pub-5238575981085443 CONTEXTO POLÍTICO.
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sexta-feira, 14 de dezembro de 2018

Michel Zaidan Filho: Fascismo, Estado de Exceção e Direito de Resistência



                             Tem havido uma grande controvérsia em relação à caracterização do regime político brasileiro, depois da última campanha eleitoral: Estado de direito democrático, Estado formalmente democrático e constitucional, Estado de Exceção, Estado de Exceção Episódico?
                   Para muitos, a diferença entre um Estado de Exceção e um Estado democrático de Direito estaria no funcionamento normal das instituições: Justiça, Legislativo e Executivo. E a existência do direito do contraditório, da crítica, da oposição e do debate. Enquanto esses poderes funcionarem, não se poderia falar com propriedade em Estado de Exceção. O primeiro a questionar a diferença foi um teórico alemão simpático ao Nazismo, na Alemanha. Carl Schmidt, em seu livro “Teologia política”.  Afirmava esse filósofo político que todas as categorias da política seriam extraídas da religião. Que o líder não precisa representar ninguém; ele decide os outros o seguem (decisionismo). E que a política se resumia à oposição entre o amigo e o inimigo. Para Schmidt, era irrelevante a fronteira entre ditadura e democracia. Porque para as classes dominadas, sempre houve uma ditadura, nunca uma democracia. Assim, para estas, tratava-se de criar pioneiramente um verdadeiro Estado de Exceção para as classes dominantes. E isso só podia ser feito com a revolução (Walter Benjamin).
                 O decisionismo de Carl Schmidt prosperou no terreno da história das ideias políticas e chegou ao Brasil, através dos doutrinadores que apoiaram o afastamento da Presidente Dilma, o chamado golpe parlamentar de 2016.  Aos olhos desses autores (e há um pernambucano entre eles), teríamos uma modalidade de Estado de Exceção, dentro das regras do jogo democrático, um fascismo democrático, institucionalizado. Não um golpe de Estado. Um regime “fascista” com atenuante ou disposições constitucionais refuncionalizadas para legitimar o Estado autoritário (Antônio Negri). De toda maneira, cabe lembrar que o fascismo clássico possuía uma base de massas organizada e não massas difusas e ocasionais. No Brasil, não haveria essa base de massas. Mas um pensamento nacionalista de direita sempre presente nessas manifestações de rua da classe média contra LULA, Dilma e o PT. Sem profundidade ideológica, quase epidérmico. Fascismo difuso e superficial alimentado pelo combate à corrupção e fortemente alimentado pelas igrejas evangélicas, com a sua pregação a favor de Deus, da família e da pátria.
              De toda maneira, esse Estado de Exceção episódico ou permanente se manifesta na aberta criminalização dos movimentos sociais, do movimento sindical, do MST e MTST, dos movimentos das minorias pela afirmação de suas identidades, pela criminalização da liberdade de opinião e a liberdade de cátedra e contra o laicidade do Estado republicano no Brasil. Suas intervenções policiais são seletivas. Dirigem-se a determinados grupos sociais, numa espécie de “lombrosianismo social”: negros, índios, homossexuais, lésbicas, transexuais, comunistas ou esquerdistas etc. É a violência praticada em nome da lei, da   moral, dos bons costumes, da fé religiosa etc. Nas instituições públicas, isso tem o nome de processo administrativo-disciplinar, administração racional, técnica ou burocrática, dirigida contra os que discordam dos agentes do poder. Há, como quê, uma cotidianização da violência. Ela assume o aspecto de normalidade institucional, de legalidade, não de uma perseguição político-ideológica. Vale lembrar que as ditaduras no Brasil buscaram legitimar-se através de Constituições promulgadas: a de 1937, a de 1967, a lei contra o terrorismo, editada a pedido da FIFA. Daí para as jurisprudências mais absurdas (como a doutrina do domínio de fato, ou força das convicções ou as prisões de ativistas a partir da presunção dos crimes que poderiam vir a cometer), além daquelas abertamente ilegais, como escutas de autoridades, conduções coercitivas, vazamentos intencionais de trechos de inquéritos etc. foi um passo extremamente curto.
               Assim, representa enorme preocupação a nomeação de um juiz de primeira instância associado a todas essas práticas. E por outro lado, um ministro da Fazenda que não esconde o seu amor pelo mercado, pelas privatizações e as empresas multinacionais. Grave também é a presença de pastores e teólogos em pastas de conteúdo altamente polêmicos, como educação e direitos humanos. Ou o privilegiamento de igrejas e manifestações religiosas, em detrimento de outras.  Sobre ser profundamente inconstitucional, antidemocrática e discriminatória. Pode estimular crimes de ódio contra outros credos e religiões. A perspectiva habermasiana do “patriotismo constitucional”, em sociedades multiculturais ou muiterreligiosas   resta prejudicada e voltamos às práticas nocivas da segregação étnica e cultural. Preocupante é também a situação dos direitos civis das minorias sociais, pendentes de uma avaliação religiosa das autoridades judiciárias e policiais. A liberdade de pensamento e o pluralismo de orientações pode sofrer uma dura restrição nas escolas públicas, caso seja adotado   o roteiro apresentado pelo futuro ministro da Educação. A ideia de se criar “conselhos de ética” nessas instituições que possam julgar a atividade docente e sua liberdade de cátedra é um atentado à cultura, ao ensino, a pesquisa e a extensão. Não cabe à autoridade educacional prejulgar o conteúdo das disciplinas e muito menos das aulas ministradas. Substituir o legado do pensamento moderno e iluminista por doutrinas fundamentalistas de índole religiosa é uma enorme ameaça à formação esclarecida de futuros cidadãos e cidadãs brasileiras.
              Daí porque a discussão, nos dias que correm, sobre o direito de resistência à tirania ganha uma grande atualidade. Ela não é nova; vem dos clássicos do liberalismo político e dos contratualistas: Hobbes, Locke, Stuart Mill. Quando o soberano quebra as cláusulas do contrato social e se transforma num ditador, é legitimo o direito de resistir. O Estado é derivado. A Sociedade Civil é originária. O direito à resistência foi atualizado por Tourau, Boaventura Santos e encontrou sua mais lídima expressão nos movimentos antiglobalização, nas passeatas de rua de 2013 e   hoje, diante de um regime que tem todas as características daquilo que se chama “fascismo democrático”, ou” fascismo atenuado” ou ainda “Estado de Exceção Episódico”, na formulação da professora de Direito, Liana Cirne Lins. Disse Boaventura Santos, estamos diante de um direito democrático à desobediência. É preciso utilizá-lo com ousadia e sabedoria quando as liberdades públicas se sentem ameaçadas.
 
Michel Zaidan Filho é filósofo, historiador, cientista político, professor titular da Universidade Federal de Pernambuco e coordenador do Núcleo de Estudos Eleitorais, Partidários e da Democracia

segunda-feira, 10 de dezembro de 2018

Primeiras observações sobre o desastre brasileiro

                                        
Antonio Negri
                                                                                                                                                                 

Primeiras observações sobre o desastre brasileiro                  

O filósofo marxista Antonio Negri (Divulgação)

