada. E vocês deveriam ter esperado por isso. Existem tantos indicadores independentes apontando para um agudo crescimento da desigualdade, indo de aumento nos preços das propriedades de alta classe até à explosão dos mercados para bens de luxo, que qualquer alegação que a desigualdade não está crescendo quase que certamente está baseada em uma análise falha de dados.”
Depois Krugman atualiza sua análise sobre a desigualdade e ridiculariza dois argumentos populares e falsos de seus negadores: que os EUA ainda têm toneladas de mobilidade econômica e que qualquer um pode fazer parte do 1% e que, de alguma maneira, o atual sistema de impostos tem esse problema sob controle:
“A concentração, tanto de renda quanto de riqueza, nas mãos de poucas pessoas aumentou drasticamente nas últimas décadas. Não, as pessoas recebendo essa renda e sendo dona dessa riqueza não estão nunca em grupo que está constantemente mudando: as pessoas se movem frequentemente entre os últimos lugares do 1% para as melhores posições do 1%, e vice-versa.”
Piketty deixa os mais ricos desconfortáveis, diz Krugman, assim como todas as demandas populistas para um aumento na taxação dos ricos.
Mas negar a desigualdade, assim como negar a mudança climática, não é sobre ciência ou dados, aponta Krugman. Ela é politicamente motivada para proteger certos grupos com fortes interesses em negarem os fatos ou lançar dúvidas sobre eles.
E Krugman irá continuar dizendo até que as pessoas finalmente tenham escutado e percebido, como ele diz, que dessa vez os populistas talvez estejam certos.
O inferno astral de Eduardo Campos. Penso que o ex-governador e candidato à Presidência da República cometeu muitos erros de avaliação. Uma ambição desmedida, aliada a uma tendência autocrática se encarregaram de completar o serviço. É bem possível que saia dessas eleições bem menor do que quando entrou. Mesmo se considerarmos a hipótese de uma preparação para voos mais altos em 2018, ainda assim, o cenário que ele vem construindo não é nada alvissareiro. Num curto espaço de tempo, uma enxurrada de fatos e notícias nada agradáveis ao presidencial pernambucano. a) Transitou como um ilustre desconhecido pelas ruas de uma cidade do Rio Grande do Sul. Até o momento, seu esforço para tornar-se uma personalidade política conhecida nacionalmente, parece ainda não ter surtido o efeito suficiente; b) Em São Paulo, a cúpula da legenda deve indicar o apoio ao nome do atual governador, Geraldo Alckmin, para a reeleição, contrariando a opinião da Rede, que preferia uma candidatura própria em praças como São Paulo e Minas Gerais; c) Recuou da tentativa de impor o nome do primogênito, João Campos, na liderança da JSB, atitude contestada por setores do partido, que alcançou uma repercussão bastante negativa; d) A vereadora Marília Arraes, sua prima, em entrevista coletiva, condenou abertamente os seus "métodos" dentro da agremiação; e) Agora foi a vez de lideranças da Rede Sustentabilidade em Pernambuco fazerem coro à vereadora, informando o mesmo problema, ou seja, os "ungidos" preferenciais são velhas raposas da política pernambucana, vinculadas ao DEM, enquanto o pessoal da Rede, aliados de primeira ordem, estão sendo escanteados; f) Por fim, a última pesquisa do Instituto Datafolha, onde o postulante aparece com 7% das intenções de voto, oscilando numa curva descendente, o que o aproxima de um empate técnico com o pastor Everaldo, do PSC, uma situação vexatória para quem tinha tantas ambições; g) Para completar o enredo, sem andor, o "poste" indicado para concorrer ao Governo de Pernambuco pela legenda socialista também não consegue deslanchar. Cravou risíveis 8% numa das últimas pesquisas de intenções de voto. Se ainda houver alguém de bom-sendo entre os seus comandados, talvez já esteja na hora de reavaliar a situação. Quando comentamos que ele estava se metendo numa tremenda enrascada, um dos seus asseclas escalado para nos contestar ficou possesso. O mais engraçado é que pessoas ligadas ao jornalismo de cabresto que hoje se pratica em alguns órgãos da imprensa pernambucana preferem não enxergar o óbvio; h) Ainda tem as denúncias da Dilma Bolada de que sua equipe de gerenciamento nas redes sociais estaria "comprando" seguidores.