Celebrado na última Flip, o
angolano Kalaf Epalanga faz um balanço de sua passagem por aqui e
questiona: “até quando irá durar esse fla-flu?”
Kalaf Epalanga
31jul2019 15h10
O escritor angolano Kalaf Epalanga
A
frase título deste texto é atribuída ao maestro António Carlos Jobim, e
surgiu-me no momento em que as rodas do Boeing 777 que me levava de
regresso à Europa se desprenderam do asfalto de Guarulhos. A luz
crepuscular que cobre a selva urbana paulista revelou-se então em todo o
seu esplendor. Um momento melancólico que caracteriza as despedidas,
não fosse o Brasil, como todos os países que se expressam na língua de
Noémia de Sousa, um país tão íntimo da saudade. É um género de tristeza
que tanto ri como chora, confundindo gente bem-intencionada que a tenta
entender, mas que ainda desconhece este nosso gingado. Sou vosso
cúmplice, sei bem onde a melancolia começa e do que se alimenta, de
incerteza.
Que Brasil é este?
Que Brasil é este?
A pergunta leva até os mais céticos a coçarem a
cabeça diante de tanto absurdo, desconfiados de estarem a viver dentro
de um enredo saído do lápis de Dias Gomes. O frio da situação fazia-se
sentir nas noites de Paraty, onde a convite da sua Festa Literária
Internacional (Flip) pude testemunhar o aflorar das emoções sempre que o
tópico se esquivava da literatura e fugia para a política. Nasci no
país da Rainha Nzinga Mbande e, por lá, a discussão acabar em política
é-nos inevitável, até quando falamos de amor damos um jeito de
politizá-lo. Para nós, angolanos, o conceito de soberania saiu-nos caro,
foi conquistado, e levar política para todas as discussões tornou-se
uma forma de nos mantermos vigilantes, exercitando o músculo da
memória.
Diante das plateias que visitei no festival, pensei no quão jovens são os nossos estados democráticos, talvez por sentir a presença de uma nuvem bem carregada pairando sobre a cabeça dos presentes. Os nervos nem sempre foram de roer unha, mas a tensão foi sempre palpável. Assim foi no Auditório da Matriz, quando o ruído da rua invadiu a arena onde decorriam os debates da festa literária mais celebrada do Brasil. Alguém sussurrou, explicando, que eram ‘os pró-situação, protestando contra a presença de Glenn Greenwald’, que naquele momento discursava, junto à margem esquerda do rio Perequê-Açu, sobre os desafios do jornalismo em tempos de Lava Jato. O hino nacional começou a tocar no volume máximo para silenciar um dos pilares da democracia, o direito a uma imprensa livre. As ameaças de morte feitas ao gringo da Intercept destoavam dos versos da canção nacional, e até direito a foguetes o jornalista teve, como manobra explosiva para afastar a atenção da sua voz.
Diante das plateias que visitei no festival, pensei no quão jovens são os nossos estados democráticos, talvez por sentir a presença de uma nuvem bem carregada pairando sobre a cabeça dos presentes. Os nervos nem sempre foram de roer unha, mas a tensão foi sempre palpável. Assim foi no Auditório da Matriz, quando o ruído da rua invadiu a arena onde decorriam os debates da festa literária mais celebrada do Brasil. Alguém sussurrou, explicando, que eram ‘os pró-situação, protestando contra a presença de Glenn Greenwald’, que naquele momento discursava, junto à margem esquerda do rio Perequê-Açu, sobre os desafios do jornalismo em tempos de Lava Jato. O hino nacional começou a tocar no volume máximo para silenciar um dos pilares da democracia, o direito a uma imprensa livre. As ameaças de morte feitas ao gringo da Intercept destoavam dos versos da canção nacional, e até direito a foguetes o jornalista teve, como manobra explosiva para afastar a atenção da sua voz.
Dentro do auditório, Grada Kilomba,
a generosa xamã de voz serena, nos tocava fundo na alma a cada frase
proferida, expondo feridas e aplicando bálsamo da verdade, lembrando-nos
a todos de como se luta jogando limpo. Por um pouco, suspirou-se de
alívio. Eu, sentado no palco, ao lado de Grada e da historiadora Lilia
Schwarcz, com quem partilhei o privilégio de moderar a conversa com uma
das mais importantes vozes culturais do nosso tempo, respirei fundo.