O caminho democrático para o fascismo
Tornou-se uma observação precipitada que todo poder seja “poder de exceção”. Pena que esta afirmação não explica a diferença entre um regime fascista e um regime constitucional. Não há nenhuma diferença, replica aquele que afirma a normalidade da “exceção”. Que vá então explicar aos cidadãos brasileiros que aguardam a posse de Bolsonaro e ouvirá a resposta: “Tu estás louco!”
Na tradição do marxismo revolucionário, a analogia entre o regime democrático e o regime fascista é rejeitada. Quando nos anos 20 a Terceira Internacional impôs esta semelhança (que logo se tornou uma identidade) sabemos como terminou. Com igual atenção e distinção, parece-me que devemos olhar para o conceito de poder constituinte: ele não pode ser confundido ou mesmo misturado com a “exceção política”, com seu exercício, como sustentam os cultivadores da “autonomia do político” nas pegadas de Carl Schmitt – para quem o poder constituinte seria apenas uma figura da exceção.
A respeito do que aconteceu no Brasil, para retornar a nós, deve-se notar, em primeiro lugar, o fato de que o fascismo chegou não através de um “golpe de Estado” clássico (desde fora das instituições democráticas), através da “exceção” (como mais ou menos aconteceu com os fascismos latino-americanos até Pinochet), mas desde dentro do processo constitucional; não através de uma ruptura com a ordem constitucional, mas através da construção constitucional de uma nova legitimidade. Em segundo lugar, estou convencido de que o governo fascista brasileiro não exercerá o poder através de uma mutação externa e violenta do regime constitucional, mas sim através de uma atenuação suave (exceto contra a população negra) das liberdades civis e da governance existente na Constituição. Ou seja, através da colocação em movimento de um tipo de “poder constituinte”, dentro da governance – funcional, absorvido nela e capaz de determinar profundas modificações no tecido constitucional. Este caminho perverso da democracia, agora afirmado no Brasil, mas já experimentado no todo ou em parte noutras situações e noutros países (Turquia, Egito, por exemplo, sem falar nos antigos países socialistas) deve ser criticado – imaginando o que significa hoje “democracia representativa”, mas também “democracia” em geral, e portanto como, de que formas, e com quais objetivos se devem mover aqueles que se propõem construir e defender uma Constituição que respeita a liberdade, construa igualdade e forneça (proponha) suas condições – e, finalmente, se ainda é possível fazer estas perguntas ou se deve reciclar o tecido mesmo do questionamento.
Golpe de Estado institucional
“Golpe de Estado institucional” e/ou “Golpe de Estado democrático”: assim se pode chamar o ocorrido no Brasil, e agora inseri-lo numa nova categoria acadêmica do direito constitucional. A derrubada do poder legitimamente existente e sua substituição por um poder não legitimado pelo sufrágio universal mas por um órgão de Estado, o Congresso Nacional, foi realizado por detrás de uma máscara constitucional. Começou com o impeachment da Presidente e continuou com a sua substituição, simplesmente da parte do Congresso Nacional, excluindo uma nova eleição geral, pouco depois de seu mandato presidencial ter sido renovado. O “Golpe de Estado” continuou (o que não é irrelevante) com a aprovação imediata pelo Congresso Nacional de algumas leis de caráter neoliberal (entre as quais, a que proibiu o aumento de gastos públicos por um longo período) que revogaram, imediata e prodigamente, o paradigma “material” da Constituição vigente. A ligação entre o impeachment de Dilma por razões político-morais (corrupção) e a liquidação do seu projeto político de governo através da afirmação constitucional de um princípio neoliberal revela que a sua defenestração teve uma qualificação político-partidária, ou seja, característica de um “golpe de Estado” – sendo seguido por uma modificação radical da direção política do governo ou, como se pode dizer, da “constituição material”. Foi assim liberado o caminho para a construção de suportes que, mesmo no caso de novas eleições, impediriam que uma diversa maioria presidencial (que as pesquisas atribuíam a Lula) pudesse restabelecer (porque agora constitucionalmente vetada) propostas não-liberais de redistribuição de renda ou, em qualquer caso, dispositivos alternativos à legitimidade econômica recém determinada. Em apoio à continuação de uma política liberal e, em seguida, na linha de uma renovação das políticas estatais fora (e de qualquer maneira antes) da legitimidade popular, a magistratura move-se através da condenação e da prisão de Lula, e posteriormente, através da sua exclusão do “voto passivo” (ou seja, a possibilidade de ser votado). Não surpreendentemente, este judiciário foi cooptado imediatamente pelo governo Bolsonaro. Por fim, as eleições ocorreram sob ameaça – mais uma vez não externa ao processo institucional – de uma intervenção militar, caso a esquerda tivesse triunfado nas eleições. Neste ponto, o novo Presidente, um “fascista do século 21”, foi eleito, restaurando a legitimidade democrática do poder retrospectivamente. Uma restauração muito duvidosa, em todo caso eficaz. No governo que tomará posse no próximo ano, além do Juiz da Lava-Jato (operação que, como foi expressamente declarado pelo Juiz Greco, nada tem a ver com as “mãos-limpas”), indicado para liderar as finanças e a economia um “Chicago Boy”, no estrangeiro ligado à “alt-right” e às políticas de Trump, enquanto ao Exército serão atribuídas às funções do Ministro do Interior, de um Ministro de Ordem.
Esse perverso caminho, da democracia ao fascismo, linear, organizado não por movimentos externos, mas pelas mesmas instituições do poder constitucional, pela conformação dos órgãos de controle (da magistratura em particular) às linhas da extrema direita, é o desvelamento de um projeto coerente que atravessa as instituições, destruindo todos os elos e incidindo, sobre novas conformações, nas figuras formais da Constituição e na materialidade de sua direção política garantida pelo processo de legitimidade eleitoral, e assim dissipando qualquer caráter ético do princípio democrático: tudo isso impõe, quando e se a indignação diminuir, uma reflexão sobre o tema da democracia.
Mas isto não é suficiente. O fascio-populismo de Trump-Bolsonaro comete mais um estupro da democracia. A “democracia direta” é aqui assumida, de maneira massificada e mistificada, por estas lideranças fascistas, e subvertida pelo “modo de governo” na sua “figura de legitimidade”. Os tweets de Trump representam esta derrubada. As mídias social e institucional agora se debruçam voluntariamente sobre esta função de legitimação. Pode-se também adicionar (e a literatura sobre este assunto é vasta) que a produzem – ou pelo menos tornam isso possível. Quando a indignação tiver diminuído deveremos ainda colocar o problema da “liberdade de expressão” atrelada ao poder. É o primeiro dos problemas que um movimento de resistência, sob a bandeira de “livros, e não armas” (como agora começa a se dizer no Brasil) deverá se pôr, porque antes de tudo ele deverá libertar a “liberdade de expressão”. Certo que a contradição entre liberdade de expressão (protegida constitucionalmente) e o dinheiro (=propriedade, =corrupção, =uso criminoso de informações falsas pela grande mídia) parece insolúvel.
Um problema geral
Nos EUA, um processo semelhante ao brasileiro está em andamento. A solidez democrática e o valor da Constituição daquele país impedem, por enquanto, que o processo de transformação tenha os aspectos perversos e por vezes grotescos que se passam no Brasil. Nos EUA, a presença das forças de oposição ainda pode bloquear (e, em todo caso, tornar incerta) a realização de uma tendência como a brasileira. Isso não significa, todavia, que um processo de consolidação reacionária esteja em curso. Detecta-se o pesado deslocamento do Partido Republicano para o “núcleo duro” trumpiano (e, por trás disso, a supremacia alt-right), a direção de vinte anos da Suprema Corte em posições ultraconservadoras, a realização de colossais operações financeiras para controle midiático do voto etc.. De uma maneira muito mais frágil, mas com acelerações por vezes velozes, processos análogos também estão ocorrendo na Itália. Contudo, o horizonte populista se alarga na Europa e na América latina. Esta extensão aprofunda dramaticamente o problema acima colocado: como o fascismo se estabelece nas/através das instituições democráticas? E, em segundo lugar, o que é esta insurgência fascistizante?
Vamos tentar, senão dar uma resposta, introduzir essa questão de forma mais ampla, como segue. Por enquanto, contentemo-nos em definir este estranho fascismo que aqui está em profunda conjugação com o neoliberalismo. Melhor, vamos tentar definir as dificuldades de realização que, parece-nos, uma nova experiência radical das teorias de Chicago deve encontrar em seu desenvolvimento. As atuais conversões fascistizantes da classe dirigente capitalista (não toda, no momento), de fato, parecem determinadas pela necessidade de apoiar com mais força, por todos os meios estatais, compulsivamente, um desenvolvimento mais neoliberal em profunda crise. É importante sublinhar esta deformidade usual: a força do autoritarismo é chamada em apoio à crise do liberalismo. Agora, nesta perspectiva, o fascismo parece apresentar-se (embora não somente) como a face dura do neoliberalismo, como pesada recuperação do soberanismo, como inversão do slogan “primeiro o mercado, depois o Estado”, em várias formas, nos pontos de máxima dificuldade do desenvolvimento ou de quebra de seus dispositivos, ou melhor, em face das fortes resistências que emirjam.
