Censura na Bienal do Rio faz lembrar os maus bocados enfrentados por editores nos tempos da censura ditatorial
10set2019 13h09
A
censura voltou. Felizmente de forma explícita, na iniciativa de um
teocrata oportunista que, de olho nas eleições de 2020, decidiu fazer
festinha em seu rebanho pedindo a apreensão de um gibi na Bienal do
Livro do Rio de Janeiro. O beijo entre dois homens da HQ da Marvel pode
parecer um motivo trivial, mas a pauta moral, tão tola quanto aparenta, é
dos atalhos mais curtos para o cerceamento da liberdade de expressão.
Nenhuma ditadura nasce ditadura, mas se torna ditadura.
É
certo que, ao violentar a Constituição com a cumplicidade de um juiz, o
fundamentalista de chanchada conseguiu o que queria, afagar seus
eleitores. Mas também despertou uma reação inequívoca dos editores de
livros, que com raras e honrosas exceções vinham observando um silêncio
preocupante diante das sistemáticas ameaças aos princípios democráticos
anunciadas na campanha de 2018.
Há
menos de um mês participei de uma conversa na Livraria Leonardo da
Vinci, no Rio, sobre o que acontece com editores numa ditadura. Fui
falar sobre Jorge Zahar, que biografei; o editor e livreiro Marcus
Gasparian deu um depoimento sobre seu pai, Fernando, publisher do Opinião e
da Paz & Terra; Américo Freire, pesquisador da FGV, lembrou a
atuação de Ênio Silveira à frente da Civilização Brasileira. Na década
de 1960 como hoje, continua valendo o princípio: livros são alvo
preferencial do autoritarismo.
Os
três editores foram perseguidos por fazerem circular ideias e valores
contrários à ditadura civil-militar instaurada em 1964. No final daquele
ano, no início da escalada de arbítrio, Jorge teve que tirar os filhos
do Bennett, tradicional colégio carioca: o sobrenome Zahar tinha virado
sinônimo de História da riqueza do homem, e o livro de
Leo Huberman, um sinal exterior de pensamento crítico. Dos três, Jorge
foi o único a não ser preso. Ênio, seu melhor amigo, respondeu a sete
processos, e os pernoites na cadeia viraram rotina na vida de Fernando
Gasparian.
Jorge
e Fernando foram mais estratégicos no enfrentamento. Ênio desconhecia
sutilezas. Pouco antes da quartelada, tinha lançado uma coleção, a
Cadernos do Povo Brasileiro, com livrinhos baratos e didáticos de
títulos sugestivos como Quem dará o golpe no Brasil?, Por que os ricos não fazem greve? e Salário é causa da inflação?. Em 1965 criou a Revista da Civilização Brasileira e
nela publicou duas “Epístolas ao Marechal”, corajosas cartas abertas em
que interpelava o marechal Castello Branco. Sofreu represálias
econômicas, ameaças físicas e até um atentado terrorista, que destruiu a
livraria da Civilização Brasileira no Centro do Rio. Do ataque, ficou
um eloquente documento de barbárie, a foto terrível das portas da loja
retorcidas sob um cartaz com o lema da casa: “Quem não lê, mal fala, mal
ouve, mal vê”.
Na tese de doutorado A lista negra dos livros vermelhos: uma análise etnográfica dos livros apreendidos pela polícia política no Rio de Janeiro,
a pesquisadora Luciana Lombardo Costa Pereira constatou que, na lista
que nenhum editor gostaria de frequentar, os três primeiros lugares
ficaram justamente com a Civilização Brasileira (60 títulos), a Paz e
Terra (51) e a Zahar (30). Num relatório do período mais violento da
ditadura, a Zahar era acusada de “ação ideológica antidemocrática”
– talvez porque estampasse em seus livros o moto “a cultura a serviço do
progresso social”.
Em
1965, Ênio foi preso depois de ter oferecido um almoço a Miguel Arraes.
O famoso IPM da Feijoada, é claro, não deu em nada. Mas no dia 29 de
maio, os principais jornais publicaram o manifesto “Intelectuais e
artistas pela liberdade”. Assinado por mais de mil nomes, o documento
dizia: “Os intelectuais e artistas brasileiros abaixo-assinados pedem a
imediata libertação do editor Ênio Silveira, preso por delito de
opinião. Não entramos no mérito das opiniões políticas de Ênio Silveira,
mas defendemos seu direito de expressá-lo livremente, direito garantido
pelo artigo 141, parágrafo oitavo, da Constituição do país: ‘Por motivo
de convicção religiosa, filosófica ou política, ninguém será privado de
nenhum de seus direitos.’”
Mesmo
com uma mobilização cerrada, a ditadura só se intensificaria com mais
prisões, tortura, mortes e exílios. A anistia, marota, foi seletivamente
ampla, relativamente geral e, definitivamente, nada irrestrita.
Intacto, o autoritarismo continuou reproduzindo sua lógica nas sombras e
nas instituições. E, uma vez mais, bota na mira os livros, aqueles que
os publicam, os que os escrevem e os que os leem contra a imposição de
valores nefastos.
(Publicado originalmente no site da Revista dos Livros, Quatro Cinco Um)
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