Olhando para o rosto das pessoas que lotavam os 512 lugares daquela
arena, não pude deixar de me questionar: até quando irá durar esse
fla-flu entre brasileiros?
Tempo.
“Como soube bem”, partilhavam conosco os leitores
que nos chegavam, depois de enfrentarem longas filas de autógrafos.
Entre os sorrisos e confissões de gratidão, era possível
identificar-lhes o ar atordoado, fazendo lembrar um pugilista que
recupera no intervalo de um combate. As pessoas estão cansadas de
defender a punho os seus pensamentos e posicionamentos ideológicos e, em
Paraty, com os nossos livros nas mãos, ou num abraço afetuoso para a
obrigatória selfie, senti que aquele contacto com as autoras e autores
representavam a tão desejada pausa, o momento em que os lutadores estão
recolhidos no canto do ringue, com a cabeça a latejar da troca de socos.
Quase todos pareciam tentar lembrar-se de quando tudo isto começou e
como foi possível chegar onde se chegou.
A primeira vez que visitei a Flip foi em 2017, como
espectador, e lembro-me de me sentir maravilhado com a proximidade entre
autores e público. A minha atenção, na altura, foi sobretudo para a
participação de autoras negras, presença essa que se fez sentir na
edição seguinte, em 2018, e se refletiu também neste ano, onde não só
marquei presença enquanto autor, como acabei por fazer parte da lista de
livros mais vendidos. No topo da tabela, duas escritoras negras de
origem africana: Grada Kilomba e Ayọ̀bámi Adébáyọ̀. Depois delas, Ailton Krenak, um brasileiro original da tribo dos crenaques, e depois, eu e Gaël Faye,
parceiro de mesa com quem me encontrei ali pela primeira vez, mas que,
durante a nossa conversa, moderada por Marina Person, senti como se
tratasse de um reencontro de velhos amigos. ‘A Flip também é isso’,
confessavam-nos os veteranos do mercado literário.
Isso e muito mais.
Uma lista liderada por autoras e autores negros
suscita muitas perguntas e, quando questionado sobre o assunto por
jornalistas, não consegui deixar de reparar que, embora seja motivo de
celebração, essa possibilidade de festa existe devido ao conjunto de
politicas sociais — incluído o sistema de cotas nas universidades
brasileiras — que permitem o surgimento lento, mas consistente, de um
grupo de consumidoras e consumidores ávidos por uma cultura plural, que
até há bem pouco tempo não tinha acesso a espaços de produção e
celebração de pensamento.
No entanto, para celebrarmos esta lista feito bloco
Olodum a passar na avenida, faltam ainda, ao lado destas autoras e
autores, os nomes de editoras e editores negros, que nos garantirão, sem
mais desconfianças, que estes números de vendas não se tratam de uma
moda no mercado editorial brasileiro, reagindo a uma tendência global no
universo da literatura contemporânea. É preciso que em quantidades
ajustadas com a realidade social brasileira, as estórias e a história
dos 54% dos brasileiros - negras e negros - narradas por autores e
autoras de pele escura, como a de Conceição Evaristo, sejam visíveis e
recebidas por todos os amantes de literatura, só assim os dados
estatísticos dessa ordem deixarão de dominar as manchetes.
Numa sociedade onde nas suas Letras perfilam nomes
como os de Maria Firmina dos Reis e o de Machado de Assis, listas com
autores negros estrangeiros, ainda que importantes, não deveriam ser
motivo de manchete. Em destaque no jornal deveria estar o que, nos
últimos três anos, os leitores da Flip, ao colocarem na tabela dos mais
vendidos Lázaro Ramos, Djamila Ribeiro e Geovani Martins, demonstram: um
Brasil que, entre explosões e hinos em volume máximo, luta desde
sempre, e não aceita mais que a sua voz se pareça a um grito abafado
junto a um rio. Pede agora, e mais do que nunca, um Brasil brasileiro. E
dentro dele, sabemos que cabe o mundo.
Que se abra então a cortina do passado!
(Publicado originalmente no site da Revista dos Livros Quatro Cinco Um)
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