É um reflexo reacionário que caracteriza este fascismo. Isso o distingue dos fascismos dos anos 20-30 em que os reacionários certamente estiveram no campo político, enquanto no terreno econômico eles poderiam ser relativamente progressistas, pseudo-keynesianos. Provavelmente esta reação é, portanto, um sintoma de fraqueza, é efeito de mais resposta que de um ataque. Isto é provado pelo fato de que estas demandas fascistas, ao invés de técnicas totalitárias, parecem tentar utilizar mecanismos flexíveis para a transformação autoritária do Estado, calibrando a governo como uma espécie de novo perverso “poder constituinte” … Mas estas são previsões que apenas a intensidade da luta de classes por vir poderá confirmar ou negar.
Resta ainda perguntar: o que é esse fascismo do século 21? Aquele do 20 queria destruir os soviéticos, na Rússia e em todo o mundo onde se encontrassem. Hoje, onde estão os “bolcheviques”? Eles são obviamente fantasiados. Mas o esforço do neoliberalismo para se consolidar e as crises políticas que se somam às econômicas suscitam o medo dos “bolcheviques”. Essa insistência é surpreendente.
Para tentar racionalizá-lo, vamos avançar uma hipótese que nos permita qualificar estas tendências fascistas numa época na qual o desenvolvimento do modo de produção colocou a multidão no centro da luta de classes. Ora, a multidão é um conjunto de singularidades, ligadas pela cooperação social. O elemento de cooperação é para a multidão (especialmente para as metrópoles) o ponto central de sua existência de classe. Em termos produtivos, esse poder cooperativo leva a multidão em direção ao comum. Quando, todavia, intervêm fortes tensões que agem sobre as singularidades (que compõe a multidão), em termos, por exemplo, de insegurança econômica ou ambiental e de medo do futuro, então a cooperação multitudinária pode implodir em termos de defesa da identidade. O fascismo do século 21 parece apoiar-se nesses incidentes da natureza cooperativa da multidão.
Fascismo e neoliberalismo
Se, na época de Platão, as constituições democráticas eram inadequadas para bloquear a crise da democracia, na situação atual favorecem a ascensão do fascismo, gerando corrupção.
As modernas constituições democráticas foram organizadas num confronto dinâmico de interesses eventualmente fundidos à direita e à esquerda, entorno de um modelo de inimizade e com padrão de solução pacífica para isto, na hipótese de uma posição equilibrada dos interesses conflitantes. Hoje, a globalização tem empurrado para a homogeneização da governance ao nível global (pode-se dizer para sua homologação), requerendo para governar compor a relação entre constituição formal e material através da inserção naquela de regras desenvolvidas pelas relações monetárias multinacionais das empresas no mercado global – e, portanto, eliminando substancialmente o confronto/conflito, interno à constituição mesma. O “extremismo de centro”, o “groko” (“Große Koalition”, grande coalizão – N.T.) foram neste sentido momentos fundamentais na recomposição, através da governance, de perfis constitucionais agora expandidos globalmente. Mas esta fase acabou e a acentuação dos conflitos pela globalização leva as formas de governance demoliberais a uma crise profunda. Assim seguem os experimentos de ruptura: America first, Brexit e agora Brazil first, Italia first
É aqui que a governance (ou seja, aquele conjunto de dispositivos que configurou unitariamente o horizonte de governo nacional e global) está cada vez mais sujeita a incidentes constitucionais que tem, acima de tudo, o efeito de obliterar aqueles aspectos de “democracia progressista” que as Constituições herdaram após a Segunda Guerra mundial e o fim da Guerra Fria. De tal modo, transformaram-se as faces dos Estados apesar da democracia. A longa crise de 2007 piorou as coisas. Governar a crise sempre significou que a crise impôs suas exigências à democracia. Hoje, medimos totalmente as consequências desses incidentes. Cada vez mais, desconsideram-se as dinâmicas dialéticas constitucionais, as oposições integradas à governance, o keynesianismo destruído com o consentimento dos keynesianos. Qualquer operação de “exceção” é dada dentro da governance democrática, quase como articulações ocultas de “poder constituinte”, ao invés de opções e mecanismos controláveis. Quero dizer que a transformação que esses movimentos sugerem é agora comandada por um poder destrutivo da democracia.
Com a crise e o enfraquecimento do poder americano que até então determinava um certo equilíbrio global, mesmo no seu campo de domínio, esses processos se aceleraram, trazendo caos para todos os lugares. O novo fascismo se instala dentro deste caos. Armando-se do neoliberalismo como projeto para dominá-lo, encontrará condições duráveis de desenvolvimento? É muito difícil. Sob estas condições, o neoliberalismo encontra-se numa situação desesperada, se quiser reconstruir o equilíbrio. Tendo deslocado ou rejeitado o antigo equilíbrio constitucional democrático, está agora exposto ao vazio. Ele precisa de algo novo, que responda aos novos desafios, que encontra em formas de autoritarismo, de fascismo renovado… Para sobreviver a passagem no vazio, deve recorrer a instrumentos midiáticos, ideológicos, e de difamar e destruir as forças que se opuserem (por vezes timidamente, ou até mesmo antecipando suas direções destrutivas – essa crise é longa e profunda e as responsabilidades ainda precisam ser definidas). Eram os keynesianos forças socialdemocratas. Agora, para os neoliberais que constroem as novas fórmulas de governo fascistizantes no Brasil, são chamados de “comunistas” e “bolivarianos”, apoiadores do caos… Nos EUA, são reconhecidos como bobos urbanos que subvertem a identidade nacional. Assim, este fascismo fundado no vácuo ideológico qualifica-se como um falsificador da memória e restaurador reacionário de identidades passadas. Que seja um passado escravagista como nos EUA, importa; que seja um presente escravocrata, como no Brasil, isto preocupa ainda mais.
Não tenha medo
Meus amigos brasileiros estão perguntando como a vitória de Bolsonaro foi possível, porque seus concidadãos votando tão maciçamente nele. A resposta é simples: eles não votaram no fascismo, ao invés disso, votaram pelo fim da corrupção e da insegurança, nessa conjuntura crítica para a sua vida que, de fato, uma parte da população imputava ao PT. Não é difícil pensar que a motivação racista e a defesa da família (vide a absurda polêmica sobre gênero) construíram o coágulo fascista deste desconforto. É fácil profecia pensar que, como já dissemos, Bolsonaro não conseguirá instituir seu governo como regime. A ele se soma, ao obstáculo já mencionado antes do casamento do fascismo/liberalismo, uma dificuldade específica: necessitará, de fato (frente aos impedimentos táticos que a dispersão de votos cria no Congresso), continuar a comprar a maioria parlamentar evangélica ou de outros mercenários; o preço a ser pago aos ruralistas pelo apoio eleitoral, pela sustentação ao governo e na negociação dos limites ecológicos para a ampliação de seus interesses, será ainda mais salgado; as propostas extremas de privatização do patrimônio público encontrarão a hostilidade do exército em nome da nação etc.. Não será para ele fácil avançar. E também a consolidação desta vitória será difícil, muito difícil, e colidirá contraditoriamente com as mesmas constantes econômicas brasileiras (aberta aos mercados internacionais de alimentos e energia, fechada aos limites ecológicos de enorme importância, instada a uma forte dinâmica produtiva a partir da ampliação do mercado de trabalho). Estamos – parece-nos – sobre uma margem a qual as promessas da vitória de Bolsonaro colidem com as intenções de seus partidários neoliberais. Como poderão se equilibrar? Não estamos nos anos 30, quando o fascismo se organizava sob uma planificação em favor da grande indústria (de guerra) e do grande capital bancário – com excedente, todavia, de vantagens sociais imediatas para o proletariado.
O que faz tremer, depois da vitória de Bolsonaro, é prever os desastres que este governo produzirá, incapaz de desenvolver um plano jurídico que se afaste de uma frente de ataque contra os pobres e negros, em geral de uma proposta antissocial – como mostra seu programa ultraliberal. Militarista, homofóbico, machista, premido ao ódio por uma população agora majoritariamente negra (estamos bem longe dos 54% ainda brancos do censo de 2000), Bolsonaro será exposto ao impulso demográfico não-branco que aumenta incessantemente. O desastre que o aguarda é enorme, mas as consequências serão longas nos próximos anos.
Que fazer agora? É necessário parar de chorar, é preciso ir ao trabalho, confortado pela consciência que o quadro fascista ainda é fraco. Em que sentido, com que espírito começar a trabalhar? Já se medem as provocações e se multiplicarão no futuro. Nas universidades aparecem esquadrões que provocam, grupos de direita trabalham para construir listas de “comunistas”, os programas escolares começam a ser preenchidos com remissões a um passado escravagista etc. É necessário não ter medo. Não ter medo torna-se o elemento central para a construção de uma resistência.
O fascismo se apoia no medo. Aqui isso suscita e cultiva o medo do negro e do comunista. Mas este casal é símbolo da vida e sua luta é um sinal de libertação. Os partidos de esquerda, começando pelo irrecuperável PT, estão em crise. É na relação e na recomposição política dos negros e comunistas que uma esquerda radicalmente antifascista pode ser construída. Esta passagem é essencial. Não há antifascismo no Brasil sem uma recomposição política dos comunistas brancos e da população negra. Desnecessário acrescentar que desta recomposição os movimentos feministas já são a faísca de hoje. Estão são os movimentos majoritários e a maioria não tem medo.
20 de novembro de 2018

