As desconstruções de Jacques Fux
O trabalho de Jacques Fux mostra-se extremamente importante para o desenvolvimento dos estudos literários contemporâneos
por Roniere Menezes
Jacques Fux é um jovem escritor e ensaísta de rara potência criativa. Suas obras inauguram um lugar diferencial no campo literário brasileiro. Fux é autor dos livros Antiterapias, de 2012, que venceu o Prêmio São Paulo de Literatura de 2013 e Brochadas, de 2015, que recebeu menção honrosa no Prêmio Cidade de Belo Horizonte, e lança, em agosto de 2016, oLiteratura e matemática: Jorge Luís Borges, Georges Perec e o OULIPO, pela Editora Perspectiva, fruto de premiada tese de doutorado defendida na Faculdade de Letras da UFMG em cotutela com a Universidade de Lille 3, na França.
O trabalho de Jacques Fux mostra-se extremamente importante para o desenvolvimento dos estudos literários contemporâneos, inclusive se pensarmos na noção de literatura como campo expandido, não circunscrito apenas à imanência estético-discursiva. Os textos de Fux apontam para uma grande intimidade com cânone literário nacional e internacional, com pesquisas filosóficas, matemáticas e históricas. Em suas narrativas, de forte caráter ensaístico, o autor transita entre memórias, discussões literárias, culturais e políticas – sem se esquecer dos dramas cotidianos do homem comum. Os textos vêm sempre acompanhados de jogos, chistes e tons humorísticos. As múltiplas perspectivas adotadas relacionam-se aos vários gêneros empregados; entre esses, cabe ressaltar o emprego de cartas e e-mails na construção ficcional de Brochadas.
A noção de transdisciplinaridade – além do comparativismo literário – ecoa em todo o percurso do autor. Um forte dado a ressaltar é a importância dada por Jacques Fux, em seu livro Literatura e matemática, ao lugar da fabulação, da imaginação, em qualquer trabalho acadêmico ou produção humana. Em A partilha do sensível, o filósofo Jacques Rancière dialoga com essa questão levantada pelo escritor-ensaísta. Segundo Rancière, “O real precisa ser ficcionado para ser pensado”. (RANCIÉRE, 2009, p. 58) e continua: “A política e a arte, tanto quanto os saberes, constroem “ficções”, isto é, rearranjos materiais dos signos e das imagens (…).” (RANCIÉRE, 2009, p. 59).
Chamam-nos a atenção a clareza e a precisão matemáticas na escrita de Fux, o cuidado com a elaboração de frases curtas, onde estampam palavras bem escolhidas. O narrador convida o leitor a experimentar jogos, aproximações inusitadas entre campos de saberes distintos;apresenta reflexões sobre conflitos existentes nas relações humanas;aborda diálogos entre matemática e literatura, mas sempre com leveza – característica cara a Ítalo Calvino, como sabemos. Os textos lidam extremamente bem com o humor, a ironia e a auto-ironia, desconstroem paradigmas e recalques relativos à sexualidade e trazem novas visões sobre a questão judaica na contemporaneidade.
Em seus livros de ficção Antiterapias e Brochadas, Fux traz para o campo literário algumas das discussões e propostas artísticas presentes no seu inaugural Literatura e matemática:Jorge Luís Borges, Georges Perec e o OULIPO, como a questão do jogo, do método de trabalho criativo, das limitações da escrita que contribuem para estimular a criação, da formulação de listas etc.
A lógica matemática, o pensamento libertário e a desconstrução de paradigmas associam-se, em Jacques Fux, à busca de uma comunicação franca com o público leitor. O autor produz textos densos, complexos, dotados de citações eruditas, mas ao mesmo tempo preocupa-se com o entendimento e a fruição da recepção. Como ávido leitor e bom conhecedor das tramas do discurso literário, Fux almeja, em sua escrita,estabelecer interessantes pactos narrativos com a recepção; muitas vezes o narrador trata o leitor como um velho conhecido. Essa estratégia rompe com alguns distanciamentos mais convencionais existentes entre autor e leitor. Em Fux, o que parece brincadeira, abre novas clareiras para nossas percepções de mundo; o que parece sério,revela-se marcado pelo caráter lúdico da linguagem. Nesse diálogo, o leitor não quer deixar o livro que começou a ler e segue sua rota de aprendizagens e surpresas, conduzido pelas experientes mãos do narrador, o que não impede a construção de trajetos singulares de interpretação.
A autoficção, a memória e a relação desta com a ficção aparecem na produção literária de Fux paralelamente a questionamentos metalinguísticos. Nesse sentido, vale ressaltar a tranquilidade que o narrador demonstra ao retirar aspas em diversas citações clássicas da literatura, “esquecendo-se” do nome do antigo autor. Fazendo assim, o narrador aproxima, mais uma vez, sua escrita de uma conversa amigável com o leitor, lembrando diálogos em que são citadas frases ou versos de importantes autores. Além disso, essa estratégia ficcional de Fux explicita aquilo que é comum a toda obra literária: a relação com outras obras, a eleição de textos e autores que seguirão como imprescindíveis parceiros de caminhada. Como sabemos, Jorge Luís Borges assinalou, em “Pierre Menard, autor de Quixote”: “Pensar, analisar, inventar” passam pelo critério de “entesourar antigos e alheios pensamentos” (BORGES, 1986, p, 38). Não há aí nada de anormal ou condenável, pois a inteligência respira normalmente dessa forma.Mário de Andrade também defendia a criação literária (e musical) como jogo, como paródia e paráfrase de outras obras. A rapsódia Macunaíma é um exemplo dessa proposta.
A ampla rede intertextual construída por Jacques Fux desvela um jovem autor totalmente imerso na cultura letrada, dotado de amplas e sofisticadas referências. A obra de Fux ajuda combater o receio que diversos leitores iniciantes têm da filosofia, da matemática, da história – e da própria literatura. Os livros ampliam nossas percepções a respeito dos campos disciplinares ao propor novas possibilidades de interação entre áreas diversas. Em seus textos, as tramas sensíveis e bem articuladas possibilitam-nos enxergar as fronteiras como instâncias de porosidade, de trocas, e não como lugar de impedimento ao livre trânsito de experiências e saberes.
A produção literária de Jacques Fux apresenta, em suas nuanças, uma ideia que tem sido resgatada na contemporaneidade: a noção de comum. Seus textos literários e ensaísticos – distantes de facilidades empobrecedoras – contribuem para que diversas produções da arte, da literatura e da ciência sejam mais bem partilhadas e se tornem um direito comunitário. Para isso, entram em cena a imaginação, o humor, o apuro técnico e a linguagem desconstrutora de convenções morais, sociais e disciplinares. A literatura expandida realizada por esse inquieto escritor, além de sua força linguístico-expressiva, termina por propor a construção de novos espaços éticos e estéticos no corpo social.
(Publicado originalmente no site da Revista Cult)
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