pub-5238575981085443 CONTEXTO POLÍTICO. : Ensaio: "O Brasil não é para principiante"
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sexta-feira, 2 de agosto de 2019

Ensaio: "O Brasil não é para principiante"


Celebrado na última Flip, o angolano Kalaf Epalanga faz um balanço de sua passagem por aqui e questiona: “até quando irá durar esse fla-flu?”
Kalaf Epalanga 31jul2019 15h10
 

O escritor angolano Kalaf Epalanga
A frase título deste texto é atribuída ao maestro António Carlos Jobim, e surgiu-me no momento em que as rodas do Boeing 777 que me levava de regresso à Europa se desprenderam do asfalto de Guarulhos. A luz crepuscular que cobre a selva urbana paulista revelou-se então em todo o seu esplendor. Um momento melancólico que caracteriza as despedidas, não fosse o Brasil, como todos os países que se expressam na língua de Noémia de Sousa, um país tão íntimo da saudade. É um género de tristeza que tanto ri como chora, confundindo gente bem-intencionada que a tenta entender, mas que ainda desconhece este nosso gingado. Sou vosso cúmplice, sei bem onde a melancolia começa e do que se alimenta, de incerteza.

Que Brasil é este?
A pergunta leva até os mais céticos a coçarem a cabeça diante de tanto absurdo, desconfiados de estarem a viver dentro de um enredo saído do lápis de Dias Gomes. O frio da situação fazia-se sentir nas noites de Paraty, onde a convite da sua Festa Literária Internacional (Flip) pude testemunhar o aflorar das emoções sempre que o tópico se esquivava da literatura e fugia para a política. Nasci no país da Rainha Nzinga Mbande e, por lá, a discussão acabar em política é-nos inevitável, até quando falamos de amor damos um jeito de politizá-lo. Para nós, angolanos, o conceito de soberania saiu-nos caro, foi conquistado, e levar política para todas as discussões tornou-se uma forma de nos mantermos vigilantes, exercitando o músculo da memória.

Diante das plateias que visitei no festival, pensei no quão jovens são os nossos estados democráticos, talvez por sentir a presença de uma nuvem bem carregada pairando sobre a cabeça dos presentes. Os nervos nem sempre foram de roer unha, mas a tensão foi sempre palpável. Assim foi no Auditório da Matriz, quando o ruído da rua invadiu a arena onde decorriam os debates da festa literária mais celebrada do Brasil. Alguém sussurrou, explicando, que eram ‘os pró-situação, protestando contra a presença de Glenn Greenwald’, que naquele momento discursava, junto à margem esquerda do rio Perequê-Açu, sobre os desafios do jornalismo em tempos de Lava Jato. O hino nacional começou a tocar no volume máximo para silenciar um dos pilares da democracia, o direito a uma imprensa livre. As ameaças de morte feitas ao gringo da Intercept destoavam dos versos da canção nacional, e até direito a foguetes o jornalista teve, como manobra explosiva para afastar a atenção da sua voz. 
Dentro do auditório, Grada Kilomba, a generosa xamã de voz serena, nos tocava fundo na alma a cada frase proferida, expondo feridas e aplicando bálsamo da verdade, lembrando-nos a todos de como se luta jogando limpo. Por um pouco, suspirou-se de alívio. Eu, sentado no palco, ao lado de Grada e da historiadora Lilia Schwarcz, com quem partilhei o privilégio de moderar a conversa com uma das mais importantes vozes culturais do nosso tempo, respirei fundo. Olhando para o rosto das pessoas que lotavam os 512 lugares daquela arena, não pude deixar de me questionar: até quando irá durar esse fla-flu entre brasileiros?
Tempo. 
“Como soube bem”, partilhavam conosco os leitores que nos chegavam, depois de enfrentarem longas filas de autógrafos. Entre os sorrisos e confissões de gratidão, era possível identificar-lhes o ar atordoado, fazendo lembrar um pugilista que recupera no intervalo de um combate. As pessoas estão cansadas de defender a punho os seus pensamentos e posicionamentos ideológicos e, em Paraty, com os nossos livros nas mãos, ou num abraço afetuoso para a obrigatória selfie, senti que aquele contacto com as autoras e autores representavam a tão desejada pausa, o momento em que os lutadores estão recolhidos no canto do ringue, com a cabeça a latejar da troca de socos. Quase todos pareciam tentar lembrar-se de quando tudo isto começou e como foi possível chegar onde se chegou. 
A primeira vez que visitei a Flip foi em 2017, como espectador, e lembro-me de me sentir maravilhado com a proximidade entre autores e público. A minha atenção, na altura, foi sobretudo para a participação de autoras negras, presença essa que se fez sentir na edição seguinte, em 2018, e se refletiu também neste ano, onde não só marquei presença enquanto autor, como acabei por fazer parte da lista de livros mais vendidos. No topo da tabela, duas escritoras negras de origem africana: Grada Kilomba e Ayọ̀bámi Adébáyọ̀. Depois delas, Ailton Krenak, um brasileiro original da tribo dos crenaques, e depois, eu e Gaël Faye, parceiro de mesa com quem me encontrei ali pela primeira vez, mas que, durante a nossa conversa, moderada por Marina Person, senti como se tratasse de um reencontro de velhos amigos. ‘A Flip também é isso’, confessavam-nos os veteranos do mercado literário. 
Isso e muito mais. 
Uma lista liderada por autoras e autores negros suscita muitas perguntas e, quando questionado sobre o assunto por jornalistas, não consegui deixar de reparar que, embora seja motivo de celebração, essa possibilidade de festa existe devido ao conjunto de politicas sociais — incluído o sistema de cotas nas universidades brasileiras — que permitem o surgimento lento, mas consistente, de um grupo de consumidoras e consumidores ávidos por uma cultura plural, que até há bem pouco tempo não tinha acesso a espaços de produção e celebração de pensamento. 
No entanto, para celebrarmos esta lista feito bloco Olodum a passar na avenida, faltam ainda, ao lado destas autoras e autores, os nomes de editoras e editores negros, que nos garantirão, sem mais desconfianças, que estes números de vendas não se tratam de uma moda no mercado editorial brasileiro, reagindo a uma tendência global no universo da literatura contemporânea. É preciso que em quantidades ajustadas com a realidade social brasileira, as estórias e a história dos 54% dos brasileiros -  negras e negros - narradas por autores e autoras de pele escura, como a de Conceição Evaristo, sejam visíveis e recebidas por todos os amantes de literatura, só assim os dados estatísticos dessa ordem deixarão de dominar as manchetes. 
Numa sociedade onde nas suas Letras perfilam nomes como os de Maria Firmina dos Reis e o de Machado de Assis, listas com autores negros estrangeiros, ainda que importantes, não deveriam ser motivo de manchete. Em destaque no jornal deveria estar o que, nos últimos três anos, os leitores da Flip, ao colocarem na tabela dos mais vendidos Lázaro Ramos, Djamila Ribeiro e Geovani Martins, demonstram: um Brasil que, entre explosões e hinos em volume máximo, luta desde sempre, e não aceita mais que a sua voz se pareça a um grito abafado junto a um rio. Pede agora, e mais do que nunca, um Brasil brasileiro. E dentro dele, sabemos que cabe o mundo.
Que se abra então a cortina do passado!

(Publicado originalmente no site da Revista dos Livros Quatro Cinco Um)

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