Tradução de Augusto Jobim do Amaral, professor dos Programa de Pós-Graduação em Filosofia e do Programa de Pós-Graduação em Ciências Criminais da PUCRS

(Publicado originalmente no site da Revista Cult)

domingo, 9 de dezembro de 2018

Michel Zaidan Filho: O fim do presidencialismo de coalizão



 

                           A eleição do senhor Jair Bolsonaro, nas controvertidas circunstancias em que se deu, após o afastamento da presidente Dilma e o  malfadado interregno do  senhor Michel  Temer, só   confirma mais   uma  vez a exaustão do chamado “presidencialismo de coalizão” no Brasil. Como se sabe, o nosso messianismo legal copiou as instituições políticas norteamercianas, no início da República brasileira. E entre estas, o instituto do Presidencialismo, sem se dar conta da multiplicidade de partidos e legendas existentes no nosso país. Partidos de frágeis bases nacionais, mais parecidos com federações de grupos políticos locais. A tradição messiânica da política brasileira se expressou com perfeição no Presidencialismo semi-imperial, de absoluto desprezo pelo sistema partidário e, mais ainda, pelo Poder Legislativo. Esta tendência histórica levou ao menosprezo pelo eleitor das eleições proporcionais e a uma sobrevalorização do Poder Executivo, fazendo muitas vezes  as eleições majoritárias  assumirem o caráter de   um   plebiscito.
                           Em todas as eleições do mundo, em democracias representativas como a nossa, os partidos de centro e centroesquerda sempre desempenharam o papel fundamental no equilíbrio do sistema político, garantindo sua governabilidade ou evitando guinadas radicais seja em direção à direita ou à esquerda. A essa afirmativa, poder-se-ia juntar a famosa tese de Aristóteles de que são as classes médias o que salvam a democracia. Infelizmente, essas constatações foram fortemente desmentidas no ambiente cultural e político do Brasil. Primeiro, pela debilidade do nosso liberalismo político, definido por um político do DEM como a cultura do Bombril, liberalismo de mil e uma utilidades, usado e interpretado ao sabor das conveniências dos partidos. Segundo, em razão do conservadorismo das classes médias brasileiras (eterna massa de manobra dos regimes golpistas e autoritários). Em suma, um regime Presidencialista sujeito permanentemente a “chuvas e trovoadas”, dependendo dramaticamente do arremedo de legendas partidárias representadas no Congresso. É a isso que se denomina de “governabilidade”. O que faria depender do apoio de maiorias eventuais a estabilidade do regime democrático.
                            Some-se a esse quadro, o complicador de uma mudança cultural na população brasileira, sobretudo de baixa renda. Nação de origem católica, até outro dia se dizia que a ética puritana do trabalho, o individualismo anglo-saxão (self made man) e a realização através do acumulo e a posse de bens materiais não faziam parte da mentalidade da maioria dos brasileiros, em razão da influencia religiosa ibérica. Mas não contaram os analistas com o crescimento paulatino dos cultos evangélicos de orientação pentecostal e neopentecostal, numa versão muito   modificada do modelo original americano. Igrejas que ajudaram a difundir uma “teologia da prosperidade”, que coloca a culpa da pobreza e da inferioridade social no próprio indivíduo, não nas condições sociais, e a defender a prosperidade material como “presente de Deus”. Não se conhecia no país essa modalidade de individualismo e afastamento de uma hermenêutica social como foi, por exemplo, a “teologia da libertação” e suas comunidades eclesiais de base. Diga-se também que foi adotado um modelo de comunicação social de massas vitorioso e, mais importante, um projeto político para o país.
                            O resultado não poderia ser outro: na esteira do ressentimento da democracia provocado pela “operação lava-jato”, que aliás resultaram em 30 milhões de votos nulos e brancos e da abstenção eleitoral, as instituições de nosso Presidencialismo de coalizão chegaram profundamente desgastadas, ao fim da campanha eleitoral.Na ausência de qualquer reforma política digna deste nome e legitimada pela sociedade, a nossa   democracia de baixa intensidade está em frangalhos. A extrema fragmentação da representação parlamentar, a pouca representatividade dos partidos políticos (dominados por lobbies” de todo tipo), a politização do judiciário e um Poder Executivo que mais do que nunca precisa e depende da mixórdia dos 35 partidos, sob pena de não governar ou ser afastado do poder. Esta a crise do modelo político brasileira.
                              Mais grave, contudo, é a imensa crise social que acompanha a crise político-institucional. O fundamentalismo de mercado que quer privatizar tudo, mercadorizar os bem sociais, entregar os pobres e miseráveis à própria sorte, precarizar de uma vez o trabalho, atacar a magistratura do trabalho, perseguir as   entidades sindicais e os movimentos sociais, através de uma interpretação canhestra da lei que criminaliza o protesto social. Até ontem, tínhamos um grave problema com a engenharia institucional do país. Hoje, estamos à beira de um imenso cataclismo social. Quando reagiram os brasileiros diante desse assalto aos seus direitos  e expectativa de direitos?
 
Michel Zaidan Filho é filósofo, historiador, cientista político, professor titular da Universidade Federal de Pernambuco e coordenador do Núcleo de Estudos Eleitorais, Partidários e da Democracia.
 
                    

terça-feira, 4 de dezembro de 2018

Crônica: Barra do Gramame

 
 
José Luiz Gomes
 
 
A partir de um determinado trecho da PB 018, a capital João Pessoa se separa da cidade do Conde. Salvo melhor juízo, quem dita esse limite é uma ponte sobre o Rio Gramame. O Rio continua imponente - abastecendo com sua água doce parte da população da cidade - mas, ao que se sabe, num passado remoto suas águas já foram bem mais límpidas e transparentes, sendo possível - não é lenda - localizar uma agulha sobre seu leito. Se há algum exagero aqui, fica por conta dos antigos moradores locais, que são incisivos ao tratarem deste assunto. Sem as mesmas águas límpidas e despoluídas de outrora, ainda assim, o rio fornece alimentos para centenas de pescadores, além de brindar-nos com um verdadeiro espetáculo da natureza, ao se aproximar perigosamente do oceano, formando uma barra antes desse encontro, constituindo a famosa enseada de Barra do Gramame, uma das primeiras praias do litoral sul da Paraíba. A Barra é de uma beleza rústica, desértica, sem o glamour dos quiosques enfeitados ou outros atrativos de praias urbanas, mas de uma beleza de tirar o fôlego. Coisa de cinema, como observou uma leitora.
 
Na nossa opinião é uma das melhores praias do litoral sul paraibano. Mas, como dizem os poetas, há aqueles que não veem beleza em tudo ou estão mal acostumados com os prazeres de bares de praias urbanas, como os da orla de Pajuçara, Porto de Galinhas ou Tambaú, onde se passam horas apenas no chopp gelado e no petisco furdunço, bastante indigesto por sinal, jogando conversa fora. De fato, Gramame é simples. Bem mais simples. Os seus encantos, no entanto, residem exatamente nessa simplicidade, onde se pode apreciar uma agulha branca frita, um guaiamum cevado, um pirão de peixe, um fruto do mar, tudo fresquinho, preparado ali, na hora, sob o olhar atento do freguês. Duvido muito que vocês encontrem isso em outras praças, amig@s. Ah! e sem falar nos preços ali praticados, que cabem em orçamentos mais modestos, principalmente nesses dias de austeridades que as contingências econômicas e políticas nos obrigam. Como diz o cancioneiro, tem gente que vive falando de barriga cheia. Cheia de uma caldeirada, de uma sinfonia marítima, de um polvo à moda da casa, de uma boa peixada de pescada amarela, com pirão e arroz soltinho, acompanhada de suco de mangaba, abundante na região. Hummmmmm!!! É de dá água na boca.
 
As praias do litoral sul paraibano são abençoadas pelos Maceiós, pequenos riachos de água salobra, cercado de manguezais, locais muito bons para a pesca esportiva. Carapibus tem um concorridíssimo. Tabatinga tem dois deles. Nenhum comparável ao Gramame, no entanto, com seus exuberantes manguezais, que podem ser visitados pelos banhistas, em passeios proporcionados pelos jangadeiros locais. Quando estiver na cidade do Conde, não deixa de dar uma esticadinha até Barra do Gramame, sendo recomendado não tomar banho num determinado trecho, onde já foram registradas ocorrências de afogamento. Seja prudente nesse momento, mas abuse de suas águas mornas, de suas iguarias gastronômicas, do calor humano dos barraqueiros, dos passeios pelos vastos manguezais, das pescarias com os garotos, da geladinha com a pessoa amada.

segunda-feira, 3 de dezembro de 2018

Charge! Jota.A via A Tarde.

Michel Zaidan Filho: A Reforma da Previdência

                 


            Os direitos previdenciários de todo trabalhador resultam de um contrato atuarial firmado entre ele e o Instituto de Previdência oficial (INSS). Neste contrato, multiplica-se a expectativa de vida útil do trabalhador por uma fração econômica que é dividida entre ele, a empresa e o governo.É o chamado modelo de repartição simples. Cada parte contribui com uma parcela do financiamento da aposentadoria. Os fontes da Previdência oficial não se limitam, contudo, a essa fonte de financiamento. Desde 1988, os   direitos previdenciários estão colocados dentro de um tripé conhecido como Assistência Social, onde estão também a Saúde e   os benefícios de prestação continuada. Para isto, a Constituição previu várias fontes de financiamento que vem de contribuições, taxas e impostos de natureza parafiscal ou extrafiscal, tais como PIS/COFINS, loterias, contribuição social sobre o lucro das empresas. Etc. Nem todos os benefícios têm cobertura de receitas, mas há um entendimento da sociedade, através de uma política de redistribuição de renda, que o tesouro público deve sim financiar o custo desses benefícios, sobretudo quando se trata de incapazes, idosos, arrimos de família, entre outros. Ou seja, a política previdenciária   brasileira tem uma natureza redistributiva (não só comutativa) e significa um pacto Inter geracional: os trabalhadores   mais novos ajudam a financiar a   aposentadoria dos mais velhos.
          É uma enorme falácia apontar a existência de déficit nas   contas da Previdência dos trabalhadores urbanos no Brasil. Ela é superavitária. Ocorre que através de medida provisória, foi aprovado um contingenciamento de cerca de 30% dessa receita (DRU), transferidos para o orçamento geral da União, que são usados para pagamento da dívida pública e outras obrigações financeiras do governo. Há também um enorme inúmero de inadimplentes que, no caso de grandes empresas, entes públicos, clubes de futebol, bancos e outras instituições, chega a casa dos 400. Bilhões. Assim como, as isenções e imunidades fiscais que desoneram muitas atividades e agentes econômicos de pagarem à Previdência. Naturalmente, tudo isso pesa muito no caixa da Aposentadoria, na hora de financiar os benefícios dos aposentados e dos que estão em abono de permanência.
            Mas a principal razão que explica os intermitentes projetos de reforma da Previdência Pública em nosso país tem a ver com o mercado financeiro, os as empresas privadas de previdência complementar, criadas pelo governo federal para os funcionários públicos através de emenda constitucional. O que significa isso? – Significa mudar o modelo de contribuição variável e benefícios fixos, para o modelo de contribuição fixa e rendimentos variáveis. Porque, limitando os rendimentos da aposentadoria, o segurado será obrigado a contratar um plano privado de aposentadoria, onde seus rendimentos serão variáveis, em razão da aplicação no mercado financeiro de sua contribuição previdenciária privada. Ou seja, com tal modelo a governo federal, estadual e municipal se desoneram do financiamento integral dos proventos previdenciários e entregam aos humores das bolsas de valores a rentabilidade da contribuição dos pensionistas. Imagine que negócio da China: lucram o governo, as empresas de capitalização e os segurados passam a depender do sobe-e-desce do valor das aplicações de suas contribuições no mercado financeiro. Quantos fundos de capitalização já não quebraram, deixando seus segurados a ver navios...
             Existe também o argumento injusto e desumano de atribuir à longevidade do povo brasileiro a quebra do sistema previdenciário. Este é pior motivo para privatizar a previdência social no Brasil. Aqui, começa-se a trabalhar muito cedo e sem carteira assinada. Há também um enorme contingente de trabalhadores autônomos, informais, precários que nem sempre contribuem para a previdência. No entanto, graças ao progresso da medicina, da informação, da melhora das condições sociais de vida, os brasileiros estão vivendo mais e demorando a morrer. É um privilégio e um direito líquido e certo envelhecer com dignidade, respeito, conforto e amparo financeiro e social. Não se pode condenar as pessoas (que contribuíram ao longo da vida para a Previdência pública) porque vivem demais ou   durante muito tempo. É um direito social, humano e geriátrico que lhe assiste. Cortar, diminuir, congelar esses direitos previdenciários dos idosos é uma desumanidade que não tem limite. Que a sociedade financie esse direito a envelhecer, através de uma política progressiva de impostos ou contribuição. Mormente, daqueles que ganham muito (inclusive com a especulação financeira) para financiar os que ganham menos, ou não ganham nada. Mais ainda, no fim da vida laboral. Ao contrário disso, é condenar à morte lenta  milhões e milhões de trabalhadores idosos que deram seu suor, lágrimas e sangue para construir a riqueza deste país.
 
Michel Zaidan Filho é filósofo, historiador, cientista político, professor titular da Universidade Federal de Pernambuco e coordenador do Núcleo de Estudos Eleitorais, Partidários e da Democracia
 
 

segunda-feira, 26 de novembro de 2018

Michel Zaidan Filho: Que tipo de cidadãos vamos formar?



 

Acabo de ler “o roteiro para o MEC” elaborado pelo cidadão colombiano Ricardo Velez Rodriguez, auto definido como “intelectual e professor universitário", apresentado como plataforma ou programa de gestão para a Política educacional brasileira. Jacta-se o candidato a ministro que sempre apoiou Bolsonaro e louva a sua capacidade de ter expressado a vontade do povo simples e da classe média, diante da insatisfação e angústia provocadas pela política vermelha do PT. Segundo Rodriguez, a linha será menos Brasília e mais   Brasil, Brasil dos grotões, do municípios, da periferia. Identifica ele o programa pedagógico do PT para a escola pública como ideológico, vermelho e marxiziante ou gramsciano, responsável por instigar o ódio entre sexos, raças, culturas. O seu programa é a união dos brasileiros, através de um ensino que vai banir da escola as discussões sobre orientação sexual, relações de gênero etc. O programa Brasília era ideológico e divisionista da família brasileira, o do Brasil é   focado na promoção do ensino médio, que deve ser municipalizado ou estadualizado, atuando o MEC como coadjuvante ou apoiador desse processo de municipalização.
 Imagina-se como será esse ensino médio municipalizado, sem parâmetros nacionais transversais que garantam o mínimo de unidade e organicidade à escola pública. Um currículo permeável à intromissão solerte das igrejas, que se julgaram no direito de dizer o que pode e deve ser ensino às crianças e adolescentes, a reprodução humana, o modelo de família, o surgimento da vida no universo etc. Aquilo que as escolas confessionais – fundamentalistas – já fazem, interditando o livre debate das ideias, a formação racional da vontade, o esclarecimento das mentes. E o magistério laico, republicano, iluminista banido ou censurado, com o afastamento dos professores e professoras comprometidos com uma agenda contemporânea do pensamento.
Digo isso, com angústia e preocupação, porque fui professor durante a ditadura militar no Brasil. E sei das inúmeras dificuldades de lecionar, com liberdade de pensamento e autonomia intelectual, num ambiente de perseguição, ameaças veladas ou implícitas, com espias na sala de aula. E me preocupo acima de tudo com o tipo de educação que receberão os nossos jovens e adolescentes na escola pública, numa época de formação de seu caráter e sua personalidade. Se a crítica dos bolsonaristas era da “escola com partido”, agora a escola vai se tornar um aparelho de moer sonhos, utopias e independência intelectual. Uma máquina de produzir “pinoquios as avessas”,   como dizia o saudoso Rubem Alves. Lutamos tanto para transformar a educação numa’ pedagogia do desejo’, e o que estamos vendo é um programa pedagógico apoiado na intolerância, no ódio, no preconceito e no obscurantismo.
Temo pelo futuro desses   educandos da “escola sem partido”, porque a cultura cívica, democrática   e   republicana desses   novos cidadãos e cidadãs brasileiras vai depender muito dessa   educação, desse programa educacional. E o país, desses cidadãos.
Michel Zaidan Filho é filósofo, historiador, cientista político, professor titular da Universidade Federal de Pernambuco e coordenador do Núcleo de Estudos Eleitorais, Partidários e da Democracia - NEEPD-UFPE

sexta-feira, 23 de novembro de 2018

Crônica: Árvore dos bons ventos


José Luiz Gomes
 
Não há como deixar de reconhecer os méritos da gestão da prefeita Márcia Lucena, à frente da Prefeitura da Cidade do Conde. Há muito tempo o município - que é uma das maiores arrecadações do Estado e dotado de um litoral esplêndido - convivia com problemas estruturais, que nunca foram devidamente enfrentados, como a manutenção de suas estradas; a requalificação de sua orla; a divulgação de suas belezas; valorização de suas tradições culturais, que ainda conta com fortes referências da etnia negra e indígena, traduzidas em quilombos e reservas. Até recentemente, li um excelente trabalho acadêmico que se reportava às origens do Rio Gramame e à comunidade quilombola de Gurugi. As ações da atual gestão contribuíram para dar uma espécie de UP!, levantar a auto-estima dos moradores da cidade, assim como contagiar os inúmeros turísticas que se dirigiam àquela cidade, nessa época do ano, quando os dias de sol se tornam um convite a mergulhar nas águas mornas de Barra de Gramame, Jacumã, Carapibus, Tabatinga, Coqueirinho e Tambaba. Ah! Já ia esquecendo da pequena, mas aconchegante , Praia do Amor, a praia para "amarrar" os laços afetivos entre os casais enamorados.    
Há de se reconhecer aqui, igualmente, a parceria da prefeita com o ex-governador Ricardo Coutinho, a quem o comendador se dirige apenas como “Mago”. A rodovia PB 018, que liga a cidade ao litoral, margeando a BR 101, está um verdadeiro tapete. Desde que foi construída, nunca passou por um processo de requalificação asfáltico tão expressivo, que vai até a orla de Jacumã, hoje completamente revitlizada, com inúmeros equipamentos de lazer e esportes, postos de serviços e padronização do comércio local, que era uma bagunça, não atraindo, mas afugentando os visitantes. Márcia Lucena tem o perfil de uma prefeita empreendedora, com feeling e visão aguçada sobre as necessidades e, principalmente, atenta às potencialidades naturais que a cidade oferece. Mesmo com a bagunça inerente aos dias de Momo, o distrito de Jacumâ já realizava o melhor carnaval da Paraíba. A vida noturna está sendo retomada e já seria o momento de se organizar grandes festas de réveillon na cidade, à exemplo do que ocorre em Tambaú, por exemplo.
As diretrizes de algumas ações municipais vão no sentido de se criar uma identidade da cidade do Conde. Como se sabe, a cidade ainda conta com uma extensa área rural, matas preservadas, árvores frutíferas como cajueiros, mangas, jaqueiras, araçás, mangabas que, nesta época do ano, são comercializadas em inúmeras barranas às margem da PB 018. Mas, enfim, o que identifica a cidade? Algo que pudesse ser classificado como a “marca” da cidade do Conde? Algo assim como as famosas “galinhas” de Porto de Galinhas? Claro que, em relação a Porto de Galinhas, parece ter sido mais fácil observar essa "identidade", uma vez que as galinhas, na realidade, eram apenas um disfarce usado para esconder a sua condição de entreposto de tráfico de escravos. 
Mas, em relação à cidade do Conde? O que há num nome? Aqui, as opiniões se dividem. Historiadores asseguram que o termo "Conde" teria alguma relação ao período da presença holandesa na cidade, quando eles ocuparam também a capital João Pessoa. Mas há opiniões divergentes, como a do comendador Arnaldo, que informa que a origem do nome estaria relacionada ao cultivo da fruta do conde - ou pinha - na cidade. Controvérsias à parte, ao optar por uma árvore como símbolo da cidade, a atitude da prefeita - além de politicamente correta - pode indicar que ela seja mais simpática à opinião do comendador Arnaldo a respeito do assunto. Fico feliz com a escolha da Árvore dos Bons Ventos, do artista plástico Wilson Figueiredo, simbolizando a cidade.   

terça-feira, 20 de novembro de 2018

Michel Zaidan Filho: PT: Do conflito à integração


   

 
                    Acabo de receber um presente valioso, o livro do historiador e cientista político Rodrigo Freire, professor da Universidade Federal da Paraíba. A obra reproduz integralmente a tese de doutorado em sociologia política, defendida pelo autor na Universidade de Brasília, sob a orientação do americanista David Fleischer. Trata-se de um livro que faz um estudo comparado da evolução histórica   e   política do Partido dos trabalhadores e do Partido socialista chileno, mostrando convergências e divergências. O   livro, que se divide em 6 capítulos, estuda desde a fundação dos dois   partidos, passando pelas inúmeras transformações organizacionais que sofreram e termina por uma avaliação    do governo petista e socialista, no geral benevolente.
                   O   que nos interessa, neste artigo, é a parte dedicada ao Partido dos Trabalhadores, sobretudo nas duas gestões do governo LULA. Uma   primeira observação se impõe ao    leitor atento em compreender a   trajetória do PT é aquela sobre as origens do partido. Há um consenso entre os estudiosos de que o Partido dos Trabalhadores não é e nunca   foi um partido de esquerda “marxista-leninista “ou ligado à Terceira Internacional Comunista. Ao contrário da formação dos partidos comunistas, dentro e fora do Brasil, o PT é o produto da confluência de vários atores políticos: os sindicalistas do ABC (dentre os quais, se destaca LULA), a esquerda católica – ligada à teologia da libertação e as comunidades eclesiais de base- intelectuais dissidentes do comunismo e do socialismo real e grupos minoritários de orientação marxista que terminaram se alojando no PT (os trotskistas, os remanescentes da esquerda militar etc.). O Partido dos Trabalhadores nunca se disse “marxista” ou “socialista desta ou daquela tendência”. Nem mesmo o congresso convocado para isso, chegou a essa definição. Dada à sua conhecida proximidade com   os   novos   movimentos   sociais, com boa vontade poderia    ser   descrito – nas circunstancias   brasileiras -  como um partido (não-leninista) de “novo tipo”:   laico, democrático e   de massas. Até na sua   estrutura organizativa permissiva à existência das “frações” subpartidárias.
                   Segundo o autor, a despeito de suas várias correntes internas, uma sempre foi majoritária e   deu o tom da linha partidária: a ARTICULAÇÃO, depois BRASIL NOVO, que corresponde à liderança de LULA e seus velhos companheiros de militância sindical. Há quem afirme ser a ARTICULAÇÃO a cara do PT, dada a influência do ex-presidente na   definição   dos   rumos do partido. Segundo do   livro, 1995 é uma   data de inflexão ou deslocamento do programa partidário petista: antes disso, tinha o PT uma fisionomia mais a esquerda, mais socialista, menos inclinada à alianças com partidos e grupos de centro-direita. O ponto alto dessa   fase foi   a campanha presidencial de 1989, contra Fernando Collor   de Mello, apoiada pela a grande maioria da intelectualidade brasileira. Nesta campanha, diz-se que o Partido dos trabalhadores foi amplamente hegemônico na batalha das ideias, embora não tenha ganho a eleição. Depois de três derrotas consecutivas, houve uma mudança de agenda política e das alianças. Tratando-se de um pais de base federativa, com inúmeros partidos, alguns estadualizados; e um sistema eleitoral permissivo no que diz respeito às improváveis coligações partidárias, os maiorais do partido, José Dirceu à frente, tomou-se a decisão de ampliar o arco das alianças, incluindo os partidos de centro-direita e a modificação do discurso político em   relação   ao   mercado, aos contratos, a globalização, o mercado financeiro internacional etc.   Estratégia   esboçada na “carta aos brasileiros”, apresentada pelo então candidato LULA, em meio a uma grande crise cambial   provocado pelo   governo do PSDB.
                       Importa, agora, destacar uma característica política do presidente LULA que foi um aprendizado do seu tempo de líder sindical das greves  do ABC:  o pragmatismo e a capacidade de negociação, acima de tudo. Segundo o autor do livro, o que definiu o tom do discurso do governo petista, longe de qualquer doutrina socialista ou política, foi a sua capacidade de negociar e concertar acordos com os vários atores políticos e econômicos. A começar pela composição da própria chapa presidencial, com a presença de um grande industrial têxtil e membro da Igreja Universal. Naturalmente, esta capacidade se manifestou na composição do ministério e da base parlamentar, primeiro com o PTB. Depois, com o PMDB.
                      É  preciso   dizer, que apesar ou por conta dela, essa   engenharia política não  impediu o autor de realizar uma avaliação muito   positiva  do   governo  petista:  seja   no  combate às desigualdades sociais e regionais, na  redução do endividamento externo, no aumento das  exportações brasileiras, na redução das taxas de juros,   na   revitalização da indústria naval  e petrolífera, na questão agrária, na  política externa multilateral e no aumento do protagonismo diplomático do Brasil no mundo e na América Latina.   Tudo isso, no céu de brigadeiro da economia internacional, teria levado a agradar “gregos e troianos”.
                      É aqui onde Rodrigo Freire lança a sua hipótese conclusiva, destinada a despertar alguma controvérsia. Com essa política híbrida o Partido dos Trabalhadores teria se transformado num partido “eleitoral-profissional”, típico da competição eleitoral por cargos e mandatos, mas com cara “social-reformista”, como o chileno, sem precedentes na América Latina. Mesmo sem nunca ter havido “Estado de bem-estar social” no subcontinente, o PT seria uma variante latino-americana de um partido, que embora aceitando o mercado, a propriedade privada, o capitalismo, a globalização etc.,teria posto em prática – pioneiramente – reformas sociais importantes,  além das políticas de ação afirmativas , que  ajudaram a diminuir as desigualdades   sociais e a gerar oportunidades para os mais pobres e desafortunados no país.
                       Para aqueles, que desde de início não viam no Partido nenhuma veleidade revolucionária ou insurrecional, vis-à-vis com os   antigos partidos marxista-leninistas, mas que viam com bons olhos a chegada de um partido socialdemocrata no Brasil, naturalmente uma avaliação como esta é perfeitamente compreensível. A opção de inclusão social pelo acesso aos bens de consumo, com o apoio no fundo público, no crédito subsidiado e na isenção fiscal, realizado pela ex-presidente Dilma, no seu primeiro mandato, se encaixaria bem nessa modalidade de “reformismo social”. A questão que fica por elucidar são os limites políticos, econômicos e sociais de tal reformismo social, considerando a mudança da cena política internacional e a grave crise econômica interna no país. Uma  opção talvez não bastante republicana para evitar que cidadãos  e cidadãs-consumidores possam se voltar, em curto espaço de tempo, contra a democracia, o socialismo, o direito das minorias e a laicidade do Estado brasileiro.
 
Michel Zaidan Filho é filósofo, historiador, cientista político, professor titular da Universidade Federal de Pernambuco e coordenador do Núcleo de Estudos Eleitorais, Partidários e da Democracia.

 

sábado, 17 de novembro de 2018

Le Monde: O avanço do fundamentalismo nas igrejas protestantes históricas no Brasil

Enquanto a teologia da prosperidade tem sido o grande motor narrativo do neopentecostalismo, encontrando ainda resistência nas igrejas históricas, o fundamentalismo é, em maior ou menor grau, arraigado na quase totalidade das igrejas evangélicas brasileiras
A comunidade evangélica brasileira passou por acelerado crescimento numérico nas últimas três décadas, causando enorme impacto na sociedade brasileira. O sentimento de pertencer a uma minoria há muito foi deixado para trás. Entretanto, começou também a se esvaecer aquela identidade do “crente”, aquele religioso ascético e reservado. Definir-se como evangélico hoje tem exigido explicações adicionais.
Uma das características mais patentes dos evangélicos é justamente sua heterogeneidade. As diversas igrejas existentes se alinham a três grupos principais: os históricos (formados principalmente por batistas, presbiterianos, metodistas e congregacionais),1 os pentecostais (Assembleia de Deus, Congregação Cristã no Brasil…) e os neopentecostais (Universal do Reino de Deus, Igreja da Graça, Renascer, Poder Mundial, Sara Nossa Terra etc.). Tais grupos são muito distintos. Os históricos se consideram herdeiros da Reforma Protestante; os pentecostais são os herdeiros dos movimentos avivalistas baseados na experiência do “Espírito Santo” surgidos nos Estados Unidos; e os neopentecostais surgiram da chamada teologia da prosperidade, também oriunda dos Estados Unidos.
A relação entre esses grupos é ao mesmo tempo conflituosa e aproximativa. Entre os históricos, a influência da teologia da prosperidade vem sendo combatida intensamente pelas cúpulas pastorais, o que não tem impedido a ocorrência de viradas de algumas comunidades históricas ao pentecostalismo e ao neopentecostalismo. Já entre os pentecostais e neopentecostais, a aproximação tem sido maior.
A despeito de sua avassaladora popularidade, a teologia da prosperidade tem sido alvo de dissensão. Há, entretanto, outra influência teológica com maior capacidade de unificação de todo o campo evangélico: o fundamentalismo. E, nesse caso, a influência é praticamente ubíqua, não só entre os neopentecostais e pentecostais, mas também entre os históricos, também adeptos do fundamentalismo. Nos anos recentes, ninguém manifestou melhor isso do que o procurador Deltan Dallagnol, que em seu perfil nas redes sociais faz questão de colocar ao lado de sua função pública o fato de ser “servo de Jesus”. Dallagnol tornou-se garoto propaganda do fundamentalismo cool praticado pelas principais igrejas batistas paranaenses e é o principal inspirador para a análise que se segue.

A influência do fundamentalismo e do conservadorismo norte-americano2
Há muitas décadas, as matrizes eclesiásticas e teológicas dos evangélicos brasileiros de maneira geral vêm sendo importadas diretamente dos Estados Unidos. Tanto o fundamentalismo quanto a teologia da prosperidade foram trazidos daquele país, reconhecido como um dos mais religiosos do mundo. Enquanto a teologia da prosperidade tem sido o grande motor narrativo do neopentecostalismo, encontrando ainda resistência nas igrejas históricas, o fundamentalismo é, em maior ou menor grau, arraigado na quase totalidade das igrejas evangélicas brasileiras. Nisso, a distância entre os históricos e os neopentecostais se reduz sensivelmente. Nestes, entretanto, o fundamentalismo assume caráter grotesco, como se observa a cada manifestação pública dos políticos neopentecostais. Entre os históricos, sua manifestação é mais sutil, mas ainda assim firme, fato que pode ser observado na centralidade do moralismo na visão de mundo desse segmento religioso.
O fundamentalismo teve sua origem nos Estados Unidos, no início do século XX, em reação ao processo de secularização da sociedade e como contraponto ao liberalismo teológico desenvolvido na Europa a partir dos escritos de Friedrich Schleiermacher, que iniciou o movimento intelectual de rejeição aos dogmas. Apesar de Schleiermacher valorizar as experiências interiores da religião, influência do Romantismo alemão, o liberalismo teológico posterior adotou uma postura mais racionalista, mas ainda crítica ao dogmatismo. O fundamentalismo, oriundo do puritanismo, do pietismo wesleyano e do avivalismo, procurou reafirmar a ortodoxia dogmática por meio dos cinco “fundamentos da fé”: (1) a inerrância bíblica (portanto, sua literalidade), (2) o nascimento virginal de Jesus, (3) a remissão de pecados pelo sacrifício de Cristo, (4) a ressurreição corpórea de Cristo e (5) a realidade objetiva dos milagres de Cristo.
Dado o dogmatismo dos fundamentalistas, esse movimento com o tempo foi estigmatizado, surgindo dissidências e contrapontos. No entanto, os princípios do fundamentalismo se alojaram profundamente na forma de pensar do protestantismo norte-americano. Tanto que uma das práticas mais importantes oriundas do fundamentalismo, a “salvação das almas”, foi apropriada por quase todos os movimentos evangelicais por meio das missões para a pregação da fé. Dadas as características da pregação missionária, cujo objetivo não era a reflexão teológica acadêmica, uma grande dose de pragmatismo era necessária. Para isso, o fundamentalismo era a narrativa ideal, pois confrontava qualquer dúvida do novo convertido ao “Está escrito”, oriundo do dogma da inerrância da Bíblia.
Entretanto, mais importante do que os aspectos teológicos em si é o conservadorismo ideológico que o fundamentalismo protestante alimentou. Nos Estados Unidos, as igrejas fundamentalistas formaram a base social de resistência às pautas dos direitos civis e sociais. A visão dogmática da religião se sincretizou com o chauvinismo anglo-saxão, que foi muito útil para a geopolítica de Washington ao apropriar o mito da “nação escolhida” dos judeus para seu próprio contexto. Mais recentemente, essa mistura entre política e religião se condensou com o movimento neoconservador que apoiou Ronald Reagan. A fé protestante tornou-se, então, forte aliada da propagação do individualismo neoliberal, por meio tanto da teologia da prosperidade quanto do moralismo ascético meritocrático.
Importadas dos Estados Unidos, essas duas facetas são as que dominam ideologicamente a maior parte das igrejas evangélicas no Brasil.

Fundamentalismo e conservadorismo no protestantismo histórico brasileiro
Menos (re)conhecida que sua contraparte neopentecostal, há uma forte influência neoconservadora no seio das respeitáveis igrejas históricas brasileiras, cujas referências intelectuais são ditadas diretamente pelas congêneres norte-americanas. A maior parte das grandes questões que preocupam os debates teológicos brasileiros não advém da experiência histórico-geográfica brasileira e latino-americana, mas das que surgem no norte do continente. Isso é consequência tanto das opções do mercado editorial evangélico quanto da influência acadêmica das escolas de teologia dos Estados Unidos.
Apesar de essa influência difusa já ser antiga, fatos recentes vêm trazendo perturbadoras evidências da existência de um projeto político de aprofundamento dessa base conservadora alicerçada no fundamentalismo. Daremos o exemplo que nos parece mais claro, que é o da Convenção Batista Brasileira, que desde 2011 teve como presidentes dois pastores de Curitiba, o pastor Paschoal Piragine Júnior, da Primeira Igreja Batista de Curitiba, e o pastor Luiz Roberto Silvado, da Igreja Batista Bacacheri, que é a igreja do procurador Dallagnol e da psicóloga Marisa Lobo, notória militante da “cura gay”. Esses pastores vêm se destacando como porta-vozes religiosos do conservadorismo que fez de Curitiba sua capital nos últimos anos. Paschoal Piragine gerou polêmica em 2010 quando, de púlpito, afirmou diante de seus fiéis e das câmeras que votar no PT seria optar pela iniquidade, num claro constrangimento político a milhares de batistas. Piragine fazia alusão ao III Plano Nacional de Direitos Humanos, que naquele ano eleitoral fora um ponto de polêmica junto ao eleitorado evangélico. Já a Igreja Batista Bacacheri, que é “filha” da Primeira Igreja Batista de Curitiba, ganhou notoriedade por meio de Dallagnol, que tem se destacado por misturar sua atividade judicial com o discurso religioso, utilizando, inclusive, o meio evangélico para impulsionar suas controversas “Dez medidas contra a corrupção”, indo de igreja em igreja, sem abrir mão de seu status de procurador federal, para atuar como missionário de sua versão pessoal de moralização do país.3 Recentemente, o pastor Luiz Roberto Silvado gravou, por própria conta, uma mensagem pedindo aos batistas que orassem contra a corrupção no Brasil dias antes da prisão do ex-presidente Lula no controverso processo do triplex.
Repercutindo tais movimentos, Fábio Py,4 ex-professor do Seminário Teológico Batista do Sul do Brasil, localizado no Rio de Janeiro, comenta que está em curso uma reaproximação dos batistas brasileiros com organizações missionárias dos batistas do sul dos Estados Unidos, meio religioso no qual o racismo é particularmente forte. A liderança dos paranaenses na Convenção Batista Brasileira teria forte influência nesse encaminhamento, visto que a Faculdade Batista do Paraná, onde Piragine e Silvado exercem influência como professores e presidentes de duas das igrejas mais importantes do estado, mantém forte vínculo com os batistas do sul dos Estados Unidos, tendo inclusive dois professores norte-americanos em seus quadros.

Dissidências liberal-conservadoras: o caso da igreja Caminhos da Graça
Muitas dissidências têm surgido no meio protestante. Nem todas, porém, rompem com o caráter conservador derivado do fundamentalismo. Como exemplo, temos a igreja emergente Caminhos da Graça, fundada pelo ex-presbiteriano Caio Fábio D’Araújo, que teve importante presença entre os protestantes na década de 1990 à frente da Associação Evangélica Brasileira (AEVB). O pastor caiu em desgraça no final daquela década com o escândalo do Dossiê Cayman e com a revelação de um caso extraconjugal com a então secretária, considerado um pecado capital entre os evangélicos. Depois de um tempo no ostracismo, Caio Fábio vem pouco a pouco reconquistando espaço por meio das mídias sociais, atraindo inúmeros evangélicos deslocados dos meios protestantes históricos e neopentecostais. Tem se esforçado para reconstruir sua imagem como profeta injustiçado por um meio religioso corrupto e impenitente, adotando um discurso ácido contra as lideranças neopentecostais, sem poupar, entretanto, as lideranças progressistas que antes militaram ao seu lado na AEVB.
No campo político, Caio Fábio vinha mantendo uma crítica ao PT em tons moderados até 2013, quando passou a surfar na onda de antipetismo (e antiesquerdismo) que varreu o país após as jornadas de junho de 2013. Antes da campanha de 2014, passou a adotar um discurso que se associou com as fake news difundidas pela extrema direita nas redes sociais. Chegou a afirmar que vivíamos numa ditadura petista, que tinha por objetivo transformar o Brasil numa nova Venezuela. Não satisfeito, articulou um hangout com Olavo de Carvalho e Danilo Gentilli, em que teses delirantes sobre uma conspiração petista foram afirmadas, com o testemunho probatório do pastor de que o caso do Dossiê Cayman era, no final de tudo, uma armação de Lula. Desde então, Caio Fábio passou a fazer coro ao linchamento público do petismo, apoiando as medidas de exceção contra suas principais lideranças e o próprio golpe de Estado, e vez ou outra repercutindo fake news oriundas de fontes de extrema direita, entre as quais o site O Antagonista.
Apesar disso, Caio Fábio não pode ser classificado como um fundamentalista no plano teórico, visto que possui interpretações bastante heterodoxas de alguns dogmas cristãos. Entretanto, ele mantém uma relação bastante ambígua com o fundamentalismo, ora criticando-o, ora apropriando-se de alguns de seus pressupostos, dependendo da pessoa a quem destina seu discurso beligerante. No âmbito ideológico, tem misturado um discurso liberal nos costumes (menos em relação aos gays, a quem ele diz aceitar, desde que calados) e conservador na política, analisada por meio de seu prisma moralista particular. Carregado por uma linguagem que exagera pelo pedantismo, ele tem marcado sua trajetória recente por um enorme personalismo, anulando a emergência de outras lideranças em seu meio religioso – característica, aliás, já presente nos tempos de AEVB, conforme analisou o sociólogo protestante Paul Freston anos atrás.5

Há esperança?
Diante de tal quadro, pode-se afirmar que a expansão dos evangélicos no Brasil representou um grande retrocesso ideológico, pela enorme influência do fundamentalismo e do neopentecostalismo nesse processo. Evangélicos e protestantes ideologicamente mais progressistas e à esquerda têm tido, portanto, pouco espaço nesses meios religiosos. Muitos ficam divididos entre o que ouvem todos os domingos na igreja e o que sentem no tocante à sua realidade social.
Entretanto, vêm ressurgindo novos movimentos que buscam retomar práticas religiosas mais libertárias e socialmente comprometidas. Em destaque, surgiu recentemente a Frente Evangélica pelo Estado de Direito, que conta com a contribuição de expoentes como Ariovaldo Ramos, antigo colaborador da AEVB, e grupos aqui e ali que têm tentado contrapor o discurso conservador dominante, realizando interpretações dos Evangelhos à luz da luta pelos direitos humanos. Num Brasil cada vez mais evangélico, não se pode deixar de saudar a emergência desses novos movimentos, visto que, num país profundamente religioso, o combate à injustiça social precisa ter sua tradução religiosa.

*Robson Santos Dias é professor do Instituto Federal Fluminense.

(Publicado originalmente no site do Le Monde Diplomatique Brasil)
 

Charge! Folha de São Paulo

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